Economia é secundária, o que importa são as pessoas, diz Amartya Sen.

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Nobel de Economia diz que o Brasil tem muito a ensinar ao mundo e pode se desenvolver com justiça social

THIAGO BETHÔNICO – FOLHA DE SÃO PAULO, 11/11/2022

SÃO PAULO Vencedor do Nobel de Economia em 1998, o pensador indiano Amartya Sen prefere se conter sobre as discussões econômicas. Segundo ele, o tema já recebe atenção demais —”praticamente o tempo todo”—, e há questões mais importantes, como a liberdade e as pessoas.

Em entrevista à Folha, Sen afirma estar preocupado com ameaças à vida humana em função da intolerância política, que se espalha no mundo. “Há muitas coisas acontecendo que são perturbadoras. Se elas são ou não economicamente perturbadoras é uma questão secundária.”

O pensador indiano, que ganhou renome por seus estudos sobre a fome e por defender um desenvolvimento com liberdade, respeito aos indivíduos e bem-estar social, diz estar acompanhando a realidade brasileira até certo ponto.

Segundo ele, o Brasil tem muito a ensinar ao resto do mundo e, assim como qualquer país, tem a capacidade de crescer enquanto combate desigualdades.

“Justiça social não é uma fórmula abstrata. A justiça social é uma forma em que podemos ajudar uns aos outros, em que os ganhos que as pessoas obtêm podem ser compartilhados com outras pessoas”, diz.
Sen publicou recentemente seu livro de memórias, lançado no Brasil pela Companhia das Letras com o título “Uma Casa no Mundo”. Nele, o economista detalha como suas experiências pessoais influenciaram seu trabalho em prol da melhoria da condição humana.

A entrevista foi feita por videochamada, antes do segundo turno das eleições do Brasil.

No início do livro, o sr. fala sobre a situação na Birmânia [atual Mianmar] e aproveita para refletir sobre a intolerância política que vem ocorrendo em todo o mundo. O sr. acha que a intolerância política e regimes autoritários podem representar uma ameaça ao desenvolvimento econômico justo? Eu não sei quanto ao desenvolvimento econômico. Certamente é uma ameaça às nossas vidas. A economia é muito enfatizada com frequência. Nem tudo precisa ser julgado por seu sucesso ou fracasso econômico.

Acho que nossas vidas estão seriamente afetadas agora, seja pensando no que está acontecendo na Ucrânia, no que talvez esteja acontecendo na China, ou no que está acontecendo dentro dos limites do subcontinente indiano também.

Há muitas coisas acontecendo que são perturbadoras. Se elas são ou não economicamente perturbadoras é uma questão secundária.

O sr. fala sobre a relação entre democracia e a economia do bem-estar. Quão importante é a democracia se quisermos realmente construir um modelo econômico que aborde a justiça social? A democracia é muito importante porque não poderíamos ouvir uns aos outros sem democracia. Não poderíamos prestar atenção ao que as diferentes pessoas em um país ou em diferentes países estão querendo.

A ausência de democracia, que infelizmente temos hoje em grande medida em muitas partes do mundo, nos deixa em silêncio uns com os outros. Não articulado, não aberto à conversa. Acho que isso poderia ser um fracasso radical da vida humana. Eu iria nessa direção. A questão do fracasso econômico me parece secundária.

Mas, quando falamos de modelos econômicos, o que deveria estar no centro de um bom modelo? Você está voltando para a economia [risos]. Acho que o modelo econômico pode assumir muitas formas diferentes. O principal é até que ponto

há justiça, até que ponto há oportunidade para diferentes pessoas participarem de um trabalho econômico que envolva todos nós. A cooperação econômica é certamente importante.

A razão pela qual estou sendo um pouco contido em relação ao lado econômico é que o lado econômico recebe muita atenção o tempo todo. Todo mundo está falando de economia.

Disseram-me que os Republicanos vencerão a eleição e derrotarão os Democratas nos EUA. Por quê? Nos dizem que é porque os Republicanos têm uma economia melhor. O tempo todo, há um foco enorme em economia. Às vezes faz sentido, mas muitas vezes não.

O sr. tem acompanhado a situação do Brasil? Como vê o momento atual do país? Até certo ponto, sim, porque o Brasil é uma parte muito grande do mundo. Também tem sido um país muito importante, cuja experiência foi importante.

Tem sido significativamente grande em entender como lidar com, digamos, os desempregados, como lidar com o problema do analfabetismo, problema da saúde e atenção médica.

Esses são grandes problemas, sejam eles no Brasil, nos Estados Unidos, na Índia ou na China. São questões inescapavelmente importantes.

O sr. ainda acredita que o Brasil pode se desenvolver com justiça social? Sim, acho que qualquer país pode se desenvolver com justiça social. Justiça social não é uma fórmula abstrata. A justiça social é uma forma em que podemos ajudar uns aos outros, em que os ganhos que as pessoas obtêm podem ser compartilhados com outras pessoas.

Então, sim, a justiça social pode ser uma característica essencial do desenvolvimento em qualquer país do mundo.

O Brasil é um país com raízes escravistas profundas. Como combater a desigualdade em suas dimensões econômica e simbólica? Não estou certo de que ir para o lado simbólico seja extremamente produtivo.

Acho que o Brasil teve uma história de escravidão em que bons estudos foram escritos indicando como a escravidão foi eliminada, como isso aconteceu, e como essa remoção de uma desigualdade básica ajuda os diferentes grupos de pessoas, pobres e ricos, a compartilharem seus esforços para construir uma estrutura econômica boa, sólida e forte.

Acho que, em grande medida, o Brasil tem tido sucesso nisso e, portanto, é algo com o qual o mundo pode aprender com o Brasil, assim como o Brasil também pode aprender com o que aconteceu em outras partes do mundo. Acho que há um pouco de compreensão um do outro, o que é central, mas o Brasil tem mais a ensinar, assim como aprender com o resto do mundo.

O que seria a coisa mais importante para aprender no Brasil com o resto do mundo? [Risos]. Não respondo a perguntas do tipo “o que é mais importante”. Muitas coisas são importantes e não devem ser negligenciadas. Ao dizer apenas isso é importante ou aquilo não é, acabamos gerando uma divisão, o que não ajuda muito na compreensão da sociedade humana e de como as pessoas interagem umas com as outras.

O sr. tem um trabalho importante sobre a fome, e o Brasil é um exemplo de país que produz muito alimento, mas ainda convive com a fome. Isso soa contraditório, como explicar essa situação? Bem, você sabe que o Brasil é um país de muito sucesso, em muitos aspectos. O seu desenvolvimento econômico tem sido forte há algumas décadas. Mas, junto com esse sucesso, é possível que muitas pessoas não tenham meios de subsistência, e boa subsistência. Quando isso acontece, você pode ter privação e até fome.

Isso pode ser evitado? Sim, mas temos que ver o que faz com que as pessoas sejam privadas, e como podemos reduzir a privação e transformar isso em uma sociedade bem compartilhada.

Acho que o Brasil teve algumas boas experiências, e temos motivos para apreciar o que o Brasil tem feito. O Brasil não está sozinho nisso, houve conquistas em outros países também.

O sr. acha que programas de transferência de renda do governo são uma forma de resolver esse problema? Depende de quão bem ele é organizado. A transferência de renda tem um propósito, principalmente o de mover a renda dos relativamente ricos para os relativamente pobres.

Muitas vezes, há um argumento muito forte para isso porque há muitas pessoas pobres, mesmo em um país que seja bastante rico. Quando isso acontece, temos que ver como essas transferências podem ser realizadas com mais eficiência e como evitar as desigualdades que podem ser contraproducentes para a sociedade em geral.

Nem toda transferência é um sucesso, mas existem transferências econômicas bem-sucedidas.
Um programa de transferência de renda projetado para grupos específicos seria melhor do que um programa projetado para todos? É possível entender se o melhor modelo é o universal ou o específico? Acho que a universalidade é uma preocupação, mas compartilhar é uma questão maior. Compartilhar é um valor que tem sido valorizado pela humanidade ao longo dos séculos.

A ideia é que podemos fazer isso um pelo outro e, quando isso acontece, poderia haver um benefício que se estenda a todos e não apenas a algumas pessoas.

