Fragilidade fiscal da União colocou Brasil em enrascada, por Salto e Pellegrini

Compartilhe

País está vulnerável e precisa construir consenso político em torno de medidas de ajuste das contas públicas

Felipe Salto, Economista-chefe da Warren Investimentos. Foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo (2022) e diretor-executivo da IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado

Josué Pellegrini, Doutor em economia pela USP e economista da Warren Investimentos. Foi diretor da IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado

Folha de São Paulo, 29/09/2024

A estabilização da dívida pública federal, necessária para lidar com a situação frágil das finanças da União, requer um ajuste de dois pontos percentuais do PIB, argumentam autores, que sugerem medidas como a redução de benefícios tributários e de transferências para estados e municípios, pelo lado da receita, e alteração da política do salário mínimo, reformulação de programas sociais e nova fórmula de cálculo de emendas parlamentares, pelo lado da despesa.

Após várias decisões tomadas ao longo dos anos que fragilizaram as finanças da União, o país se se meteu em uma enrascada. As iniciativas partiram tanto do Congresso Nacional quanto do Executivo federal. A debilidade deste Poder diante daquele e a polarização política agravaram o problema.

Uma parcela da população foi beneficiada por essas mudanças, mas também grupos de interesse, empresas e entes subnacionais. Em muitos casos, as decisões não seriam justificáveis, submetidas a uma análise mais detida, pelo menos não na dimensão dos custos assumidos.

Concretamente, a fragilidade da União se traduz em déficits primários sucessivos e elevados, vale dizer, despesas mais elevadas que as receitas, já descontadas as receitas e as despesas financeiras e a partilha da receita com os demais entes federados. Como os déficits precisam ser financiados, a dívida pública sobe continuamente, sem perspectiva de estabilidade em um horizonte aceitável.

A dívida pública do Brasil, medida pela dívida bruta do governo geral, chegou a 78,5% do PIB em julho e cresce rapidamente, 4,1 pontos percentuais do PIB apenas neste ano. Relativamente a países de nível similar de desenvolvimento, nossa dívida é uma das maiores. A comparação com países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), como EUA e Japão, não faz sentido, pois os “limites” e as condições são bem mais dilatados nesses casos.

De acordo com nossas projeções para o déficit primário e a taxa de juros, a dívida deverá chegar a 95% do PIB até 2033. É muito tempo com um passivo crescente. Não se pode operar testando limites, sem margem para enfrentar imprevistos, como tragédias climáticas ou de saúde pública, eventos cada vez menos raros.

Os reflexos na economia da fragilidade fiscal da União são vulnerabilidade a crises e taxas de juros elevadas, dois dos principais inimigos dos investimentos produtivos. Esse é o canal que leva ao crescimento sustentável, com aumento da capacidade produtiva e da produtividade. A parcela mais pobre da população é a mais afetada pelo desempenho aquém do esperado.

Qual o tamanho do desafio?

Em 2024, o déficit primário do governo central deverá ser de 0,5% do PIB. Em 2025, dificilmente ficará abaixo de 0,6% do PIB, conforme se depreende do PLOA (projeto de lei orçamentária anual) da União, recém-enviado ao Congresso Nacional. Mesmo que o déficit vá a zero em todo o período 2026-2033, a dívida ultrapassará os 90% do PIB em 2032.

Será preciso gerar superávits primários para estabilizar a dívida pública em proporção do PIB. Supondo-se ação imediata, com revisão do PLOA 2025, se o resultado melhorar 0,5 ponto percentual de PIB por ano, a partir do déficit de 0,5% do PIB de 2024, chegaremos ao superávit de 1,5% do PIB em 2028. Com isso, a dívida estabilizará perto do nível de 82% do PIB, permitindo alguma redução do superávit nos anos seguintes.

Se precisamos passar de déficit de 0,5% do PIB em 2024 para superávit de 1,5% do PIB em 2028, o ajuste requerido é de algo como dois pontos percentuais do PIB, ou cerca de R$ 230 bilhões, com base no PIB de 2024. Seriam quase R$ 60 bilhões por ano no período.

O ajuste necessário poderá ser maior se o chamado déficit estrutural, de 2024, estiver acima de 0,5% do PIB. Esse conceito de déficit desconta as receitas e as despesas atípicas ou afetadas pelo ciclo econômico. Se assim for, o ponto de partida seria pior, o que exigiria mais tempo para chegar ao superávit desejado, com a estabilização da dívida em um nível mais alto.

