Guerra de Putin exige reação econômica global coordenada, por Martin Wolf.

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Países terão que usar seus recursos fiscais para cuidar dos refugiados e compensar o impacto do aumento de preços dos alimentos sobre os mais pobres

Martin Wolf, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Folha de São Paulo, 23/03/2022

O ataque de Vladimir Putin à Ucrânia vai refazer nosso mundo. Como isso acontecerá permanece indefinido. Tanto o resultado da guerra quanto, mais ainda, suas ramificações mais amplas, incluindo aquelas para a economia global, são geralmente desconhecidos. Mas alguns pontos já são muito evidentes. Vindo apenas dois anos após o início da pandemia, este é mais um choque econômico, catastrófico para a Ucrânia, ruim para a Rússia e significativo para o resto da Europa e grande parte do mundo.

Como de costume, o impacto dos refugiados é principalmente local. A Polônia já abriga a segunda maior população de refugiados do mundo, depois da Turquia. Os refugiados também estão chegando a outros países do leste europeu. Virão mais. Muitos também desejarão ficar perto de sua terra natal, esperando retornar em breve. Eles precisam ser alimentados e alojados.

No entanto, as ramificações vão muito além da Europa oriental ou mesmo da Europa como um todo, como mostra uma excelente perspectiva econômica provisória da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). A Rússia e a Ucrânia representam apenas 2% da produção global e uma parcela semelhante do comércio mundial. Os estoques de investimento estrangeiro direto na Rússia e os da Rússia em outros lugares também representam apenas 1% a 1,5% do total global. O papel mais amplo desses países nas finanças globais também é irrelevante. No entanto, eles são importantes para a economia mundial, de qualquer modo, principalmente porque são grandes fornecedores de commodities essenciais, sobretudo cereais, fertilizantes, gás, petróleo e metais vitais, cujos preços nos mercados mundiais dispararam.

A OCDE estima que esse choque reduzirá a produção mundial este ano em 1,1 ponto percentual abaixo do que teria sido. O impacto nos Estados Unidos será de apenas 0,9 ponto percentual, mas na zona do euro será de 1,4 ponto. O impacto comparável sobre a inflação será de mais 2,5 pontos percentuais para o mundo, mais 2 pontos para a zona do euro e mais 1,4 ponto percentual para os EUA.

O aumento dos preços da energia e dos alimentos reduzirá a renda real dos consumidores muito mais do que essas perdas do Produto Interno Bruto. As receitas reais dos países importadores líquidos de energia e alimentos também serão mais afetadas do que apenas o seu PIB. Também é provável que as estimativas da OCDE sejam muito otimistas.

Isso dependerá, entre outras coisas, da duração dessa guerra maligna e da possível disseminação de sanções para a China ou de embargos às importações de energia para a Europa.

Esses impactos diretos esperados na produção são muito menores do que os da Covid: em 2020, a produção mundial acabou cerca de 6 pontos percentuais abaixo da tendência. Mas uma recuperação total da Covid não havia ocorrido antes da chegada desse novo choque, que prejudicou as relações internacionais, aumentou as preocupações com a segurança nacional e minou a legitimidade da globalização. Esta tragédia provavelmente projetará longas sombras.

Uma razão disso é seu impacto sobre a inflação e as expectativas inflacionárias. O Federal Reserve (banco central dos EUA) tornou-se mais agressivo. Mas ainda acredita em “desinflação imaculada” –a capacidade de conter a inflação sem muito, ou nenhum, aumento do desemprego. O Banco Central Europeu também enfrenta um salto da inflação, ao qual será obrigado a responder. Na prática, o aperto provavelmente prejudicará a atividade e os empregos mais do que se espera, em parte devido à fragilidade financeira.

De modo mais fundamental, o aparecimento de divisões geopolíticas entre o Ocidente, de um lado, e Rússia e China, de outro, colocará em risco a globalização. As autocracias tentarão reduzir sua dependência das moedas e dos mercados financeiros ocidentais. Tanto elas quanto o Ocidente tentarão reduzir sua dependência do comércio com os adversários. As cadeias de suprimentos serão encurtadas e regionalizadas. No entanto, observe que a dependência da Europa em partes da Ucrânia já era regional.

A política econômica tem relevância apenas limitada em tempo de guerra. Não pode salvar os que estão sendo atacados, embora possa tentar punir ou dissuadir os responsáveis. Mas pode e deve responder às consequências. A política monetária deve continuar sendo dirigida para o controle da inflação e das expectativas inflacionárias, por mais desagradável que isso possa parecer.

É possível e necessário, entretanto, que os países apliquem seus recursos fiscais para cuidar dos refugiados e compensar o impacto dos preços mais altos da energia e dos alimentos sobre os mais vulneráveis. Estes últimos incluem muitos países em desenvolvimento, especialmente importadores líquidos de energia e alimentos. Eles exigirão apoio substancial em curto prazo. Os direitos de saque especiais criados no ano passado poderão agora ser usados para esses fins. Os países de alta renda não precisam deles e deveriam doá-los ou pelo menos emprestá-los aos países mais necessitados.

A resposta a esta tragédia terá de ser muito mais do que de curto prazo. Assim como a Covid nos obriga a planejar como lidar com futuras pandemias, essa guerra deve nos forçar a pensar mais sobre segurança em um mundo mais hostil do que a maioria de nós previa ou pelo menos esperava. A segurança energética será reforçada por uma mudança ainda mais rápida para as energias renováveis. Isso não é mais algo apenas ligado ao clima. Em curto prazo, a diversificação das fontes de combustíveis fósseis também será essencial.

Mais uma vez, está claro que o Ocidente e especialmente a Europa terão que fazer um grande e coordenado aumento de sua capacidade de defesa coletiva. Isso vai custar caro. Os europeus têm recursos para serem mais independentes estrategicamente. Eles devem usá-los. Enquanto a direita isolacionista continuar tão poderosa nos EUA, isso não será apenas correto, mas sábio.

Por último, mas não menos importante, a Rússia deve permanecer um pária enquanto esse regime vil sobreviver. Mas também teremos que conceber uma nova relação com a China. Devemos continuar cooperando. No entanto, não podemos mais contar com esse gigante em ascensão para bens essenciais. Estamos em um novo mundo. A dissociação econômica agora certamente se tornará profunda e irreversível. Não vejo como evitar isso.