Safatle: Anistia nunca mais

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Democracia foi dilapidada. Reconstruí-la exige punir os crimes de Bolsonaro, as chantagens dos militares e a politização das políticas. Primeiros meses do novo governo serão essenciais para isso. Senão estaremos fadados a repetir o passado…

Vladimir Safatle – Comissão Arns – OUTRA MÍDIAS – 01/12/2022

Muitas vozes alertam o Brasil sobre os custos impagáveis de cometer um erro similar àquele feito há 40 anos. No final da ditadura militar, setores da sociedade e do governo impuseram o silêncio duradouro sobre crimes contra a humanidade perpetrados durante os vinte anos de governo autoritário. Vendia-se a ilusão de que se tratava de astúcia política. Um país “que tem pressa”, diziam, não poderia desperdiçar tempo acertando contas com o passado, elaborando a memória de seus crimes, procurando responsáveis pelo uso do aparato do Estado para prática de tortura, assassinato, estupro e sequestro. Impôs-se a narrativa de que o dever de memória seria mero exercício de “revanchismo” – mesmo que o continente latino-americano inteiro acabasse por compreender que quem deixasse impunes os crimes do passado iria vê-los se repetirem.

Para tentar silenciar de vez as demandas de justiça e de verdade, vários setores da sociedade brasileira, desde os militares até a imprensa hegemônica, não temeram utilizar a chamada “teoria dos dois demônios”. Segundo ela, toda a violência estatal teria sido resultado de uma “guerra”, com “excessos” dos dois lados. Ignorava-se, assim, que um dos direitos humanos fundamentais na democracia é o direito de resistência contra a tirania. Já no século 18, o filósofo John Locke, fundador do liberalismo, defendia o direito de todo cidadão e de toda cidadã matar o tirano.

Pois toda ação contra um estado ilegal é uma ação legal. Note-se: estamos a falar da tradição liberal.

Os liberais latino-americanos, porém, têm essa capacidade de estar sempre abaixo dos seus próprios princípios. Por isso, não é surpresa alguma ouvir um ministro do Supremo Tribunal Federal, como Dias Toffoli, declarar, em pleno 2022, pós-Bolsonaro: “Não podemos nos deixar levar pelo que aconteceu na Argentina, uma sociedade que ficou presa no passado, na vingança, no ódio e olhando para trás, para o retrovisor, sem conseguir se superar (…) o Brasil é muito mais forte do que isso”.

Afora o desrespeito a um dos países mais importantes para a diplomacia brasileira, um magistrado que confunde exigência de justiça com clamor de ódio, que vê na punição a torturadores e a perpetradores de golpes de estado apenas vingança, é a expressão mais bem acabada de um país, esse sim, que nunca deixou de olhar para o retrovisor. Um país submetido a um governo que, durante quatro anos, fez de torturadores heróis nacionais, fez de seu aparato policial uma máquina de extermínio de pobres.

Alguns deveriam pensar melhor sobre a experiência social de “elaborar o passado” como condição para preservação do presente. Não existe “superação” onde acordos são extorquidos e silenciamentos são impostos. A prova é que, até segunda ordem, a Argentina nunca mais passou por nenhuma espécie de ameaça à ordem institucional. Nós, ao contrário, enfrentamos tais ataques quase todos os dias dos últimos quatro anos. Nada do que aconteceu conosco nos últimos anos teria ocorrido se houvéssemos instaurado uma efetiva justiça de transição, capaz de impedir que integrantes de governos autoritários se auto-anistiassem. Pois dessa forma acabou-se por permitir discursos e práticas de um país que “ficou preso no passado”. Ocultar cadáveres, por exemplo, não foi algo que os militares fizeram apenas na ditadura. Eles fizeram isso agora, quando gerenciavam o combate à pandemia, escondendo números, negando informações, impondo a indiferença às mortes como afeto social, impedindo o luto coletivo.

É importante que tudo isso seja lembrado neste momento. Porque conhecemos a tendência brasileira ao esquecimento. Este foi um país feito por séculos de crimes sem imagens, de mortes sem lágrimas, de apagamento. Essa é sua tendência natural, seja qual for o governante e seu discurso. As forças seculares do apagamento são como espectros que rondam os vivos. Moldam não apenas o corpo social, mas a vida psíquica dos sujeitos.

Cometer novamente o erro do esquecimento, repetir a covardia política que instaurou a Nova República e selou seu fim, seria a maneira mais segura de fragilizar o novo governo. Não há porque deleitar-se no pensamento mágico de que tudo o que vimos foi um “pesadelo” que passará mais rapidamente quanto menos falarmos dele. O que vimos, com toda sua violência, foi o resultado direto das políticas de esquecimento no Brasil. Foi resultado direto de nossa anistia.

A sociedade civil precisa exigir do governo que se inicia a responsabilização pelos crimes cometidos por Bolsonaro e seus gerentes. Isso só poderá ser feito nos primeiros meses do novo governo, quando há ainda força para tanto. Quando falamos em crimes, falamos tanto da responsabilidade direta pela gestão da pandemia, quanto pelos crimes cometidos no processo eleitoral.

O Tribunal Penal Internacional aceitou analisar a abertura de processo contra Bolsonaro por genocídio indígena na gestão da pandemia. Há farto material levantado pela CPI da Covid, demonstrando os crimes de responsabilidade do governo que redundaram em um país com 3% da população mundial contaminada e 15% das mortes na pandemia. Punir os responsáveis não tem nada a ver com vingança, mas com respeito à população. Essa é a única maneira de fornecer ao estado nacional balizas para ações futuras relacionadas a crises sanitárias similares, que certamente ocorrerão.

Por outro lado, o Brasil conheceu duas formas de crimes eleitorais. Primeiro, o crime mais explícito, como o uso do aparato policial para impedir eleitores de votar, para dar suporte a manifestações golpistas pós-eleições. A polícia brasileira é hoje um partido político. Segundo, o pior de todos os crimes contra a democracia: a chantagem contínua das Forças Armadas contra a população. Forças que hoje atuam como um estado dentro do estado, um poder à parte.

Espera-se do governo duas atitudes enérgicas: que coloque na reserva o alto comando das Forças Armadas que chantageou a República; e que responsabilize os policiais que atentaram contra eleitores brasileiros, modificando a estrutura arcaica e militar da força policial. Se isso não for feito, veremos as cenas que nos assombraram se repetirem por tempo indefinido.

Não há nada parecido a uma democracia sem uma renovação total do comando das Forças Armadas e sem o combate à polícia como partido político. A polícia pode agir dessa forma porque sempre atuou como uma força exterior, como uma força militar a submeter a sociedade. Se errarmos mais uma vez e não compreendermos o caráter urgente e decisivo de tais ações, continuaremos a história terrível de um país fundado no esquecimento e que preserva de forma compulsiva os núcleos autoritários de quem comanda a violência do Estado. Mobilizar a sociedade para a memória coletiva e suas exigências de justiça sempre foi e continua sendo a única forma de efetivamente construir um país.

