Bauman: assim chegamos à Retrotopia

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Sai em breve livro póstumo do filósofo. Numa das últimas entrevistas, ele alerta: estamos involuindo de uma crença tola no futuro para a mistificação do passado

OUTRAS PALAVRAS – Zygmunt Baumann – 05/05/2017

Sai em breve, em português, livro póstumo do filósofo, morto em janeiro. Numa de suas últimas entrevistas, ele alerta: estamos involuindo de uma crença tola no futuro para a mistificação infantil do passado

As nove décadas de Zygmunt Bauman foram vividas próximo à medula da história. Nascido em 1925 de pais judeus poloneses não-praticantes em Poznan, sua família foi para União Soviética em 1939, quando os tanques nazistas invadiram a Polônia. Tendo servido no Exército Vermelho com distinção, retornou à Polônia depois da Segunda Guerra Mundial para estudar sociologia na Universidade de Varsóvia. Mas, com o comunismo tendo há muito perdido seu brilho e sua carreira impedida pelo antissemitismo, ele emigrou para a Grã Bretanha em 1968, onde assumiu uma cadeira de sociologia na Universidade de Leeds.

Mas foi depois de sua aposentadoria, em 1990, que sua inteligência inquisidora, pela qual ele é tão renomado,
começou a gerar livro após livro. “O Mal Estar da Pós-modernidade” (1992); “Ética pós-moderna” (1993),

“Globalização: as Consequências Humanas” (1998), “Modernidade Líquida” (2000), “Amor Líquido” (2003); “Ensaios sobre o conceito de Cultura” (2012)… A lista é enorme. De fato, no último quarto de século ele publicou cerca de 40 livros, não por escrever, mas porque o mundo como ele é não é como ele sente que deveria ser. Ou, como afirmou em 2003: “Por que escrevo livros? Por que eu penso? Por que eu deveria ser apaixonado? Porque as coisas poderiam ser diferentes, deveriam ser melhores.”

A conversa abaixo aconteceu no ano passado. Instigada por uma questão sobre o Brexit, acabou levando a um diálogo sobre o futuro, o passado e o destino do projeto iluminista.

“Retrotopia”, obra póstuma de Bauman que a Editora Zahar promete publicar em breve, em português

Você falou sobre a desilusão popular com a política nacional num mundo globalizado, e o sentimento popular de que políticos nacionais não têm poder para influenciar mudanças. Suas posições mudaram à luz do referendo sobre a União Europeia na Inglaterra, e a perspectiva do Brexit?

Acredito que o colapso da confiança na capacidade de todo o establishment político, em todo o mundo desenvolvido, para realizar as mudanças desejadas (ou qualquer mudanças prometida) é o que, paradoxalmente, sedimentou o fenômeno Brexit.

Com a completa frustração dos eleitores com a elite política, e sua recusa total de investir confiança em qualquer segmento da elite política, o referendo ofereceu uma oportunidade sem precedentes para as escolhas em votação coincidissem com os sentimentos que precisavam exprimir-se. Foi uma ocasião única, nesse sentido, e tão diferente das eleições parlamentares de rotina!

Numa eleição geral, você pode expressar sua frustração e raiva contra o mais recente de uma longa linhagem de detentores de poder e fazedores de promessas. Mas o preço que se paga por esse alívio emocional é meramente convidar a Oposição, parte inseparável do establishment político, a assumir os gabinetes ministeriais como o Governo. Nesse infinito jogo de cadeiras, você não chega nem perto de expressar a natureza geral da sua discordância.

A oportunidade oferecida pelo referendo sobre o Brexit foi completamente diferente. Com quase todos os setores do establishment político posicionados em favor da permanência na União Europeia, podia-se usar um único voto, Sair, para descarregar, de uma só vez, a raiva contra todos eles. Quanto mais abrangente a frustração, mais tentador torna-se fazer exatamente isso — agarrar essa oportunidade única para desabafar.

Você tem escrito sobre o fim do progresso e a perda da crença na ideia de que o futuro será melhor que o passado. Há algo no fenômeno do Brexit (e, por certo, em outros movimentos populistas do continente) que promete uma era nova, talvez melhor, para a Europa?

Nós ainda acreditamos em “progresso”, mas agora o vemos tanto como bênção quanto como uma maldição — com o aspecto de maldição crescendo progressivamente, enquanto o lado bênção fica menor. Compare isso com a atitude de nossos ancestrais mais recentes – eles ainda acreditavam que o futuro seria o espaço mais promissor para as esperanças.

Nós, contudo, tendemos a projetar nossos medos, ansiedades e apreensões no futuro: um futuro de crescente escassez do emprego; de queda da renda e portanto também de declínio das oportunidades de vida, nossas e dos nossos filhos; de crescente fragilidade das nossas posições sociais e da provisoriedade de nossas realizações na vida; de uma fenda que aumenta desenfreadamente entre as ferramentas, os recursos e as competências à nossa disposição e a enormidade dos desafios colocados pela vida; do controle de nossas vidas, que escapa das mãos. É como se nós, indivíduos, estivéssemos sendo rebaixados ao status de peões, à margem de um jogo de xadrez entre pessoas desconhecidas. Elas são indiferentes às nossas necessidades e sonhos, quando não francamente hostis e cruéis, e estão todas completamente prontas a nos sacrificar para alcançar seus próprios objetivos.

O que o pensamento do futuro tende a trazer à mente hoje, portanto, é a crescente ameaça de ser descoberto e rotulado como inapto para a tarefa, com seu valor e dignidade negados, marginalizados, excluídos e banidos.

Uma crescente maioria de pessoas já aprendeu, a essa altura, pela própria experiência e pela dos que lhe são próximos e caros, a desacreditar de um futuro desigual, instável, imprevisível e notoriamente decepcionante, como o lugar para investir esperanças. Meu último livro, Retrotopia, aborda precisamente essas questões. Permita-me citar um trecho de sua introdução:

Eis o é o que Walter Benjamin tinha a dizer em suas Teses da Filosofia da História, escritas no início dos anos 40, sobre a mensagem transmitida por Angelus Novus (renomeado Anjo da História), uma pintura de 1920 de Paul Klee:
“A face do Anjo da História está voltada para o passado. Onde nós percebíamos uma cadeia de eventos, ele vê uma catástrofe única que continua empilhando destroços e jogando-os diante dos seus pés. O anjo gostaria de ficar, acordar os mortos, e tornar inteiro o que foi esmagado. Mas uma tempestade está soprando do paraíso; o anjo ficou preso em suas asas com tal violência que não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impulsiona irresistivelmente em direção ao futuro, para o qual ele dá as costas, enquanto a pilha de escombros cresce, diante dele, rumo ao céu. A tempestade é o que chamamos progresso.”

Fosse alguém olhar de perto a pintura de Klee, um século, quase, depois que Benjamin produziu seu insight insondável e incomparavelmente profundo, poderia mais uma vez capturar o Anjo da História em pleno voo. O que mais pode impactar, a ele ou a ela, é o anjo mudando de direção – o Anjo da História apanhado no momento de uma volta de 180º. Sua face está girando do passado para o futuro, suas asas sendo puxadas para trás pela tempestade, golpeando esse tempo do futuro imaginado, precipitado e antecipadamente temido em direção ao paraíso do passado (ele próprio imaginado retrospectivamente, depois de ter sido perdido e reduzido a ruínas). E as asas estão agora sendo pressionadas, como eram pressionadas antes, com violência igualmente poderosa, de modo que agora, como então, “o anjo não pode mais fechá-las”.

Passado e futuro, pode-se concluir, estão no processo de trocar seus respectivos vícios e virtudes, relacionados – como sugeriu Benjamin – por Klee há cem anos. Agora, o futuro é que está marcado no lado do débito, denunciado inicialmente por sua não-confiabilidade e por ser incontrolável, com mais vícios que virtudes; enquanto a volta ao passado, com mais virtudes que vícios, é marcada na coluna do crédito – como um lugar ainda de livre escolha e do investimento ainda não-desacreditado de esperança.
Penso que o episódio Brexit, assim como “outros movimentos populistas no continente” são manifestações da “tendência à retrotopia” discutida acima. Na ausência de ferramentas efetivas de ação capazes de enfrentar os problemas de nossa presente situação, e dado o crescente desapontamento trazidos por sucessivos futuros creditados com o desenvolvimento dessas ferramentas de ação, não surpreende que a proposta de exploração do giro de 180º pareça ilusoriamente atrativa. A possibilidade de “uma nova, talvez ainda melhor era para a Europa” que emerge do resultado do Brexit, pode ainda aparecer, como sua consequência não-antecipada, embora plausível. Mas isso ocorrerá porque nos frustramos com o uso de tribalismos antiquados para lidar com os desafios do presente, gerados pela emergente condição humana de interdependência mundial.