Diria que, sim, acho que compartilhar é uma preocupação que as pessoas devem enfatizar. Eu sou um grande crente da cultura de compartilhamento, mesmo que o compartilhamento possa assumir formas diferentes.

Como o sr. vê a discussão ambiental e quão importante é isso quando falamos de justiça social e combate às desigualdades? Acha que isso está sendo bem abordado hoje? Para cada sistema em que podemos pensar, tende a haver outro sistema que evita as deficiências e enfatiza os sucessos. Todo sistema pode ser melhorado de alguma forma?

Sim, em geral. Acho que houve sucessos na performance em diferentes países do mundo.

Tendo a ser bastante otimista no geral. Não porque eu ache que tudo será um sucesso, mas nós podemos obter sucesso de uma situação que parece bastante sem esperança.

Acho muito importante não perder nossa capacidade de aprender com as diferentes experiências da sociedade. O Brasil sempre será um exemplo importante com o qual o mundo aprenderia.

O sr. está acompanhando a corrida eleitoral brasileira? Tem um favorito?

Não. Eu obviamente tendo a focar um pouco mais naquelas pessoas que se preocupam com a equidade, com a justiça, e isso tende a me aproximar das preocupações que Lula tinha. Por outro lado, há problemas de ambos os lados, e devemos tomar nota disso.

De modo geral, se há um grupo de pessoas no país muito mais preocupado com a desigualdade, com a injustiça, isso tende a chamar minha atenção mais do que outro grupo.
Amartya Sen, 89

Nascido em Santiniketan, atual Bangladesh, em 1933, recebeu o Nobel de Economia em 1998 por seu trabalho sobre a economia do bem-estar social. Professor da Universidade Harvard, é autor de diversos livros, incluindo “Desenvolvimento Como Liberdade” e “A Ideia de Justiça”, ambos publicados pela Companhia das Letras.

Sônia Fleury: um caminho para superar o bolsonarismo.

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Em entrevista ao Cebes, cientista política analisa a ascensão da ultradireita em alinhamento com o neoliberalismo. Para superá-los, será preciso enfrentar o ultraindividualismo, construindo espaços de formação política e vida comunitária

Gabriela Leite – OUTRA SAÚDE – 10/11/2022

A vitória de Lula foi o primeiro passo para o início da recuperação das políticas públicas e sociais que podem resgatar o Brasil do fundo do poço para o qual Bolsonaro o estava encaminhando. O trabalho será árduo e espinhoso, mas incontornável e possivelmente muito instigante. É o que ficou claro na entrevista que Sônia Fleury, cientista política e figura central na Reforma Sanitária, deu ao Cebes Debate na última segunda-feira.

Sônia começa sua fala analisando o voto em Lula e em Bolsonaro, nas eleições de 2022. Há recortes muito claros, que foram captados pelas pesquisas: de gênero, em que mulheres majoritariamente escolheram Lula; de raça, em que brancos votaram em peso em Bolsonaro; de classe, que fez com que aqueles que ganham até dois salários mínimos rejeitassem o governo atual; regional, que demarcou o Nordeste como garantidor da vitória de Lula. Mas há outros segmentos que devem ser melhor analisados para entender as complexidades da realidade brasileira, como o de pessoas que ganham entre 2 e 5 salários mínimos. Há de se considerar também a influência das igrejas evangélicas que carregaram votos para o projeto de destruição de Bolsonaro – inclusive de mulheres negras.

Agora derrotado, o projeto do atual governo ainda encontra ecos na população. Sônia frisa que é a primeira vez que a ultradireita consegue chegar ao poder por meios democráticos – e sua reeleição não aconteceu por pouco. Outra característica desse neofacismo brasileiro é sua capacidade de levar pessoas às ruas, além de ser muito forte nas redes sociais. Esse fenômeno precisa ser avaliado com calma, para que possamos pensar nas táticas e estratégias que devemos seguir daqui em diante.

Para analisar e combater o avanço da ultradireita, é preciso olhar para sua aliança de ocasião com o neoliberalismo, que foi essencial para abrir espaço para erguê-la. A princípio, reflete Sônia, parecem pensamentos em sentidos opostos: o liberalismo quer que os desejos das pessoas sejam capturados pelo poder econômico, para transformarem-se em consumo; já a ultradireita reacionária busca uma coação dos desejos e controle da população.

Mas eles se encontram em um ponto crucial: o de rejeição ao Estado que promove justiça social e diminuição da desigualdade. Nesse casamento do neoliberalismo com a ultradireita, o Estado deve servir apenas como poder coercitivo e produtor de uma economia financeirizada – a liberdade do todos contra todos.

Também entra na conta do neoliberalismo econômico, que recrudesceu a partir da crise de 2008 com as políticas de “austeridade” mundo afora, o desencanto com a economia e a descrença na democracia e nas instituições. O aumento da desigualdade, cada vez mais brutal, a precarização do trabalho e a falta de perspectivas abriram uma brecha para o neofascismo eclodir. Com um componente essencial: a internet centrada nas redes sociais, que passam uma falsa sensação de promotoras de debate público, quando são, na verdade, ultracentralizadas e massificantes.

O SUS pode estar no cerne dessa reconstrução de uma sociedade que não seja formada por consumidores, mas por comunidades de cidadãos. Porque seu projeto é radicalmente contrário à lógica neoliberal da liberdade individual. Para Sônia, “O SUS é a política que vai mais fundo na sociedade brasileira para construir uma materialidade para a igualdade, e isso é incompatível com esses valores”. Mas, para que ele possa fazer essa transformação, é preciso que seja financiado adequadamente e alcance de forma justa todos os brasileiros. Oferecer, via SUS, qualidade e um atendimento acolhedor, pode plantar uma semente da transformação da cultura política tão necessária.

Mas há outras sementes que também já começam a brotar. Para Sônia, a eleição de figuras importantes de movimentos sociais, como do MST, dos povos indígenas e do movimento negro, pode representar uma mudança significativa no Congresso Nacional formado por homens brancos. O movimento dos sujeitos periféricos, para ela, tem enorme importância e capacidade de transformação. Mesmo com o avanço do bolsonarismo, o feminismo e o movimento negro nunca estiveram tão fortes como hoje. Sônia finaliza, ao pensar nas possibilidades de criação de espaços coletivos para a transformação da sociedade: “Queremos mais amor e mais capacidade de nos alegrarmos, estarmos juntos. Criar o Comum como semente de enfrentamento da apropriação privada do capitalismo”.

Carta Mensal – outubro 2022

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O mês de outubro foi marcado por grandes expectativas para a sociedade brasileira, depois de um governo marcado por grandes instabilidades e incertezas, internas e externas, em quase todas as áreas, tivemos uma das eleições mais competitivas da história nacional, centradas por violências, mentiras, agressividades, ódios e ressentimentos que colocaram em xeque a ideia do homem cordial.

Nesta eleição duas grandes forças políticas se confrontaram, um ex-presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva e o atual presidente, Jair Bolsonaro. Expoentes da política nacional, representando dois eixos da política nacional, responsáveis por sentimentos controversos, variando de amores e ódios generalizados, que levaram a sociedade a sentir a violência escondida durante muitos anos, agressividades e ressentimentos que vieram à tona.

Neste embate, percebemos visões econômicas diferentes, uns mais liberais, defendendo privatizações, ajustes fiscais, diminuição do papel da economia, menos regulação, mais concorrências, reformas ditas estruturais, maior atração dos recursos externos para alavancar a economia, redução do contingente dos funcionários públicos e um claro enfoque dos mercados como agentes responsáveis pelo funcionamento da sociedade. Estas ideias ditas liberais são defendidas pelo atual presidente Jair Bolsonaro, que embora defendendo o pensamento do liberalismo, suas atitudes nem sempre foram tão liberais, misturando aberturas econômicas e intensas políticas intervencionistas, que geraram incertezas e instabilidades, mas foram abraçadas pelo capital financeiro e pelos agroexportadores, setores econômicos que foram os grandes ganhadores com estas políticas.

No outro lado, encontramos o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, com uma agenda mais intervencionista, centrados nos investidores públicos como motor do crescimento econômico, incentivando políticas públicas e sociais para reduzirem as desigualdades crescentes da sociedade brasileira. Nestas políticas, os investimentos públicos devem impulsionar a geração de empregos, incremento de rendas, melhoras dos salários, fortalecimentos das universidades públicas federais e centros de pesquisas, além de utilizar os setores financeiros vinculados ao governo federal, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal (CEF), Banco do Nordeste e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para colocar recursos nos setores reais da economia, além de investimentos em políticas sociais, cultura, meio ambiente, segurança pública, combate ao racismo estrutural, dentre outros.

