Como as finanças comandam o capitalismo, por Pete Dolack.

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Especulação movimenta 36 vezes mais que a riqueza produzida no mundo. Desde 2008, Estados emitiram, do nada, US$ 19,3 trilhões para alimentar o cassino. A que serve o sistema financeiro hoje: facilitar a produção ou capturar a riqueza coletiva?

Pete Dolack – Outras Palavras – 20/09/2022

As dimensões do setor financeiro não tem relação com a economia. Deixando de lado a retórica, ele confisca dinheiro, não o cria. Quanto? Vale examinar alguns números.
> Valor total das dívidas: US$ 305 trilhões.

> Valor total de papéis financeiros negociados, em média, por dia: US$ 9,68 trilhões.

É muito dinheiro. Tanto que a imaginação tem dificuldades para compreender tais números. Uma maneira de enxergá-los em perspectiva é lembrar que o tamanho da economia mundial (produto interno bruto global para todos os países do mundo) foi de US$ 96,1 trilhões em 2021.

Em outras palavras, o volume de negociação de moedas (câmbio), ações, títulos e seus derivativos supera o tamanho da economia global a cada 10 dias úteis. (O período é quase certamente um pouco mais curto, já que os US$ 9,68 trilhões, média diária de negociação, não incluem a maior parte dos títulos dos Estados, cujo valor negociado é difícil de obter.) Para fazer outra comparação, o valor da dívida do governos, empresas e famílias do mundo (o total de US$ 305 trilhões acima) é mais de três vezes e meia o valor de toda a atividade econômica produzida em um ano.

Ainda outra maneira de olhar para essa atividade é perceber que o comércio que envolve câmbio de moedas (incluindo swaps, opções, transações à vista e a prazo) em um dia é maior do que as economias de todos os países, exceto os Estados Unidos e a China. Dado que o dólar americano, a moeda de reserva mundial, e está envolvido em 88% dos negócios de câmbio, os negócios com dólar totaliza sozinhos mais de um ano de produção de todos os países, exceto os EUA e a China.

Um monstro que nunca se sacia

A revista Rolling Stone uma vez descreveu o banco Goldman Sachs (de forma memorável) como um “grande polvo vampiro, enrolado na face da humanidade”. Este monstro está ficando maior. Quando fiz este exercício pela última vez, há 10 anos, levava cerca de 11 dias úteis para os especuladores negociarem instrumentos financeiros e contratos equivalentes todos os produtos e serviços produzidos pelo mundo inteiro em um ano. Agora são 10 dias. Veja só o progresso.

Não há razão econômica racional para um setor financeiro ter sequer uma fração desse tamanho. A maior parte da ação nas bolsas de valores é simplesmente especulação. A ganância é certamente uma parte do problema, mas não responde tudo. Como não há oportunidades suficientes para investimento, mais dinheiro é desviado para a especulação. À medida que pilhas cada vez maiores de dinheiro são desviadas para esta atividade, o tamanho do setor financeiro e a porcentagem de lucros corporativos reivindicados por tal setor crescem constantemente. Esse capital existe em função da quantidade de dinheiro que converge para cima, para os ricos, e é infinitamente superior ao que podem dispender em consumo ou investimento de luxo pessoal. Essas torrentes de dinheiro são desviadas para uma especulação cada vez mais arriscada.

Há muito dinheiro em busca de poucos ativos, o que produz elevação rápida dos preços [de imóveis, em todo o mundo, por exemplo] até um ponto em que já não há fluxo de receita capas de sustentar o preço dos ativos comprados em níveis inflacionados. Não é muito diferente dos desenhos da Warner Brothers em que o personagem anda para além de um penhasco e dá vários passos suspensos no ar, até que olha para baixo, vê que não há nada além de ar sob si mesmo e cai. Em algum momento, os especuladores olham para baixo e percebem que não têm apoio. O pânico em massa começa e os preços desabam, produzindo outra crise econômica. Crise que os trabalhadores, e não os especuladores, pagarão.
O próprio tamanho dos mercados financeiros é uma das principais causas da instabilidade econômica. Depois de extraírem dos Estados imensas somas de dinheiro, a pretexto de “resgate”, após a crise de 2008, as empresas financeiras alavancaram seu poder para se tornarem ainda maiores por meio de fusões. Isso lhes permitiu desviar mais capital do uso produtivo. Mas mesmo durante a parte do alta dos ciclos de negócios, os financistas são destrutivos para a economia, pois “recompensam” as empresas produtivas por demissões em massa, por transferirem a produção para países em desenvolvimento, com baixos salários e poucos ou nenhum direito trabalhista ou ambiental efetivo, e por estabelecerem subsidiárias em paraísos fiscais e evitar o pagamento de impostos. A “recompensa” dos financistas por esse comportamento assume a forma de aumento dos preços das ações. Estes, por sua vez, fornecem aos altos executivos uma justificativa para conceder a si mesmos remunerações estratosféricas, a pretexto de terem “aumentado o valor para o acionista”.

Ao mesmo tempo, há uma pressão contínua para rebaixar os salários. À medida em que uma parcela crescente das receitas corporativas é desviada para os rendimentos dos executivos e transferência de lucros, o que sobra para remunerar os trabalhadores declina. E muitos desses lucros corporativos são rapidamente canalizados para dividendos e recompras de ações, e outras maneiras do dinheiro “subir” para as mãos sempre ávidas de especuladores muito ricos.

As corporações da América do Norte, Europa e Japão distribuíram surpreendentes US$ 2,75 trilhões aos acionistas em 2021, por meio de pagamentos de dividendos e recompras de ações. Em fevereiro de 2022, a quantidade de dinheiro criada pelos bancos centrais de cinco das maiores economias do mundo, com o objetivo de sustentar artificialmente os mercados financeiros desde o início da pandemia de Covid-19 totalizou US$ 9,94 trilhões. Isso se soma aos US$ 9,36 trilhões gastos no salvamento dos mercados financeiros nos anos seguintes ao colapso econômico global de 2008.

São US$ 19,3 trilhões no período de 14 anos, e essa soma surpreendente de subsídios e doações representa apenas um programa dos muitos usados pelo Federal Reserve dos EUA, pelo Banco Central Europeu, pelo Banco do Japão, pelo Banco da Inglaterra e pelo Banco do Canadá.

Eles podem quebrar, mas é você quem se ferra

Como poderia um setor parasitário crescer em proporções tão gigantescas? Em teoria, os mercados de ações existem para alocar capital de investimento onde for necessário e para permitir que as corporações arrecadem dinheiro para investimento ou outros fins. Na vida real, isso não corresponde à verdade. Uma corporação com ações negociadas em bolsa pode usar esse status para emitir novas ações, levantando dinheiro sem o ônus de lidar com credores e pagar juros. Mas as grandes corporações podem levantar dinheiro de diversas outras maneiras — por exemplo, emitindo títulos ou outras dívidas, ou vendendo ações diretamente a investidores privados. As corporações também não desejam necessariamente lançar novas ações: fazer isso não agrada aos investidores, porque os lucros são diluídos, quando distribuídos entre mais ações. Em vez disso, é mais comum que as grandes empresas recomprem partes de suas ações (com um acréscimo em relação ao preço de negociação), o que significa distribuir os lucros mais restritamente. Daí o aumento constante das recompras de ações. Combinadas com os dividendos, elas superam, em alguns anos, o total de lucros.

