Roberto Romano – Folha de São Paulo, Ilustríssima, 24 de fevereiro de 2019.
[RESUMO] Firmada pela Constituição de 1891, separação de Estado e igreja no Brasil passou por retrocessos desde então e permanece sob ataque de grupos que pretendem impor a religião à vida pública, diz autor.
Nos tratos entre poder civil e mando religioso, a grande tese da Igreja Romana foi expressa por Leão 13 na encíclica “Immortale Dei”: “A Igreja e o Estado devem ser unidos um ao outro como alma e corpo, que constituem no homem um todo natural”. A doutrina vem de longe, mas foi sintetizada por Roberto Belarmino, com a proposta de uma “soberania espiritual indireta” do papa sobre o Estado secular. Se o dirigente político deixa a fé, surgem ameaças à saúde coletiva.
Ao mover sua imprensa e para censurar os jornais não católicos, o clero brasileiro gastou recursos de propaganda contra os maçons (algo que já vinha do Império), liberais, espíritas, anarquistas e todos os que poderiam pôr em dúvida a “soberania espiritual” do Sumo Pontífice. O protestantismo foi particularmente visado. Na Revista Eclesiástica Brasileira, na Revista Vozes ou em pasquins diocesanos, os protestantes eram descritos como o grande malefício.
Um livro virulento do padre Soares d’Azevedo comparava o protestantismo à peste, ao anarquismo e a outras “doenças” sociais. Quem no Brasil adere à reforma, diz o sacerdote, só pode ser espião imperialista —no caso, dos EUA. A invasão protestante ameaçaria a integridade do Estado, visto que as instituições nacionais tinham como essência e origem o catolicismo. Apenas os católicos seriam patriotas, somente eles garantiriam a soberania nacional.
O mesmo ataque foi retribuído, contra os católicos, pelos defensores do laicismo: o Vaticano seria uma potência estrangeira capaz de ameaçar nosso Estado soberano. Note-se a mudança nas cores da paleta: no século 20 ser católico era prova de patriotismo. Hoje, na visão de grupos do governo Bolsonaro, a Igreja Romana põe em perigo a segurança e a soberania do Estado. Mudaram os personagens, o problema continua: agora os evangélicos imaginam que suas congregações e o poder estatal formam um só corpo.
Acusam-se os católicos de lesa-pátria, sobretudo com o próximo sínodo sobre a Amazônia, congresso de bispos a ser realizado em outubro, em Roma. O general Augusto Heleno queixou-se de que o encontro seria “interferência em assunto interno” do Brasil, o que evidencia nova crise entre Estado e Igreja. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, o governo brasileiro monitora com preocupação a ação do clero e pediria ajuda à Itália para travar a exploração de temas da Igreja que considera ligados à esquerda.
Depois Heleno negou plano de espionar membros da igreja, mas reafirmou sua preocupação, uma vez que alguns dos temas do Congresso, segundo ele, “são de interesse da segurança nacional”. “Quem cuida da Amazônia brasileira é o Brasil”, afirmou. Espionar clérigos, de fato, não é uma tarefa digna da sociedade civil ou do Estado. E, no campo diplomático, pedir auxílio da Itália para pressionar o Vaticano é ignorar a natureza do adversário.
Num gesto cesaropapista, setores oficiais postulam a participação, no sínodo, de autoridades civis. Todos esses programas e teses, que tentam expulsar da vida pública religiões concorrentes, levam à única conclusão racional: o Estado não pode ser o corpo de uma crença no sagrado; deve permanecer neutro para escapar da destruição que devastou a Europa moderna nas guerras de religião.
O que significa um Estado laico? Examinemos a tese política que recusa qualquer religião como fonte do poder público. Ao contrário do vocábulo “demos”, “laós” (povo) não tem etimologia confiável, mas o nome surge na prosa e poesia gregas. Em Homero pode significar “gente, súditos, cidadãos, assembleia”. Como não há na Grécia distinção forte entre clero e fiéis, apenas no Egito são diretamente opostos o laós e o sacerdote.