A “austeridade” acampa nas portas dos quartéis, por Gilberto Maringoni

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O fascismo e a “disciplina fiscal” dos mercados caminham de mãos dadas. Ambos clamam por soluções não-racionais, não institucionais e não-democráticas. É impossível estabelecer políticas neoliberais sem romper com a democracia

Gilberto Maringoni – Outras Palavras – 28/11/2022

Austeridade fiscal não é uma iniciativa episódica ou um freio de arrumação nas contas públicas. Austeridade fiscal é a forma perene de se administrar o capitalismo do século XXI através da ameaça infindável de mais cortes e mais constrangimentos aos orçamentos públicos. As políticas de austeridade fiscal são sempre brandidas pelo “mercado” e por seus representantes no aparelho de Estado como uma espécie de castigo bíblico contra o pecado capital (!) da gastança, que pode ser tanto o investimento em obras de infraestrutura, quanto o de levar comida ao prato dos miseráveis. A austeridade fiscal age como ameaça punitiva preventiva contra tentações de expansão de tarefas do Estado, como espada desembainhada sempre pronta a ser manuseada contra os inimigos da boa governança. Austeridade fiscal é a doutrina do choque aplicada à economia.

ESTAMOS EM CRISE, estamos em crise, estamos em crise e é preciso pagar por isso!

A AUSTERIDADE FISCAL é o complemento teoricamente racional ao bolsonarismo de porta de quartel, à chantagem de que se meu candidato não ganhou é porque fraude houve. O apelo positivista-jagunço à ordem equivale à criminalização de políticas fiscais expansivas. O golpismo dos ressentidos não nasceu junto das políticas de austeridade, mas na quadra histórica de esgarçamento do tecido social e fragmentação do mundo do trabalhoo austericismo retroalimenta a busca por soluções mágicas na esfera política.

A AUSTERIDADE COMO MODO DE GESTÃO embute um componente profundamente fatalista e mítico à gestão pública. Depois do infindável sacrifício da contenção de dinheiro, eis que os céus se abrirão e a redenção do crescimento, do emprego e do dinheiro no bolso surgirá por encanto. O austericismo nos levará a uma solução mágica equivalente à do sebastianismo fardado resultante de vigílias coletivas por 7 dias e 7 noites em frente às tropas enfileiradas ou do socorro que virá dos ETs conectados aos celulares em nossas cabeças. A partir daí, o fogo purificador do golpe nos conduzirá à vida eterna.

AUSTERICÍDIO E FASCISMO caminham, pois, de mãos dadas. Ambos clamam por soluções não-racionais, não institucionais e não-democráticas. Pinochet (e Milton Friedman) cantaram a pedra há quase meio século: é impossível estabelecer políticas alucinadamente liberais na economia sem romper com a democracia. É preciso queimar pneus, é preciso bloquear estradas, é preciso vaiar Gil, é preciso metralhar alunos e professores em sala de aula, é preciso matar petralhas, é preciso escrever editoriais ameaçadores, é preciso manter o teto, é preciso privatizar, é preciso escrever cartas com conselhos arrogantes a Lula, é preciso lembra-lo que assim ele não vai governar, é preciso lembrar de fazer todos esquecerem as 700 mil mortes, é preciso, é urgente fazer alguma coisa!

AS POLÍTICAS DE AUSTERIDADE – com seu entulho modernizante de teto de gastos, responsabilidade fiscal, superávit primário, entre outras pérolas – são formuladas a partir da teoria econômica do celular na cabeça. E ai dos que não se enquadrarem em suas tábuas da lei: serão condenados ao déficit eterno e à eliminação do mercado, o nirvana dos bobos. Vigiar e punir é pouco. Austeridade e fascismo significa punir e punir em busca da redenção nas quatro linhas de qualquer coisa que surja a cada momento.

Tudo o mais é populismo, e será condenado aos infernos!

Contemporaneidade

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São inúmeros os desafios para a sociedade brasileira contemporânea que exigem grandes capacidades de organização social, planejamento econômico e liderança política. Vivemos numa sociedade marcada por grandes desequilíbrios e conflitos políticos, esgotamento do modelo econômico, aumento da desesperança, degradações ambientais, negacionismo científico, crescimento da pobreza e da violência e o aumento acelerado da população global, gerando incertezas nos agentes econômicos, redução dos investimentos produtivos, desagregação dos laços sociais, com aumento do individualismo, do imediatismo e degradação ambiental.

Dentre estes desafios contemporâneos, precisamos destacar as rápidas transformações demográficas, o aumento dos idosos, a longevidade dos indivíduos e uma redução do número de crianças, exigindo da sociedade a consolidação do planejamento estratégico e uma grande capacidade de vislumbrar os desafios futuros, preparando as organizações, qualificando o capital humano e criando espaços de atuação social e política, fortalecendo os conselhos como local de discussão democrática e participativo da comunidade, contribuindo para a construção e a consolidação da cidadania.

No século XIX, um economista inglês chamado Thomas Robert Malthus defendia a tese de que estávamos nos aproximando de uma grande fome, isso aconteceria porque a população mundial estava crescendo rapidamente e a oferta de alimentos não conseguiria acompanhar este crescimento, com isso, a fome deveria assolar a sociedade, aumentando os conflitos sociais, incrementando as guerras e as instabilidades políticas. Suas teses não se efetivaram, apesar do crescimento populacional a oferta de alimento cresceu mais rapidamente do que a demanda, em decorrência do aumento tecnológico, do incremento das técnicas de produção e dos avanços das pesquisas científicas em insumos, fertilizantes e adubos.

Na contemporaneidade percebemos que as mazelas da fome crescem em todas as regiões do mundo, não pela falta da oferta de alimento, mas sim pela ausência da renda dos trabalhadores, todo este cenário impacta sobre as alterações na estrutura populacional, exigindo políticas públicas para garantir segurança alimentar para as comunidades mais carentes e fragilizadas.

O novo perfil populacional da sociedade nacional necessita de uma ampla reformulação das formas de sociabilidade humana, uma ampla alteração dos modelos econômicos e produtivos, uma reestruturação intensa no mundo do trabalho e a criação de espaços para absorver indivíduos mais experientes que, muitas vezes, são preteridos pelos mais jovens, com isso, precisamos incrementar os investimentos da chamada economia criativa, que tem grande potencial para alavancar a economia brasileira e, infelizmente, na história nacional é muito negligenciada, com poucos recursos investidos na cultura, no audiovisual e nas artes cênicas.