Faz sentido a ideia de uma tendência retrotópica, dado o medo generalizado do futuro. Mas como você considera a tendência coexistente de ver o passado como uma moral absolutamente negativa, um tipo de moralidade, se você quiser, que orienta o presente dizendo “sabemos que somos contra aquilo” ou “nunca mais”? Estou aqui pensando na centralidade do Holocausto na política contemporânea e no discurso histórico, nos últimos 20 anos. E estou também pensando no recente, mas contínuo foco nos crimes sexuais históricos do Reino Unido, onde frequentemente parece que o passado relativamente recente está se transformando numa visão de corrupção e imoralidade difíceis de acreditar, e contra o qual nos afirmamos no presente. O futuro certamente parece desacreditado, hoje, mas o passado não o é igualmente?

Isaac Newton insistiu em que cada ação dispara uma reação… E Hegel apresentou a história como um conflito/fricção entre oposições, que provocam e reforçam mutuamente oposições (o processo interconectado de dissolução e absorção conhecido por “dialética”). Se vocês fossem partir de Newton ou Hegel, chegariam à mesma conclusão: ou seja, de que seria de fato bizarro se a tendência retrotópica não fosse alimentada por e alimentadora da entronização e destronamento do futuro (sua pergunta, aliás, é um bom exemplo dessa dialética).

A retrotopia, assim como a utopia-Futura ortodoxa, refere-se a uma terra estrangeira: um território desconhecido, não-visitado, não-testado e, em suma, não-experimentado. Essa é precisamente a razão pela qual se recorre a retrotopias e utopias, de forma intermitente, sempre que se procura uma alternativa ao presente. Ambas são, por essa razão, visões seletivas, e em ambos os casos são visões seletivas passivamente e obedientemente suscetíveis de manipulação. Em ambos os casos, os holofotes da atenção são focalizados em alguns aspectos de, para citar Leopold von Ranke, como era realmente (wie es ist eigentlich gewesen), mas numa densa sombra. Isso possibilita a ambos ser territórios ideais (imaginados) onde localizar o estado de coisas (imaginado) ideal, ou ao menos uma versão corrigida do presente estado de coisas.

Até aqui, utopia e retrotopia não diferem – pelo menos em seus processos e na parcialidade dos resultados. O que realmente separa os dois é a mudança de lugar entre confiança e desconfiança: a confiança sendo movida do futuro para o passado, a desconfiança na direção oposta. Seu próprio exemplo captura esse processo, implicando que a inevitabilidade da “tendência retrotópica” coincide com a popularidade do “nunca mais”. Afinal, a retrotopia deriva sua atração, entre outros fatores, do senso de que o futuro pode “nunca mais”, e é provável que “faça isso novamente”. Aquela “centralidade do Holocausto na política contemporânea e no discurso histórico, que realmente manifestou-se nos últimos 20 anos”, como você notou tão corretamente, de outra forma não teria acontecido. Ela testemunha o colapso da confiança na capacidade do futuro elevar os padrões morais.

Você fala corretamente, acredito, dessa intensa desconfiança do futuro, que por sua vez gera esses sonhos retrotópicos de um passado que nunca foi. Mas, por que o futuro deixou de ser o lugar de nossas esperanças, o espaço em que imaginamos e prevemos as coisas como deveriam ser? Você responde a isso parcialmente, quando nota que “uma grande e crescente maioria de pessoas… aprendeu… a desacreditar do futuro desigual, inconstante, imprevisível e notoriamente desapontador”. Mas a história europeia está marcada pela experiência de diversos eventos horrendos, que não necessariamente resultaram numa perda de fé generalizada no futuro. Por exemplo, a Guerra dos Trinta Anos foi seguida pelas primeiras inspirações do Iluminismo, um dos momentos culturais mais otimistas e orientados ao futuro. Até mesmo depois da catástrofe das Guerras Mundiais e do Holocausto, no período pós-guerra, até os anos 1970, foi seguramente marcado por um grau de otimismo, de que as coisas estavam melhorando, de fato, “de que você nunca esteve tão bem”. Então, é claro, houve os anos sessenta, um momento de grande experimentação social e política.

Então, o que acontece na vida em sociedade hoje que transformou o futuro em algo a se desconfiar, a temer?
Pensar no futuro “como alguma coisa suspeita, a ser até mesmo temida”, não é de forma alguma novo na história humana. De fato, remonta aos tempos pré-socráticos, mais precisamente ao século 8 AC – ao Trabalhos e os Dias de Hesíodo, particularmente à sua história “Idades dos Homens”. É uma história de contínua decadência, corrupção e degradação, do pico dos “anos de ouro” aos “anosde ferro”, o fundo dos fundos, no qual Hesíodo se coloca junto com seus contemporâneos. Sua descrição da condição e dinâmica dos habitantes dos anos de ferro era marcantemente reminiscente das características que nossos próprios contemporâneos imputam às condições do nosso próprio século 21, quando embarcamos na jornada retrotópica; ou seja, era atroz, horripilante e repulsiva.

Na visão de Hesíodo, a “raça do ferro” estava destinada a “nunca descansar do trabalho e da tristeza durante o dia, e da destruição à noite”. Na idade do ferro, “o pai não concordará com seus filhos, nem seus filhos com seus pais, nem hóspedes com seu anfitrião, nem companheiros com companheiros” e “não haverá privilégio para o homem que mantém seu juramento ou para o justo ou para o bom; mas, ao contrário, os homens vão louvar os malfeitores e seus negócios violentos. A força será certa, e não haverá mais reverência. E os ímpios ferirão o homem digno, falando falsas palavras contra ele, e jurarão infâmias sobre eles”. Na idade do ferro, aidos (a palavra grega para o sentimento de reverência, e também para a vergonha que coíbe as pessoas de cometerem malfeitos) será cada vez mais notória, apenas por sua ausência.

Em sua reação à herança da Grécia pagã, a Europa cristã introduziu um terceiro elemento ao ciclo Hesiodíaco de declínio e queda: a redenção, a perspectiva de reversão cronológica das eras de ouro e de ferro. Santo Agostinho, por exemplo, introduziu um conceito linear de tempo que fluía da Cidade do Homem inferior, devorada por traços indeléveis de pecado original e, como a era de ferro de Hesíodo, endemicamente corrupta, à perfeição da Cidade de Deus, guiada pela igreja cristã, a vanguarda e a praça das armas. Da Idade Média até a Idade Moderna, contudo, o modelo predominante do fluxo de tempo estava mais próximo de Hesíodo do que de Santo Agostinho.

Durante a Renascença, as coisas mudam. Francis Bacon ousou visualizar a casa da lei de Salomão, a faculdade ideal em seu trabalho utópico New Atlantis, como a culminação da longa, vacilante e espinhosa escalada ascendente da humanidade a uma nova era de ouro. E numa tentativa de ir além da disputa entre antigos e modernos (querelle des anciens et des modernes), Isaac Newton tentou colocar varas em dois formigueiros em guerra, proclamando, numa carta a Robert Hooke em 5 de fevereiro de 1675: “Se vi mais longe, foi por me colocar sobre ombros de gigantes”.
Interessados em simplificar esta complicada história de entrecruzamentos, geminação, linhas de pensamento mutuamente inspiradoras e reciprocamente depreciativas, sugiro o ano de 1755 como o marco que separa as duas visões em competição. De um lado, a de declínio apocalítico, desde o início, de uma história projetada e guiada pelos homens. De outro, a emergência, isto é, a visão de progresso contínuo, essencialmente incontrolável. Naquele ano, a combinação de um terremoto, seguido de fogo e sucedido por um tsunami apagou a cidade de Lisboa da face da terra.

Àquela altura, Lisboa era admirada e reverenciada como uma das cidadelas mais ricas e poderosas econômica e culturalmente daquilo que, por sua própria definição, constituía a vanguarda do mundo civilizado. Em poucas palavras, a natureza, agora acusada por sua indiscriminação endêmica, entorpecimento e estupidez moral, bem como indiferença à ética e valores humanos – aquela ordem estabelecida por Deus precisava ser tomado sob nova gestão humana.

A nova administração olhava à frente firme e resolutamente. “Novo” transformou-se na tautologia de “maior” e “melhor”, da mesma forma que “velho” tornou-se um pleonasmo para “fora de moda” e “ultrapassado”. No processo, isso transformou o vigente e vir-a-ser velho no reino da imperfeição condenável, destinado à deposição de lixo. E expandiu o espaço de novidades desejáveis e bem-vindas até que os mercados consumidores fizessem tudo instantaneamente. A vida tornou-se orientada para o futuro e ainda mais apressada.

Mas progressivamente, os sintomas sugerem que aquela era de gestão humana é mais uma aberração temporária do que um novo paradigma. Eu me sinto tentado a sugerir que quando percebida com o benefício da retrospecção, a “vida voltada ao futuro”, como posto por Ernst Block, entrará para os anais da história humana como um episódio na verdade pouco usual e por certo atípico – uma aventura romântica, fervorosamente apaixonada, mas breve.

