Desenvolvimento tecnológico do país asiático limitará danos causados por vulnerabilidades econômicas
Ian Bremmer, Fundador e presidente do Eurasia Group, consultoria de risco político dos EUA, e colunista da revista Time.
Folha de São Paulo, 09/05/2022
Na próxima década, a China vai se fortalecer ou se enfraquecer? Seu peso econômico, sua influência política global e seu crescente poderio militar tornam essa pergunta crucial em todas as regiões do mundo. A resposta dependerá de se força econômica bruta ou desenvolvimento tecnológico se mostrarão mais importantes para um futuro próspero e seguro.
As perspectivas econômicas da China estão ficando mais nebulosas, mas é possível que seu status de superpotência tecnológica emergente fale mais alto. A ascensão da pobreza para potência cada vez maior criou mais oportunidades para mais pessoas —na própria China e pelo mundo afora— que qualquer outra tendência econômica na história. Criou uma classe média chinesa e uma classe média global.
Duas vantagens estiveram na base dessa conquista. Primeiro, décadas atrás, a China se beneficiou da maior reserva de mão de obra barata na história humana. Segundo, seus salários baixos persuadiram empresas manufatureiras em países ricos a transferirem suas operações para o país, para reduzir seus custos de produção e aumentar seus lucros. Essas duas vantagens já desapareceram.
Os salários chineses subiram fortemente à medida que os trabalhadores ampliaram suas qualificações, e hoje países mais pobres conseguem oferecer os salários mais baixos que deixaram de existir na China.
Além disso, a política chinesa do filho único limitou o crescimento populacional de longo prazo, reduzindo a oferta relativa de mão de obra e intensificando a pressão ascendente sobre os salários. Hoje, a economia global depende mais do comércio de serviços do que era o caso uma geração atrás, reduzindo a demanda por mão de obra fabril, e governos e empresas privadas, especialmente nos EUA, vêm sofrendo pressão política para trazer de volta os empregos manufatureiros que foram transferidos para a China.
Por todos esses motivos, é possível que a ascensão da China tenha finalmente chegado a um beco sem saída.
Economistas avisam que muitos países emergentes caem numa “armadilha da renda média” quando perdem as vantagens que os ajudaram a escapar da pobreza, sem entretanto dotar-se das ferramentas necessárias para competir com países mais ricos cujas economias são baseadas no conhecimento e operadas por forças de trabalho altamente qualificadas.
É uma posição perigosa, especialmente para um partido governista que exige reconhecimento por conquistas que criaram expectativas públicas em ascensão constante, ao mesmo tempo em que se recusa a admitir a culpa quando o crescimento estagna.
Outro problema é que os responsáveis por traçar as políticas da China se veem diante de um Everest de dívida pública. Há anos o governo chinês protege da inadimplência suas maiores empresas em muitos setores diferentes, para salvar grande número de empregos e proteger a solvência dos bancos chineses.
Essas intervenções agravaram o problema, porque convenceram tanto mutuários quanto credores que podem esperar receber proteção contra suas próprias decisões equivocadas.
Resolver esse problema requer tolerância a dor econômica, algo que está em falta num momento em que a Covid está causando estragos à economia chinesa, em que a guerra da Rússia contra a Ucrânia está encarecendo combustíveis e alimentos na China —e num momento em que Xi Jinping está preparando o Partido Comunista, ainda este ano, para abandonar sua prática passada e lhe conceder um terceiro mandato presidencial, com poder sem precedentes.
No entanto, o desenvolvimento tecnológico chinês rapidamente crescente vai limitar os danos causados por suas vulnerabilidades econômicas. Não faz muito tempo, os avanços na tecnologia de comunicações empoderavam o indivíduo às expensas do Estado. O crescente acesso global à internet permitia aos usuários encontrar informações de uma variedade inusitada de fontes e se comunicar entre eles em tempo real, entre diferentes países e em todo o mundo.
Nos últimos dez anos, porém, essa tendência vem perdendo espaço para a chamada “revolução dos dados”, que permite que governos autoritários e as maiores empresas mundiais de tecnologia coletem os volumes de dados que produzimos no mundo digital, para descobrir muito mais sobre quem somos, o que queremos e o que estamos fazendo para consegui-lo.
A China possui vantagens grandes e duradouras nessa área. Suas empresas têm dado provas de sofisticação crescente não apenas no comércio digital, mas no reconhecimento facial e de voz, algo que um país autoritário pode desenvolver com muito menos obstáculos do que seria o caso em um sistema que limita a concentração de poder político. Além disso, o simples tamanho da população chinesa possibilita um banco de dados maior que permite um avanço tecnológico mais rápido.
Mas a maior vantagem tecnológica da China consiste na capacidade do Estado de direcionar empresas de tecnologia para que criem produtos que atendam às necessidades políticas do Estado, na capacidade do Estado de direcionar montanhas de dinheiro a esses projetos de desenvolvimento, de coordenar seu trabalho e de ampliar a influência internacional da China, vendendo tecnologias de vigilância a outros países, tanto estados autoritários quanto democracias, preparados para pagar por produtos que fomentem a segurança nacional —ou pelo menos a segurança da elite governante.
O futuro da China vai depender de mais uma questão importante que é mais imponderável: como Estados Unidos, Europa e Japão vão reagir ao próximo capítulo da China? Por enquanto, a invasão russa da Ucrânia aproximou os parceiros transatlânticos mais que em qualquer momento desde que a Guerra Fria terminou, e o apoio da China à Rússia, por limitada que ainda seja, reforçou as dúvidas ocidentais bem fundamentadas quanto às intenções da política externa chinesa.
Ao mesmo tempo, deve estar claro para os dirigentes em todos os países que a importância da China para a economia globalizada significa que a debilidade do país representa uma vulnerabilidade global. Se os líderes chineses e ocidentais vão conseguir manter esse fator crucial em mente quando administram suas relações em movimento constante pode acabar se mostrando a incógnita mais importante de todas.