Neste embate de duas visões diferentes de sociedade, devemos destacar, que nestes últimos anos, encontramos o retorno de discussões enterradas, ultrapassadas e retrógradas, neste cenário percebemos renascimento de sentimentos de enfraquecimento da democracia e a defesa escancarada de intervenção militar, criando instabilidades internas e preocupações com a comunidade internacional.

A eleição presidencial ganhou relevância porque muitos enxergaram no atual presidente políticas intimidatórias, falas golpistas, críticas ao processo eleitoral, aparelhamento e alinhamento de instituições de Estado, como a Procuradoria Geral da República (PGR), a Polícia Rodoviário Federal (PRF), partes da Polícia Federal (PF), dentre outras, gerando preocupações dos setores organizados da sociedade, com manifestos, cartas de protestos e a defesa da democracia.

O resultado final da eleição, elegendo o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva para um terceiro mandato, gerou constrangimentos dos perdedores e alegrias e novas esperanças dos vencedores, mergulhando a sociedade em movimentos de contestação, interrupção de rodovias, agitações nos quarteis reclamando intervenção militar, gerando instabilidades e prejuízos econômicos e desequilíbrios políticos, além de criar novas incertezas num futuro próximo.

A eleição de outubro mostrou novos horizontes para a sociedade brasileira, melhorando a imagem do país na comunidade internacional, tão degradada neste governo, abrir novas perspectivas para o Brasil, reverter as políticas entreguista que nortearam o pensamento liberal terceiro mundista e contribuir, ativamente, para a reversão dos passivos sociais e ambientais acumulados nestes últimos anos, além de melhorar os espaços políticos, incorporando um contingente gigantesco de pseudo-cidadãos que perambulam pela sociedade brasileira, vivendo na sombra da civilização e que perderam a esperança de dias melhores, engrossando levas gigantescas de pessoas que vivem nas ruas, convivendo com a miséria e com a indignidade.

Os desafios são elevados, analisando os governos anteriores do presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva, vivenciados no período 2003-2010, os indicadores foram positivos, com erros e acertos, mas atualmente, a herança foi verdadeiramente maldita, as condições econômicas são sofríveis, a imagem externa é preocupante e o motor da economia perdeu dinamismo, força e horizontes.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Quantas esquerdas há na América Latina? por Sylvia Colombo

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SYLVIA COLOMBO – FOLHA DE SÃO PAULO – 09/11/2022

BUENOS AIRES Com tanta paixão, esse esporte de tentar prever se a América Latina vai para a esquerda ou para a direita a cada eleição parece só ocorrer por aqui. Não vejo analistas gastarem tanto tempo e tinta para concluir, discordar ou lacrar que a Europa irá mais para a direita com a chegada de Rish Sunak na Downing Street, ou se a América do Norte é mais ou menos progressista com Trudeau/Biden/AMLO, uma tríade tão variada que poderia estar espalhada pelo mundo, ou que a Oceania ou a Escandinávia vivem ondas conservadoras ou progressistas a cada troca de governo em seus países.

No fundo, eu acho graça. E, obviamente não sou só eu quem se incomoda com análises de países feitas assim, “em baciada”. O mapa que ilustra este texto, anônimo, que viralizou nas redes depois da vitória de Lula no Brasil, no último dia 30, provavelmente foi realizado também por alguém cansado dos clichês sobre “mudanças de maré” e “viradas do xadrez político da região”, que se espalham em tempos de mudança de governo. Não que esse tipo de abordagem não tenha utilidade, ao contrário, traçar paralelos, ver pontos em comum relacionados ao contexto regional e mundial são exercícios intelectuais importantes de se fazer. Levados realmente a sério, podem até a conduzir a um intercâmbio de políticas públicas de êxito de um país para o outro. Mas o certo é que, nos últimos tempos, apenas parece alimentar os grandes reducionismos que depois são utilizados para armar campanhas eleitorais rasas, na forma daqueles coros que ouvimos por aí nesses tempos, de que tal país vai virar a Venezuela, que o outro vai virar a Argentina, que tal político deveria se mudar para Cuba ou para o Afeganistão.

Mas vamos para o mapa que, divertidamente, nos mostra que peras, definitivamente, não são o mesmo que maçãs. Ele circulou antes nas redes, mas foi divulgado e analisado pelo excelente newsletter Latin American Risk Report, assinada diariamente por James Bosworth. Quem curte América Latina deve segui-lo. É um serviço pago, mas essencial para latino-americanistas, que traz excelentes análises diárias da região, além de dicas de leitura todas as sextas-feiras.

Primeiro, vamos para a parte engraçada. Temos a esquerda cor-de-rosa, ou seja, não tão extrema, onde estão, a partir do último dia 30, o Brasil e a Colômbia. O Chile também é uma esquerda cor-de-rosa, mas com um detalhe, seria uma esquerda fã de Taylor Swift, jovem e moderna. Outra que é cor-de-rosa, mas em que há conflito latente entre o próprio governo é a da Bolívia, em que “uma esquerda má e velha persegue o atual governo detrás das cenas” _fala-se da rixa da eterna necessidade de intervir no governo do presidente Luís Arce por parte do por parte ex-mandatário, Evo Morales.

Também figuram aí o Peru, com sua esquerda conservadora, quase por um fio, mas já há mais de um ano nessa condição, o México, também conservador e com estilo populista único de esquerda autoritária e, por fim, ditaduras puro-sangue, como Venezuela, Cuba e Nicarágua. Ah, sim, os “chatos e centro-direitistas” Paraguai e Equador.

A cereja do bolo é ter uma categoria apenas para o Uruguai. Embora o país seja governado atualmente pela centro-direita, não deixa de ser um farol de igualitarismo, da institucionalidade, da garantia de direitos civis e identitários.

Tudo acima descrito é tema aberto para debate e discussão. Mas o coração da mensagem me parece claro e acertado. Cada país é um país, cada contexto é um contexto. Se Petro sente que deve priorizar soluções para um fim do conflito diferentes de seus antecessores, é porque a violência histórica que vive a Colômbia é fruto de sua própria trajetória. Se os indígenas peruanos representados por Pedro Castillo têm esses valores e esse modo de atuar é porque apenas o Peru viveu uma experiência de nacionalismo indigenista com embates e mesmo guerras fratricidas. Se a Venezuela vive uma crise humanitária por conta da ditadura chavista, esta também é fruto de um desenrolar histórico particular, de um país rico e desigual, no qual estão no poder, neste momento, figuras de muito pouca preocupação social e grandes alianças com o crime organizado, diferentemente do que representava Hugo Chávez em seus inícios.

Quer ver algo mais específico de um país que a eterna crise argentina? Na verdade, é fora de cabimento metê-la num mapa de países de esquerda. E o mapa acerta muito em sua descrição: “se autodescreve como de esquerda, mas na verdade trata-se de uma espécie de teoria do caos econômico”. Nada a opor.

E o Uruguai, bem, o Uruguai tem uma história de que se orgulhar, e líderes do passado a quem devem render agradecimentos até hoje, como Battle & Ordónez. Não seria possível, tampouco, colocá-lo em associação com nenhum outro em termos de modelo de Estado.

O mapa é uma piada, mas ri de nós mesmos e de nossas explicações sobre o mundo e a região em que vivemos, mas que mal conhecemos. Na verdade, levado à sério, é um convite a uma maior reflexão sobre o que significa estarmos todos na mesma região, que contatos e intercâmbios são válidos, quais indesejáveis, e porque, mude o que mudar em termos de gestões, certas idiossincracias não se exportam.

Uma democracia refém, por Osvaldo Coggiola

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A Terra é redonda – 06/11/2022

O ensaio fascista escancarou que temos não uma crise política, mas uma crise institucional, de Estado
Nos últimos dias o Brasil viveu uma tentativa de golpe de Estado, destinada a mudar seu regime político. Que a tentativa não tenha sido bem-sucedida, não significa que não existisse, e menos ainda que não continue. O bloqueio ou interdição, em mais de 600 pontos, de estradas em todo o país, realizado em menos de 24 horas, esteve muito longe de ser uma reação espontânea ou um movimento improvisado. Muito pelo contrário, poucas vezes se viu tamanha organização num movimento supostamente “civil”. Os caminhões que executaram os bloqueios, em sua imensa maioria, pertenciam a grandes empresas transportistas. O movimento não foi obra de trabalhadores autônomos, assalariados do transporte ou coisa parecida. Todas as entidades de classe dos caminhoneiros rejeitaram os bloqueios “dos caminhoneiros”.