E quanto a “alocar o capital de investimento onde ele é necessário”? A expressão significa, em poucas palavras, que os mercados de ações supostamente tornam as finanças mais eficientes. Em teoria, o capital será empregado em setores ou empresas que tendem a lucrar mais (por suprirem necessidades humanas), mas ainda não têm capital suficiente. Ou, então, por empresas que já têm um histórico lucros. No fundo, comprar ações é uma aposta nos lucros futuros da empresa. Quem investe aposta que os lucros não apenas aumentarão, mas aumentarão a uma taxa mais rápida do que no passado. Certa vez, trabalhei em um serviço de notícias financeiras e um dia fiquei surpreso quando o preço das ações de uma conhecida empresa de tecnologia caiu, apesar de se anunciar que havia obtido um lucro de US$ 800 milhões nos três meses anteriores – mais que no mesmo período do ano anterior. Em um exame mais minucioso, a empresa foi punida pelos especuladores porque a taxa de aumento do lucro não cresceu – esse lucro gigantesco foi menor do que os “analistas” do mercado de ações haviam previsto.

O fato ilustra que as transações são feitas principalmente para especulação, não por qualquer razão econômica racional. Os primórdios do setor financeiro foram lentos, no alvorecer do capitalismo. Podia levar anos para que um investimento fosse recompensado. Por isso, os financiadores intervinham para fornecer liquidez em dinheiro. Mas como a especulação financeira não tem as limitações físicas da produção de bens materiais, a especulação foi aos poucos tornando-se proeminente. Na verdade, os crashs financeiros são muito anteriores de 1929 e 2008. A “febre das tulipas” consumiu os holandeses na década de 1630, numa especulação alimentada pelos primeiros contratos futuros. A especulação descontrolada na década de 1710, na Companhia Inglesa do Mar do Sul e na Companhia Francesa das Índias, levou ao colapso das ações de ambas, uma bolha na qual nasceu a venda a descoberto. Uma bolha de 1830 no mercado imobiliário norte-americano estourou quando os bancos pararam de fazer empréstimos. E uma bolha da década de 1870, inflada pela especulação em ferrovias e construção na América do Norte e na Europa, estourou quando o mercado de ações de Viena quebrou, seguido por ondas de falências de bancos.

Os bilionários e corporações multinacionais do mundo lucraram muito com a pandemia de covid-19, inflando enormemente sua riqueza. Como esperado, a dívida também aumentou dramaticamente. O aumento da dívida em 2020 foi o maior do que em qualquer ano desde a Segunda Guerra Mundial, de acordo com o Fundo Monetário Internacional.
Metade do aumento da dívida em 2020 foi governamental, novamente sem surpresa, considerando os trilhões entregues às instituições financeiras naquele ano. Segundo o FMI, “os aumentos da dívida são particularmente marcantes nas economias avançadas, onde a dívida pública subiu de cerca de 70% do PIB, em 2007, para 124% do PIB, em 2020. A dívida privada, por outro lado, cresceu num ritmo mais moderado de 164% para 178% do PIB, no mesmo período. A dívida pública agora responde por quase 40% da dívida global total, a maior parcela desde meados da década de 1960.”

Arrancando dinheiro de quem trabalha

Deve-se sempre lembrar que o lucro de um capitalista é obtido pagando aos empregados muito menos do que o valor do que eles produzem. Por sua vez, a indústria financeira extrai dinheiro dos produtores de bens e serviços tangíveis e, muitas vezes, também dos governos. O capital financeiro busca lucrar com toda e qualquer atividade econômica em qualquer lugar, independentemente do custo para todos os demais. Esse processo é incrivelmente lucrativo – não apenas os bancos de investimento estão entre as corporações mais lucrativas, como os especuladores podem montanhas de dinheiro a cada ano – e eles pagam menos impostos que você!

Nem mesmo as grandes corporações estão imunes à pressão do setor financeiro. Vários anos atrás, a DuPont, a multinacional química que produz muitos produtos que dominam seu mercado, acumulou cerca de US$ 17,8 bilhões em lucros em cinco anos, distribuiu US$ 4 bilhões e se gabou de um aumento de 20% em suas ações, ao longo de um ano. No entanto, um poderoso gestor de fundos de hedge declarou guerra à administração da DuPont, exigindo que a corporação fosse dividida em duas, sob a teoria de que mais lucro poderia ser auferido nesse processo. O especulador não conseguiu o que queria, mas a DuPont demitiu trabalhadores para apaziguar os especuladores, apesar de sua enorme lucratividade. Por fim, a DuPont fundiu-se com a Dow Chemical e, em seguida, o conglomerado combinado se dividiu em três empresas, em manobras feitas principalmente para gerar mais dinheiro para os especuladores.

Mesmo o Wal-Mart não é forte o suficiente para enfrentar Wall Street. Após cinco anos de lucros maciços (US$ 80 bilhões), os especuladores começaram a baixar o preço das ações da empresa em parte porque ela havia aumentado seu salário mínimo para US$ 9 por hora. O Wal-Mart tentou compensar essa notícia anunciando também uma nova recompra de ações de US$ 20 bilhões, mas nem esse aceno para os financistas serviu para levantar os ânimos dos especuladores. A empresa, lendária por seu esforço feroz de forçar o deslocamento da produção para locais com salários mais baixos, foi considerada pelos financistas como insuficientemente bruta.

Como sempre, se der cara, Wall Street vence; e se der coroa, Wall Street vence. Esses valores fantásticos dos lucros com instrumentos financeiros não caem do céu e não existem por causa de alguma rara perspicácia de especuladores. Essas montanhas de dinheiro, que colocariam em risco os satélites em órbita se fossem empilhadas, são o resultado direto da exploração de quem trabalha.

Impactos comerciais

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Depois de uma pandemia que dizimou milhões de pessoas em todas as regiões do mundo e um conflito militar que gerou medos e incertezas sobre a sociedade internacional, cujos impactos são assustadores, gerando desequilíbrios econômicos e desestruturações produtivas que contribuíram para o incremento dos custos globais e levaram a uma degradação da renda da população, gerando desesperanças e grandes volatilidades. Diante dos grandes desafios do cenário internacional, percebemos uma nova guerra no ambiente global, buscando a consolidação de novas hegemonias produtivas, neste conflito que se aproxima, as nações buscam a dominação sobre os setores de semicondutores, os chamados chips. Neste cenário de conflitos comerciais, os especialistas descrevem os chips como o petróleo do século XXI, envolvendo trilhões de dólares, dominação tecnológica, consolidação bélica e muito poder político.

Neste momento de grandes transformações produtivas e geopolíticas, onde destacamos a importância da tecnologia na economia internacional, as nações que não conseguirem construir novos espaços de desenvolvimento tecnológico, tendem a perder relevância no sistema produtivo global, perdendo forças econômica e autonomia para definir os rumos de suas sociedades, perpetuando sua dependência e recriando modelos de colonização e limitando sua capacidade de desenvolver tecnologias nacionais.