A boa notícia é que o custo do ajuste pode ser reduzido pelo efeito da melhoria progressiva do resultado primário da União sobre a taxa de juros. Isso dependeria da apresentação de um programa confiável, com detalhamento das medidas de ajuste e respectivos impactos esperados para cada ano do período coberto. A aprovação da LOA 2025 com as medidas necessárias para levar ao déficit zero, por exemplo, já produziria importante impacto nesse aspecto.

Os efeitos positivos seriam mais significativos com a inclusão do programa no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, algo também recomendável por se tratar de um programa que envolveria mais de um mandato presidencial. Vale observar que a busca da sustentabilidade fiscal está prevista em artigos da Constituição Federal.

O que fazer pelo lado da receita?

O diagnóstico acima talvez não gere grandes controvérsias. Discordância maior reside nas medidas de aumento de receitas e de corte de despesas a serem adotadas para fortalecer as finanças da União. A distribuição dos custos parte da definição de prioridades e passa pela análise dos efeitos positivos e negativos das diferentes políticas públicas existentes.

A carga tributária do Brasil parece ter encontrado um limite máximo, já que não tem ultrapassado os 33% do PIB desde os anos 1990. Esse percentual já está bem próximo da média de 34% do PIB dos países da OCDE.

A opção mais promissora para aumentar a receita em relação ao PIB (e melhorar a progressividade) é reduzir os benefícios tributários, de modo que a carga cresce, mas apenas para os antigos beneficiários dos respectivos incentivos.

Outro modo de incrementar as receitas da União é reduzir a participação das partilhas com os entes subnacionais. Em relação ao PIB, as transferências subiram de 3,5% do PIB, em 2013, para 4% do PIB, em 2023, enquanto a receita primária total da União caiu de 22,5% do PIB para 21,5% do PIB. Como consequência, a relação entre as transferências e a receita primária total da União subiu de 15,7% para 18,6% no mesmo período. Esses percentuais correspondem à média de cinco anos.

Essa mudança na participação tende a elevar as despesas do setor público, assim como o déficit e a dívida. Os entes subnacionais não têm a sustentabilidade fiscal e a estabilidade macroeconômica entre suas atribuições, não havendo razão para gerar superávits primários. Um motivo para isso seria a necessidade de pagar a dívida junto à União, mas as sucessivas renegociações dessa dívida e o uso de meios judiciais desde 2014 reduziram significativamente os pagamentos feitos.

Nesse sentido, dois projetos complementares que tramitam no Congresso Nacional agravam o problema fiscal do país, de modo que recomendamos fortemente a não aprovação. O projeto de lei complementar número 121, de 2024 , aprovado no Senado e em tramitação sob regime de urgência na Câmara dos Deputados, alonga o prazo da dívida estadual junto à União e abre margem para a redução a zero da taxa de juros incidente sobre essa dívida.

Por sua vez, o projeto de lei complementar número 164, de 2012, já aprovado na Câmara e em tramitação no Senado, muda o artigo 19 da Lei de Responsabilidade Fiscal, com o objetivo de afrouxar os limites para a despesa de pessoal dos entes federados.

Outra mudança veio com os artigos 12 e 13 da emenda constitucional número 132, de 2023. Foram criados dois fundos que transferem mais recursos da União para os estados. Essas transferências começarão com R$ 8 bilhões em 2025, mas subirão continuamente até chegar a R$ 40 bilhões ao ano em 2033 e a R$ 60 bilhões em 2043.

Essa perda da União não foi considerada no ajuste fiscal requerido calculado acima de dois pontos percentuais do PIB. Francamente, assim, a conta não fecha. Esses artigos da emenda precisam ser revistos. Eis aqui um exemplo de como a vulnerabilidade política do Executivo federal tem permitido aprovar medidas danosas ao país.

A proposta de redução da partilha em relação à receita total da União não significa diminuição das transferências em percentual do PIB. Para tanto, seria necessário destinar exclusivamente à União os ganhos de receita com a redução dos benefícios tributários, mediante emenda constitucional. Vejamos como isso operaria.

A renúncia estimada com benefícios tributários subiu de 3,5% do PIB na média do triênio 2009-2011 para 4,7% do PIB no triênio 2022-2024. A retirada de benefícios não gera receita equivalente à estimativa de renúncia por causa da esperada reação dos contribuintes.