Você está certo sobre quão significativo foi o terremoto de Lisboa. Talvez a resposta mais famosa – e que ecoa sua afirmação de que a resposta ao terremoto era para tomar a natureza abandonada por Deus sob gestão humana – é o Cândido, de Voltaire. A linha final, uma resposta aos apóstolos do progresso panglossiano, ressoa aqui: “Precisamos cultivar nosso jardim.” Ela exprime bem a ideia do Iluminismo, seugndo a qual a humanidade pode emergir de sua “tutela autorrealizada”, como colocado por Kant, a noção de que por meio de nossa própria razão (e não há/havia maior autoridade que nossa própria razão!) podemos agarrar as leis do mundo natural e social, e modelar o mundo de acordo com os nossos objetivos racionalmente escolhidos. Por que, então, no século 21, num tempo em que é nossa habilidade de administrar a natureza “para cultivar nosso jardim” para “viver voltados ao futuro” é mais forte que nunca, o projeto do Iluminismo (se é que posso chamá-lo assim) aparece como um “breve” interlúdio?

George Steiner disse certa vez que o privilégio de Voltaire, Diderot, Rousseau, Holbach, Condorcet e sua turma era sua ignorância: eles não sabiam o que sabemos e não podemos esquecer. A descendência da “Nova Jerusalém” de Isaias – relutantemente e não sem resistência – do futuro paradisíaco, fará isso a partir de Auschwitz, Kolyma e Hiroshima. Tudo isso foi fruto do cultivo entusiasmado e engenhoso do “nosso jardim”.

Você mesmo compara a relação progressiva com o tempo, e com a natureza, a um caso apaixonado. Você acha que, depois desse caso, estamos retornando à nossa prolongada relação com a temporalidade, o antigo, concepção de tempo quase teológica e alegórica, de queda e apocalipse, de decadência e redenção? Afinal, tanto ao ambientalismo quanto ao radicalismo islâmico, não falta a ideia de Fim dos Tempos.

Repito o que disse antes: o futuro (outrora a aposta segura para o investimento de esperanças) tem cada vez mais sabor de perigos indescritíveis (e recônditos!). Então, a esperança, enlutada, e desprovida de futuro, procura abrigo num passado outrora ridicularizado e condenado, morada de equívocos e superstições. Com as opções disponíveis entre ofertas de Tempo desacreditadas, cada qual carregando sua parte de horror, o fenômeno da “fadiga da imaginação”, a exaustão de opções, emerge. A aproximação do fim dos tempos pode ser ilógica, mas por certo não é inesperada.

Grande mídia ou grande terrorismo? por Leda Maria Paulani

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Leda Maria Paulani – A Terra é redonda – 15/11/2022

A reação à fala de Lula no encontro com deputados em Brasília é exemplo gritante desse vergonhoso papel desempenhado pela grande mídia corporativa

Não sei localizar em meus escritos quando foi que falei a primeira vez em terrorismo econômico. Mas falo disso tem muito tempo, pelo menos umas duas décadas. Nestes primeiros dias de transição do desgoverno de Jair Bolsonaro ao futuro governo Lula, o terrorismo econômico ganhou vestes e cores equiparáveis aos dos bandos de zumbis alucinados que ainda permanecem em frente aos quartéis.

O terrorismo consiste em brandir ameaças de caos e horror ao menor sinal de que algo será feito, pelas mãos do Estado, para amenizar, por menos que seja, as mazelas produzidas dia a dia por um sistema cego e que dá as costas aos cadáveres que vai empilhando pelo caminho. Ameaçam com o horror, como se horror não fosse ter o país 33 milhões de criaturas passando fome, ter uma legião de crianças e adolescentes com desnutrição – que atingiu em setembro seu maior nível em sete anos, ter mais de 200 mil pessoas perambulando pelas ruas sem um teto que as abrigue.

Evidente que constrangimentos macroeconômicos reais podem existir, como os que decorrem de um país ter passivos externos que sua geração de divisas não é capaz de sustentar (caso da Argentina, por exemplo). Mas não é esse, nem de longe, o caso do Brasil. Há risco zero hoje, a menos que ocorra uma hecatombe mundial, de um default externo de nossa economia. Temos mais de 300 bilhões de dólares de reservas e nossas exportações vão bem, obrigada. Ah, mas a relação dívida bruta/PIB não pode crescer indefinidamente, propalam os terroristas: a do Brasil está em torno de 75%, a do Japão passa dos 200% – e já faz muito tempo! Só se um bando de lunáticos aterrizasse no Ministério da Economia e resolvesse brincar de confiscar poupanças, para haver algum problema nessa área.

Tudo isso sabe qualquer economista minimamente informado e minimamente razoável, que não sofra de delirium tremens ao ouvir o termo “gasto público”. Alguns existem, porém, que sofrem desse mal e surtam! Não são todos, talvez não sejam nem a maioria, mas existem. Eles representam interesses claramente configurados? Sim, mas não é esse o ponto aqui. O ponto aqui é: como é possível que alguns poucos economistas de certo renome e vinculados a umas poucas instituições sejam capazes de produzir tamanho terror? A resposta é simples: eles têm uma caixa de ressonância inacreditavelmente ampla e forte – a imprensa.

A reação à fala de Lula no encontro com deputados em Brasília é exemplo dos mais gritantes desse vergonhoso papel desempenhado sobretudo pela grande mídia corporativa. As manchetes prognosticavam o apocalipse. Uma das mais escandalosas foi a do Valor Econômico: “Dólar dispara e bolsa derrete, após fala de Lula sobre gastos”, numa interpretação claramente exagerada do que ocorreu com essas duas variáveis. Não foram só as manchetes, diga-se. Os editoriais fizeram coro em uníssono com o assim dito “mercado”, em chamadas sombrias: “foi um mau começo”, opinou a Folha, “Lula precisa descer do palanque”, exigia o Estadão, para ficar só em dois dos mais importantes jornalões. E o samba de uma nota só foi, claro, a responsabilidade fiscal, detratada, segundo os editoriais, pelo presidente eleito.

Vou me deter aqui no editorial da Folha de 11 de novembro, um dia depois da fala de Lula que tanta revolta gerou. A escolha não se deve a uma preferência qualquer, mas ao fato de tal periódico ser muito mais insistente do que, por exemplo, o Estadão ou o O globo, em sua postura de imprensa “responsável”, “moderna”, que não só dá voz a todas as partes em qualquer que seja o embate, como se alinha aos melhores princípios democráticos.

Vejamos a primeira frase do texto: “Em apenas duas semanas desde o desfecho das eleições, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) conseguiu derrubar grande parte das esperanças de que seu governo vá adotar uma política econômica racional e socialmente responsável”. Tradução: criticar o teto de gastos é irracional! Tal tipo de argumento joga para o limbo do negacionismo e do anticientificismo qualquer contestação a essa regra fiscal, que, diga-se, não existe dessa forma em nenhum outro lugar do mundo. Pior ainda, confere o mesmo destino a quaisquer posições teóricas que questionem o sentido exato do termo “responsabilidade fiscal”, posturas por sinal que andam em alta internacionalmente, a exemplo da Modern Money Theory.

O texto diz que Lula não apresentou até agora nenhum plano de ação, a não ser uma PEC capaz de liberar uma “gastança sem precedentes”. Reproduzindo in totum o argumento supostamente científico empunhado pelos próceres do mercado, o editorial diz ainda que, “se colocar em prática seu falatório, a sangria dos cofres do Tesouro não tardará a alimentar a inflação (…) os juros (…) e a dívida pública”. Em suma: terror em estado puro.

E não se informa o distinto público que, desde que o teto foi implantado, no governo de Michel Temer, a relação dívida líquida/PIB subiu de 38 para 58%, ou seja, a existência de uma regra fiscal, mesmo tão radical e estúpida quanto a nossa, não é garantia alguma de queda da dívida em proporção do PIB. Se o produto não cresce, mesmo que a dívida caia por força do sacrifício de milhões de pessoas, a relação pode continuar a subir. Do mesmo modo, a inflação subiu justamente no período de vigência do teto, por constrangimentos externos e choques de oferta provocados pela pandemia e pelo conflito na Ucrânia. Mais uma vez, a existência de regra fiscal prejudicando boa parte da população pelas restrições que traz à plena operação das políticas públicas não constitui garantia de inexistência de problemas inflacionários.

E é a tal casta de argumento capcioso que se deve o mote, repetido algumas vezes ao longo do texto, segundo o qual “responsabilidade fiscal é responsabilidade social”. Querem, com isso, guarnecer de vestes palatáveis a defesa de uma política que atinge diretamente as camadas mais baixas, enquanto busca preservar a riqueza financeira de uns poucos. E dá-lhe terror! Na esteira dos resultados tenebrosos já enunciados, o editorial acrescenta também o colapso do crescimento, a escalada do desemprego e o aumento da miséria e da fome, caso o “falatório” de Lula venha a se efetivar.