A logística e coordenação dos movimentos revelaram um aparelho muito bem organizado e, sobretudo, bem financiado. O abastecimento dos pontos de bloqueio por empresários foi noticiado na TV. A participação de bolsonaristas “radicalizados” foi possibilitada através desses meios. Não foram “manifestações políticas” ou “populares”, mas ações de intimidação perfeitamente dirigidas e com objetivos claros: obstruir a circulação das pessoas, danar o abastecimento de bens essenciais, atacar covardemente centros de saúde e educação, inclusive de educação fundamental (“agressão ocorreu quando o ônibus que transportava os alunos passou em frente ao 12º Grupo de Artilharia de Campanha, onde ocorria um ato antidemocrático a favor do presidente Jair Bolsonaro”, informou uma escola paulista) e de fabricação de medicamentos, em soma, agredir e semear o temor na sociedade brasileira como um todo, sobretudo suas classes populares.

O mesmo cabe dizer do segundo passo do movimento, o cercamento de quartéis, no dia de finados nos mais diversos estados, reclamando uma imediata intervenção militar federal, única reivindicação ou pauta do movimento. Para quem duvidava (ou negava) da existência do fascismo no Brasil, porque não eram visíveis ainda milícias fardadas semelhantes às SA hitlerianas ou os sqadristi de Mussolini, eis a prova contundente em contrário, fardas (obviamente tropicais) incluídas. Não se trata, porém, de um “fascismo à brasileira”, verde-amarelo, cordial e sambista. Na execução do Hino Nacional em Santa Catarina, os “manifestantes” (?) reagiram com a saudação do nazismo alemão, o braço erguido para a frente. Sem perceber, e menos ainda inquietar-se, da incongruência de misturar um símbolo nacional com o de um país e um movimento que foram combatidos pelo Brasil numa guerra mundial, em nome da liberdade.

Houve até um toque “acadêmico”: o reitor-interventor bolsonarista da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri protocolou um documento ao comandante do 3° Batalhão da Polícia Militar de Minas Gerais pedindo apoio para bloqueio das estradas. No meio dessa enxurrada, tanto a fala de dois minutos do Presidente em exercício (solidária com os bloqueios e ações criminosas), quanto a manifestação do seu vice eleito senador, esta “interpretada”, se é que a palavra cabe, como uma evidência do seu alinhamento democrático, deixaram claro que se tratou apenas de um primeiro ato.

Hamilton Mourão qualificou o movimento de bloqueios de “ordeiro” (quando provocou uma onda de desabastecimento e agressões), de veículo de uma “justa indignação” por “pessoas de bem” (contra seus inimigos “do mal”, uma alegoria cheia de consequências implícitas), e descartou um golpe militar imediato porque, hoje, ele “nos deixaria numa situação difícil perante a comunidade internacional”. Amanhã, quem sabe.

O humor das comunidades, internacionais inclusive, costuma mudar. Por enquanto, caberia limitar-se a “bloquear as pautas esquerdistas” no parlamento, se preparando para o futuro. Nem vale a pena lembrar que a ascensão do fascismo e do nazismo históricos foi pavimentada por uns bons anos de “trabalho parlamentar”, depois do qual, claro, fecharam o parlamento (e os sindicatos e partidos políticos).

O ensaio fascista escancarou, não há uma crise política, mas uma crise institucional, de Estado. Poderes do Estado, como a Polícia Rodoviária Federal, por citar o caso mais evidente, atuaram abertamente ao arrepio das ordens, atribuições e campos de atuação de outros poderes, ou simplesmente a contrapelo de suas funções precípuas, bloqueando ónibus de votantes nordestinos no 30 de outubro ou tolerando o bloqueio de estradas federais nos dias sucessivos.

Para não falar da contagem de votos paralela das Forças Armadas – cujo prazo de um mês foi informado a Bolsonaro durante as 45 horas em que ficou mudo – em concorrência e contraposição declarada ao Tribunal Superior Eleitoral.

Na fala de Jair Bolsonaro, como bem notou Eugênio Bucci, o autodeclarado “líder da direita” anunciou “que vai cumprir ‘todos os mandamentos’ da Constituição. Estará ele se referindo ao artigo 142, que prevê o uso das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem? Tudo indica que sim. A estratégia é mobilizar os fanáticos, instaurando o caos no país, para que a presidência da República possa decretar alguma forma de ruptura. Se não for o golpe, é o ensaio do golpe futuro”.

A base política para a continuidade da movimentação golpista está montada. A 2 de outubro, Lula venceu com seis pontos percentuais de diferença, mas não levou no primeiro turno, como insistia sua propaganda (daí que um percentual eleitoral vizinho a 50% fosse visto… como uma derrota). A vitória da chapa Lula-Alckmin no segundo turno foi obtida com uma diferença percentual menor, com o bolsonarismo ganhando um número bem maior de novos votos (a derrama de dinheiro público não foi, obviamente, alheia a isso). A vantagem lulista de seis milhões de votos caiu para dois milhões.

Além disso, no primeiro turno o Partido Liberal (PL) de Jair Bolsonaro conquistou a maior bancada do Congresso, em 2023 terá 99 cadeiras na Câmara, enquanto a aliança liderada pelo PT terá 80 deputados. A eleição de governos estaduais mostrou uma relação de forças semelhante, com um aliado de Bolsonaro conquistando São Paulo. No Congresso, mais uma vez a chave será a negociação (fisiológica e política) com o Centrão, que terá 246 deputados (48% do total). Esquerda, centro-esquerda e parentes longínquos terão uma bancada em torno de 135 a 145 parlamentares, se contarmos PSOL, PT, PC do B, PSB, PDT, REDE e parlamentares que “transitam”.

Quanto à “tropa de choque” de ação direta bolsonarista, Igor Mello, presente nas movimentações de rua golpistas, informou que “essas pessoas foram completamente capturadas pelo sistema de comunicação fechado dos bolsonaristas. Articulam aplicativos de mensagem, YouTube e etc. Não pode ler jornal, nem ver TV… Essa rede não só se vende como suficiente para o público ficar ‘bem informado’, como demoniza qualquer informação que venha de fora – imprensa, influencers não alinhados. Tudo. Vemos nos grupos que qualquer pensamento independente é reprimido, muitas vezes até com expulsão.

É um comportamento típico de seita: os participantes fazem um pacto de silêncio e são compelidos a se fechar para o mundo. Ao mesmo tempo, é claramente um movimento articulado e com comando central. Não fosse assim, as mensagens não seriam tão coerentes entre si. As mensagens de convocação tinham instruções bem diretas: nada de menções a Bolsonaro, só chamar o golpe de ‘intervenção federal’, não manifestar pautas abertamente golpistas”. Foi, portanto, um movimento de preparação.

De preparação de um movimento que conta com bases firmes e claras. Segundo enumerou Jean Marc von der Weid “700 mil deles estão armados e organizados nos clubes de tiro. Tinha uma forte adesão entre os policiais militares em todos os Estados, aqueles que urravam ‘caveira’ a cada visita do energúmeno a seus quartéis. Tinha a adesão da PRF e de parte da PF. Tinha a adesão dos comandantes da marinha e da aeronáutica, inclusive com manifestações explícitas e irregulares em redes sociais. Tinha a adesão dos comandantes de tropa, os generais de brigada, coronéis, capitães e tenentes, muitos se manifestando nas redes sociais, seguindo o exemplo de seus superiores”. Isso tudo, porém, é menos sólido do que parece: não basta ter as armas, é preciso ter uma política para usá-las.