Mesmo assim, a revogação de benefícios de modo a reduzir a renúncia de volta para os 3,5% do PIB poderia render, digamos, algo como 1% de PIB de receitas para a União, ótima contribuição para um ajuste esperado de dois pontos percentuais do PIB.

Se o 1% do PIB fosse integralmente destinado à União, esse ente recuperaria os 22,5% do PIB de receita total observados em 2013 e as transferências permaneceriam em 4% do PIB, mantendo o aumento de meio ponto a mais que os entes subnacionais tiveram nos últimos anos. A relação entre as transferências e a receita total da União, por sua vez, cairia de 18,6% para 17,8%, ainda bem acima dos 15,7% observados em 2013.

É claro que o nosso sistema tributário precisa ser mais equânime, neutro e simples, mas para isso vemos providências que levam mais à redistribuição da carga entre diferentes contribuintes do que à elevação dessa carga, que é o relevante do ponto de vista fiscal.

Em que pese a frágil situação fiscal da União, pululam propostas de desoneração tributária. Evidentemente, elas precisam ser rechaçadas. Uma proposta que pode gerar perdas significativas é a que estende a faixa de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física para R$ 5.000, de iniciativa do próprio Executivo federal.

Se for aprovada, terá que ser juntamente com uma fonte certeira que compense as perdas, como determina o artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Esperamos que não reproduza o interminável embate pela compensação da desoneração da folha de pagamento das empresas e municípios.

Aliás, a história da desoneração da folha, iniciada em 2011 (terminará em 2027?), é um verdadeiro estudo de caso sobre como é difícil retirar um tratamento favorecido, uma vez que entra no ordenamento e no Orçamento.

O que fazer pelo lado da despesa?

Se houver a preferência dos governantes ou da própria sociedade por distribuir igualmente os custos do ajuste entre receitas e despesas, então, o ponto percentual do PIB de ajuste restante recairia sobre as despesas. Aqui, a missão é mais árdua, pois é preciso também conter aumentos em curso de componentes da despesa obrigatória. Sem isso, não há regra fiscal que sobreviva.

Em um primeiro momento, a compressão das despesas discricionárias leva à flexibilização da regra (vide o subsídio à compra do gás de cozinha, ainda em tramitação no Congresso). Em um estágio posterior, a ameaça de interrupção do funcionamento da administração pública culmina na revogação, sob a alegação de que a regra seria muito severa.

Entre as despesas obrigatórias, destaque para a despesa previdenciária, que representa 40% da despesa total, excluindo-se precatórios e sentenças judiciais. Tal despesa subiu de 6,6% do PIB, na média de 2012-2014, para 7,8% do PIB, em 2023, mesmo sob os efeitos da reforma aprovada no fim de 2019.

Essa despesa subirá ainda mais devido ao envelhecimento da população e da nova fórmula de correção do salário mínimo. Será preciso uma nova reforma, em breve, bem como a revisão da política do mínimo ou a desvinculação entre o mínimo e o menor benefício. Entretanto, ainda que se adotem essas providências, não se pode esperar mais delas que a estabilidade da despesa previdenciária em relação ao PIB.

As despesas assistenciais respondem por outros 15,5% da despesa total. Incluem-se aí o abono salarial, o seguro-desemprego, o Benefício de Prestação Continuada e o Bolsa Família. Houve aumento desse conjunto de gastos, de 1,9% do PIB na média de 2012-2014 para 3% do PIB em 2023, especialmente em razão dos saltos do Bolsa Família em 2022 e 2023 (incluindo o extinto Auxílio Brasil).

Aqui, também se aplica a necessidade de alterar a política do salário mínimo ou desvincula-lo dos benefícios. Mas cabe ainda uma reformulação geral que integre os programas assistenciais, de modo a evitar o pagamento duplicado e a levar a resultados mais efetivos, especialmente quanto ao enfrentamento da pobreza. Além da contenção da despesa em relação ao PIB, seria possível obter uma economia equivalente ao orçamento do abono salarial, que chegou a 0,23% do PIB em 2023.

Precatórios e sentenças judiciais, complementação do Fundeb (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), gastos com saúde e educação e emendas parlamentares também vêm crescendo. Nesses casos, entendemos que as providências poderiam visar à redução, em relação ao PIB, frente ao patamar atual.