Numa postura que chega a ser insultuosa com um cidadão que teve mais de 60 milhões de votos, o editorial do “democrático” jornal afirma que Lula deseduca, que fala tolices e que resmunga contra o mercado. Que educação dá um jornal como a Folha que não admite se chame Jair Bolsonaro de extrema direita? Como a imprensa e o mercado trataram o genocida? Só para lembrar, ele furou várias vezes o teto de gastos – na última das vezes para, afrontando a Constituição, criar vergonhosamente benefícios em ano eleitoral, e deixou de pagar precatórios (quase um pecado capital para os cânones neoliberais), e isso para não mencionar a ignomínia do orçamento secreto, o maior escândalo de corrupção que já teve este país e efetivado pelo dito incorruptível.

Não se ouviu então, nem do mercado, nem da imprensa, não digo gritaria, não se ouvia ninguém levantando a voz. Os dois sócios passaram pano o tempo todo. Afinal de contas era preciso preservar o ultraliberal Paulo Guedes, que estava fazendo direitinho o serviço e defendia os “princípios macroeconômicos corretos”.

Num programa recente na Globonews, o comentarista Octávio Guedes disse, num arroubo de sinceridade, e para certo espanto dos demais comentaristas presentes, que o mercado é bolsonarista. Quem leu o artigo até aqui há de concordar que ele está coberto de razão. Mas o mercado não passou pano sozinho pra Jair Bolsonaro. Contou sempre com a inestimável ajuda da grande mídia, dos programas de especialistas da TV, dos grandes jornalões. Sabemos todos que comportamentos como o de Octávio Guedes são antes exceção do que regra. Certamente escapou das orientações gerais do canal para programas ao vivo e não deve ter agradado nem um pouco aos Marinhos.

É verdade que a mídia alternativa, que se multiplicou com o advento da internet, salva um pouco a lavoura, mas não é menos verdade que o pouco de grande jornalismo que havia ficou de vez comprometido com a ascensão do neoliberalismo e do neofascismo, numa comunhão estranha só em aparência. Se aos poucos devemos nos livrar do terrorismo bolsonarista, o contrário deve acontecer com o terrorismo econômico. Ele vai recrudescer e não seria tão bem-sucedido sem a ajuda do parceiro de sempre… uma mídia a serviço do Brasil, para poucos.

*Leda Maria Paulani é professora titular sênior da FEA-USP. Autora, entre outros livros, de Modernidade e discurso econômico (Boitempo).

Descarbonizar a economia global, por Mariana Mazzucato

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Mariana Mazzucato – A Terra é redonda -13/11/2022

Apenas o setor público pode mobilizar e coordenar investimentos na escala necessária para descarbonizar a economia global

Nas últimas semanas, vários membros da Aliança Financeira de Glasgow Financial para Emissões Zero (GFANZ) – um grupo de 450 instituições financeiras – pularam fora devido a preocupações a respeito do custo de cumprir seus compromissos climáticos. Ao desistir, eles desmentiram a noção de que as instituições financeiras privadas podem liderar a transição para uma economia neutra em carbono. O que a transição realmente precisa é de Estados mais ambiciosos que vão além da regulação dos mercados para se tornarem formadores de mercado.

A abordagem liderada pelo mercado está enraizada na crença de que as instituições financeiras privadas alocam capital de forma mais eficaz do que qualquer outra instituição. A implicação é que os Estados devem abster-se de “escolher vencedores” ou “distorcer” a concorrência de mercado e limitar-se a “reduzir os riscos” das oportunidades de investimento verde para torná-las mais atraentes para os principais investidores privados.

Mas a história econômica moderna traz um relato diferente. Em muitos lugares e em muitas ocasiões, são os atores públicos que assumiram a liderança na formação e criação de mercados que, a partir de então, trazem benefícios tanto para o setor privado quanto para a sociedade em geral. Muitos dos grandes avanços tecnológicos que hoje achamos que são parte da vida aconteceram apenas porque entidades públicas fizeram investimentos que o setor privado considerou muito arriscados.

A história real é, portanto, bem diferente do mito predominante. Devemos muitos sucessos econômicos não a atores públicos que saíram do caminho, mas a um Estado empreendedor que assumiu a liderança. Além disso, a abordagem em que o mercado lidera está em desacordo com o objetivo de produzir uma transição verde global justa, na qual os custos e riscos sejam compartilhados de forma justa dentro dos e entre os países. “Reduzir os riscos” pressupõe uma estratégia que socializa os custos e privatiza os lucros.

O financiamento privado ainda tem um papel crucial a desempenhar, é claro. Mas apenas o setor público pode mobilizar e coordenar investimentos na escala necessária para descarbonizar a economia global. A questão, então, é o que essa abordagem deve incluir.

Primeiro, os Estados devem assumir seus papéis como “investidores de primeiro recurso”, em vez de esperar para intervir apenas como “credores de último recurso”. Em todo o mundo, as instituições financeiras públicas empregam muitos bilhões de dólares a cada ano e, devido ao seu design distinto e estruturas de governança, podem disponibilizar um tipo de finanças de longo prazo, paciente e orientado para as missões que o setor privado muitas vezes não está disposto a prover. As evidências mostram que empréstimos diretos de bancos públicos com boa governança podem desempenhar um poderoso papel de moldagem de mercado, informando percepções de futuras oportunidades de investimento.

Em segundo lugar, devemos repensar a relação entre o setor público e o privado, especialmente quando se trata de compartilhar riscos e recompensas. Quando entidades públicas assumem riscos para atingir objetivos sociais, o setor privado não deve se apropriar dos resultados financeiros.

Por exemplo, se um governo está financiando grandes projetos de energia renovável e outros investimentos verdes, pode ter uma participação acionária neles. Os retornos também podem ser socializados pela atribuição de uma proporção dos direitos de propriedade intelectual ao Estado, permitindo que os lucros sejam reinvestidos em novos projetos verdes. É importante ressaltar que as empresas que se beneficiam de finanças públicas devem estar sujeitas a condições que alinhem suas atividades comerciais com os objetivos da política industrial verde, práticas trabalhistas justas e outras prioridades.

Terceiro, para direcionar o investimento privado para atividades verdes e para reduzir o investimento em atividades prejudiciais, os Estados devem fortalecer e atualizar as regras que regem os mercados financeiros. Tal regime poderia incluir bancos centrais introduzindo políticad alocativas de crédito verde e regras e padrões como reforço regulatório para evitar lavagem verde e arbitragem regulatória.

Quarto, os formuladores de políticas devem reconhecer que o financiamento da dívida – fornecido tanto pelo setor público como pelo privado – não é necessariamente um substituto dos gastos fiscais diretos. A lógica dos instrumentos financeiros reembolsáveis não se concilia facilmente com as características de bem público de alguns investimentos relacionados ao clima. Investimentos em justiça climática e reflorestamento trarão retornos de longo alcance, mas não necessariamente do tipo que pode ser usado para pagar um empréstimo. Navegar por essas questões e entregar investimentos na escala necessária exigirá coordenação estratégica em todas as áreas de formulação de políticas sociais, ambientais, fiscais, monetárias e industriais.

Finalmente, deve-se fazer mais para fornecer espaço fiscal suficiente para que os países do Sul Global busquem suas próprias agendas domésticas de descarbonização e adaptação. Muitos países, incluindo aqueles que estão mais expostos ao colapso climático acelerado, estão enfrentando dívidas pendentes significativas. Agora é imperativo que os países devedores do Norte Global – que são responsáveis pela maior parte das emissões na atmosfera – ajudem a reduzir esses encargos por meio de cancelamentos de dívidas, reestruturação de dívidas, compensação de perdas e danos ou substituindo empréstimos climáticos por concessões climáticas.

Para limitar o catastrófico aquecimento global, o financiamento para mitigação e adaptação climática deve ser aumentado drasticamente. Mas a qualidade do financiamento também é importante. Em vez de manter a esperança de que as instituições financeiras privadas traduzam suas super-propagandeadas promessas de trilhões de dólares em emissões zero em ações críveis e responsáveis, devemos exigir que os Estados assumam o papel que lhes cabe. Isso significa mobilizar e direcionar as finanças para metas climáticas claras e ambiciosas e moldar os mercados financeiros para se alinharem a essas metas. Cobrir a lacuna de financiamento requer uma reformulação radical da arquitetura financeira e uma mudança substancial nos fluxos financeiros. Nenhuma das duas coisas vai acontecer sem intervenções políticas.

Para especificar as mudanças necessárias, vou moderar um painel só de mulheres na COP27 com a primeira-ministra de Barbados Mia Mottley, a diretora geral da OMC Ngozi Okonjo-Iweala, a ministra egípcia de Planejamento e Desenvolvimento Econômico Hala El Said e a primeira-ministra escocesa Nicola Sturgeon. Os desafios são urgentes. Se os Estados não assumirem a liderança no financiamento climático, a transição verde permanecerá fora de alcance.

*Mariana Mazzucato é professora de economia na Universidade de Sussex (EUA). Autora, entre outros livros, de O Estado empreendedor (Companhia das Letras).