Os setores de semicondutores devem ser vistos como um mercado altamente oligopolizado, onde percebemos poucos atores globais com poder financeiro e tecnológico, onde destacamos poucos atores importantes, tais como Estados Unidos, China, Coréia do Sul, Europa, Taiwan e Japão. Nesta competição encontramos uma competição marcada, não pelo chamado livre mercado, como sonham os liberais, mas como um setor fortemente alavancado pelo poder econômico, financeiro e político dos Estados nacionais, responsáveis por grandes investimentos em ciência e tecnologia, formação de mão de obra de excelência, infraestruturas materiais e incentivos variados para angariar os melhores cérebros internacionais, garantindo ganhos econômicos e autonomia tecnológica e reduzindo a dependência de outros agentes externos.

Nestes mercados internacionais, a competição entre oligopólios envolve fortes investimentos governamentais, transferindo tecnologias e formando cientistas altamente capacitados, além de inúmeros incentivos financeiros e fiscais, garantindo o fortalecimento do mercado interno, melhora nos ambientes de negócios, garantindo uma melhora de todos os grupos sociais e garantindo espaços de desenvolvimento econômico. Todas as nações que conseguiram angariar espaços de desenvolvimento econômico e produtivo contaram com um modelo centrado na integração entre Estados e Mercados, trabalhando conjuntamente, reduzindo os riscos, financiando a infraestrutura e a formação de capital humano capacitado, com isso, encontramos nações que, nos anos 1950/1960, eram exportadores de produtos agrícolas e dependentes de produtos primários de baixo valor agregado e, atualmente, se caracterizam como um mercado exportador dinâmico e centrado em alta tecnologia, são nações que conseguiram se elevar na escada tecnológica, graças a integração entre todos os setores econômicos, com planejamento estratégico, espaços de regulação eficiente e fortes estímulos fiscais e financeiros.

Empresas como a taiwanesa TSMC, maior produtor mundial de chips ou a coreana Samsung que conseguiram alavancar seus desenvolvimentos econômicos e tecnológicos e se transformaram em cases de sucesso internacional, contribuindo para alavancar as suas respectivas economias, consolidando suas estruturas produtivas e melhorando as condições sociais de suas nações, mostrando claramente que é altamente estratégico a atuação conjunta entre Estados e Mercados para o desenvolvimento nacional, deixando rivalidades degradantes, investindo no futuro, cobrando resultados a longo prazo, garantindo maturação dos investimentos e atuação constantes nos mercados internacionais.
O mundo contemporâneo deve abolir pensamentos ultrapassados e degradantes, reconstruir os consensos econômicos, combater as desigualdades sociais e criar novos espaços políticos para aprofundarem a democracia representativa e melhorar o bem-estar social.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 02/11/2022.

A China lança uma proposta ao Sul Global, por Pepe Escobar.

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Em resposta ao Consenso de Washington – que concentra riquezas e abre espaço ao fascismo – PC chinês propõe a modernização pacífica. Ideia desafia a noção thatcherista do “fim das alternativas” e pode sacudir economia e geopolítica atuais

Pepe Escobar – OUTRAS PALAVRAS – 24/10/2022

O relatório de trabalho apresentado pelo presidente Xi Jinping no início do 20º Congresso do Partido Comunista da China (PCCh) neste último domingo, em Pequim, continha não apenas um projeto de desenvolvimento para o estado-civilização chinês, mas um projeto inclusivo para todo o Sul Global.

A fala de uma hora e 45 minutos de Xi apresentou uma visão resumida da íntegra do relatório de trabalho que trata bem mais em detalhe de uma série de temas sociopolíticos.

Essa foi a culminação de um complexo esforço coletivo que se estendeu por meses. Ao receber o texto final, Xi o comentou, revisou e editou.

Em poucas palavras, o plano diretor do PCCh tem duas vertentes: finalizar a “modernização socialista” entre 2020 e 2035; construir a China – por meio de uma modernização pacífica – como um país socialista moderno “próspero, forte, democrático, culturalmente avançado e harmonioso” até 2049, marcando o centenário da fundação da República Popular da China (RPC).

O conceito central do relatório de trabalho é a modernização pacífica – e como alcançá-la. Como sintetizado por Xi, “ele contém elementos que são comuns ao processo de modernização de todos os países, sendo, entretanto, mais marcado por características singulares do contexto chinês”.

De forma bastante coerente com a cultura confuciana chinesa, a “modernização pacífica” contém um sistema teórico completo. É claro que há múltiplos caminhos geoeconômicos que levam à modernização – segundo as condições de cada país específico. Mas, para o Sul Global como um todo, o que realmente importa é que o exemplo chinês rompe radicalmente com o monopólio “TINA” (“não há alternativa”, em inglês) na prática e na teoria da modernização.
Sem falar que ele rompe também com a camisa-de-força ideológica imposta ao Sul Global pelo autodefinido “bilhão dourado” (dos quais os realmente “dourados” mal chegam a 10 milhões). O que a liderança chinesa afirma é que o modelo iraniano, o modelo ugandense ou o modelo boliviano são tão válidos quanto o experimento chinês: o importante é perseguir um caminho independente para o desenvolvimento.

Como desenvolver a independência tecnológica

O histórico recente mostra que todos os países que tentam se desenvolver fora do Consenso de Washington são aterrorizados por guerra híbrida em múltiplos níveis. O país se torna alvo de revolução colorida, mudança de regime, bloqueio econômico, sabotagem pela OTAN – ou simplesmente bombardeio e invasão.

O que a China propõe ecoa por todo o Sul Global porque Pequim é o maior parceiro comercial de nada menos que 140 países, que conseguem entender com facilidade os conceitos de desenvolvimento econômico de alta qualidade e de autossuficiência em ciência e tecnologia.

O relatório ressaltou o imperativo categórico para a China de agora em diante: acelerar a autossuficiência tecnológica, uma vez que o Hegêmona parte para um tudo ou nada com o objetivo de inviabilizar o desenvolvimento tecnológico chinês, em especial no que se refere à fabricação de semicondutores.

Com a dimensão de um pacote de sanções do Inferno, o Hegêmona aposta na possibilidade de mutilar o impulso chinês para acelerar sua independência tecnológica em semicondutores e no equipamento para produzi-los.

A China, portanto, terá que se engajar em um esforço nacional de produção de semicondutores. Essa necessidade estará no cerne daquilo que o relatório de trabalho descreve como uma nova estratégia de desenvolvimento, movida pelo tremendo desafio de alcançar a autossuficiência. Em essência, a China irá fortalecer o setor público da economia, com as empresas estatais formando o núcleo de um sistema nacional de desenvolvimento de inovação tecnológica.

“Pequenas fortalezas com muros altos”

Quanto à política externa, o relatório de trabalho é muito claro: a China é contra qualquer forma de unilateralismo e contra todo e qualquer bloco ou grupo que se volte contra países específicos. Pequim se refere a esses blocos, como a OTAN e a AUKUS, como “pequenas fortalezas com muros altos”.

Essa visão está inscrita na ênfase dada pelo PCCh a um outro imperativo categórico: reformar o atual sistema de governança mundial, extremamente injusto para o Sul Global. É sempre fundamental nos lembrarmos de que a China, como um estado-civilização, vê a si mesma como, simultaneamente, um país socialista e a maior nação em desenvolvimento do mundo.

A questão, mais uma vez, é que Pequim acredita em “salvaguardar o sistema internacional que tem a ONU em seu cerne”. A maioria dos atores do Sul Global sabe que os Estados Unidos sujeitam a ONU – e seu mecanismo de votação – a pressões implacáveis de todo tipo.