As alterações populacionais tendem a demandar mais profissionais em detrimento de outros, com isso, novos cursos e formações específicas ganham relevância como forma de absorver todos os trabalhadores, buscando melhores condições de trabalho, melhorando a capacitação da mão-de-obra, fomentando a flexibilidade e o dinamismo para se adaptar para as transformações cotidianas.
Os avanços tecnológicos, nas mais variadas áreas de conhecimento, estão gerando transformações silenciosas, desestimulando atividades e consolidando novas formas de trabalho, novas habilidades comportamentais ganham centralidade, a inteligência emocional ganha relevância e os investimentos em capital humano, exigindo uma sociedade consciente para compreendermos os desafios na sociedade contemporânea, levando oportunidades para todos os indivíduos e para todas as comunidades, evitando que os conflitos econômicos e desequilíbrios políticos não fragilizem as bases que sustentam a sociedade, degradando a democracia e gerando mais espaço de violência, medo e desesperanças.

Os desafios populacionais devem crescer nos próximos anos, exigindo novas configurações produtivas e lideranças conscientes nas organizações. A tecnologia aumenta a produção, mas degrada o meio ambiente, aumenta a desigualdade e podem acabar com as esperanças no futuro.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa; Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 30/11/2022

É proibido governar, por Igor Grabois

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Por IGOR GRABOIS* – A Terra é redonda – 27/11/2022

Considerações sobre a captura pelo neoliberalismo da máquina pública
Impressionante o que o neoliberalismo fez com a máquina pública brasileira. O presidente eleito tem, na prática, de pedir para governar. E não estou falando de aprovação de leis no Congresso e que tais. Estou falando das atribuições do Poder Executivo.

Uma série de órgãos públicos tem “mandato”, que blindam seus dirigentes do voto popular. O Banco Central independente – deve ser do pai e da mãe, porque é dependente do mercado – é o caso mais gritante. Bob Fields Neto, parça do sinistro Paulo Guedes, tem dois anos ainda para sabotar a política econômica do governo.

A Aneel, a agência capturadíssima pelos regulados, as empresas do setor elétrico, avisa o governo de transição que a energia vai aumentar 5,3%, em algumas distribuidores mais de 10%. Por cálculos que ninguém sabe quais. Bastaria trocar os dirigentes da Aneel e implantar a modicidade tarifária. Só que não. A Aneel tem “mandato”. O setor está todo privatizado e é necessário “respeitar os contratos”. Danem-se os consumidores residenciais e empresariais.

A situação se repete em um monte de outros setores como aeroportos, telefonia, portos. Até a Embratur tem “mandato”. Bozo nomeou o Sanfoneiro Gilson para quatro anos (!) de mandato. O próximo governo está impedido, de fato, de implantar uma política para o turismo. O Sanfoneiro Gilson, é de conhecimento geral, acha que turismo é jogo e turismo sexual.

Na Petrobras, com um estatuto que favorece os acionistas minoritários, o presidente da empresa, ex-secretário de Paulo Guedes, anuncia que ficará até abril de 2023, até a nova Assembleia de acionistas. Vai aproveitar para vender mais alguns pedaços da companhia.

O vice-presidente Geraldo Alkmin negocia com o Sebrae para que adie a eleição de sua direção para fevereiro. O Sebrae faz parte do sistema S, mas recebe caminhões de dinheiro público para não apoiar, com medidas concretas, a micro e pequena empresa.

A maioria do povo não sabe disso. O aumento da energia elétrica vai para o colo do novo presidente. O aumento de juros e política monetária contracionista vão fazer o Tesouro e a política fiscal enxugar gelo, com efeitos devastadores nos preços e nos empregos. A conta também será paga por Lula.

O tal mercado tem as agências, o Banco Central e os tais “contratos” que só beneficiam as empresas. E ainda querem impor um nome de seu agrado no Ministério da Fazenda e ditar a política fiscal. A política fiscal é a única que o presidente, no momento, pode implementar, já que a monetária e a cambial estão a cargo do Banco Central “independente”.

Para implantar o programa escolhido pelas urnas é mandatório que os arranjos institucionais implantados desde o governo FHC sejam rediscutidos, com o retorno para os ministérios o poder usurpado pela miríade de agências regulatórias que trabalham a favor dos regulados privados.

Saltos tecnológicos dependem de apoio estatal à inovação, afirma economista

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Anglo-venezuelana Carlota Perez deu aula sobre nova economia a convite do FolhaLab+ iFood

27/11/2022

Philippe Scerb

SÃO PAULO Economista anglo-venezuelana e professora honorária da University College London (UCL) e da Universidade de Sussex, no Reino Unido, Carlota Perez é considerada uma das grandes especialistas nas relações entre as mudanças tecnológicas e a economia e os seus consequentes impactos políticos e sociais.
Convidada pelo FolhaLab+ iFood, ela ministrou a aula inaugural do curso Nova Economia para Jornalistas, com a participação online de cerca de uma centena de inscritos.

A programação do curso, voltada para profissionais e estudantes de comunicação, se estendeu por dois meses e contou com especialistas e professores convidados, que discutiram os principais aspectos e desafios da chamada nova economia.

Também participaram executivos e CEOs de empresas e startups, que falaram de suas trajetórias e analisaram perspectivas para o futuro.

Falando de Londres, Carlota Perez dividiu sua aula em três partes intercaladas por perguntas dos alunos. Na primeira delas, a professora abordou os padrões recorrentes das revoluções tecnológicas, entendidas como passagens para outro paradigma técnico e econômico, em que o sistema anterior se torna obsoleto e emerge outra forma de pensar e operar as empresas.

De acordo com ela, atualmente nós viveríamos a quinta revolução tecnológica, iniciada ao longo dos anos 1970 com o surgimento dos microprocessadores e dos computadores pessoais.

Para Perez, o barateamento de algo sempre está no centro de uma revolução tecnológica. Se a diminuição dos custos de exploração do petróleo foi crucial para a quarta revolução, da produção em massa, a que vivemos hoje teve seu impulso com o barateamento dos microchips.

São esses microchips que, por meio do desenvolvimento das telecomunicações e da internet, têm permitido a passagem para uma era da produção barata e flexível, com economias de escala e grande variedade de produtos e serviços. As oportunidades para um salto de produtividade e desenvolvimento são enormes, mas, de acordo com a professora, é preciso saber como e onde aproveitá-las.

“Podemos ter pela frente uma época de bonança depois da turbulência política que temos vivido com o aumento da desigualdade e o populismo. Hoje, como nos anos 1930 do século passado e na década de 1890, o desemprego é estrutural, ainda que oculto pelo fato de haver muita gente empregada ganhando muito menos do que antes”, diz ela.

Para a professora, a situação atual se assemelha aos períodos citados por causa de estagnação econômica, recessões, xenofobia, especulação financeira, agitações sociais, divisão política e o surgimento de líderes políticos messiânicos. “É sempre bom lembrar que Mussolini e Hitler foram eleitos”, afirma.