Tradução: Maurício Ayer para o site Outras Palavras.

Ansiedades econômicas

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Como definido pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a ansiedade pode ser descrita como um sentimento ligado à preocupação, nervosismo e medo intenso. Apesar de ser uma reação natural do corpo, a ansiedade pode virar um distúrbio quando passa a atrapalhar nosso cotidiano. Neste ambiente de grandes transformações e incertezas crescentes, onde as bases da sociedade vem passando por grandes alterações, mudanças no mundo do trabalho, surgimento de novos modelos de negócios, crescimento do individualismo, negacionismos e medos crescentes, grande parte da população se sente assolado pela ansiedade, cujos transtornos são mais comuns do que se imagina.

Neste ambiente, percebemos um crescimento da ansiedade econômica dos agentes produtivos e financeiros para que o novo governo defina os nomes da equipe econômica, responsáveis pela política econômica, suas visões macroeconômicas, suas respostas fiscais e monetárias, além de suas credenciais, seu histórico e as predileções teóricas. Vivemos um momento de ansiedades crescentes, onde os agentes econômicos e setores financeiros se utilizam de seu poder político e sua pressão econômica para impor seus princípios e defender seus interesses.

O poder destes agentes econômicos e financeiros são elevados, pressionam os investimentos, estimulam a entrada e a saída de recursos monetários, gerando instabilidades, volatilidades e aumento das dívidas governamentais, forçando o incremento de seus rendimentos financeiros, ganhando com altas taxas de juros, pressionando as despesas públicas, forçando políticas de austeridade fiscal e garantindo lucros estratosféricos e a perpetuação de seu poder financeiro e controle dos setores governamentais.

Quando o mercado consegue sinalizações positivas, conseguindo emplacar seus prepostos para os altos cargos da hierarquia governamental fazem grandes festas, regadas por bebidas sofisticadas, exaltando as credenciais de seus indicados e, posteriormente, fortalecem seus interesses financeiros e seus ganhos adicionais, se preparando para angariar ganhos elevados, norteando a política econômica e aumentando seu patrimônio, estimulando a compra de ativos públicos, vistos como sucateados e poucos interessantes, mas são adquiridos na bacia das almas, controlando os mercados, criando verdadeiros oligopólios e dominando a estrutura econômica e produtiva.

Se os indicados para os cargos econômicos do novo governo forem vistos como intervencionistas e defensores de políticas Keynesianas, as reações são diferentes, a ansiedade cresce, as retaliações e as chantagens aumentam e o terrorismo financeiro cresce, dificultando a adoção de políticas mais intervencionistas e buscando tutelar os gestores financeiros que usam cartilhas ideológicas diferentes, pressionando o dólar e gerando quedas das Bolsas de Valores, no limite gerando caos generalizados e, através deste cenário, conseguem o incremento de seus rendimentos e aumentando os lucros de investidores internos e externos.

O caos econômico perpetrados pelos donos do capital podem ser vistos como um instrumento para fragilizar as novas ideias econômicas e levar os atores políticos a adotarem medidas “prudentes” e comedidas, prudentes devem ser vistas como aquelas que garantem seus ganhos crescentes e a manutenção de seus poderes políticos, evitando políticas redistributivas e tributação progressiva que podem reduzir os ganhos financeiros dos grupos mais abastados.

A ansiedade econômica é pensada pelos grandes conglomerados econômicos e financeiros para garantir lucros estratosféricos para os seus, usando a influência do capital para enquadrar medidas econômicas heterodoxas e intervencionistas, com isso, estes atores não se sensibilizam com mais de 33 milhões de pessoas passando fome e com a degradação de políticas públicas e sociais, cujos recursos monetários foram reduzidos imensamente, gerando incremento nas fragilidades de partes consideráveis da população.

A racionalidade econômica descrita pelos economistas ortodoxos e seus representantes defende interesses imediatos, restringe intervenções governamentais, limitando estratégias ousadas, incrementando lucros e perpetuando misérias e indignidades.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 16/11/2022.

Maioria dos populistas, como Bolsonaro, não consegue destruir democracia, diz analista.

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Cientista político alemão diz que, diante de instituições sólidas, presidente ‘não ousou’ ir além

Felipe Bachtold – Folha de São Paulo, 15/11/2022

SÃO PAULO – Governantes populistas pelo mundo conseguem impor uma hegemonia política e comprometer a democracia em poucas situações, e casos de fracasso costumam ser logo esquecidos.

A análise é do cientista político alemão Kurt Weyland, que pesquisa o fenômeno do populismo pelo mundo e que afirma que a democracia costuma se recuperar rapidamente de investidas de líderes com esse perfil.

Professor na Universidade do Texas, ele escreveu neste ano um artigo acadêmico chamado “Como o Populismo Morre”, falando das fragilidades de governantes desse tipo.

O trabalho afirma que as chances de fracasso de populistas crescem com as dificuldades de lidar com crises, a falta de estabilidade da gestão e complicações nas relações com outros atores políticos.

O artigo citava entre seus exemplos a inabilidade do presidente Jair Bolsonaro de gerir a crise da pandemia no Brasil.

Questionado sobre iniciativas de Bolsonaro contra o sistema político, Weyland afirma que o presidente se deparou com instituições sólidas a ponto de “não ousar ir além, apesar de suas más intenções”.

O populismo é um conceito da ciência política, aplicado tanto a representantes da esquerda quanto da direita, caracterizado, entre outros pontos, pelo discurso de opor o “povo” a uma elite, que pode ser econômica, política ou intelectual.

Weyland é crítico da tese do colega americano Steven Levitsky, autor do best-seller “Como as Democracias Morrem”, sobre o risco de corrosão das instituições com a ascensão de governantes de perfil autoritário.

Há uma diferença na forma como populistas caem, descrita nas suas pesquisas, e o fim do governo Bolsonaro no Brasil? Um pouco. Quando presidentes populistas são tirados do poder de uma maneira não convencional, como impeachment ou declaração de incapacidade mental, estão acabados. Nenhum deles voltou. Não voltaram Fernando Collor, nem Abdalá Bucaram [no Equador], ninguém.

Perder uma eleição é ruim, mas é um processo convencional e, em princípio, há mais chances de um retorno, como nos Estados Unidos com [Donald] Trump, que está articulando uma volta.

A forma de saída tem um impacto. Um impeachment é muito mais constrangedor e escandaloso. Ao perder uma eleição, há chance maior de retorno.
Bolsonaro ainda não está morto.

Em artigo, o sr. disse que há uma grande probabilidade de uma queda prematura de populistas. No caso do Brasil, qual foi o aspecto principal para a derrota de Bolsonaro? Primeiro, ele tomou posse com uma base muito pequena. O antipetismo foi uma razão para a eleição dele, mas também significava que o país estava polarizado. Desde o início, Bolsonaro não teve a possibilidade de ter um apoio amplo, como Hugo Chávez ou outros populistas que se deram bem.

Se o país está dividido quando toma posse, sua base de apoio é limitada. Era uma fragilidade que Bolsonaro tinha desde o início. Basicamente ele fala para uma base, sem tentar ampliá-la.

Além disso, governos populistas são muito frequentemente caóticos e desorganizados, não privilegiam os técnicos.

No caso de Bolsonaro, desde o início, o ministério era uma mistura muito ampla e de uma rotatividade grande. Não há governança regular.

E então veio a pandemia. Há crises que são oportunidades para líderes populistas. Mas foi muito difícil lidar com a pandemia. Não se pode derrotar um vírus rapidamente, e líderes populistas tiveram tempos duros. Eles se dizem “salvadores da pátria”, mas não podiam mais fazê-lo.

Muitos populistas negaram a gravidade, usaram teorias conspiratórias e não agiram de maneira razoável. O desempenho foi muito ruim. Foram fatores mais importantes.

As características de personalidade tornam mais difícil lidar com crises em geral, não apenas da pandemia? Lideranças populistas são muito focadas na personalidade. “Sou o salvador, sei como fazer as coisas, é minha intuição.” Não ouvem especialistas, não debatem. Isso foi visto no caso brasileiro, com a demissão de dois ministros da Saúde.

Populistas preferem lealdade sobre competência. Muitos populistas se cercam de bajuladores e auxiliares fiéis. Isso se viu com Chávez.

O desempenho da governança com frequência não é de boa qualidade. Em longo prazo compromete o governo.

E a questão do confronto com instituições, como o Judiciário? Bolsonaro é provavelmente o mais extremista dos populistas de direita até agora. Viktor Orbán na Hungria não é de extrema direita. Trump era um extremista, mas Bolsonaro surgiu de exaltações à ditadura, de 30 anos de extremismo no Congresso. Muita gente presume, então, que Bolsonaro danificou muito a democracia brasileira. Mas, se você olhar para as instituições, ele fez pouco dano institucional.