É esclarecedor dar atenção aos pouquíssimos ocidentais que realmente sabem alguma coisa sobre a China.
Martin Jacques, até recentemente professor sênior do Departamento de Política e Estudos Internacionais da Universidade de Cambridge, e autor do que talvez seja o melhor livro escrito em inglês sobre o desenvolvimento chinês, mostra-se impressionado com o fato de a modernização da China ter ocorrido em um contexto dominado pelo Ocidente: “Esse foi o papel crucial do PCCh. Tinha que ser planejado. Podemos ver o quão extraordinariamente exitoso foi esse processo”.

A consequência é que, ao quebrar o modelo TINA centrado no Ocidente, Pequim acumulou os instrumentos que lhe conferem a capacidade de ajudar os países do Sul Global com seus próprios modelos.
Jeffrey Sachs, diretor do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Columbia, é ainda mais otimista: “a China se tornará líder de inovação. Eu espero e acredito que a China se converterá em líder de inovação em sustentabilidade”. Isso irá contrastar com o “disfuncional” modelo americano, que vem se tornando protecionista até mesmo nos setores de negócios e de investimentos.

Mikhail Delyagin, vice-presidente da Comissão de Política Econômica da Duma do Estado Russo, enfatiza um ponto crucial, que certamente não passou despercebido por atores do Sul Global: o PCCh “conseguiu adaptar de forma criativa o marxismo do século XIX e sua experiência no século XX às novas exigências, e implementar os valores eternos com novos métodos. Essa é uma lição de grande importância para nós”.

E esse é o valor agregado de um modelo direcionado ao interesse nacional, e não às políticas exclusivistas do Capital Global.

ICR ou nada

Implícita ao longo de todo o relatório de trabalho está a importância do conceito amplo da política externa chinesa: a Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) e seus corredores de conectividade comercial cruzando toda a Eurásia e a África.

Coube ao porta-voz do Ministério das Relações Exteriores chinês, Wang Wenbin, esclarecer o rumo a ser tomado pela ICR:

“A ICR transcende a mentalidade antiquada dos jogos geopolíticos, de modo que criou um novo modelo de cooperação internacional. A ICR não é um grupo fechado que exclui os demais participantes, mas sim uma plataforma de cooperação aberta e inclusiva. Ela não representa apenas o trabalho isolado da China, trata-se de uma sinfonia executada por todos os países participantes.”

A ICR está intrinsecamente ligada ao conceito chinês de “abertura”. É importante lembrar também que a ICR foi lançada por Xi há nove anos – na Ásia Central (Astana) e posteriormente no Sudeste Asiático (Jacarta). Pequim aprendeu com os próprios erros e continua fazendo ajustes finos na ICR sempre em consulta com seus parceiros – desde Paquistão, Sri Lanka e Malásia até diversos países africanos.

Não é de surpreender que, em agosto do presente ano, o comércio da China com os países participantes da ICR tenha atingido a extraordinária quantia de US$ 12 trilhões, e que os investimentos diretos não-financeiros realizados nesses países tenha ultrapassado US$ 140 bilhões.

Wang está correto ao apontar que, após os investimentos da ICR em infraestrutura, “o Leste Africano e o Camboja têm rodovias, o Cazaquistão tem portos [secos] para exportações, as Maldivas têm sua primeira ponte sobre o mar e o Laos passou de um país sem acesso ao mar a um país conectado”.

Mesmo sob graves ameaças, que vão desde a política de covid-zero até sanções de todo tipo e a quebra das cadeias de fornecimento, o número de trens de carga expressos China-União Europeia continua a crescer, a Ferrovia China-Laos e a Ponte Peljesac na Croácia estão agora em operação, e as obras na Ferrovia de Alta Velocidade Jacarta-Bandung estão em andamento.

Mackinder doidão de crack

Por todo o extremamente incandescente tabuleiro de xadrez global, as relações internacionais vêm sendo reformuladas por completo.

A China e importantes atores eurasianos – da Organização de Cooperação de Xangai (OCX), dos BRICS+ e da União Econômica Eurasiana (UEEA) liderada pela Rússia – estão todos propondo um desenvolvimento pacífico neste momento.

O Hegêmona, ao contrário, impõe uma avalanche de sanções (não é por acaso que os três países mais atingidos sejam potências eurasianas, Rússia, Irã e China), guerras por procuração de alta letalidade (Ucrânia) e todas as cepas possíveis de guerra híbrida para evitar o fim de sua supremacia, que mal durou sete décadas e meia, algo insignificante em termos históricos.

A atual disfunção – física, política, financeira, cognitiva – está atingindo um clímax. Enquanto a Europa mergulha em um abismo de devastação e trevas em grande medida autoinfligidas – um neomedievalismo expresso em termos politicamente corretos –, um Império internamente destruído recorre à pilhagem até mesmo de seus “aliados” ricos.

É como se estivéssemos testemunhando um cenário de Mackinder-doidão-de-crack.
Halford Mackinder, é claro, foi o geógrafo britânico que desenvolveu, em geopolítica, a “Teoria do Coração do Continente” (Heartland Theory), que influenciou fortemente a política externa dos Estados Unidos ao longo de toda a Guerra Fria: “Quem controla o Leste Europeu domina o Coração do Continente [Heartland], quem controla o Coração do Continente domina a Ilha do Mundo, quem controla a Ilha do Mundo domina o Mundo inteiro”.

A Rússia abrange onze fusos horários e está sobre até um terço dos recursos naturais do mundo. Uma simbiose natural entre a Europa e a Rússia é quase uma obviedade. Mas a oligarquia da União Europeia pôs tudo a perder.

Não é de admirar que a liderança chinesa veja esse processo com horror, porque um dos objetivos essenciais da ICR é o de facilitar o comércio ininterrupto entre China e Europa. Como o corredor de conectividade russo foi bloqueado por sanções, a China irá privilegiar os corredores que atravessam o Oeste Asiático.

Enquanto isso, a Rússia vem completando seu giro em direção ao leste. Os imensos recursos da Rússia, aliados à capacidade manufatureira da China e do Leste Asiático como um todo, projetam uma esfera de comércio/conectividade que vai além até mesmo da ICR. Ela está no cerne do conceito russo de Parceria da Grande Eurásia.

Em uma outra das reviravoltas imprevisíveis da história, Mackinder, há um século, talvez estivesse essencialmente correto ao afirmar que quem controla o Coração do Continente/Ilha do Mundo domina o mundo inteiro. Nada indica que o controlador venha a ser o Hegêmona, e menos ainda seus vassalos/escravos europeus.

Quando os chineses dizem que são contra blocos, a Eurásia e o Ocidente são efetivamente dois blocos. Embora ainda não formalmente em guerra entre si, eles, na verdade, já estão atolados até os joelhos no território da Guerra Híbrida.

A Rússia e o Irã estão na linha de frente – militarmente e no sentido de absorverem incessantes pressões. Outros atores importantes do Sul Global, sem alarde, tentam manter um perfil discreto ou, com menos alarde ainda, ajudam a China e os demais países a fazerem com que o mundo multipolar prevaleça em termos econômicos.

Como a China propõe uma modernização pacífica, a mensagem oculta do relatório de trabalho é ainda mais categórica.

O Sul Global enfrenta agora uma séria escolha: entre a soberania e a modernização pacífica – corporificada em um mundo multipolar – ou a vassalagem explícita.