A frente política bolsonarista apareceu dividida e quebrada diante dos acontecimentos. Vacilou, na sua própria cabeça, nos bloqueios de estrada, com Bolsonaro ficando mudo até o limite legal das 48 horas para se pronunciar sobre os resultados eleitorais. As Forças Armadas, diretamente interpeladas pelo apelo golpista, ficaram caladas (já se sabe, no entanto, que “quem cala, concede”) e sua situação interna dista de ser clara. A CNN informou que Bolsonaro consultou os militares sobre a possibilidade de judicializar as eleições sob a justificativa de que o presidente eleito poderia ser considerado inelegível por conta das condenações na Lava Jato: “Integrantes das Forças Armadas, entretanto, não deram apoio ao presidente para seguir nessa investida. Fontes militares ouvidas pela CNN disseram que a sugestão chegou a receber o aval de uma das Forças e negada por outra, além do Exército, o fiel da balança que não endossou a tentativa do presidente”.

Para piorar as coisas, o neopaulista Tarcísio, Damares, Carla Zambelli, Arthur Lira, Romeu Zema, ex-ministros, o vice-presidente, reconheceram a derrota de “seu” candidato nas presidenciais. Edir Macedo, braço principal do evangelismo bolsonarista nos últimos quatro anos, reconheceu a vitória de Lula qualificando-a de “desígnio de Deus” (Silas Malafaia também integrou o coro divino). Nessas condições de crise política, uma intervenção popular direta contra o golpismo era perfeitamente possível, houve iniciativas de alguns grupos, foram noticiadas ações da população vizinha aos bloqueios para desbloquear as rodovias, expulsando os bolsominions; o mais importante ou espetacular foi noticiado de maneira bem expressiva pela Globo (G1): “Após chegada de corintianos, bolsonaristas fogem e liberam trecho da Marginal Tietê”. Sublinhamos a palavra “fogem”: um dos apavorados fujões bolsonaristas esqueceu sua moto, com a chave da ignição no seu devido lugar (a moto não foi roubada…). A torcida corintiana não só levantou o bloqueio da Marginal, também arrancou as faixas golpistas da ponte. Um de seus líderes reivindicou, para a Folha de S. Paulo, o caráter político da ação.

No pronunciamento sindical-popular mais importante durante os bloqueios golpistas, o “Manifesto em defesa da Democracia e contra tentativas de Golpe” faltou a assinatura das centrais sindicais, que ficaram caladas durante os acontecimentos (mas se registrou a assinatura, entre outras, do MST). O Manifesto defendeu “a Democracia, que foi construída a duras penas e com o sangue e suor de brasileiras e brasileiros que não se mantiveram inertes diante do autoritarismo. A Democracia venceu e deve ser abraçada por todos, quem vence e quem perde, no dia seguinte o que importa é o interesse maior do Brasil, sua união num só país, a decisão da maioria cria o momento”. Sem um chamado à mobilização de classe contra o golpe, pois foi a imensa maioria da classe trabalhadora, urbana e rural, a que deu a vitória à chapa encabeçada por Lula, o chamado à “união do Brasil” pode, e vai, se revelar uma ilusão pífia e desmobilizadora.

Na ausência de uma intervenção popular organizada, o Poder Judiciário ficou com os louros da desmontagem dos bloqueios e interdições, em especial o juiz Alexandre de Moraes, assim como, há um bom lustro, o juiz Sérgio Moro virou paladino nacional anticorrupção, completando o golpe de 2016, iniciado com um pedido de impeachment de dois juristas. Vivemos uma “democracia judicializada”, tutelada pelo único dos poderes do Estado não submetido ao escrutínio popular. O levantamento do “sigilo de cem anos” e o previsível processamento de Jair Bolsonaro, já fora do “foro privilegiado”, na Justiça comum, onde seis processos (só para começar), por crimes graves contra a população brasileira, o esperam, vão provavelmente reforçar essa condição.

Será negociada, na “transição” comandada (não só) por Geraldo Alckmin, o desmonte da “democracia militarizada” montada por Bolsonaro, com seis mil membros das Forças Aramadas ocupando funções estatais? Será deixada na sombra, ou no “sigilo”, o uso do caixa do governo para financiar a campanha eleitoral bolsonarista? Henrique Meirelles já informou aos eleitos que o buraco fiscal que o bolsonarismo deixa no orçamento do ano que vem é de R$ 400 bilhões, três vezes mais do declarado. Foi gasto (criminalmente) dinheiro por conta da receita do próximo ano.

Deixar o Estado falido é a base para o caos econômico e golpe futuro, remake daquele de 2016 ou “cívico-militar”, versão piorada e fascista de 1964. Isto mede o reacionarismo do Estadão (3/11), ao comentar em editorial a promessa de Lula de manter o Auxílio Brasil em R$ 600 (no projeto de Orçamento ele está fixado em R$ 405): “Por esse e por outros compromissos, também o candidato Luiz Inácio Lula da Silva, eleito, contribuiu para tornar inseguro o quadro fiscal do próximo ano”. Que os pobres paguem a conta dos desmandos do fascista, ungido com apoio escancarado do empresariado em 2018, é a palavra de ordem.

As urgências são graves. O Brasil tem atualmente 33,1 milhões de pessoas sem ter o que comer, 14 milhões de brasileiros a mais em insegurança alimentar grave, só em 2022. A reforma administrativa, que tem por objetivo tornar o Estado subsidiário do sistema privado, com a destruição do serviço público, teve barrada a votação da PEC 32 em 2021, mas o presidente da Câmara, Arthur Lira, anunciou a volta de sua tramitação. A reforma trabalhista do golpista Temer, que mandou para o buraco salários e estabilidade laboral no setor privado, continua em pé e com boa saúde.

O “orçamento secreto”, conhecido como Bolsolão, retirou dezenas de milhões das áreas de Educação, Saúde, Ciência e Tecnologia, e demais direitos da classe trabalhadora, para injetar recursos em um esquema de corrupção que, só no caso da CODEVASF, já soma mais de um bilhão de reais. Será quebrado seu “secreto”? O banco dos réus poderia virar do tamanho da nau de uma catedral.

Fraudes em licitações, desvios de verbas, compra de deputados, cortes nos orçamentos das universidades e escolas públicas são parte de uma política articulada não só de Bolsonaro, mas, sobretudo, do Centrão, com o qual Lula negocia agora sua “governabilidade”, começando pelos acordos para se dotar uma base parlamentar com o PSD, União Brasil e MDB.

Diante da grave crise nacional, é necessário que a classe trabalhadora, produtora da riqueza do país, faça valer seu peso político, preservando sua autonomia de classe e dotando-se de todos os meios de debate e deliberação política que sejam necessários, para forjar uma saída em função dos interesses da nação e dos que nela realmente trabalham.

*Osvaldo Coggiola é professor titular no Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de Teoria econômica marxista: uma introdução (Boitempo)

Dificuldades Futuras

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Depois de uma eleição presidencial bastante competitiva, marcada por grandes conflitos políticos, agressividades crescentes, fartas acusações de corrupção e embates morais, onde as redes sociais impulsionaram confrontos, violências materiais e imateriais, preconceitos generalizados, mentiras e desconstrução de reputação dos adversários, desconhecimento da realidade social, limitações econômicas, batalhas jurídicas, deixando claro os preconceitos maciços que pouco contribuem para compreender e melhorar a realidade da comunidade, mostrando a incapacidade dos atores políticos a vislumbrarem resoluções para os grandes desequilíbrios da sociedade brasileira.

Os anos vindouros da sociedade brasileira são centrados em desafios conjunturais e estruturais, uma sociedade que pode ser vista como um dos grandes celeiros do mundo, responsável por parte considerável dos alimentos produzidos e comercializados na comunidade internacional e, ao mesmo tempo, encontramos milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar, pessoas passando fome, sobrevivendo nas invisibilidades, sem cidadania, sem dignidade, vivendo no medo e na insegurança, contribuindo para um caos generalizado, alimentando o ódio e o ressentimento.

Vivemos num mundo centrado na ciência, no conhecimento e na tecnologia, responsáveis por grandes alterações nos modelos de negócios e na sobrevivência cotidiana das organizações. As nações que ganharam relevância na comunidade internacional foram aquelas que buscaram seu desenvolvimento autônomo e soberano, com fortes investimentos em capital humano, estimulando o comércio exterior, fortalecendo o sistema financeiro nacional, garantindo investimentos com taxas de juros reduzidas, protegendo setores estratégicos, patrocinando tributação progressiva e reduzindo isenções fiscais sem contrapartidas para a comunidade.