Não cooptou o Judiciário. Ele não implodiu o sistema de votação, fez acusações, mas não modificou o modelo para se beneficiar, como Orbán. Houve o episódio da Polícia Rodoviária Federal bloqueando ônibus no domingo, mas muitos outros líderes populistas intervieram nas instituições muito mais do que Bolsonaro. AMLO [Andrés Manuel López Obrador] no México fez muito mais do que Bolsonaro.

Comparativamente, as instituições brasileiras são mais fortes, com Judiciário independente.

Ele tinha más intenções de muitas formas, mas não teve muito êxito.

Muita gente no Brasil entende que ele não teve tempo o suficiente para provocar mais danos.

Pense em Chávez quando foi eleito: fez mudanças muito rapidamente. Orbán, na Hungria, também.

Populistas vão ao ataque logo no início. Começou cedo na Bolívia, no Equador, na Polônia. No caso do Brasil, Bolsonaro não teve muito sucesso.

Porque as instituições brasileiras foram fortes o suficiente para evitar? Sim. Bolsonaro em 2019 estava muito limitado com sua base no Congresso. Ele fez uma aliança com o centrão em 2020, mas que não é ideológico ou bolsonarista. Eles são oportunistas e fisiologistas.

Eles não queriam fortalecer o presidente, porque ele muito forte os escantearia. Querem um presidente dependente, de quem possam extrair benefícios. O interessante é que um Congresso de membros clientelistas não permite que o presidente se torne autoritário.

Foi um fator importante. E a sociedade civil brasileira é forte comparativamente [com outros países].

Houve muita preocupação com o fato de Bolsonaro colocar muitos militares no governo. O Brasil tem uma imagem de liderança na América Latina, de legitimidade internacional. Os militares brasileiros não queriam apoiar tanto Bolsonaro para não parecer uma República das Bananas, onde dão golpe. Isso foi outra limitação.

Muitas instituições brasileiras, a sociedade civil, parcialmente agiram com essa preocupação.

E o dano a órgãos como a Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da República, com aparelhamento? [Houve] em alguns órgãos executivos. Mas em instituições como o Congresso não houve prejuízo em suas funções de freios e contrapesos. Os tribunais não foram encampados.

Bolsonaro, apesar de todos os seus ataques retóricos e a hostilidade tóxica, não reprimiu a oposição. Não interferiu na imprensa, não limitou a liberdade de reunião.

Evo Morales, na Bolívia, em poucos anos prendeu metade da oposição sob algum pretexto. No Brasil, não houve um único político de oposição preso.

Mas o sr. não acredita que é porque ele não tinha poder suficiente? Sim, ele não tinha poder suficiente. Ele provavelmente tinha a intenção. Ele tem aspirações autocráticas, mas não pôde concretizá-las.

Você vê o quão forte a democracia brasileira está indo: mesmo ele não pode fazê-lo. E nem ele ousou.

Chávez e Morales prenderam e processaram políticos de oposição.

Houve casos, por exemplo, de uso da Lei de Segurança Nacional para investigação de críticos do governo, como jornalistas. Não conheço esses casos. Mas, quando se olha para a imprensa brasileira, não acho que tenha sido afetada.

No Brasil, apesar das más intenções, Bolsonaro fez pouco. Mostra o quanto ele era frágil. Ele não tinha um poder hegemônico, predominante. Ele gostaria, mas não pôde.

Você viu no domingo, o Brasil é uma democracia completa. A eleição foi muito apertada e, apesar do episódio da Polícia Rodoviária, desconheço qualquer grande embaraço à oposição durante a campanha.

Houve alguma violência eleitoral, pessoas que foram mortas, infelizmente. Os países da América Latina são violentos.

Mas não houve um esforço governamental sistemático para minar a oposição. Lula teve fundo eleitoral [público] para a campanha dele. Então…

O sr. costuma dizer que o medo do populismo é superestimado. Por quê? Meu argumento principal é que há muitos líderes populistas que não conseguem destruir a democracia.

No Brasil, a democracia está viva e indo bem. Um oposicionista ganhou e é incomum um populista perder a reeleição. Eles controlam a máquina, certo?

A principal mensagem da campanha de Lula era a defesa da democracia. Como o sr. vê? Bolsonaro é profundamente autocrático e era importante acabar com o governo dele. Quem sabe o que seria um segundo governo? Poderia ampliar o Supremo Tribunal Federal e ganhar terreno.

Ainda acho que a democracia brasileira seria forte o suficiente para suportar um segundo mandato dele, mas era melhor não experimentar.

Lula não tinha um grande programa para o futuro. Apelar para a preservação da democracia foi importante. Bom que essa mensagem tenha vencido.

Se eu tivesse que apostar, diria que o risco de retorno de Bolsonaro é baixo. O Brasil provavelmente terá a ascensão de outros líderes populistas, mas mais oportunistas, pragmáticos e abertos.

O Brasil está enfrentando uma onda de manifestações, com bloqueios em estradas. O quanto isso e suas consequências serão importantes para o bolsonarismo? Não vejo isso se estendendo e tornando a situação de Lula difícil. É lamentável, totalmente antidemocrático. É quase tão louco quanto o ataque ao Capitólio, em 2021, [nos Estados Unidos].

Minimizar os riscos do populismo não é arriscado? O populismo cria muitos problemas. Um benefício não intencional do populismo é tornar a sociedade ciente da importância da democracia.

Muita gente pensa na democracia como algo garantido e não se envolve. Nos Estados Unidos, com Trump, a participação aumentou. Mesmo no Brasil, no segundo turno, o comparecimento foi maior.

O populismo é uma ameaça, um problema, um perigo. Mas esse perigo pode induzir mais gente a se comprometer com a democracia, fazer mais esforços para defendê-la e revitalizá-la.

O populismo muito mais falhou, felizmente.

Todos conhecem Chávez, Alberto Fujimori [no Peru], Orbán, Recep Erdogan [na Turquia]. Quem conhece Collor? Ou Bucaram? Lucio Gutiérrez [no Equador]?

Quem se deu mal é esquecido. Não é considerado que existiram, que ameaçaram a democracia e que fracassaram.

Não nos recordamos de muitos desses personagens.
Bolsonaro será esquecido assim? Espero que sim.

KURT WEYLAND, 64
Alemão radicado nos Estados Unidos, é professor da Universidade do Texas em Austin. É PhD em ciência política pela Universidade Stanford e pesquisa democratização e autoritarismo principalmente na América Latina e na Europa. Escreveu, entre outros livros, “Democracy Without Equity: Failure of Reform in Brazil” (“Democracia sem Igualdade: O Fracasso das Reformas no Brasil”), de 1996.

O verniz do agro, por Rangel Tura & Santos.

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Na COP27, setor se vende como verde, mas está longe de ser sustentável

Letícia Rangel Tura, Socióloga, é diretora-executiva nacional da ONG FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional)

Maureen Santos, Professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, é internacionalista, ecologista e coordenadora do Grupo Nacional de Assessoria da FASE

Folha de São Paulo – 15/11/2022

O agronegócio brasileiro desembarcou na COP 27, a conferência climática da Organização das Nações Unidas (ONU), com a tentativa de emplacar uma narrativa cosmética.

No evento que segue até sexta (18) em Sharm el-Sheikh, no Egito, o agro se apresenta como um sujeito político negociador —e com soluções para a crise climática. Na contramão do discurso, porém, estão os dados: em 2020, as emissões do setor da agropecuária totalizaram 577 milhões de toneladas de CO2 equivalente, um aumento de 2,5% em relação ao ano anterior, maior incremento de um ano para o outro desde 2010, segundo o último relatório do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (Seeg) do Observatório do Clima. Essa informação, é claro, não consta do posicionamento que a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) lançou para a conferência.

O documento da CNA reforça o sequestro da pauta ambiental por atores políticos e econômicos vinculados ao agronegócio, uma prática que ganhou ainda mais corpo no governo de Jair Bolsonaro (PL), enquanto projetos de apoio a outras formas de agricultura minguaram. Programas importantes, como a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo), criada em 2012 para fomentar práticas que, de fato, voltam-se para a segurança e a soberania alimentar dos brasileiros, praticamente deixaram de existir. Perdeu apoio a agricultura familiar, que garante a maior parte dos alimentos consumidos no país, segundo o IBGE, mas também tem menor impacto ambiental. Por outro lado, ganhou ênfase discursiva o Plano ABC (Agricultura de Baixa Emissão de Carbono), tão citado no texto da CNA para a COP27.

O Plano ABC fornece crédito subsidiado para práticas de baixo carbono, mas a produção desse tipo ainda ocorre em pequena escala, algo que fica evidente quando se observam os dados recentes de emissão de gases no Brasil que, no ano passado, tiveram sua maior alta em quase duas décadas.

Assim, o plano é mais uma linha auxiliar na composição da imagem de um agronegócio que se vende como verde, mas que tem pouca ou nenhuma possibilidade de ser sustentável, já que está baseado numa cadeia global altamente concentrada, que demanda muita terra, muita água, com intenso uso de agrotóxicos e grande impacto socioambiental por conta dos monocultivos, da grilagem e do desmatamento.