Bolsonarismo e a americanização do Brasil, por Guilherme Casarões

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Movimento importou da extrema direita estilo, gramática e substância

Guilherme Casarões

Cientista político e professor da FGV-Eaesp (Fundação Getulio Vargas – Escola de Administração de Empresas de São Paulo)

Folha de São Paulo, 26/10/2022

A poucos dias do segundo turno das eleições presidenciais o cenário está mais incerto e a disputa está mais virulenta do que em qualquer outro pleito de nossa história. Estivéssemos em tempos tranquilos, o foco da conversa das últimas semanas seria sobre propostas concretas para os persistentes problemas brasileiros.
Mas nada está normal. Em meio ao clima de medo e ódio, inflamado por mentiras e difamações, a política brasileira foi tragada para o campo da disputa identitária, da qual supostamente depende a sobrevivência individual e coletiva.

Estamos diante da americanização do debate público nacional.

O conceito pluralista de democracia, que orienta nossa Constituição, está sendo substituído por uma ideia de democracia antiliberal, em que só a maioria deve se beneficiar do governo e as minorias não podem participar da formulação de políticas públicas. A identidade sincrética e multirracial do país, sempre tratada como nossa maior contribuição civilizatória, dá lugar a um tipo de supremacismo cristão, que exclui todo e qualquer cidadão que porta valores distintos.

A política da conciliação e da tolerância, base do projeto da Nova República, vem sendo diariamente arrasada por uma dinâmica violenta, adversarial, em que o outro não merece ser ouvido ou respeitado.
Tirania da maioria, identidade supremacista e o tratamento do adversário como inimigo são traços da cultura política americana que remontam ao presidente Andrew Jackson (1829-1837).

Considerado o primeiro populista norte-americano, o general e ex-parlamentar governou o país confrontando as instituições, desobedecendo decisões da Suprema Corte de proteção a povos nativos e implementando um modelo de democracia majoritária e antielitista —para os homens brancos.

Jackson, claro, era produto de seu tempo. Mas a tradição jacksoniana vem sendo resgatada pelo Partido Republicano, de Ronald Reagan ao Tea Party, chegando à sua realização plena pelas mãos de Donald Trump.

Eleito em 2016, os trejeitos caudilhescos, preconceituosos e autoritários de Trump legaram-lhe a pecha de “o primeiro presidente latino-americano” dos Estados Unidos. Para além do estereótipo, o argumento está fundamentalmente equivocado: o populismo de Lázaro Cárdenas, Getúlio Vargas e Juan Perón era essencialmente inclusivo, em prol dos operários e do campesinato. O populismo norte-americano é excludente, sobretudo em termos raciais e culturais.

Jair Bolsonaro é o primeiro presidente jacksoniano do Brasil. O movimento que o sustenta importou da extrema direita norte-americana o estilo, a gramática e a substância que lhe dão unidade.

Da alt-right americana, a amálgama bolsonarista reproduziu a linguagem “troll”, o pendor por teorias conspiratórias e a disposição de travar a guerra político-cultural pela ameaça e desinformação. Da direita cristã, trouxe a pauta de valores, como aborto e “ideologia de gênero”, que até então pouco importava às lideranças evangélicas brasileiras.

Por fim, o bolsonarismo sequestrou o conceito de liberdade irrestrita da primeira e segunda emendas à Constituição dos Estados Unidos, que nada têm a ver com nosso ordenamento jurídico e nossa visão histórica de sociedade.

A adição da “liberdade” ao lema fascista “Deus, pátria e família” foi a fronteira final cruzada por Bolsonaro rumo à americanização da política brasileira. Em nome da liberdade, pode-se tudo.

No velho oeste tupiniquim, empresários assediam funcionários, pastores coagem fiéis, médicos combatem a ciência, maridos impõem suas vontades em casa e meios de imprensa sentem-se livres para mentir sem nenhum compromisso com a verdade —e com as consequências.

Muitos me perguntam o que será do Brasil se o bolsonarismo seguir vivo, dentro ou fora do Planalto. É difícil dizer, até porque o país tem uma trajetória de surpreendente resiliência. Mas, olhando para os EUA de hoje, onde cidadãos majoritariamente brancos saem às ruas armados até os dentes, defendendo uma suposta liberdade de oprimir e de dominar, eu sei exatamente o que não quero para o futuro.

Melhora econômica?

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O Brasil foi uma das economias que mais cresceram no século XX, crescimento este que alavancou a estrutura produtiva, incrementou a urbanização, fortaleceu as bases dos setores industriais, dinamizando os setores comerciais, impulsionando os setores agroexportadores, transformando as estruturas econômicas e aumentaram os estoques de riqueza na sociedade mas, infelizmente, contribuíram para aumentar a concentração da renda e aumentou a exclusão social, incrementando desequilíbrios que, mesmo no século XXI, ainda expõem feridas que limitam a democracia e aumentam os conflitos sociais, econômicos e políticos.

Em pleno século XXI convivemos com graves desequilíbrios sociais, desemprego elevado, subempregado em ascensão, degradação do trabalho, desesperança na sociedade, inflação elevada, aumento dos preços dos alimentos, redução dos investimentos produtivos, diminuição dos recursos em ciência e tecnologia, cortes sistemáticos nas universidades públicas, institutos federais e diminuição dos repasses na saúde pública… neste cenário preocupante, percebemos a ausência de grandes discussões nacionais, não estamos refletindo sobre o futuro da nação, não estamos refletindo sobre os grandes desafios e oportunidades da sociedade do conhecimento.

Alguns analistas acreditam que estamos vivendo um momento de recuperação econômica, enfatizam os sinais de movimentação econômica, buscam argumentos para justificar os suspiros econômicos e atuam como torcedores e esquecem-se de analisar as estruturas, os investimentos produtivos, a formação bruta de capital fixo, os repasses das políticas públicas, as taxas de câmbio, os recursos canalizados para ciência e tecnologia, as taxas estrondosas de juros que beneficiam a poucos em detrimento da grande maioria e, para piorar, esquecem-se que vivemos numa nação marcada por milhões de endividados, dados recentes divulgados pelo CNC (Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo), 78% das famílias brasileiras estão endividadas. Neste cenário assustador, como falar em recuperação econômica?

As expectativas do crescimento econômico brasileiro em 2022 ultrapassaram 2,7% ao ano, embora acreditemos que um país como o nosso, que precisa urgentemente acelerar o seu crescimento econômico, para reduzir os passivos sociais e os desequilíbrios econômicos, os dados de crescimento são positivos e devem ser comemorados, mas precisamos nos preocupar com a sustentação deste crescimento, será que esta recuperação econômica deve continuar no ano de 2023? Ou nosso crescimento econômico é mais um dos inúmeros voos de galinha que acompanha a economia nacional, sem estruturas, sem investimentos, sem planejamentos e sem projeto nacional?

O crescimento econômico é sempre imprescindível para qualquer sociedade, traz aumento das riquezas materiais, novas perspectivas de emprego, possiblidades de melhora da renda e dos salários, investimentos produtivos e novos modelos de negócios que impulsionam novos empreendimentos, gerando melhoras consideráveis para a população.
Neste momento, me preocupa os instrumentos utilizados para estimular o crescimento imediato, aumento dos recursos públicos com pouca transparência, consignados para grupos sociais mais vulneráveis com taxas de juros extorsivas que tendem a criar endividamentos no curto prazo, desequilíbrios fiscais contratados para o próximo ano, especialistas em orçamento público calculam mais de 100 bilhões de reais injetados na economia, criando uma verdadeira bomba fiscal para o próximo ano, que deve levar o governo aumentar as taxas de juros e ajustes fiscais rigorosos, reduzindo repasses públicos e aprofundando um ambiente de baixo crescimento econômico e a piora das condições sociais.