Um dos setores mais dinâmicos e estratégicos para a sociedade brasileira é o setor da saúde, nos próximos anos precisamos reconstruir essa indústria, reduzindo a dependência das importações que oneram a balança comercial e reduzem a soberania nacional. Precisamos repensar a nação, capacitando e organizando o Estado Nacional, fortalecendo o Sistema Único de Saúde (SUS), reconstruindo a indústria da saúde, estimulando setores nacionais, absorvendo mão de obra capacitada, adquirindo produtos nacionais e exigindo melhoras de produtividade e incrementando um verdadeiro salto tecnológico, precisamos passar de importador de produtos médicos e hospitalares e se consolidando como exportador deste mercado altamente tecnológico e dotado de forte potencial de desenvolvimento econômico.

O capitalismo contemporâneo, centrado na concorrência e na competição, marcados por oligopólios e fortes subsídios para os grandes capitalistas é responsável por altos ganhos tecnológicos que moldam a sociedade, transformando o mundo do trabalho, gerando alguns bilionários e um exército interminável de miseráveis, além de criar grandes incertezas, medos, depressões e instabilidades. Ao acrescentarmos as guerras, os conflitos militares e a degradação do meio ambiente, precisamos repensar valores que estão sendo destruídos, exigindo novas políticas de conservação da biodiversidade, estimulando a economia verde, fortalecendo a economia circular, fomentando a economia criativa cujos potenciais são astronômicos, garantindo a respeitabilidade internacional, angariando recursos mundiais e deixando de sermos um pária internacional.

Devemos reconstruir políticas públicas fundamentais para o desenvolvimento da sociedade, estas políticas devem incentivar a participação da população, aprofundando a cidadania, garantindo que todos os setores da comunidade participem ativamente nas decisões, entendendo a importância destas políticas para garantirem direitos humanos fundamentais, consolidando oportunidades e espaços de cidadania, sem esta reflexão o indivíduo comum continuará vivendo como o saudoso jornalista Gilberto Dimenstein chamou de “cidadão de papel”, onde o sociedade brinca de cidadania, brinca de democracia, brinca de meritocracia, brinca de empreendedorismo, brincando que ainda somos o país do futuro e vivemos sempre próximos na indignidade, se aproximando do caos, garantindo benefícios para poucos e miséria para uma grande maioria e acreditando, perpetuamente, que o brasileiro é um “homem cordial”.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Brasileira Contemporânea, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 09/11/2022.

Pochmann: O trabalho em novas dimensões

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Precarização invade casas, rouba tempo livre e impõe vida débito-crédito. O labor na Era Digital precisa ser regulado, mas também é essencial apostar em ações formativas, na reindustrialização e no cuidado, em busca de ocupação plena

Márcio Pochmann – OUTRAS PALAVRAS – 07/11/2022

O horizonte da centralidade da relação salarial perdeu força com a ruína da sociedade industrial. Há mais de três décadas, o ingresso passivo e subordinado na globalização foi acompanhado do reposicionamento do Brasil na Divisão Internacional do Trabalho, interrompendo a industrialização nacional.

Com isso, a trajetória do assalariamento sofreu significativa inflexão, sobretudo no segmento dos empregados protegidos por direitos sociais e trabalhistas. A partir de então, o projeto de construção da sociedade centrada na valorização do trabalho que fora implementado pela Revolução de 1930 passou a ser fortemente atacado.

Exemplo disso foi o desaparecimento da dualidade que comandava a composição do governo federal demarcado pela polarização entre os ministérios da Fazenda, que articulava os interesses do patronato industrial, e o do Trabalho, que integrava a conveniência do mundo do labor. De um lado, o ministério da Fazenda passou a ser ocupado por representantes dos interesses especulativos e financeiros e, de outro, o ministério do Trabalho ficou cada vez mais enfraquecido e atarefado pelas emergências da falsa polarização neoliberal entre emprego ou direitos.

Neste primeiro quarto do século 21, por exemplo, o conjunto dos países se encontra repartido no mundo entre produtores e consumidores de bens e serviços digitais. No caso brasileiro, a decadência registrada no seu desempenho, que declinou para a 13® economia do mundo, se mostra incompatível com o posto de quarto maior mercado consumidor de bens e serviços digitais.

O desequilíbrio entre a estrutura produtiva envelhecida e a modernização do padrão de consumo tem sido mantido pela via das importações de produtos com maior valor agregado e conteúdo tecnológico, financiados pela dependência do modelo primário-exportador. Em função disso, o tema do trabalho crescentemente secundarizado pela nova relação débito-crédito, fundada na captura dos rendimentos variáveis (programas públicos de transferências de renda, endividamento privado, ocupações gerais legais e ilegais, monetização das redes sociais e outras) se impôs sob novas dimensões.

A primeira se relaciona à reconceituação do trabalho diante do avanço da Era Digital. Diferentemente do que ocorria na sociedade industrial, o trabalho deixou de ser apenas uma expressão do que se realiza fundamentalmente fora de casa, em locais determinados (fábrica, escritório, banco, supermercado, canteiro de obra, lavoura e outros) e por tempo previamente definido.

A digitalização crescente da sociedade amplia cada vez mais o horizonte do trabalho que se encontra conectado em distintos locais e temporalidades. A escassa limitação regulatória ocorre paralelamente à intensificação e extensão do trabalho precário, cujo grau de exploração acompanha a sua desvalorização comparável à década de 1920.

Como dimensão promotora e protetiva, a regulação do labor seria um novo diálogo temático com as reformas trabalhista de 2017 e previdenciária de 2019 – a definição do padrão mínimo aceitável de regras, representação coletiva e solução de conflitos para o conjunto do mundo do trabalho, para além do assalariamento formal.

Na dimensão educacional e formativa, é necessária a reorganização das bases qualificadoras do trabalho atualmente existentes para atender ao longo da vida. A responsabilidade compartilhada tripartite constitui o elemento convergente com a redefinição formativa da identidade e pertencimento no mundo do trabalho.

Tudo isso converge com as novas fontes possíveis geradoras de ocupação. O dinamismo que ocorre com a reindustrialização e a reestruturação geral dos serviços de cuidado pode abrir a nova oportunidade da plena ocupação no Brasil.

Tudo isso está no horizonte de possibilidades teóricas. A sua conversão em realidade implica em compreender o trabalho de forma holística, com maioria política organizada. Do contrário, a relação salarial prosseguirá perdendo a centralidade no interior do mundo do trabalho.

A falácia da insanidade, poy Lygia Maria

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Tratar opositores pelo viés da loucura é expressão da bolha de parte da esquerda

Lygia Maria Mestre em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.

Folha de São Paulo, 07/11/2022

Rodovias fechadas, civis marchando na frente de quartéis e até militante agarrado na frente de um caminhão em movimento. Todos pedindo intervenção militar.

Quem assistiu ao desenrolar de eventos logo após as eleições teve a impressão de que abriram as portas do hospício. Pelo senso de humor, sim, mas não caiamos na patologização psicológica, que tende a objetificar seres humanos: não por acaso, ideologias totalitárias tratam pessoas como coisas.

Se queremos entender e combater manifestações antidemocráticas, e não apenas sinalizar virtude, não faz sentido usar o mesmo método que rechaçamos.

De saída, é preciso aceitar que o bolsonarismo é diverso. A ideia de que se restringe a homens ricos e brancos do Sul/Sudeste é uma falácia. Mulheres, negros e pardos, de classes mais baixas e também do Norte/Nordeste estão nesse movimento. Uma das vias é pela atuação de igrejas evangélicas neopentecostais.

Nesse quesito, não é a porta do hospício que se rompe, e sim a bolha da esquerda intelectual pós-moderna, que trata evangélicos pelo viés da insanidade ou da manipulação.

Esse discurso está desconectado do papel simbólico das igrejas e do bolsonarismo (que criam redes de sociabilidade e de formação de identidades) e também da realidade material de uma camada da população que vive em contexto de violência (o tema da segurança pública não é valorizado à toa). Aspectos quiçá mais prementes do que gênero neutro.

Segundo o Datafolha, em 2020, 31% da população era evangélica (58% eram mulheres e 59%, negros). Bolsonaro recebeu mais de 58 milhões de votos. É preciso uma boa dose de elitismo para atestar que essas pessoas estão apenas num surto coletivo.