Os precatórios e sentenças judiciais subiram de 0,32% do PIB na média de 2012-2014 para 0,86% do PIB na média de 2022-2024. Quando essa despesa entra no Orçamento, só resta pagar. O foco de ação deve ser nas fases anteriores, evitando a judicialização e a perda das ações. É um trabalho contínuo e persistente, a exemplo da revisão de gastos. Alguns entendem que um estoque de decisões judiciais está sendo desovado, mas não há certeza do que teremos pela frente.

As regras da complementação da União ao Fundeb também poderiam ser ajustadas, pois a aplicação da emenda constitucional nº 108, de 2020, elevará progressivamente essa despesa de 0,2% para 0,48% do PIB entre 2020 e 2026.

Trata-se de aumento muito brusco, não compatível com a atual situação fiscal da União. A reversão gradual do atual percentual de complementação, de 19%, para 15% em 2028, levaria essa despesa para 0,31% do PIB. O espaço fiscal iria de 0,06% do PIB em 2025 para 0,17% do PIB em 2028, mas manteria a complementação em valor bem superior ao observado em 2020.

Na sequência, temos os gastos com saúde e educação e as emendas parlamentares, todos vinculados à evolução da receita da União. Trata-se de procedimento impróprio, pois o gasto não é dado pela necessidade, mas pelo simples fato de a receita ter mudado. Ademais, somam-se às despesas obrigatórias para “espremer” ainda mais rapidamente as discricionárias, não protegidas.

O desejável seria não haver vinculação de qualquer tipo de despesa à receita, mas, na impossibilidade, alguma fórmula alternativa poderia ser tentada para a saúde. A correção pelo mesmo fator aplicado para calcular o limite de despesa a partir de 2025 traria espaço fiscal, mas apenas se tomasse como base o gasto de 2023. O ganho seria de 0,12% do PIB, no primeiro ano, crescendo para 0,15% do PIB em 2028. Ainda assim, o mínimo da saúde ficaria em 1,6% do PIB, mesmo percentual gasto em 2023.

Essa mesma proposta não é apropriada no caso das emendas parlamentares. São duas as questões envolvidas. A primeira é do uso adequado dos recursos. A discussão que começou por iniciativa do STF deverá trazer avanços importantes. Quanto à segunda questão, diz respeito à fragilidade fiscal da União.

As emendas simplesmente chegaram a um montante inviável, próximo de R$ 50 bilhões, na LOA de 2024. O artigo 166 da Constituição teria que ser revisto para retirar a vinculação à receita e, eventualmente, definir alguma fórmula que chegasse a um montante razoável.

Uma opção seria um percentual das despesas discricionárias. Em caso de contingenciamento, haveria partilha proporcional automática do corte entre as emendas e as demais discricionárias. No biênio 2018-2019, as emendas totais correspondiam, na média, a cerca de 8% das despesas discricionárias. Considerando-se as discricionárias atuais, esse percentual equivaleria a R$ 16 bilhões, bastante expressivo. Se tal comando vigorasse em 2024, criaria um espaço fiscal de 0,27% do PIB.

As quatro propostas acima levam a um ajuste da despesa de 0,82 ponto percentual de PIB (0,23 + 0,17 + 0,15 + 0,27). O restante 0,18 ponto percentual do PIB poderia vir da chamada revisão do gasto, com base no emprego da avaliação de políticas públicas, além do combate à fraude, análise mais criteriosa dos pedidos de benefícios e providências para enfrentar a judicialização. A revisão de 0,18 ponto representaria um corte de menos de 1% do total das despesas da União, atualmente acima de 19% do PIB, sem perda de bem-estar.

Conclusões

O país está vulnerável, sujeito a crises e baixo crescimento, o que dificulta o enfrentamento da questão social, devido a decisões que fragilizaram a situação fiscal da União.

O ajuste requerido para estabilizar a dívida pública em relação ao PIB é de dois pontos percentuais do PIB. Sugerimos providências que levam a um ponto percentual de receita extra para a União e um ponto percentual de corte de despesa.

Todas as medidas requerem amplo consenso político, algo difícil de alcançar. O fato é que o país não poderia ter chegado a essa situação. Fomos sinceros ao dizer que estamos em uma enrascada. Não será a primeira em nossa história. Outros países passaram ou passam pela mesma situação. Temos que superar.

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

Leia mais

Mais Posts

×

Olá!

Clique no contato para ser direcionado ao WhatsApp.

× WhatsApp!