Depois de alguns meses de melhora econômica, o Banco Central nos trouxe indicadores preocupantes, o IBC-Br registrou queda de 1,13% em agosto, além do aumento dos preços dos combustíveis e resistência de queda dos preços dos alimentos. Neste momento, devemos nos perguntar: neste cenário estamos crescendo ou estamos nos aproximando de um outro voo de galinha?

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Brasileira Contemporânea, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 26/10/2022.

O Brasil profundo, por Rafael R. Ioris.

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Por Rafael R. Ioris. – A Terra é redonda – 24/10/2022

O conservadorismo autoritário sedimenta raízes no Brasil

Tendo sido a maior sociedade escravocrata da história, não surpreende que o Brasil continue sendo uma nação de cultura profundamente hierárquica e autoritária. Só pra lembrar, nos anos 1930s, foi exatamente lá onde existiu o maior de partido de orientação fascista fora da Europa. Da mesma forma, no auge da sua última ditadura militar, no início dos anos 1970, quando a tortura era política de Estado, a ARENA, o partido oficial de apoio ao regime, constava com amplo apoio popular e se gabava de ser o maior partido do hemisfério ocidental em números da filiados.

Não surpreende, portanto, que mesmo após o gradual, controlado e insuficiente processo de redemocratização que o país atravessou ao longo dos anos 1980, a narrativa mano dura, autoritária e salvacionista de políticos populistas de direita tenha sempre conseguido angariar apoio entre crescentes camadas sociais, especialmente em períodos de crise econômica e/ou aumento das taxas da criminalidade. Muitas vezes tal apelo se reduzia a políticos regionais de direita que tendia a assumir cargos nos legislativos estaduais. Mas sempre houve também alguns personagens que embora eleitos por grupos de interesse bem específicos, conseguiam exercer alguma influência no debate mais amplo, mesmo em escala nacional.

Um desses personagens foi o deputado Jair Bolsonaro, eleito pela primeira vez em 1991, com base principalmente nos votos de militares conservadores aposentados do estado do Rio de Janeiro. Após anos quando era visto como uma figura folclórica do Congresso Nacional que defendia de maneira repetitiva a defesa dos crimes da ditadura, uma série de acontecimentos trágicos para a própria consolidação do regime democrático fez com que a figura quixotesca de Bolsonaro conseguisse, contrariando a expectativas de quase todos, se alçar à posição de maior autoridade no país.

Em primeiro lugar, a crise econômica global do final da primeira década do século chegou tardiamente ao Brasil, no final de 2012, erodindo rapidamente aos ganhos importantes dos anos anteriores, especialmente junto a populações de baixa renda que, com a alta do custo de vida, especialmente nas grandes cidades, passam a demandas, em meados do ano seguinte, melhorias no provimento de serviços sociais. Grupos conservadores de classe média – que embora tenham também se beneficiado com a melhora econômica da primeira década, estavam cada vez mais descontentes com o avanço dos grupos populares em espaços sociais e culturais tradicionalmente restritos aos incluídos –, veem nos protestos de 2013 por mais e melhor inclusão uma excelente oportunidade para reorganizarem-se como bloco político.

O país chega em 2014 com uma crescente polarização ideológica, mas ainda dentro dos moldes democráticos da chamada Nova República. Isso mudaria rapidamente quando o partido derrotado da eleição do final do ano se recusa a aceitar os resultados e passa a mobilizar as forças de oposição ao governo petista de Dilma Rousseff para que com todos os meios consiga retirá-la do poder. O processo golpista se acelera com o agravamento da crise econômica ao longo de 2015, culminado no impeachment de Dilma Rousseff no ano seguinte. O governo Termidoriano de Michel Temer, vice-presidente de Dilma Rousseff assume a pauta conservadora em crescente popularidade entre os principais grupos econômicos, políticos, midiáticos e culturais do país e grandes reformar anti-populares são estabelecidas (reforma trabalhista e limite de gastos públicos).

Mas ainda que o establishment estivesse contente com os novos rumos da nação, a discrepância entre uma revivida agenda neoliberal no poder sem um claro mandato popular adquirido nas urnas gerava uma fragilidade ao novo bloco histórico. E quando da eleição de 2018 os partidos tradicionais por trás do golpe parlamentar de 2016, como PSDB e PMDB, são tragados por uma onda reacionária, de forte apelo popular com base na pauta dos costumes e da resolução autoritária dos crescentes problemas sofridos por amplas camadas sociais, em especial as mais desfavorecidas. Ao fim e ao cabo, a medíocre personagem de Jair Bolsonaro se torna o instrumento da condução de um processo turbulento que culmina na consolidação da agenda autoritária reacionária no poder da maior sociedade latino-americana.

No poder, Jair Bolsonaro não surpreendeu e seu desgoverno pode ser melhor representado na sua intencionalmente desastrosa gestão da crise da Covid-19 no Brasil, que causou a morte de quase 700 mil pessoas. Da mesma forma, sua conhecida postura misógina, homofóbica não é apaziguada por estar no poder, e sua promoção pela devastação ambiental se aprofunda como política de estado. Além disso, a falaciosa narrativa de uma maior eficiência dos quadros militares na administração pública leva à maior ocupação por parte de militares de funções civis desde a ditadura, e o perigoso discurso da necessidade do fechamento das instituições de representação política democrática, em especial o Supremo Tribunal Federal. ser normaliza no governo e entre seus apoiadores mais ferrenhos.

Diante de tudo isso, poder-se-ia dizer que o fato de que Jair Bolsonaro tenha ido tão bem na eleição de 2 de outubro passado, tendo conseguido 51 milhões de votos e impedido a eleição de Lula no primeiro turno – forçando assim o país a um segundo turno acirrado, potencialmente violento e perigoso –, seria talvez a expressão mais clara no enraizamento do conservadorismo autoritário em moldes neofascistas na sociedade brasileira. E se em 2018, em meio à maior crise partidária enfrentada pelo país possivelmente desde o final da década de 1970 – talvez mesmo de meados de 1960, quando da eliminação dos partidos pelo novo regime militar –, havia uma forte motivação para “votar em algo diferente”, hoje existe um claro histórico da performance de Jair Bolsonaro e seus asseclas no poder.

De fato, junto a eleição de seus mais próximos aliados, especial da pastora fundamentalista e ministra da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, ao Senado pelo Distrito Federal, e Eduardo Pazzuelo, general do exército, ex-ministro da Saúde durante o desastre da pandemia, como deputado federal pelo Rio de Janeiro, com uma votação enorme, parece claro que para grande parte da população é mais importante manter no poder fiéis escudeiros de uma agenda cultural reacionária, economicamente neoliberal e politicamente autoritária do que ter uma administração pública eficiente no sentido do provimento isonômico de serviços públicos de qualidade.