Parte da esquerda, portanto, age como doutor Bacamarte, o alienista do conto de Machado de Assis, que vê loucura em todo mundo e interna a cidade inteira. Ao final, o médico percebe que, como apenas ele é perfeito, logo é o desviante. Então, abre as portas do hospício e acaba lá internado, sozinho.

Acabou, por Hebe Mattos.

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Golpe infame de 2016 finalmente fecha o seu ciclo

Hebe Mattos, Historiadora e professora titular livre do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG)

Folha de São Paulo, 06/11/2022

“Acabou!” Foi a frase que ouvi do meu vizinho de assento, quando aterrissava no Rio de Janeiro, após uma noite mal dormida em um voo internacional em 4 de março de 2016. Ele ligara o celular e havia lido a notícia da condução coercitiva do então ex-presidente Luiz Inácio da Silva (PT). Percebi que dormira com o inimigo e que o cerco contra a República de 1988 que eu tanto prezava estava se fechando.

Sou uma historiadora formada na luta pela redemocratização do Brasil. Acompanhei a ação dos movimentos sociais no processo constituinte que projetou as pautas políticas que marcariam as décadas que se seguiram, apesar da ação conservadora final do centrão, que então se constituiu como força política, e das disputas em torno da agenda econômica e social que as acompanhariam. Grosso modo, eram pautas de ampliação e reconhecimento de direitos: civis, políticos, sociais, culturais —e que se tornaram, pela pressão de diferentes atores e movimentos, patrimônio comum da nossa democracia.

Mas, naquele ano de 2016, tudo parecia desmoronar. Da esquerda à direita só se falava no fim da Nova República. Os direitos conquistados pareciam poucos. A política de transparência tornava a corrupção “a maior de todos os tempos”. O velho centrão, com a maioria de implicados nos casos desvendados, se unira para aprovar o impedimento da presidenta eleita que, republicana, recusava-se a interferir nas investigações. Para meu desespero, a oposição democrática decidiu que valeria a pena se unir a eles.

Queriam implementar o programa econômico que pensavam mais correto, ainda que derrotado nas urnas.
Retorno a 2016 não para revisitar velhas mágoas, mas para afirmar um ponto, para mim, essencial naquele contexto.

Uma nova extrema direita, de caráter fascista, que emergiu no seio dos movimentos de 2013, foi protagonista no processo. Esteve na base das práticas jurídicas da Lava Jato e conseguiu celebrar a memória da ditadura em pleno Congresso Nacional. Era um fenômeno novo no quadro democrático da Nova República, absolutamente ancorado no século 21 global.

Os documentários “O Processo” e “Amigo Secreto”, de Maria Augusta Ramos, são narrativas poderosas da nossa tragédia. As instituições funcionavam, mal. A Constituição de 1988 continuou como bússola da resistência democrática, em grande parte graças ao protagonismo de novos atores políticos, como a Coalizão Negra por Direitos.

Quatro anos de um governo negacionista nos ensinaram algo. Divergências no campo democrático não podem nos permitir conciliar com o fascismo. A extrema direita brasileira se consolidou como força política, é fato, mas, pelo menos neste 2022, terá que se submeter à vontade das urnas. O governo de transição já está instalado.

A República de 1988 viveu sua mais profunda crise e se reinventou. No ano do bicentenário do surgimento da nação, continua firme e forte. Se algo acabou —como o vestido de Dilma Rousseff (PT) na celebração da vitória eleitoral do presidente Lula bem lembrou— foi, finalmente, o golpe infame iniciado em 2016.

Terapia de choque na economia mundial, por Michael Roberts

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A alta dos juros, imposta agora por quase todos os bancos centrais, não pretende reduzir a inflação. Visa criar mais desemprego, esvaziar o poder de luta dos trabalhadores e ampliar os lucros. Não dará certo, e o sofrimento será imenso

Michael Roberts – OUTRAS PALAVRAS – 13/10/2022

O termo “terapia de choque” foi usado para descrever a mudança drástica de uma economia planejada, baseada na propriedade estatal, existente na antiga União Soviética, para um modo de produção capitalista integral, em 1990. Eis que produziu uma grande queda nos padrões de vida, por uma década.

O termo “doutrina do choque” foi usado por Naomi Klein para descrever a destruição dos serviços públicos e do Estado de bem-estar pelos governos a partir da década de 1980. Agora, os principais bancos centrais estão aplicando uma “terapia de choque” na economia mundial: estão aumentando as taxas de juros com a intenção de controlar a inflação, mesmo havendo crescente evidência de que isso levará a uma recessão global no próximo ano.

Veja-se o que dizem alguns de seus porta-vozes. Chris Waller, membro do conselho do Federal Reserve [Fed, o banco central dos EUA] deixou bem clara essa intenção ao afirmar que “não estou pensando em desacelerar ou interromper os aumentos das taxas devido a preocupações com a estabilidade financeira”. Ou seja: mesmo que o aumento das taxas de juros comece a abrir fissuras nas instituições financeiras e em seus ativos especulativos, isso não importa.

Da mesma forma, Joachim Nagel, presidente do Deutsche Bundesbank, está resoluto em manter esse objetivo, apesar de a zona do euro e da Alemanha em particular já entrarem em recessão: “As taxas de juros devem continuar a subir – e de forma significativa”. Veja-se: Nagel não quer apenas taxas de juros mais altas; ele quer que o BCE reduza seu balanço, ou seja, que não apenas pare de comprar títulos do governo, para manter os rendimentos dos títulos baixos; mas que, na verdade, passe a vender títulos, aumentando os seus rendimentos e contraindo a liquidez.

Eis o que Nagel afirma: “há um choque no preço da energia, cujos efeitos o banco central não pode mudar muito no curto prazo. No entanto, a política monetária pode impedir que ele salte e se amplie. Dessa forma, estamos quebrando a dinâmica da inflação e trazendo a evolução dos preços para nossa meta de médio prazo. Temos os instrumentos para isso, principalmente a alta das taxas de juros.”

Toda essa conversa machista dos banqueiros centrais esconde a realidade. O aumento das taxas de juros não reduzirá diretamente as taxas de inflação para os níveis pretendidos sem uma grande queda recessiva. Isso ocorre porque as atuais taxas de inflação, as maiores dos últimos de 40 anos, não foram causadas principalmente por “demanda excessiva” – ou seja, por gastos de famílias e governos –, mas devido à “oferta insuficiente”, particularmente na produção de alimentos e energia, mas também em produtos manufatureiros e tecnológicos mais amplamente.

Como se sabe, o crescimento da oferta foi restringido pelo baixo crescimento da produtividade nas principais economias, pelos bloqueios da cadeia de suprimentos na produção e no transporte, os quais surgiram durante e após a queda da covid e, mais recentemente, pela invasão russa da Ucrânia e pelas sanções econômicas impostas à Rússia pelos Estados ocidentais.

Estudos empíricos confirmaram que a espiral da inflação foi liderada pela oferta. Em um novo relatório, o Banco Central Europeu (BCE) constatou que mesmo o aumento do núcleo de inflação, que exclui os fatores de oferta de alimentos e energia, foi impulsionado principalmente por restrições de oferta. Eis o que está dito nesse relatório:

Os gargalos persistentes no fornecimento de bens industriais e a escassez de insumos, incluindo escassez de mão de obra devido em parte aos efeitos da pandemia de coronavírus (covid-19), levaram a um aumento acentuado da inflação… interrupções e gargalos de fornecimento e componentes fortemente afetados pelos efeitos da reabertura após a pandemia contribuíram juntos com cerca de metade (2,4 pontos percentuais) da inflação na área do euro em agosto de 2022.

Em seu último relatório sobre a situação do comércio e do desenvolvimento, a UNCTAD chegou a conclusão semelhante. Os seus técnicos calcularam que cada aumento de um ponto percentual na taxa básica de juros do Fed reduziria a produção econômica nos países ricos em 0,5% e em 0,8% nos países pobres, nos próximos três anos. Anotou, também, que aumentos mais drásticos, de 2 e 3 pontos percentuais, deprimiriam ainda mais a “recuperação econômica já estagnada” nas economias emergentes.

Ao apresentar o relatório, Richard Kozul-Wright, chefe da equipe da UNCTAD que preparou esse relatório, perguntou: “É certo tentar resolver um problema do lado da oferta com uma solução do lado da demanda?”. E respondeu: “Achamos que é uma abordagem muito perigosa.” Exatamente.