No aristocrata autor da “Ilíada”, o nome se aproxima do pejorativo. Em Platão indica um aglomerado humano. As pessoas no teatro e na assembleia integravam o laós. No cristianismo primitivo o termo representa os fiéis opostos aos pagãos.
A Igreja assumiu várias doutrinas filosóficas para refletir sobre o Cristo e a vida coletiva. Alguns padres seguiram o estoicismo, outros o neoplatonismo. Neste último o representante máximo foi Santo Agostinho, cuja importância sofreu a concorrência do misterioso Dionísio, o Areopagita. No livro dos Atos mencionam-se discursos do apóstolo Paulo em Atenas. Aquelas falas teriam sido assumidas por Dionísio.
Apenas como curiosidade, com ele havia uma crente cujo nome era Damaris…. Soa atual no Brasil, apesar de a letra “i” ter sumido em favor do “e”.
Por volta de 840, os escritos de Dionísio foram traduzidos por João Escoto Erígena e usados como autoridade na Idade Média. Neles, o conceito fundamental é o de hierarquia. O termo reúne “hieros” (sagrado) e “arché” (princípio, poder, início). O que é uma hierarquia? Resposta: “Um sistema de patamares com respeito ao conhecimento e à eficácia”. Até hoje a Igreja segue os parâmetros definidos por Dionísio nos campos do saber e da realidade.
Ao dizermos algo a respeito de Deus, sabemos que dele jorra uma luz espalhada pelos seres. Quanto mais próximo do ser divino, mais brilhante e digna a criatura. Há na ordem cósmica e humana uma escada para cima (superior) e outra para baixo. Aos seus degraus chamamos hierarquia.
Cada ente, natural ou humano, recebe sua luz de outro, mais elevado, e a transmite ao inferior. O mundo terreno reflete o celeste, os anjos são “espelhos espirituais do abismo divino”, disse o teólogo Paul Tillich. Jacques Maritain, filósofo importante da Igreja no século 20, publicou um livro célebre cujo título é totalmente dionisíaco: “Distinguir para Unir, os Graus do Saber”.
Cosmos e saber são hierarquizados, assim como a estrutura da Igreja e dos poderes políticos. A diferença entre superiores e inferiores não pode ser abolida. Tentar sua igualização é destruir a ordem divina. No mais alto posto situa-se o clero. Abaixo, os reis e nobres. E no plano mais baixo estão os leigos, o povo, o laós. Tal sistema nega a igualdade política. A Igreja Católica exibe na sua forma de governo e pensamento semelhante imaginário.
É impossível quebrar a escala hierárquica, dos anjos aos homens. À pergunta “se Deus fez todas as coisas, por que não as fez iguais?”, Agostinho apresenta uma fórmula: “Non essent omnia, si essent aequalia”. Cada coisa ocupa um lugar diferente na ordem dos seres. A igualdade seria oposta à natureza, ao mundo social e político. Daí surge a tese da soberania eclesiástica na Idade Média —e depois a da soberania pontifícia indireta, após a Reforma Protestante.
Com Lutero e Calvino temos uma inversão do pensamento ordenado por Dionísio. Quando os reformadores negam a autoridade eclesiástica, bem como a existência de intermediários entre o mundo finito e o além, abrem a via para instaurar uma sociedade laica e um Estado idem. Evidentemente, tal mudança não ocorre de imediato. Nos “heréticos” restam traços do poder clerical e da hierarquia na vida humana.
Quando seus discípulos se insurgem, exigindo igualdade política, Lutero defende os príncipes e amaldiçoa os líderes da Revolução Camponesa, sobretudo Thomas Münzer. Apesar de tudo, na reforma, o poder laico firma-se de modo perene. A Igreja é a união do povo comum, os leigos, e dispensa hierarcas religiosos. Logo dispensará os hierarcas políticos. Todos os reacionários do século 19, de Joseph de Maistre a Donoso Cortés, identificam a gênese da “fatal democracia” em Lutero.
