Gasto público, tetos e pisos, por Marcos Mendes.

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Quem manda na política está mais interessado em pisos do que em teto de gastos

Marcos Mendes, Pesquisador associado do Insper, é autor de ‘Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?’

Folha de São Paulo, 27/08/2022.

Há um debate sobre o que fazer com o surrado teto de gastos no próximo governo. O Ministério da Economia fala em uma regra mais flexível que a atual, que permite aumentos reais de gastos sempre que a dívida pública estiver baixa. Há quem fale em uma suspensão temporária, para dar tempo de desenhar uma nova regra.

É uma válida tentativa de evitar o pior, que seria a pura e simples revogação, com o retorno ao regime fiscal anterior ao teto, de crescimento real do gasto de 6% ao ano. O problema, contudo, é mais profundo. Nenhuma regra, por mais engenhosa que seja, resistirá aos incentivos políticos criados nos últimos anos.

Gastos públicos decorrem de decisões políticas. Regras fiscais, como o teto, só funcionam quando uma parte majoritária das forças políticas reconhece os benefícios do equilíbrio fiscal para a sociedade e decide limitar as habituais pressões sobre o Orçamento.

Logo após o impeachment de Dilma, em meio a uma das maiores recessões da história, acompanhada de descontrole fiscal, houve a formação dessa maioria, frente ao temor da continuação da espiral recessiva, o que permitiu a aprovação do teto.

A maioria favorável ao equilíbrio fiscal precisaria ter sido mantida por tempo suficiente para que se aprovassem reformas fiscais. A redução da rigidez e da inércia do crescimento dos gastos viabilizaria o cumprimento do teto. Não foi o que ocorreu. A maioria dissolveu-se.

Criou-se nos últimos anos um modelo em que o Legislativo ganhou poder para gastar mais sem arcar com as consequências dos seus atos, como a inflação e os juros altos, cujo desgaste vai para a conta do Executivo. Poder sem responsabilidade não leva a bons resultados.

A musculatura do Legislativo não é exibida apenas nas anabolizadas emendas obrigatórias e de relator ou nos bilionários financiamentos partidário e de campanhas. Está, também, na facilidade com que rejeita medidas provisórias, derruba vetos, aprova decretos legislativos anulando decisões administrativas do Executivo.

Aparece, ainda, na sem-cerimônia com que seus dirigentes atropelam o regimento interno do Senado e da Câmara, votando qualquer coisa por celular, dispensando a análise das comissões, mudando regras no momento das votações.

Fixam a agenda de votações sem negociar com o Executivo. Aprovam novos gastos obrigatórios e só depois discutem se há espaço no Orçamento. Ampliam seus poderes sobre a gestão do Orçamento a cada Lei de Diretrizes Orçamentárias.

O processo foi catalisado, nos últimos meses, pelo esforço de reeleição do presidente da República, que passou a ser sócio e estimular o vale tudo no Legislativo. Aprova-se, a toque de caixa, dinheiro para programas de alto impacto eleitoral e a distribuição de dinheiro para quem grita mais alto.

Decisões recentes já deram uma casquinha do Orçamento para: agentes comunitários de saúde, enfermeiros, caminhoneiros, taxistas, portadores de deficiência, usineiros, produtores culturais, hotéis, igrejas, universidades privadas, portos, empresas de transporte coletivo e de carga, produtores de gasodutos, donos de pequenas centrais hidrelétricas, grandes e pequenas empresas devedoras do fisco, militares, microempreendedores, pequenas empresas, empresas de comunicação, construção civil, call centers. Na indústria ganharam os setores calçadista, de têxteis, confecções e vestuário, couros, máquinas e equipamentos, tecnologia de informação e comunicação, circuitos integrados e semicondutores.

Nada indica que a lista pare por aí. Há, por exemplo, 88 projetos em tramitação propondo a fixação ou aumento de pisos salariais de mais de 30 profissões, com impacto sobre as despesas dos três níveis de governo. Tem de tudo: conselheiros tutelares, guardas municipais, contadores públicos, médicos. Se foi dado para enfermeiros, professores e agentes de saúde, por que não aos demais?

Com uma economia política tão deteriorada, o máximo que um teto de gastos pode almejar é segurar um pouco os exageros no curto prazo, sendo inevitavelmente furado de tempos em tempos. Não importa quão engenhoso e flexível seja seu desenho.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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