Poderíamos também dizer que para grande dos eleitores, temas centrais na plataforma de Lula, como proteção ambiental, inclusão de gênero e mesma a democracia não são vistos como tão importantes assim por quase metade da população do país. Em síntese, parece que se em 2018, a narrativa conservadora autoritária que Jair Bolsonaro encabeçava poderia ter tido apelo pelo seu teor de novidade, hoje seu apelo se capitaliza de maneira estrutural em amplas camadas sociais que embora geograficamente não majoritárias em todas as regiões, é sim, cada vez, representativa do que politicamente apoiam grande parte da população brasileira.

Interessantemente, embora não pareça ser tão chave quanto temas de viés mais socio-cultural, como família, patriotismo e religião, especialmente para camadas sociais mais humildes, especialmente nos centros urbanos do país, a agenda neoliberal também implementada por Bolsonaro atende aos anseios de influentes grupos sociais mais abonados, em especial ligados à expansão da matriz agro-exportada, assim como a ideólogos da privatização do estado na grande mídia. Por fim, nas classes médias, o apelo dos novos (e antigos) donos do poder, especialmente militares, se consolida também pela retórica falaciosa e chaunivista do acesso ilimitado às armas pelo homem supostamente provedor da defesa privada dos seus familiares.

O fato é que o Brasil profundo é, sim, ainda muito, talvez mesmo crescentemente, conservador, preconceituoso, organizado de uma maneira estruturalmente hierárquica onde líderes autoritários salvacionistas tendem a ser vistos como soluções fáceis para problemas diários difíceis. E embora Lula tenha boa chance de ganhar no segundo turno, o que significa de há grande mobilização para resistir o aprofundamento e consolidação no poder do neofascismo em curso, seu novo governo enfrenta uma país muito mais polarizado do que no início do século, e seus esforços no poder terão que se centra não em grandes inovações nas políticas sociais, como em 2003 a 2010, mas, sim, na reconstrução da própria democracia brasileira.

Por outro lado, se Jair Bolsonaro ganhar, teremos então a legitimação clara que o preocupante rumo que a sociedade brasileira tem seguido nos últimos é que a maioria dos seus membros aprova e quer dar sequência. Isso poderia mesmo a levar com que Bolsonaro, ao entender que tem poder para isso, poderia tentar destruir de vez a institucionalidade democrática no país, mantendo a aparência da democracia liberal, em um regime de fato autoritário – seu projeto desde sempre.

Por fim, mesmo no caso de derrota de Jair Bolsonaro, o fato é que o conservadorismo autoritário do bolsonarismo foi em grande parte aprovado nas urnas em 2 de outubro e vai continuar a influenciar os rumos do país por um bom tempo. Ou seja, Jair Bolsonaro pode até perder, mas o bolsonarismo veio para ficar.

*Rafael R. Ioris é professor do Departamento de História da Universidade de Denver (EUA).

‘Guerra santa’ no Brasil de santa não tem nada, é disputa de poder, diz promotora

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Para Livia Sant’Anna Vaz, pauta religiosa da eleição tem outros interesses; ela também defende restrição a discursos que minem o processo democrático

ANGELA PINHO – FOLHA DE SÃO PAULO – 23/10/2022

SÃO PAULO

Ponto central na disputa eleitoral de 2022, a religião não é só uma pauta de costumes no Brasil, afirma Lívia Sant’Anna Vaz, promotora de Justiça na Bahia e especialista em intolerância religiosa.

A atual “guerra santa”, que para ela “de santa não tem nada”, tem como pano de fundo interesses econômicos, avalia.
Em meio a notícias falsas sobre possível fechamento de templos, ela lembra que as crenças que são alvo de perseguição no Brasil não são as cristãs, mas as de matriz africana.

Sem citar nomes, no momento em que proliferam acusações de censura na campanha eleitoral, ela declara que quem menos tem liberdade de expressão no Brasil não é quem está no poder, mas os grupos marginalizados da sociedade.

Doutora em ciências político-jurídicas pela Universidade de Lisboa, ela defende ainda intolerância a discursos que busquem atacar a democracia por dentro. “A ditadura da liberdade de expressão nas mãos dos intolerantes vai minar o próprio processo democrático”, diz.

Qual é o panorama hoje da intolerância religiosa no Brasil? A intolerância religiosa é um guarda-chuva que pode ter como foco qualquer confissão, mas, no Brasil, há um fenômeno muito peculiar: o racismo religioso. Usamos essa expressão porque é um ódio que se volta especificamente contra religiões de matriz africana. As manifestações dele vão desde ofensas verbais até invasões de terrenos, em práticas cada vez mais corriqueiras no Brasil, principalmente no atual contexto político.

Na atual campanha eleitoral, há um setor com medo de fechamento de igrejas e de perseguição a fiéis das igrejas evangélicas. Isso já aconteceu em algum momento no Brasil? Não contra religiões cristãs. Mas, em relação às religiões de matriz africana, nós temos uma história de violências, desde a legislativa até a agressão, inclusive pelo próprio aparato estatal.

Vou dar alguns exemplos. No Brasil, quando ainda não tínhamos nem ordem jurídica própria, as ordenações filipinas previam no livro dos crimes o de feitiçaria, que poderia ser punido inclusive com pena de morte. Ora, quem eram as pessoas consideradas feiticeiras? Não preciso dizer que era contra pessoas negras. Posso dar exemplos mais recentes. Em 1966, uma lei na Paraíba obrigava os sacerdotes ou sacerdotisas de religiões de matriz africana a passarem por exame de sanidade mental para que pudessem praticar seus rituais religiosos, em um Estado que à essa época já era laico e já tinha garantia constitucional de liberdade de crença.

Em 1976, na Bahia, os terreiros tinham obrigatoriedade de ter um alvará de funcionamento expedido por delegacias de jogos e costumes. Fica muito evidente a criminalização de determinadas práticas e confissões religiosas por conta da origem negra. E não eram raras as operações policiais com interrupção de cultos religiosos de matriz africana.

As religiões de matriz africana são aquelas que até os dias de hoje, em alguns estados do Brasil, ainda possuem objetos sagrados apreendidos e expostos em museus do crime. No Rio de Janeiro, só em 2020 houve a transferência desses objetos sagrados do museu da Polícia Civil para o Museu da República.

Como vê a presença da religião na atual campanha eleitoral? Nós vivemos num Estado laico. A atuação do Estado não deve beneficiar nenhuma religião nem colocar obstáculos a nenhuma delas. Quando falamos em liberdade religiosa, precisamos qualificar esse direito. As religiões de matriz africana no Brasil nunca experimentaram liberdade religiosa. Infelizmente o que existe historicamente no Brasil é uma disputa supostamente religiosa. Uma guerra santa que de santa não tem nada, que, na verdade, é disputa de poder e de território. Esse projeto político de tomada de território já está em execução, com terreiros, comunidades quilombolas e comunidades indígenas invadidas.

Com a criminalização dos movimentos sociais ligados a essas raízes históricas de matriz afroindígena. Estamos vivendo num contexto de disputa que não se resume à questão religiosa. A religião tem sido um pano de fundo para esse debate e, infelizmente, tem provocado o cerceamento de direitos fundamentais de grupos religiosos, sociais e raciais vulnerabilizados.

E o conteúdo do debate sobre religião na campanha, como avalia? Ele tem pautado diversas discussões sobre direitos fundamentais. Isso é muito grave. Vivemos num Estado laico e num Estado democrático de Direito, então um discurso que atenda a determinados interesses de grupos religiosos específicos hegemônicos não pode pautar o acesso das pessoas a direitos. É preciso haver espaço para a representação de todos os grupos, especialmente os vulnerabilizados, nos espaços de poder e decisão, em que vemos sempre os mesmos grupos historicamente privilegiados no Brasil, os privilégios da branquitude em especial.