Na opinião da estudiosa, a superação da instabilidade só teria sido possível por meio de um papel proativo por parte do Estado, embora nenhum país tenha feito isso sem um setor privado dinâmico. A mesma fórmula teria sido aplicada em todos os casos.

“Um Estado voltado para a promoção do desenvolvimento, mais empreendimento, inovação, educação e mercado. Tudo junto. Os padrões da revolução tecnológica são difundidos a partir de determinados países, mas todos têm que aproveitar as oportunidades que emergem”, diz.

Na segunda parte da aula, Perez mostrou como as possibilidades de desenvolvimento se transformam ao longo das décadas e defendeu a necessidade de serem aproveitadas a tempo para não serem perdidas.

Como exemplo, mencionou a Industrialização por Substituição de Importações (ISI). “Uma política que permitiu o crescimento da América Latina e a criação de uma classe média. Depois, ela se tornou um obstáculo para darmos outro salto, mas foi uma oportunidade naquele momento.”

Quase toda a região teria aproveitado, entre os anos 1950 e 1970, uma circunstância favorável para aumentar a produtividade. Embora tenha se dado com a expansão da desigualdade, o Brasil, com seu gigantesco mercado interno, se beneficiou particularmente dessa iniciativa e teve um salto geral de possibilidades.

No entanto, a América Latina não soube aproveitar, como os asiáticos fizeram entre os anos 1980 e 1990, a passagem da ISI para a exportação competitiva. “Os países latino-americanos não aprenderam a inovar como forma de crescer. A globalização e o livre mercado não resultaram em uma oportunidade aproveitável. O livre mercado funciona para outras coisas, mas não para dar salto de produtividade e desenvolvimento.”

O resultado é que a América Latina está na última posição do mundo quando o assunto é aumento da produtividade de 1980 para cá. “Nós não soubemos aproveitar a instalação da revolução informática, portanto não podemos perder as oportunidades que estão se abrindo agora”, afirma Perez.

Para a professora, a América Latina, e especialmente o Brasil, podem se beneficiar de uma economia globalizada que, de um lado, precisa de recursos naturais e energéticos e, de outro, tem mercados segmentados com requisitos de equidade social e compromisso ambiental —já realidade no mundo das finanças.

O desafio da revolução atual consistiria, sobretudo, em aliar mais recursos naturais, tecnologia e inclusão social para um desenvolvimento ambiental e social sustentáveis.

Afinal, embora alguns ainda possam ver a preservação como um entrave ao desenvolvimento, ela abre oportunidades importantes. E o Brasil, para Perez, pode liderar o salto para o desenvolvimento com qualidade de vida. Para isso, contudo, são necessárias políticas adequadas.

Grandes companhias ainda continuam relevantes, mas há espaço, segundo a economista, para diferentes grupos locais de empresas médias e pequenas, de pesquisa e de serviços de alta tecnologia, que possam gerar mercados adicionais para as grandes.

Diferentemente do modelo de produção em massa, do paradigma anterior, leis inteligentes e apoio técnico e financeiro têm condições de criar uma “multidão de pequenas e médias empresas rentáveis e empregadoras em cada canto do território, produzindo desde ultraprocessados até alimentos orgânicos, de produtos padronizados aos feitos sob medida”.

Para isso, porém, é preciso que Estado e mercado estejam bem articulados, tema da terceira parte da aula, intitulada “Nem Estado nem Mercado, Ambos ao Mesmo Tempo”.

“Mais Estado ou mais mercado? Antes não perguntava isso. Entendia-se que ambos iam juntos. Desde Milton Friedman [economista americano, 1912-2006], passou-se a acreditar em coisas que não são verdade. A história mostra que nenhum país deu um salto para o desenvolvimento sem intervenção estatal.”

Para ela, projetos nacionais de sucesso obedecem a um padrão: identificam-se oportunidades e criam-se instituições adequadas para a sua promoção, elevando a capacidade técnica do Estado. O ponto-chave é o financiamento.

“É imprescindível que haja uma direção clara para a priorização dos recursos financeiros, o que depende de políticas fortes e de um consenso entre a sociedade e o mundo dos negócios.”

Perez lamenta, de um lado, que hoje muitos governos e políticos continuem presos ao modelo centralizador da produção em massa e os Estados sejam permeados por um excesso de regulações; de outro, que elites econômicas permaneçam agarradas à ilusão do Estado mínimo e do livre mercado. “Uma ilusão que não funcionou”, avalia.

Os governos dos países que mais se desenvolvem atualmente apoiam e financiam avanços tecnológicos em infraestrutura, educação, ciência, tecnologia etc. “Não há grandes saltos sem forte apoio público à inovação. Elon Musk, embora hoje esconda isso, teve seu primeiro investimento financiado com dinheiro estatal.”

O desenvolvimento, alertou a professora, deve estar atrelado ao pleno emprego e bem-estar para todos. Para ela, o progresso econômico desprovido de progresso social é instável.

A atual revolução tecnológica, porém, favorece esse equilíbrio na medida em que está apoiada no aproveitamento dos recursos naturais, na melhoria da vida rural e na redução do fluxo populacional rumo às cidades, na redução da economia informal, no resgate de valores comunitários e locais e em atrativos ao trabalho à distância.

“Nos anos 1960 e 1970, tivemos Estado protecionista. Dos anos 1980 para cá, um Estado não interventor. De 2020 em diante, precisamos de um Estado promotor, ativo e inovador. Mas o sucesso dependerá de esforço de inovação institucional, baseado em consenso entre governo, negócios, sistema educativo, sindicatos e organizações sociais”, diz.

“A nova era acelerará mudanças em métodos de produção com aumento da demanda por uma economia verde e estilos de vida sustentáveis. Temos que aproveitar a oportunidade”, completa.

RAIO-X
Carlota Perez, 83
Economista anglo-venezuelana e professora honorária da University College London (UCL) e da Universidade de Sussex, no Reino Unido, é considerada uma das grandes especialistas nas relações entre as mudanças tecnológicas e a economia e os seus consequentes impactos políticos e sociais. Convidada pelo FolhaLab+ iFood, ela ministrou a aula inaugural do curso Nova Economia para Jornalistas, com a participação online de cerca de uma centena de inscritos

Financismo: austeridade para quem? por Paulo Kliass

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Até manuais ortodoxos de economia pregam investimentos públicos para combater crises. Mas elites brasileiras se aferram à responsabilidade fiscal para enquadrar Lula – e sabotar PEC da Transição, primeiro passo para reconstruir o país

Paulo Kliass – PUTRAS PALAVRAS – 22/11/2022

Não existe nenhum exagero em se afirmar que boa parte dos problemas econômicos e sociais que o Brasil tem vivido ao longo dos últimos anos encontram no chamado “Novo Regime Fiscal” (NRF) uma de suas causas principais. Esse eufemismo foi concebido por Henrique Meirelles e sua equipe logo depois da consumação do “golpeachment” perpetrado contra Dilma Rousseff em 2016. Com o afastamento da presidenta, Michel Temer aboletou-se rapidamente para ocupar o cargo – usurpado ao arrepio da legalidade e da constitucionalidade – no Palácio do Planalto.