Parece claro que os bancos centrais não conhecem as causas do aumento da inflação. Como confessou o presidente do Fed, Jay Powell: “entendemos melhor agora o quão pouco entendemos sobre inflação”. Ora, trata-se na verdade de uma abordagem ideológica por parte dos banqueiros centrais. Toda a conversa deles tem por trás o medo de uma espiral de preços e salários. É isso o que, no fundo, sustentam: à medida que os trabalhadores tentam compensar os aumentos de preços negociando salários mais altos, isso provocará mais aumento de preços, elevando as expectativas de inflação.

Martin Wolf, o guru keynesiano do Financial Times, resumiu essa teoria: “o que [banqueiros centrais] devem fazer é evitar uma espiral de preços e salários, que desestabilizaria as expectativas de inflação. A política monetária deve ser rígida o suficiente para conseguir isso. Em outras palavras, deve criar/preservar alguma folga no mercado de trabalho.” Portanto, dada essa “teoria”, trata-se de evitar que os salários subam, mesmo que isso possa aumentar o desemprego.

O chefe do Fed, Jay Powell, considera, no entanto, que esse resultado pode ser evitado. Segundo ele, a tarefa do Fed consiste “em princípio, (…) em moderar a demanda (…) obtendo uma redução dos salários, assim como da inflação, sem ter que desacelerar a economia e sem uma recessão que aumente o desemprego. Eis que há, pois, um caminho para obter esse resultado”.

Como disse o governador do Banco da Inglaterra, Andrew Bailey: “não estou dizendo que ninguém vai receber aumento salarial – não me entendam mal. O que estou dizendo é que precisamos de moderação na negociação salarial, pois, em caso contrário, ela ficará fora de controle”.

Considere-se, agora, esta afirmação do principal macroeconomista do chamado mainstream, Jason Fulman: “Quando os salários sobem, isso leva os preços a subir. Se o combustível das companhias aéreas ou os ingredientes alimentares subirem de preço, as companhias aéreas ou os restaurantes aumentarão seus preços. Da mesma forma, se os salários dos comissários de bordo ou servidores subirem, eles também aumentarão os preços. Isso decorre do micro e do senso comum básico”.

Ora, tanto essa “microeconomia básica” quando esse “senso comum” postulados são bem falsos. A teoria e o suporte empírico para a inflação dos custos salariais e a teoria das expectativas de inflação são falaciosos.
Marx contestou a afirmação de que os aumentos salariais levam automaticamente a aumentos de preços há cerca de 160 anos, em um debate com o sindicalista Thomas Weston. Este afirmara que os aumentos salariais eram autodestrutivos, pois os empregadores apenas aumentariam os preços e os trabalhadores voltariam à estaca zero. Marx argumentou – como consta em Valor, Preço e Lucro – que “uma luta por aumento de salários segue apenas o rastro de mudanças anteriores nos preços”. Há muitas outras coisas que afetam as mudanças de preços: “a quantidade de produção, as forças produtivas do trabalho, o valor do dinheiro, as flutuações dos preços de mercado, as diferentes fases do ciclo industrial”.

Como se vê, agora, baixar os salários é a resposta dos bancos centrais ao aumento persistente dos preços. Mas os salários não estão aumentando como parcela da renda nacional ou do valor da produção; pelo contrário, é a participação nos lucros que vem aumentando desde e durante a pandemia.

De acordo com o relatório da UNCTAD, entre 2020 e 2022 “estima-se que 54% do aumento médio de preços no setor não financeiro dos Estados Unidos foi atribuído a margens de lucro mais altas, em comparação com apenas 11% nos 40 anos anteriores”. O que tem impulsionado o aumento da inflação tem sido o custo das matérias-primas (alimentos e energia em particular) e o aumento dos lucros, não dos salários. Não se encontra, porém, uma fala sobre uma possível espiral de lucro-preço, tal como se encontra nas manifestações dos bancos centrais.

Ora, esse foi outro ponto levantado por Marx no debate com Weston: “Um aumento geral na taxa de salários resultará em uma queda da taxa geral de lucro, mas não afetará os preços das mercadorias”. Logo, o que realmente preocupa os banqueiros centrais vem a ser uma queda na lucratividade.

Assim, os bancos centrais continuam aumentando as taxas de juros, passando da flexibilização quantitativa (QE) para o aperto quantitativo (QT). E eles estão fazendo isso simultaneamente em todos os continentes. Essa “terapia de choque”, empregada pela primeira vez no final da década de 1970 pelo então presidente do Fed dos EUA, Paul Volcker, acabou levando a uma grande queda da produção global, entre 1980-2.

A maneira como os bancos centrais estão combatendo a inflação por meio da elevação simultânea das taxas de juros está colocando também uma pressão enorme no sistema financeiro global: à medida que atuam nas economias avançadas, eles afetam também os países de baixa renda.

O que está espalhando o impacto do aumento das taxas de juros na economia mundial é o fortalecimento do dólar norte-americano. Houve uma alta de cerca de 11% desde o início do ano e ela produziu – pela primeira vez em duas décadas – a paridade do dólar com o euro. O dólar está forte porque se apresenta como um porto seguro para o dinheiro diante da inflação e das sanções e da guerra na Europa.

Ora, o dólar se fortalece porque a taxa de juros nos EUA está em alta. Em consequência, moedas importantes de outros países se desvalorizaram em relação ao dólar. Isso é desastroso para muitos países pobres ao redor do mundo. Muitos países – especialmente os mais pobres – não podem tomar empréstimos em sua própria moeda no valor ou nos vencimentos que desejam.

Diante desse quadro, os credores não estão dispostos a assumir o risco de serem pagos de volta nas moedas voláteis desses devedores. Em vez disso, esses países costumam tomar empréstimos em dólares, prometendo pagar suas dívidas em dólares – independentemente da taxa de câmbio. Assim, à medida que o dólar se torna mais forte em relação a outras moedas, esses pagamentos se tornam muito mais caros em termos de moeda nacional.

O Instituto de Finanças Internacionais informou recentemente que “os investidores estrangeiros retiraram fundos dos mercados emergentes por cinco meses consecutivos na maior sequência de saques já registrada”. Este é o capital de investimento crucial que está saindo dos países emergentes em direção à “segurança” das moedas fortes, principalmente o dólar.

Além disso, à medida que o dólar se fortalece, as importações se tornam caras (em termos de moeda doméstica), forçando as empresas a reduzir seus investimentos ou gastar mais em importações cruciais. A ameaça do a inadimplência está crescendo assustadoramente.

Tudo isso está acontecendo por causa da tentativa dos bancos centrais de aplicar uma “terapia de choque” para enfrentar o aumento da inflação global. A realidade é que os bancos centrais não podem controlar as taxas de inflação com a política monetária, especialmente quando ela é orientada para a oferta.

O aumento dos preços não foi impulsionado pela “demanda excessiva” dos consumidores por bens e serviços ou por empresas investindo pesadamente, ou mesmo por gastos governamentais descontrolados. Não é a demanda que é “excessiva”, mas o outro lado da equação de preços, ou seja, é a oferta que está muito fraca. E essa última, os bancos centrais não podem controlar!

Eles podem aumentar as taxas de juros o quanto quiserem, mas isso terá pouco efeito para reduzir o aperto do lado da oferta, exceto talvez para enfraquecê-la ainda mais. Esse aperto de oferta não se deve apenas a bloqueios de produção e transporte ou à guerra na Ucrânia; deve-se também, ainda mais, a um declínio subjacente de longo prazo no crescimento da produtividade das principais economias – ademais, por trás desse decaimento, há o declínio persistente do investimento devido à falta de lucratividade.

Ironicamente, o aumento das taxas de juros reduzirá os lucros. Os analistas já reduziram suas expectativas de ganhos no terceiro trimestre das grandes empresas dos EUA em US$ 34 bilhões, nos últimos três meses. Os analistas agora estão antecipando o menor aumento nos lucros desde o pico da crise do Covid. Eles esperam que as empresas listadas no índice de ações norte-americano S&P 500 registrem um crescimento de lucro por ação de apenas 2,6% no trimestre de julho a setembro, em comparação com o mesmo período do ano anterior.

É uma terapia de choque que afeta a economia global, mas não a inflação diretamente. Quando as principais economias entrarem em queda sincronizada, a inflação deverá cair, mas como resultado da recessão.