No movimento luterano —e depois, calvinista—, fortaleceu-se a luta pela igualdade e a busca do poder laico sem guantes clericais. Não por acaso, o coletivo que mais contribuiu para o reforço do sistema parlamentar e da república inglesa ostenta o nome de Os Niveladores (Levellers). No mesmo passo, Francis Bacon defende a ciência e o ensino com base no método, não em fórmulas metafísicas. Exemplo dado por ele: para desenhar um círculo perfeito é preciso raro gênio. Com o compasso, todos cometem a proeza.
A democratização trazida pelo método segue para as hostes políticas puritanas e civis. A genialidade e o milagre, bases do aristocratismo hierárquico, deixam a cena em prol do trabalho científico disciplinado. O mundo perde o encanto e se transforma em algo prosaico, sem hierarquias sagradas.
As Luzes continuam as lutas da reforma e da ciência. Desde então, o saber se transforma na política cujas bases é a laicidade plena, afastando o religioso. Kant, um filósofo que segue a reforma, proclama: “Nosso tempo é o tempo da crítica, à qual tudo deve se submeter. A religião, por sua santidade, a legislação, por sua majestade, desejam dela fugir. Mas então elas suscitam uma justa suspeita e não podem desejar o respeito sincero que a razão concede apenas ao que pode ser sustentado em livre e público exame”.
No poder e na ciência laicos não existe “magister dixit” (porque o mestre falou). Quem diz hierarquia religiosa diz ocultamento ou censura, como no “Index Librorum Prohibitorum” (índice dos livros proibidos). Daquele volume para a totalitária fogueira de livros o passo é curto. A vida laica repele todo ato censor ou tutela sobre coletivos e indivíduos. Nenhuma autoridade recebe o mando do ser divino, mas do povo.
É a tese avançada pelo francês Diderot, assumida na Constituição dos Estados Unidos da América: “Nous, le peuple”… “We, the people” (nós, o povo). O Estado laico, ou do povo, triunfa e, com ele, a democracia. É abolida no espaço público a figura da hierarquia divina. Todos são iguais. Contra semelhante atitude, nos séculos 19 e 20, a Santa Sé se une aos movimentos baseados na hierarquia do mando, com Mussolini, Hitler e outros.
Logo após 1500, o Brasil conhece a contrarreforma, reação aos movimentos protestantes. Adeptos da nova religião aqui estiveram, sobretudo franceses e holandeses. Mostraram posição mais etnocêntrica do que os jesuítas. Intolerantes para com as crenças indígenas, afirmavam serem as danças e cantos das tribos, bem como seus costumes, obra do Diabo.
Com a expulsão dos invasores (como se os portugueses não tivessem invadido o território…), o catolicismo retoma a hegemonia. Nos séculos seguintes, tal preponderância sofre sob o padroado, o acordo entre Estado e Vaticano cujo modelo herdamos de Portugal. O poder laico do rei controla a Igreja, dá-lhe pouca liberdade. Várias medidas estatais reduzem o poder de fogo eclesiástico. No final do Império, a “soberania espiritual” era só um desejo do clero ultramontano.
Na República, são claras duas políticas contrárias à presença religiosa no ordenamento coletivo. Os seguidores de Auguste Comte, embora com forte número de militares, almejam um poder civil: “Se, no regime democrático (…), é condenada a preponderância de qualquer classe, muito maior condenação deve haver para o predomínio da espada, que tem sempre mais fáceis e melhores meios de executar abusos e prepotências”, afirmou Benjamin Constant em 1877.
Os positivistas adotam a separação de Igreja e Estado e proclamam que o segundo não deve “apoiar com a força do poder o ensino de qualquer doutrina”. Como diz João Cruz Costa, o programa positivista lançou “as bases de uma política racional para o Brasil”, a despeito de recuos táticos (com o voto positivista foi mantida a proibição do divórcio).