A CNA, no entanto, cria um discurso capcioso e ainda tenta alterar alguns termos do Acordo de Paris em seu favor. É o caso do subartigo 6.2 do Acordo de Paris, que permite aos países trocarem entre si os Resultados de Mitigação Internacionalmente Transferidos (ITMOs). No documento, defende não só a inclusão dos créditos de floresta (advindos da redução do desmatamento em escala elevada e que, até então, são permitidos apenas do ponto de vista de pagamento por resultados), mas também dos créditos de descarbonização por biocombustível.

Trocando em miúdos, num completo contrassenso, a medida beneficiaria com recursos a soja, principal monocultura brasileira e maior causadora de degradação ambiental no país.
Seja por um ou outro instrumento, ao promover um discurso sobre sua contribuição e seu papel por meio da carta da CNA para a COP27, o agronegócio tenta se legitimar como um sujeito da solução para as mudanças climáticas. Trata-se, porém, de mero verniz para sustentar um processo que, do início ao fim, tem como principal objetivo ser reconhecido como agente que deve ser beneficiado por políticas ambientais —e, sobretudo, por financiamento nacional e internacional.

Uma comunidade de 8 bilhões, por Marcia Castro.

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Ásia, América Latina e África têm a chance de maximizar seu capital humano futuro

Marcia Castro, Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Folha de São Paulo, 14 novembro 2022

Segundo estimativa da ONU, a população mundial chegará a 8 bilhões no próximo dia 15. Isso acontece 12 anos após a marca de 7 bilhões ter sido alcançada e a estimativa é que em 15 anos, 2037, mais 1 bilhão seja adicionado.
Apesar da tendência de aumento populacional nos próximos anos, a taxa de crescimento global é a menor desde 1950.

Ainda que o crescimento esperado deva continuar em queda, uma grande parcela jovem da população, em idade reprodutiva, contribuirá para cerca de dois terços do crescimento populacional até 2050. Oito países contribuirão com mais da metade desse crescimento, enquanto alguns países da Europa terão redução populacional no período.

Isso deixa claro que essa comunidade global de 8 bilhões enfrenta desafios e oportunidades demográficas distintas. Países da Ásia, da América Latina e da África têm a chance de investir em sua população jovem a fim de maximizar o capital humano futuro e, portanto, o crescimento. O Brasil se enquadra nessa categoria.

Já os países de alta renda, mais envelhecidos, têm na migração internacional uma opção para compensar o futuro declínio populacional. Entretanto, esse é um tema polêmico dada a xenofobia que tem sido observada, por exemplo, em alguns países da Europa e a baixa popularidade de governantes que apoiam a abertura de fronteiras.

No Estados Unidos, grandes cidades, como Nova York, tiveram redução de população em 2021 devido a migração para cidades menores. Ainda não é possível afirmar se esse êxodo, que se iniciou durante a pandemia, será ou não de curto prazo.

Devido à pandemia de Covid-19, a maioria dos países teve redução na expectativa de vida ao nascer (Austrália e Nova Zelândia são exceções). Ásia e América Latina tiveram as maiores reduções. A estimativa é que em três anos, no máximo, países retomem a trajetória de ganhos de expectativa de vida pré-pandemia.

A discussão desses e tantos outros desafios demográficos precisa considerar o contexto climático atual. O progresso em reduzir a emissão de gases de efeito estufa tem sido lento, muito abaixo da meta estabelecida pelo Acordo de Paris. A Conferência Mundial do Clima (COP27), que termina dia 18, deve trazer novas resoluções e compromissos mundiais e o posicionamento do Brasil na COP 27 será de suma importância, após quatro anos de retrocessos na gestão ambiental.

Nos anos 1970, o padrão demográfico era visto por alguns como uma bomba populacional. A bomba agora é outra: climática. Sem uma mudança nos padrões de produção, consumo e desmatamento, áreas do planeta deixarão de ser habitáveis, e todos sofrerão com os efeitos do aquecimento.

Eventos climáticos extremos já são a principal causa de deslocamentos internos não voluntários, mais de 23 milhões de pessoas em 2021. Populações vivendo em condições de vulnerabilidade tendem a ser mais afetadas. No contexto brasileiro, dados recentes do Mapbiomas mostram as condições adversas do crescimento urbano nos últimos 37 anos, com expansão de favelas (principalmente na Amazônia), grande parte em áreas de risco. Isso favorece desastres como o que ocorreu em Petrópolis, no início do ano.

Em outubro, o desmatamento na Amazônia foi o mais alto desde 2015, mantendo o crescimento acelerado observado durante a gestão do atual governo (tópico que já abordei nesta coluna). Reverter esse cenário deve ser, com certeza, uma das prioridades do novo governo.

Nessa grande comunidade de 8 bilhões, discussões sobre tendências populacionais futuras precisam estar aliadas as questões climáticas. Afinal, de nada vale ter um tamanho populacional ideal em um planeta sem condições sustentáveis à vida humana.

20 anos depois, por Luiz Carlos Bresser-Pereira

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Lula, o mercado e as elites econômicas devem considerar que tudo mudou

Luiz Carlos Bresser-Pereira, Professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (1987, governo Sarney), da Administração e da Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (1995-1998 e 1999, governo FHC)

Folha de São Paulo, 14 novembro 2022

Em dezembro de 2002, o então presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), escolheu os ministros para o seu governo. Vinte anos depois, fará o mesmo: definirá o gabinete que o ajudará a governar o Brasil.

O mercado financeiro e a centro-direita esperam que ele adote os mesmos critérios e escolha dirigentes na área econômica simpáticos a eles. Não há razão para Lula escolher uma equipe econômica que conflite com o mercado financeiro e as elites econômicas, mas tanto o presidente quanto essas elites deverão considerar que tudo mudou nestes 20 anos.

Em primeiro lugar, mudou o norte global —ou mundo rico. Em 2002, estávamos no auge do neoliberalismo, e as únicas políticas legítimas eram as políticas da ortodoxia liberal. O desenvolvimentismo era considerado mero “populismo”.

O neoliberalismo, porém, começou a entrar em crise em 2008, com a grande crise bancária que se desencadeou nos Estados Unidos. Entrou em crise política em 2016, com a eleição de Donald Trump e o referendo favorável ao brexit.

Mostrou seu caráter equivocado em 2020, com a pandemia de Covid-19, durante a qual o papel econômico do Estado em minorar seus efeitos negativos foi muito grande. E, em 2021, o neoliberalismo entrou em colapso com a nova política decididamente desenvolvimentista de Joe Biden, trazendo o Estado de volta —e seguida de perto pelos principais dirigentes europeus.

O neoliberalismo e a ortodoxia liberal, dominantes entre 1980 e 2020, fracassaram porque os resultados que produziram foram decepcionantes. As taxas de crescimento baixaram, a instabilidade financeira aumentou e os salários dos trabalhadores e da baixa classe média estagnaram.

O Brasil também mudou muito nestes 20 anos. O neoliberalismo fracassou aqui ainda mais radicalmente que no norte global. A economia brasileira está quase estagnada desde 1980. Só houve um momento melhor no governo Lula. As elites econômicas, porém, não perceberam que esse fracasso aconteceu tanto aqui quanto lá fora e continuam mergulhadas no seu neoliberalismo dependente.

A centro-esquerda e os desenvolvimentistas mudaram nestes 20 anos. Muitos já não acreditam que, para ser desenvolvimentista e retomar o crescimento com estabilidade e gradual alcançamento, basta a política industrial —uma política microeconômica.

E o populismo econômico de alguns deles, que pensavam que além disso o Estado devia gastar mais, aumentar os salários e o consumo para ser bem-sucedido, perdeu muito de sua força em razão dos repetidos fracassos dessa política. Agora muitos desenvolvimentistas de centro-esquerda sabem que, para promover o desenvolvimento, além de política industrial e de responsabilidade fiscal, é fundamental uma política macroeconômica desenvolvimentista voltada para manter a conta corrente do país (externa) equilibrada, e a taxa de câmbio, competitiva.

Não é o caso aqui discutir quais as políticas intermediárias necessárias para que a conta corrente seja equilibrada e a taxa de câmbio compatível com a reindustrialização. É certo, porém, que a retomada do desenvolvimento não será viável no médio prazo se esses dois objetivos não forem assegurados.

Com a vitória de Lula, o risco da barbárie foi evitado, mas nada assegura a retomada do desenvolvimento econômico. E, sem ele, não será possível diminuir a pobreza e a desigualdade, voltar a financiar o SUS e realizar os investimentos necessários para que os objetivos da mudança do clima sejam atingidos.

Existe agora uma oportunidade para a retomada do desenvolvimento, que foi aberta com a mudança ocorrida no norte global. Este não será mais tão agressivo em se opor a políticas desenvolvimentistas bem pensadas e que se impõem.