Assim, no apagar das luzes daquele ano, no dia 13 de dezembro, o Senado Federal aprovou em segundo turno a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n° 55, concluindo a tramitação que já havia sido iniciada anteriormente na Câmara dos Deputados. A partir de então, o texto da nossa Carta Magna passava a incluir a Emenda Constitucional (EC) n 95. O NRF nada mais é do que uma forma mais “elegante” de tratar da política do teto de gastos. De acordo com o texto, aprovado no mesmo dia em que a ditadura militar havia promulgado o AI-5 em 1968, o governo federal fica proibido de promover qualquer elevação no nível das despesas orçamentárias observadas no exercício de 2016 durante vinte longos anos. Uma loucura!

Pelo disposto no texto, a única correção possível de ser efetuada nos gastos primários seria a aplicação do índice de inflação relativo ao período anterior. Assim, não importaria se houvesse aumento da arrecadação ou se surgisse alguma necessidade emergencial a ser atendida. Os únicos itens de gastos que não estavam sob essa restrição de crescimento eram as rubricas financeiras.

Ou seja, os valores atribuídos a pagamento de juros da dívida pública poderiam aumentar sem nenhum problema. Já as despesas com previdência, saúde, assistência social, pessoal, saneamento e outras estariam congeladas por duas décadas.

Teto de gastos: Brasil na contramão
Essa proposta veio se somar ao elenco das jabuticabas que o Brasil tem a oferecer ao resto do mundo. É impressionante como nossas elites não sentem a menor vergonha em apresentar esse tipo de desastre como sendo um arremedo de solução para nossos problemas econômicos. Afinal, não faz o menor sentido impedir que o Estado seja chamado a recuperar seu protagonismo na esfera da economia, em especial nos momentos de crise. Essa havia sido, aliás, a linha adotada pelos governos dos países mais desenvolvidos do capitalismo a partir da eclosão da crise financeira de 2008/9. Ao invés do Estado mínimo, por lá o caminho foi o da expansão dos gastos públicos e do aumento da presença governamental na seara da economia.

Mas o financismo tupiniquim pensa diferente e tem outras estratégias para viabilizar o crescimento de seus ganhos fáceis e parasitas, de forma absolutamente desconectada de qualquer atividade produtiva. Ao martelar de forma insistente na necessidade de se apertar ainda mais o ferrolho da austeridade fiscal irresponsável, o sistema financeiro ocupa todos os espaços nos grandes meios de comunicação para criar o clima de catástrofe anunciada, caso não seja reduzido o volume de gastos públicos no país. Esse mantra criminoso contra toda e qualquer elevação no sacrossanto “índice de endividamento” ignora as reais necessidades da maioria da população. A necessidade de arregimentar recursos para combater a pandemia de covid-19, o retorno do Brasil ao Mapa do Fome, a explosão dos indicadores de miséria e outros aspectos dramáticos da nossa profunda crise social pouco importam para esse pessoal.

No entanto, o financismo jamais deixa de revelar de forma escancarada suas preferências políticas e ideológicas. Caso seja necessário introduzir alguma pitada de pragmatismo em sua cruzada em prol da redução do Estado e em defesa de um fiscalismo extremado, então seus escribas favoritos são chamados a elencarem argumentos oportunistas e casuístas em defesa de alguma flexibilização observada. No entanto, que isso fique bem claro, essa desculpa toda só é válida se o comando da economia estiver nas mãos de algum aliado e pessoa de sua total confiança. Esse é o caso, obviamente, da dupla Paulo Guedes & Bolsonaro, grandes responsáveis pelo quadro da desgraça generalizada em que nos encontramos nos tempos atuais.

Financismo não reclamou de Guedes
É interessante registrar que em nenhum momento ao longo dos quatro anos deste desgoverno houve qualquer manifestação mais dura do povo do financismo para “denunciar” as tentativas do superministro da Economia de passar ao largo do teto de gastos. Mas vamos lembrar aqui que, em todos os exercícios do mandato que se encerra no final do ano, Guedes deu um jeitinho de executar despesas acima do que era previsto nas regras rígidas do NRF. No total, esse valor chegou a quase R$ 800 bilhões ao longo do quadriênio. Foram R$ 54 bi em 2019, R$ 508 bi em 2020, R$ 117 bi em 2021 e R$ 116 bilhões neste ano. Em cada caso havia uma justificativa para burlar o disposto na determinação contracionista introduzida na Constituição. Mas ninguém se levantou para acusar qualquer “licença para gastar” ou ameaça de quebra do país em cada uma destas iniciativas sugeridas por Guedes.

Mas quando se trata de aprovar uma autorização para que o governo eleito consiga realizar alguns pontos mais emergenciais de seu programa de governo, aí tudo muda de figura. A chamada “PEC da transição” ainda nem foi apresentada ao Congresso Nacional em sua forma definitiva. Mas a berraria do financismo em favor de reforçar a austeridade não perde tempo nem espaço. A equipe de Lula aponta a correta e compreensível necessidade de retirar itens como elevação dos valores do auxílio emergencial, retorno do programa Farmácia Popular e previsão de aumento do salário mínimo do cálculo do teto. Nada mais justo e adequado, tanto em termos da urgência social como do impacto macroeconômico positivo. Mas como o governo não é de sua confiança, agora o financismo volta a recuperar o conceito da responsabilidade fiscal de forma despropositada, exatamente como não o fez em nenhum momento durante o reinado de Bolsonaro.

Austeridade: cobrança só vale para Lula
Segundo o conceito de austeridade do financismo a ser aplicado ao período de Guedes, o fato de ele ter comandado o furo ao teto por quatro anos consecutivos não é relevante. Segundo os especialistas de plantão, não havia ali nenhum sinal de irresponsabilidade fiscal ou gastança irresponsável. Talvez pelo fato de Paulo Guedes ser um cupincha da plena confiança do povo do sistema financeiro, tudo era justificado por necessidades imprevistas anteriormente. Até mesmo em favor da “PEC do Desespero” houve argumento encomendado sob medida, ainda que estivesse ali escancarado o objetivo oportunista e eleitoreiro de último minuto. Há quem diga que essa cara de paisagem do povo da finança tenha alguma relação com o seu desejo de que Guedes continuasse à frente da economia, com a reeleição de capitão.