Entre os liberais a predominância da Igreja foi entendida como “imperialismo católico”. O Vaticano, pensavam, seria um Estado com agências no Brasil, o que traria óbices para o país soberano. O mais forte argumento liberal encontra-se na tese, como vimos acima fundamentada, de que o ensino da Igreja pregava a desigualdade civil.
Radicalizando, Saldanha Marinho denuncia o poder eclesiástico “por sua campanha infernal contra a civilização”. O programa se firmou como laico para garantir ao Estado o monopólio da imposição legal. “Medida indispensável de progresso e até de segurança pública a decretação do divórcio perpétuo da Roma eclesiástica do Brasil político” (Saldanha Marinho, citado por Maria Stella Bresciani).
Na Constituição de 1891, a primeira da República, surgem os pontos defendidos por positivistas e liberais. Na Carta se firmou a laicidade do Estado. A partir daí, vicissitudes nacionais definiram avanços e retrocessos no trato entre religião e vida pública.
Sob Getúlio Vargas ocorreu um retorno aos privilégios eclesiásticos em detrimento da laicidade, apesar dos elos getulistas com as raízes positivistas. Foi a hora em que a Igreja moveu massas humanas para garantir leis favoráveis às suas exigências. Seguindo a retomada do vínculo entre poder civil e religioso (cujos resultados marcantes foram o Tratado de Latrão com Mussolini e a Concordata com Hitler), a Igreja “consagrou” o Brasil ao Sagrado Coração de Jesus, marca da “soberania espiritual” católica. O símbolo de tal consagração é o Cristo Redentor no Rio de Janeiro.
No regime militar de 1964, a Igreja Católica, via CNBB, aprova os atos institucionais, incluindo o de número 5. Fora a minoria de bispos, padres, freiras e leigos, ela apoia o Executivo. Naquele momento, as seitas neopentecostais aumentam seu número e a quantidade de fiéis. Os protestantes, antes minoritários e perseguidos, expandem suas hostes.
Embalada desde Vargas pelas benesses do Estado, a Igreja não percebeu, sobretudo no pontificado de João Paulo 2º —personagem presente em escândalos como o Irã-Contras, apoiador de Pinochet e outros regimes absolutistas—, a concorrência que ameaçava sua hegemonia.
Hoje lideranças católicas, unidas a igrejas e movimentos evangélicos, pretendem dar ao Estado e à sociedade formas legais contra o laicismo. Os evangélicos substituem o catolicismo, agora se imaginam a nova alma do corpo estatal.
O presidente eleito deu a senha: somos um Estado cristão, não laico. Assim, o religioso retoma suas pretensões políticas sob a diretriz de seitas que não seguem com justeza a reforma, não valorizam o traço civil dos assuntos estatais. Por enquanto, notemos, os pastores são obrigados a dividir espaço com os militares de tradição católica e laica.
Assistimos à revanche do campo teológico-político contra os princípios democráticos da Reforma Protestante, do liberalismo e do programa positivista que exigiam a separação de Igreja e Estado. Os sinais de imposição religiosa nos campi e nas escolas brasileiras são evidentes, com ataques à teoria da evolução e com a defesa do criacionismo.
Mais grave é a guerra contra os direitos humanos, sobretudo os da mulher e das minorias. A acreditar nas declarações de representantes religiosos acerca de como deve ser o Estado brasileiro, à mulher se reservam os famosos três C vigentes no período mais negro da história ocidental: casa, cozinha, crianças.
Estado laico é sinônimo de poder democrático, do povo. Se ocorrer a sua morte e se forem restaurados os hierarcas (de qualquer religião), a democracia será definitivamente banida. O futuro dirá.
Roberto Romano, professor de ética e política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, é autor de “Razão de Estado e Outros Estados da Razão” (ed. Perspectiva), entre outros.