Lula e aqueles que o apoiam, assim como a centro-direita que o vê com reservas, deverão considerar essas mudanças, que foram profundas. Ao escolher seus ministros da área econômica, o futuro presidente estará também decidindo se o Brasil sairá da quase estagnação secular ou não.

‘Reação do mercado é ideológica’, diz Monica de Bolle

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‘Reação do mercado é ideológica’, diz Monica de Bolle sobre alta do dólar após fala de Lula

‘Quando teve a PEC Kamikaze, que foi a maior licença para gastar, o mercado nem se mexeu. Com o Orçamento secreto, não fez quase nada’, critica professora da Universidade Johns Hopkins.

Por Victor da Costa, Jornal O Globo – 11 novembro 2022

A economista e professora da Universidade Johns Hopkins, Monica de Bolle, criticou a reação do mercado às declarações do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, afirmando que o sobe-e-desce do dólar e da Bolsa não quer dizer nada. Em uma rede social, ela disse esperar que ele não atrapalhe a transição.

Como vê as declarações do mercado em relação às falas do presidente eleito?
O mercado está sempre com posições compradas e faz esses movimentos de Bolsa e dólar para ganhar dinheiro. Esses movimentos não querem dizer nada. O que realmente importa é a discussão macroeconômica por vir. Os economistas do mercado têm uma visão míope e estão com ela há muito tempo. O pessoal está olhando o Brasil há bastante tempo com certa condescendência.

Se ele tivesse alguma racionalidade, teria tido uma reação muito forte a todas as alterações feitas no atual governo no teto de gastos. Quando teve a PEC Kamikaze, que foi a coisa mais populista e gastadora, a maior licença para gastar, o mercado nem se mexeu. Foi uma cosquinha. Com o Orçamento secreto, não fez quase nada.

O teto de gastos já não existe há bastante tempo, basicamente desde que foi criado. Foi modificado em praticamente todos os anos do governo Bolsonaro. Quando você pega o conjunto de mudanças ocorridas, foi uma regra fiscal para jogar no lixo. A reação do mercado é ideológica.

O que deve ser feito com o teto?
O momento é de revogar e fazer um teto novo. Tem que ser algo que funcione e não pode ser feito às pressas.
Tem o pessoal do fetiche do teto e o pessoal que acha que não precisa de regra fiscal nenhuma. Discussão racional não é feita dessa maneira. O Brasil precisa de uma regra fiscal sim. A regra do teto é bem melhor do que uma regra de superávit primário. Isso é incontestável.

O que seria um bom teto?
Uma regra fiscal bem feita não pode ter um horizonte de curto prazo, como no Brasil. Geralmente são de dois a três anos. Uma boa regra tem de ter previsibilidade para se adequar a momentos ruins. O nosso regime de inflação tem flexibilidade. O mesmo tipo de coisa vale para uma regra de teto de gastos.

Um horizonte mais estendido, que é a boa prática internacional, funciona muito bem para isso. Você ter um horizonte de dois a três anos, por exemplo, em vez de cumpri algo anualmente.

E quando você trabalha em um horizonte mais longo, você consegue construir uma regra que aguente em momentos contracíclicos.

Essas mudanças de desenho tornam o teto realista, permitem que você tenha um mecanismo de amortecimento quando você precisa. E permite que tenha uma regra com flexibilidade suficiente para não ser alterada o tempo todo, o que afeta
a credibilidade. Ninguém está falando aqui em licença para gastar.

Alguns economistas defendem que gastos do Bolsa Família fora do teto trazem impacto na inflação…

Isso demonstra total desconhecimento de como a economia funciona. O gasto social com as famílias mais pobres vai para o consumo. Inflação não é causada por um grupo de pessoas de baixa renda consumindo. Isso é uma espécie de economia simplória. Quando você permite e aumenta o gasto, como fizemos no Auxílio Emergencial, as pessoas consumiram e isso gerou crescimento.

A economia brasileira não teve recessão como outras por causa do auxílio. Vimos inflação não em 2020, mas em 2021 pela gestão Bolsonaro, com o fim dos estoques reguladores por causa da inflação dos alimentos. O Brasil acabou com estoques reguladores em 2019 para agradar ao agronegócio. E, em 2021, quando veio o choque de preços, não tinha mecanismo para usar.

Só pegando esse exemplo, você ilustra todas as falácias desse argumento. Não são os mais pobres que geram a inflação. Eles movem a economia. Você está falando de pouquíssimo dinheiro para gerar inflação.

Novo governo precisará enfrentar o problema da baixa produtividade do trabalho, por Sérgio Firpo.

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Políticas devem estar centradas no jovem com dificuldade de ingresso qualificado no mundo do trabalho

Sergio Firpo, Professor de economia e coordenador do Centro de Ciência de Dados do Insper.

Folha de São Paulo, 11/11/2022

O novo governo terá enormes desafios no enfrentamento da baixa produtividade do trabalho no Brasil, a qual persiste basicamente inalterada há quatro décadas. Os motivos de nossa baixa produtividade são vários e estruturais.

Nossa força de trabalho tem baixa qualificação. A despeito dos enormes avanços de cobertura da educação básica nas últimas três décadas, com resultados tangíveis sobre a escolarização da força de trabalho, a qualidade ainda é muito baixa. Dados do Pisa indicam faltar habilidades básicas a 66% dos jovens brasileiros na faixa dos 15 anos.

A composição da oferta educacional tampouco está conectada às demandas do mundo do trabalho. A educação profissional e tecnológica (EPT) é o patinho feio de nosso sistema educacional. Apenas 17% das vagas no ensino médio são para o ensino médio técnico. Isso num cenário em que se sabe que há ganhos relevantes no mercado de trabalho em termos de emprego, formalização e salários, quando se comparam egressos do médio técnico e regular.

Nossa EPT tem dificuldade de se adaptar rapidamente às mudanças de tecnologia e de setores e não está integrada ao ensino superior, fazendo com que ela seja encarada como etapa final. Expandir a EPT e deixá-la mais próxima ao setor produtivo, sem ser capturada por interesses privados nada universais, é tarefa difícil, mas necessária. Por fim, o apoio da oferta privada nesse processo de rápida expansão será fundamental.

Retornos salariais para quem tem ensino superior ainda são enormes em nosso país. A expansão do ensino superior reduziria esses hiatos e ajudaria a resolver gargalos ocupacionais em setores e regiões.

Embora as falhas educacionais tenham papel decisivo sobre nossa baixa produtividade, há ainda outros fatores explicativos. A alta informalidade no mercado de trabalho é um deles. Relações formais de trabalho permitem aos empregadores fazerem investimentos no capital humano de seus funcionários. Como quase metade dos ocupados não possui carteira de trabalho assinada, há poucos ganhos de produtividade derivados da relação estável de emprego.

Grande parte da informalidade no mercado de trabalho é fruto das barreiras institucionais criadas pela nossa legislação. Com o afã de garantir direitos trabalhistas a todos, tornamos vários deles inexequíveis. Salário-mínimo universal para todas as faixas etárias atrapalha o acesso do jovem com baixa qualificação ao emprego formal. Contribuições e impostos sobre folha incidindo sem progressividade também contribuem para a informalidade entre esses jovens.

Há ainda outro fator relevante para a baixa produtividade do trabalho no Brasil, que vai além dos problemas com a oferta educacional e regulações do mercado de trabalho. A demanda por trabalho qualificado é pequena. Nossa economia é pouco exposta à competição internacional, o que permite a coexistência de um número reduzido de empresas grandes com tecnologia relativamente avançada e lucrativas com milhares de micro e pequenas empresas com tecnologia defasada, e que só sobrevivem ao custo da permanência na informalidade. São essas empresas informais ou formais, mas diminutas, que absorvem e sustentam a demanda por trabalhadores pouco produtivos.

Recentemente, um outro canal de absorção da força de trabalho ganhou espaço no país e ao redor do mundo. O trabalho por aplicativo tornou-se uma forma de manter ocupados centenas de milhares de trabalhadores nos grandes centros urbanos do país. Entregando comida ou transportando passageiros, esses trabalhadores estão à margem da legislação vigente.

Embora não seja claro que esses arranjos necessariamente mantenham em níveis baixos a produtividade do trabalho, o enquadramento das relações de trabalho por aplicativo como sendo de emprego pode gerar distorções desnecessárias sem alcançar os objetivos de formalização desejados. Uma regulação apropriada e independente que envolva escrutínio e aprovação dos contratos e algoritmos usados, observância de metas de segurança, intervalos de preços e tarifas e coibição de condutas anticompetitivas nos mercados de serviço e de trabalho se faz urgente.

Nesses próximos meses saberemos se as políticas voltadas ao mercado de trabalho estarão centradas nos jovens com dificuldade de inserção qualificada no mundo do trabalho ou se serão fruto de “amplo debate tripartite”, a saber, das conversas reservadas entre políticos do Ministério do Trabalho as federações de indústrias e do comércio e as centrais sindicais.