Porém, já de acordo com o conceito de austeridade a ser aplicado ao presidente eleito, bom aí a coisa toda muda de figura. A gritaria patrocinada pelo financismo se esgoela antes mesmo da posse de Lula e o valor previsto de R$ 200 bi para tornar exequíveis algumas promessas básicas de campanha é objeto de bombardeio permanente na grande imprensa. Convenhamos que coerência não é propriamente um atributo que possa ser aplicado a quem se move na lâmina entre defender seus interesses imediatos e militar em favor de um Brasil ainda mais desindustrializado, dependente,
inanceirizado e empobrecido.

Qualquer manual básico de macroeconomia, ainda que de viés conservador, nos ensina a respeito da importância de medidas anticíclicas, a serem adotadas pelos governos para se contrapor a situações de crise, desemprego e recessão. Estes seriam os momentos em que o Estado deveria, ao contrário do que prega o senso comum, aumentar os seus gastos. Pois o teto de gatos impede qualquer iniciativa neste sentido. Ou seja, o NRF é um fator que permite a perpetuação da condição estagnacionista. Mas para o financismo, o que é importa é exigir sempre mais e mais austeridade. Em especial de um governo que promete “heresias”, tais como a recuperação do protagonismo do Estado, o fim do ciclo de privatizações, a retomada de um programa desenvolvimentista e a adoção de políticas de redução da desigualdade social e econômica.

Investimentos

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A economia brasileira perdeu o dinamismo desde os anos 1980. Depois de sermos vistos como uma economia marcada por alto crescimento econômico, com transformações estruturais, perdemos o fôlego, amargando uma estagnação econômica, desindustrialização crescente e perdemos a relevância no cenário internacional e passamos a se transformar numa economia agroexportadora centrada em produtos de baixo valor agregado. Dentre os indicadores macroeconômicos mais importantes para o sistema econômico e produtivo de uma sociedade, os investimentos devem ser vistos como o mais relevante para movimentar o ciclo da economia, estimulando a geração de emprego, melhorar o salário, além de aumentar a renda, o consumo e a produção.

Podemos definir investimento como a despesa em bens e serviços que serão utilizados futuramente na produção de outros bens e serviços. Também designado por formação bruta de capital, o investimento faz aumentar os recursos produtivos de uma economia e, portanto, as suas possibilidades de produção. Sem investimentos, os ciclos econômicos não se completam, as estruturas produtivas não geram empregos, aumentando a desocupação da sociedade, reduzindo a renda agregada, diminuindo o consumo, precarizando as condições sociais e exigindo a intervenção dos agentes econômicos para movimentar o ciclo econômico.

Os investimentos produtivos tem uma grande centralidade na estrutura econômica, os agentes produtivos investem quando acreditam que terão retornos interessantes, quando acreditam que as regras serão estáveis e aceitáveis, com isso, são estimulados a tomarem riscos pois acreditam que serão agraciados com lucros e rentabilidades ascendentes. Quando encontramos países ou nações que não conseguem garantir retornos e credibilidade, que possuem instituições instáveis e turbulentas, os investidores tendem a se distanciar, gerando graves constrangimentos econômicos, inviabilizando os investimentos, limitando o “espírito animal” dos empreendedores, restringindo novos negócios e retardando possíveis ciclos econômicos e produtivos.

Numa sociedade internacional centrada por grandes instabilidades e incertezas, percebemos que o Estado vem ganhando relevância nas principais nações, neste cenário, percebemos que o neoliberalismo vem perdendo espaço, motivados por três grandes transformações: a ascensão chinesa centrada no intervencionismo governamental, a crise imobiliária dos Estados Unidos, de 2008, que fragilizou o modelo centrado no predomínio do capital financeiro e, por último, a pandemia que assolou a sociedade internacional, gerando milhões de mortes e dinamizou os investimentos governamentais como forma de reduzir os estragos econômicos e produtivos.

Historicamente, destacamos os investimentos governamentais que foram imprescindíveis para alavancar a estrutura produtiva, vivemos momentos de grandes saltos tecnológicos, cujos recursos dos Estados Nacionais foram fundamentais, como foi descrito pela economista italiana Mariana Mazzucato que se tornou mundialmente conhecida depois de publicar o livro “O Estado Empreendedor”, descrevendo o papel crucial dos investimentos dos governos para estimular novos avanços tecnológicos, sem estes investimentos dificilmente teremos acesso aos novos modelos de negócios que estão sendo construídos, sem internet, sem GPS, dentre outros produtos que fazem parte do cotidiano da comunidade.

Nos últimos anos os investimentos produtivos na economia brasileira estão em níveis baixíssimos, as incertezas institucionais assustam os investimentos, políticas ambientais confusas afastam investimentos, sem educação de qualidade afastam os investimentos, ataques constantes a democracia afastam os investimentos, com salários reduzidos e mercado de consumo comprimido afastam os investimentos, conflitos entre os três poderes afastam investimentos, neste ambiente, como acreditar que estamos caminhando para o tão sonhado desenvolvimento econômico?

Neste ambiente, percebemos apenas o crescimento e o enriquecimento de uma elite rentista, improdutiva e imediatista, sem compromisso com a nação, que acumula fortunas com a ciranda financeira, ganhos com juros elevados e usam seu poder político para perpetuar seu poder que remontam a colonização e o escravismo.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 23/11/2022.

Apocalipse à brasileira, por Joel Birman

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Entra em cena a atmosfera lúgubre do delírio, marcada por transe e possessão

Joel Birman, Psiquiatra e psicanalista, é professor titular do Instituto de Psicologia da UFRJ

Folha de São Paulo, 21/11/2022

No dia seguinte à eleição presidencial, bolsonaristas derrotados deram início ao “Capitólio brasileiro” parando as
estradas do país, com a colaboração ativa da Polícia Rodoviária Federal. Em seguida, as massas se aglutinaram em
frente aos quartéis, demandando intervenção militar para a manutenção de Lair Bolsonaro (PL) no poder.

A característica e o estilo uniforme das ocupações ilegais do espaço público, nos dois cenários, evidenciam de forma eloquente que são ações programadas e financiadas por empresários da extrema direita, já que a massa reunida não pode parar de trabalhar e tem sido alimentada pelos organizadores dos atos.

Além disso, o fervor religioso permeia os discursos registrados em ambos os cenários, marca saliente da extrema direita do país que não se encontra em nenhum outro lugar do mundo, pois a eleição brasileira foi transformada numa luta do bem contra o mal.

