Fábricas são escolas produtivas, por Paulo Gala.

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21/12/2020 Paulo Gala

Entrevista para a revista da Confederação Nacional das Indústrias (CNI)

1) Como você visualiza a política industrial do Brasil?
Erros de política industrial não significam que a política industrial não funciona. O fato de o Brasil não ter conseguido avançar mais no mercado mundial significa apenas que não executou essas políticas de maneira adequada. Eu destacaria: metas de exportação, metas de sofisticação tecnológica e metas de conquista de mercados mundiais. Tudo isso a Ásia do leste fez com maestria. Taiwan, Singapura, Corei do Sul e hoje China. Foram milagres produzidos por políticas industriais bem feitas. No Brasil não conseguimos avançar tanto quanto eles e jogamos a toalha a partir dos anos 90. Abrir mão de políticas industriais significa abrir mão da possibilidade de se desenvolver.

2) Em que medida o sistema financeiro pode potencializar a atividade industrial no país?
O salto de escala e tecnológico das indústrias de países pobres e de renda média não vai ocorrer sem políticas adequadas que recuperem o papel dos bancos públicos como por exemplo o BNDES. A experiência asiática da segunda metade do século XX demonstra que é incontornável a constituição de um sistema financeiro formado pela interação virtuosa entre grandes bancos comerciais públicos e privados. Bancos de desenvolvimento de grande porte são necessários para desenvolver instrumentos financeiros destinados ao crédito de longo prazo. É bastante reconhecida entre economistas a necessidade da intervenção do Estado em processos que envolvam externalidades positivas e negativas, informação assimétrica, incerteza, risco elevado e concentração do poder econômico. Entre as externalidades positivas estão a construção de infraestrutura e outros bens públicos, como a geração de conhecimento científico e tecnológico, papel que muitas vezes cabe ao investimento público e apoio de bancos públicos.

3) Uma das demandas do setor é o prolongamento dos programas emergenciais de financiamento e da política de expansão de crédito. Como você visualiza essa demanda?
A implosão da economia brasileira em 2014 e 2015 arrastou nossa indústria para uma monumental queda até hoje não recuperada. O desaparecimento do crédito e da demanda interna tiveram efeitos diretos e violentos na produção doméstica de carros, motos, caminhões, moveis, eletrodomésticos, bens de consumo em geral, matérias da construção civil, aço, entre outros. Nossa produção industrial colapsou com queda de 20% entre 2014 e 2016; e lá ficou até hoje. Nossa retomada econômica desde então foi muito tênue. O pouco que crescemos foi baseado em serviços de baixa qualidade; novos empregos com salários menores e mais precários foram gerados. O pouco nível de proteção que ainda existe para nossa indústria nacional também não resolveu o problema. O auxílio de emergência somado a uma taxa de câmbio mais desvalorizada e juros SELIC na mínima trouxeram novas perspectivas. A transferência de renda via auxílio de emergência representará algo como 6% do PIB, com transbordamento de demanda para indústria. A SELIC em mínima histórica e juros reais negativos trouxeram importante impulso ao setor de construção civil que aumentou a demanda por bens industriais. A taxa de câmbio acima de R$5 aumento muito a competividade de nossa produção
industrial aqui e lá fora. Tudo isso deveria ser mantido em 2021, claro que com níveis menores do auxílio emergencial. Seriam ótimas e novas notícias para o setor. Ainda num contexto de pandemia o BNDES deveria ser usado para assumir riscos que bancos privados não aceitam. Isso ocorreu em parte com o fundo público criado pelo governo para socorrer pequenas e médias empresas, o PRONAMPE. Essas medidas deveriam ser mantidas a meu ver.

4) Você costuma dizer que “a indústria é a escola produtiva da economia”. O que isso significa exatamente?
O conhecimento formal codificado (alfabetização, conhecimento matemático e científico) é importante para adquirir habilidades específicas necessárias à prática profissional. Mas é na prática profissional que o conhecimento do tipo não codificado, que se manifesta no “know-how” embutido em rotinas inconscientes e muitas vezes complexas, é compreendido e internalizado. Isso ocorre em geral no setor manufatureiro e de serviços complexos atrelados. A indústria converte o capital humano aprendido nas escolas em produtos e serviços de alto valor agregado. Estudos da OCDE mostram que de todos os setores de uma economia as manufaturas são sempre os setores que mais gastam em pesquisa e desenvolvimento como proporção de suas vendas e valor adicionado.

5) E como o setor industrial contribui para a formação desse conhecimento?
Embora muitas empresas de países em desenvolvimento possam adquirir máquinas para atividades básicas de produção e contem com razoável disponibilidade de trabalhadores qualificados, falta-lhes a capacidade de produzir novas tecnologias e novas máquinas. Tecnologias essas que demandam um complexo processo de aprendizagem produtiva em empresas que tem marcas e processos proprietários, patentes e know how diferenciado. Esse tipo de dinâmica de inovação e aprendizagem se encontra na maioria das vezes no setor industrial. Países hoje emergentes apenas usam as máquinas, países ricos produzem as máquinas no coração de seus sistemas industriais.

6) Um dos problemas do país é a baixa escolaridade da população. Em que medida reverter esse cenário vai contribuir para o crescimento da produtividade industrial?
É ilusório acreditar que a mera escolarização da população será capaz de elevar a produtividade aos níveis requeridos pela competitividade nos mercados internacionais. A transformação estrutural em tempos de acelerada evolução tecnológica requer uma estratégia de aprendizagem tecnológica eficaz. Para tanto, é preciso identificar os hiatos de conhecimento relevantes em diversas industriais e as políticas que podem ser implementadas de maneira correta para lidar com essas deficiências. Os mercados mundiais para produtos nobres do ponto de vista tecnológicos são naturalmente concentrados. A inovação e o domínio tecnológico criam barreiras à entrada nos mercados, o que por sua vez cria poder de monopólio para as empresas. Existe enorme assimetria no comercio global que não poderá ser apenas compensada com investimento em educação. Políticas públicas precisam ser desenhadas em países emergentes para que se possa nivelar esse campo de jogo inclinado em favor de países hoje desenvolvidos.

7) Qual a relevância da indústria para o desenvolvimento econômico de uma nação?
Desenvolvimento econômico é acúmulo de capital humano, de conhecimento de uma sociedade que se traduz na capacidade de produzir bens e serviços complexos que geram altos lucros e salários. Para isso não basta que um país invista em educação. Precisa cultivar a indústria. O setor industrial é o único capaz de converter o acúmulo de conhecimento em produtos e serviços que geram a riqueza das nações. O processo de desenvolvimento econômico pode ser entendido como uma industrialização rumo a fronteira tecnológica mundial. Os países hoje ricos mantem a produção manufatureira de altíssimo conteúdo tecnológico em seu território junto com serviços empresariais complexos associados a essa produção. Transferem para países pobres as fábricas poluidoras e de baixo valor adicionado. Quando um país enriquece a indústria perde participação absoluta no PIB mas continua enorme em termos absolutos. Países hoje ricos tem a maior produção industrial do mundo tanto em termos absolutos quanto per capita. Não existe desenvolvimento econômico sem um setor industrial pujante.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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