Destacam-se, assim, certas cenas de “Apocalypse Now”, com pneus transformados em altares para o exorcismo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), imagens evocando o Muro das Lamentações como santuário e mulheres em roda, cobertas com a bandeira brasileira, orando como um corifeu grego que o “diabólico STF” não vai calá-las. A retórica religiosa se espalha, portanto, como a litania dos fiéis, com a “defesa” grotesca da liberdade de expressão, apesar das palavras de ordem antidemocráticas. Enfim, entra definitivamente em cena a atmosfera lúgubre do delírio (místico), marcado pelo transe e pela possessão entre os arruaceiros operísticos.

A questão que se impõe de forma inequívoca, contudo, é como chegamos a esse ponto teológico-político após quatro anos de Bolsonaro no poder. O que ocorreu conosco nesse tempo nefasto foi a tortura diária por meio das falas do presidente nas redes sociais e na televisão, numa pregação antidemocrática contra o Poder Judiciário, com a cumplicidade remunerada do Congresso Nacional (orçamento secreto), do Ministério Público e da Polícia Federal, buscando tornar viável o mito do presidente “imbrochável” e as práticas sistemáticas da necropolítica nos menores detalhes, indo da destruição da Amazônia à política armamentista da população, sem esquecer o genocídio perpetrado na pandemia de Covid-19.

É claro que os laços sociais fundantes da política passaram decididamente a se inscrever nas redes sociais, num país campeão de consumo de smartphones, de forma que a realidade virtual passou a se impor de forma clandestina, incidindo sobre corações e mentes de maneira maligna.

Com isso, as informações apuradas pela grande imprensa não foram mais ouvidas. A massa bolsonarista passou a alimentar as suas convicções e crenças num sistema perverso de informação que bloqueava e não queria saber de nada que colocasse em questão as versões propaladas pelos seus redutos, disseminando a céu aberto a dissonância cognitiva (Festinger), que promoveu estragos consideráveis no espírito dos brasileiros.

Além disso, dois outros mecanismos psíquicos nos acometeram de forma devastadora: a dupla mensagem (Bateson) —quando alguém fala algo e tem ao mesmo tempo uma atitude oposta, como ocorre com as mães esquizofrenogênicas— e o desmentido (Ferenczi) —quando alguém é abusado por um Outro que não reconhece e não admite o que faz.

Planeta pode aguentar 8 bilhões, mas temos feito as escolhas erradas, diz matemático.

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Para Joel E. Cohen, manutenção da vida na Terra depende de como sociedades agirão quanto a guerras e produção

THIAGO AMÂNCIO – FOLHA DE SÃO PAULO – 20/11/2022

WASHINGTON O planeta alcançou 8 bilhões de pessoas, o que não será um problema para a Terra se fizermos as escolhas certas, defende o matemático biológico Joel E. Cohen. O problema é que, até aqui, não temos feito as escolhas certas.

Para ele, que leciona em duas universidades americanas, a continuidade da vida no mundo dependerá de alguns fatores —se países continuarão a entrar em guerras, se fronteiras serão mantidas abertas, que uso será dado ao que for plantado e a quem destinar a produção.

Autor de “How Many People Can the Earth Support” (quantas pessoas a Terra pode aguentar), Cohen afirma que escolhas individuais são importantes para o futuro do planeta e que é preciso ter em mente que o que acontece do outro lado do mundo afeta a vida de todos.

A certa aura de pessimismo do especialista hoje guarda semelhança com 2011, quando a Folha o ouviu por ocasião da marca de 7 bilhões de habitantes atingida então. À época, ele alertou que o planeta segue uma “receita para o desastre” e lamentou o que considerava uma situação global instável ecológica, política, econômica e socialmente.

Afinal, quantas pessoas a Terra pode aguentar? Há quatro coisas que precisamos considerar para essa resposta: população, economia, ambiente e cultura.

População não é só a quantidade de gente, mas se são jovens ou velhos, se vivem nas cidades ou em áreas rurais. Economia envolve distribuição de riqueza, tecnologias, quem decide como ela vai ser gerida. Ambiente, tanto seres vivos quanto não vivos, cidades em áreas de terremotos, atmosfera, bioma, pestes. E o que conecta isso tudo é a cultura: linguagem, comunicação, instituições, religião, mitologia, arte.

Esses elementos são interligados. Se você ignora essas conexões, vai fazer a coisa errada. A resposta é que depende das conexões que faremos envolvendo economia, ambiente, cultura e as populações.

Vamos permitir o comércio entre países ou usá-lo como arma? A vida na Terra será melhor se ele acontecer. Vamos decidir conflitos na base do diálogo ou matar uns aos outros? Há muitas escolhas a fazer, não consigo prever quais serão feitas. O mundo pode aguentar 8 bilhões de pessoas tranquilamente, mas até agora estamos fazendo um péssimo trabalho.

E como o sr. avalia as escolhas feitas até aqui? Há boas e más notícias. A boa é que há mais crianças nas escolas do que nunca. A má é que a quantidade do ensino em muitos casos é terrível. A capacidade das crianças em leitura e matemática em alguns países é miserável, não só em nações pobres da África, mas em lugares ricos e industrializados como os EUA.

Estima-se que exista 800 milhões de pessoas no mundo com fome crônica, subnutrição a longo prazo. Elas não podem ter uma vida normal, ir ao trabalho. Entre elas, há 150 milhões de crianças com menos de cinco anos; 22% de todas as crianças do planeta com essa idade estão atrofiadas. São crianças que terão doenças infecciosas, não crescerão o suficiente, não se tornarão adultos produtivos —se sobreviverem. Não vão conseguir aprender nada mesmo se forem à escola.

Nós produzimos comida suficiente no mundo. No ano passado, foram 2,8 bilhões de toneladas de grãos, o suficiente para alimentar até 14 bilhões de pessoas. Então por que há fome? Porque os pobres não podem comprar comida. Isso acontece porque preferimos alimentar animais e máquinas, na produção de combustível, a alimentar pessoas. Estamos jogando fora um quinto de nossas crianças. Que tipo de futuro queremos?

O que é preciso fazer, então? Você pode começar por não criar conflitos. O mundo gastou no ano passado US$ 2,1 trilhões em esforços militares. Esse dinheiro seria muito mais produtivo se fosse gasto de outra maneira, com bem-estar humano, proteção ambiental, produtividade econômica. Se encontrássemos uma maneira de pararmos de matar os outros, liberaríamos muitos recursos para outros propósitos.

É preciso também cuidar e prover nutrição suficiente para crianças pequenas, mulheres grávidas e lactantes; métodos contraceptivos para os 200 milhões de mulheres que desejam e não têm acesso a eles; informação para adolescentes. Cuidando desses grupos, podemos transformar a vida na Terra.

Produzimos muitos grãos, e o mundo não sabe que arroz e feijão são um superalimento proteico. É a base da alimentação no Brasil, mas em muitos lugares culturalmente o feijão é visto como comida para pobres. Se as pessoas comerem arroz e feijão, a vida na Terra vai melhorar.

É preciso dar informação para as pessoas reduzirem o consumo de açúcar. O tabaco mata 8 milhões de pessoas todos os anos, mais do que a Covid. E quem está prestando atenção? As empresas envenenam as pessoas e o governo permite, porque recebe impostos. É preciso educar as pessoas, que desperdiçam suas vidas com a quantidade de álcool que consomem. Se fizerem um pouco de exercício físico, pararem de fumar e de beber, se alimentarem melhor e dormirem o suficiente, nada mais é preciso.

Mas mudanças no plano individual poderão mudar o futuro do planeta? Se as pessoas promovem uma mudança de comportamento maciça e em escala, os governos e as grandes empresas vão ter que acompanhar. O Walmart é uma das maiores empresas dos EUA, e quando você vai lá vê corredores e corredores lotados de porcarias cheias de sal e gordura.

Quais os desafios para o futuro? Ninguém sabe até onde a população vai crescer. Há projeções que vão até o fim do século. Mas temos alguma ideia sobre o futuro. Se não houver uma catástrofe nuclear ou uma nova peste pior do que a Covid, em 2050 a população mundial terá 1 bilhão a mais de habitantes, com uma proporção maior de pessoas mais velhas. Você tem mais idosos hoje do que em qualquer período da história. E pessoas nas cidades; dois terços do planeta vivem nas cidades.

Por outro lado, em muitos lugares a população vem caindo, o que se tornou um problema econômico. Como conciliar a explosão populacional em alguns locais e a escassez de gente em outros? A primeira coisa que me vem à cabeça é a migração. Mas muitos governantes impõem barreiras, porque não estamos falando só de demografia, de pessoas se mudando do Mali ou da Nigéria para Brasil, EUA ou Holanda. É uma pessoa com uma cultura, religião, linguagem e história diferentes indo para outro lugar. E muitos países não aprenderam a acomodar diferenças culturais.

Os governos que não querem imigrantes também poderiam entender que pessoas bem alimentadas, bem educadas e com oportunidade em seus países tendem a emigrar menos. Então, se não querem imigrantes, podem investir no desenvolvimento econômico das nações com alto crescimento populacional. Não levamos a sério o fato de que o bem-estar das populações de lugares mais pobres afeta o das populações de lugares mais ricos. Simplesmente fechamos as portas, construímos um muro, sem entender que tudo está interligado. O que acontece na África ou no sul da Ásia vai me afetar pessoalmente.

Há pessoas capacitadas em todos os lugares, só é preciso dar o suficiente para que o cérebro delas possa trabalhar. Investindo em educação, nutrição e desenvolvimento econômico, o planeta pode suportar 8 bilhões de pessoas sem problemas.

RAIO-X | JOEL E. COHEN, 78

Matemático biológico, é diretor dos laboratórios de populações das universidades Rockefeller e Columbia. É autor de “How Many People Can the Earth Support” (quantas pessoas a Terra pode aguentar), entre outras obras consideradas referências na área

Responsabilidade fiscal deve ser também social, por André Roncaglia.

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A dívida pública não explodiu e a hiperinflação não veio quando Paulo Guedes explodiu o teto

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp

Folha de São Paulo – 19/11/2022

O primeiro teste de fogo do novo presidente eleito ocorre antes mesmo de sua posse em janeiro de 2023. A equipe de transição apresentou ao Congresso no último dia 16 uma minuta pedindo uma licença (waiver) para efetuar gastos sociais fora do teto para 2023.

A fatura total deste pedido beira R$ 200 bilhões por ano, de forma permanente. A negociação com o Congresso Nacional provavelmente limitará o valor e o prazo de vigência deste waiver.

Para 2023, a aprovação da PEC implicará aumento de 2% do PIB em gastos públicos e abrirá um espaço de R$ 105 bilhões no orçamento de 2023. Com este valor, o novo governo pretende recompor verbas de programas essenciais e ampliar investimentos públicos em áreas sensíveis, como saúde, educação e infraestrutura.

Como esperado, o mercado financeiro reagiu mal. Engana-se, todavia, quem acredita que o mau humor se deve ao risco de hiperinflação e a carga de juros que acompanharia a estabilização dos preços. Isto está fora de questão, ao menos nos meios acadêmicos especializados.

Já a alta finança brasileira equiparou seu conceito de responsabilidade fiscal a mera apologia ao teto de gastos. Esta quimera tecnocrática é a raiz de uma profunda dissonância cognitiva. Vejamos.

Paulo Guedes admitiu ter violado o teto, e o fez pelo menos uma vez… por ano, somando R$ 795 bilhões em gastos extrateto ao longo dos quatro anos. O mercado chiou algumas vezes, mas com leniência beneditina.

A dívida pública não explodiu, a hiperinflação não veio e até se observou um superávit primário em 2022, fruto de receitas não recorrentes. O mercado aplaudiu a gambiarra fiscal-eleitoral de Guedes –afinal, há enorme distância entre o teto e o descontrole inflacionário– e agora transfere o ônus da irresponsabilidade fiscal do atual governo para o governo eleito.

A despeito do empurra-empurra, a reforma do marco fiscal pode melhorar a qualidade tanto do gasto quanto da tributação, equilibrando respeito aos contratos e responsabilidade social. Este é o caminho para uma responsabilidade fiscal que atenda a toda a população.

Se aprovada no valor atual, a PEC da transição elevará as despesas primárias do governo em 2023 para 19,5% do PIB, um pequeno acréscimo sobre os 19% em 2022 (podem guardar as imaginárias impressoras de dinheiro!).

A PEC reorganiza o orçamento e viabiliza gastos que estimulam a economia (ganhos reais ao salário mínimo), aliviam a pobreza (Bolsa Família), reforçam a cidadania (creches e farmácia popular etc.), reduzem custo Brasil (infraestrutura) e podem atrair recursos de bancos multilaterais (programas de recuperação e defesa do meio ambiente).

As transferências de renda podem estimular a economia, que hoje flerta com a estagnação em 2023, com expressiva ociosidade na indústria. Neste ínterim, a definição de um novo marco fiscal pode ajudar a estabilizar a economia em 2024 em bases mais promissoras, a partir de uma reforma tributária que reduza a ineficiência alocativa e a regressividade na tributação da renda pessoal.

É fundamental que a negociação da PEC seja transparente e observe a estabilização das contas públicas de forma gradual e com previsibilidade. Com isso, o mercado financeiro não verá motivos para estressar as taxas de juro de longo prazo, encarecendo o crédito ao setor produtivo e a rolagem dos títulos longos da dívida do Tesouro.

Um governo ainda não empossado não pode praticar política pública; tudo que pode fazer é apresentar um conjunto de princípios. Cabe ao Congresso estabelecer os meios.

Por isso, é preciso um pouco mais calma e, certamente, um pouco mais de alma.