O Estado é laico, mas as pessoas também têm direito a pleitear políticas públicas alinhadas aos seus valores. Como equilibrar esses dois aspectos? Quando falamos em laicidade do Estado, isso não quer dizer que as pessoas, inclusive os servidores públicos, não possam professar as suas religiões. Isso quer dizer que eles não devem confundir o exercício de suas funções públicas com a sua religiosidade, privilegiando determinadas religiões e causando violência e discurso de ódio em detrimento de direitos para outras religiões. É óbvio que as pessoas têm opiniões, valores e crenças, mas temos uma Constituição que também faz escolhas. Então não são os interesses ou opiniões do grupo A, B ou C que devem prevalecer, mas os valores que estão consagrados no nosso Estado democrático de Direito.

Hoje em dia, são principalmente os bolsonaristas que se dizem tolhidos em sua liberdade de expressão. Na sua visão, quem no Brasil tem menos liberdade de expressão hoje em dia? Quem menos tem liberdade de expressão no Brasil são os grupos que nunca tiveram acesso aos meios para se expressar, os grupos historicamente vulnerabilizados. Nós sabemos muito bem no Brasil quais são os grupos que dominam os meios de comunicação de massa e não são pessoas negras, não são mulheres, não são pessoas indígenas.

Um conceito que você cita é o do “efeito silenciador” de determinados discursos. De que forma a desinformação tolhe a liberdade de expressão das pessoas? A desinformação limita a liberdade de expressão das pessoas a partir do momento em que elas não conseguem acessar elementos necessários para uma manifestação consciente do seu pensamento.

As pessoas acabam repetindo pensamentos, supostamente exercendo uma liberdade de expressão, mas é uma liberdade de expressão manipulada.

É preciso que nós pensemos em ampliar a liberdade de expressão de todas as pessoas. E o que acontece no Brasil hoje é que é uma quase absolutização da liberdade de expressão de grupos hegemônicos.

É fundamental que a gente consiga observar que os inimigos da democracia podem estar na própria democracia. Se você absolutiza a liberdade de expressão, você sobreleva a liberdade de expressão de determinados grupos e causa um efeito silenciador de outros grupos que não possuem o mesmo acesso aos mecanismos para exercer plenamente a sua liberdade de expressão.

Havia uma crença de que, com a internet, iria se democratizar a possibilidade de fala. Hoje isso mudou. Como avalia? A internet pode ser um meio importante para veicular e ampliar a fala, mas ela é uma reprodução da sociedade. Então, se nós temos uma sociedade misógina, racista e LGBTfóbica, isso vai se reproduzir nas redes sociais também. E há várias camadas nessa discussão. Entre elas, o próprio acesso à internet, que não é igualitário. Isso também tolhe a possibilidade de determinados grupos de participar com a igualdade do debate público e da produção de políticas públicas.

Na atual campanha, a Justiça Eleitoral tem decidido pela remoção de conteúdos que considera inverídicos. Como avalia? É uma questão complexa. O que se estabelece em termos constitucionais e de direitos não é a censura prévia, mas a responsabilização pelo conteúdo, incluindo discursos de ódio e informações inverídicas que podem minar o processo democrático. Sem imputar responsabilidades, é muito difícil que a gente consiga um processo democrático que realmente garanta a pluralidade de vozes. Então a gente acaba tendo uma ditadura da liberdade de expressão a favor de determinados grupos.

Como assim? Nenhum direito é absoluto. A liberdade de expressão é um valor muito consagrado nas democracias. O que acontece é que, se a própria liberdade acaba sendo usada como veículo para minar o processo democrático, então acaba sendo uma ditadura da liberdade de expressão, porque ela vai justamente beneficiar quem já está no poder e vai tolher a liberdade de expressão de outras pessoas. A ditadura da liberdade de expressão permite que as pessoas que acessam de maneira privilegiada esse direito dominem o cenário político e as políticas públicas. A ditadura da liberdade de expressão nas mãos dos intolerantes vai minar o próprio processo democrático.

Lívia Sant’Anna Vaz, 42
Promotora de Justiça no Ministério Público da Bahia, na área de combate ao racismo e à intolerância religiosa. Mestre em direito pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e doutora pela Universidade de Lisboa. Autora de “A Justiça É uma Mulher Negra” (ed. Letramento) e “Cotas Raciais” (ed. Jandaíra)

Democratas contra a democracia? por Oscar Vilhena Vieira

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Nem todas as pessoas entendem a democracia de uma mesma forma

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Folha de São Paulo, 22/10/2022

O que leva uma parcela de eleitores que se manifestam favoráveis à democracia a escolherem governantes autoritários, que desprezam valores democráticos e atacam sistematicamente as suas instituições, como vem ocorrendo em países tão distintos como Estados Unidos, Hungria ou Brasil?

Nada menos que 79% dos brasileiros, conforme o último levantamento realizado pelo Datafolha, apontam a democracia como a melhor forma de governo. Para apenas 5%, a ditadura é melhor regime. Como explicar, então, um apoio significativo a um candidato abertamente autoritário como Bolsonaro?

Duas hipóteses podem ajudar a compreender esse aparente paradoxo. A primeira é de natureza conceitual. Nem todas as pessoas entendem a democracia de uma mesma forma. Para a tradição liberal e também social-democrata, embora as eleições sejam o elemento central do regime democrático, o exercício do poder político deve estar submetido a um sistema de freios e contrapesos, para que não se torne arbitrário, devendo ainda ser exercido em conformidade com os direitos fundamentais, para que todos sejam tratados com igual respeito e consideração.

Para os populistas, no entanto, a democracia se resumiria à escolha de um líder que se identifique com os sentimentos da maioria. Mais do que isso, o sistema de freios e contrapesos e mesmo os direitos fundamentais devem e podem ser removidos ou subjugados, quando constituírem obstáculos à realização da vontade da maioria.
Creio que uma fração significativa dos eleitores brasileiros, que antes não se importavam muito com o regime político ou que se frustraram com o modelo de democracia adotado em 1988, se deixaram seduzir por uma concepção insustentável de democracia populista. Por essa razão, esses eleitores não veem nenhuma contradição em se declararem democratas e ao mesmo tempo apoiarem um candidato que despreza os valores democráticos e detona suas instituições.

Mas essa hipótese sozinha não explica por que parcela significativa dos eleitores, que além de democratas também se veem como pessoas de bem, aceitam votar em alguém destituído das virtudes mais básicas a um governante em um regime democrático, como a demonstração de empatia pelo sofrimento alheio; alguém que pratica o desrespeito às leis como método de governo; assim como alguém que despreza e discrimina a maioria da população, composta por pobres, mulheres e negros.

Creio que a rompante polarização, que substitui a razão e o diálogo pela crença cega e o conflito, pode ajudar a explicar a segunda parte desse paradoxo. Não se trata de uma polarização meramente política ou ideológica. Mas sim de uma polarização visceral e assimétrica, forjada no contexto de grupos de identidade eletiva, que mobilizam o medo e a hostilidade em relação àqueles que não pertencem ou discordam das visões do grupo.

Nesse tipo de polarização, alavancada pelo líder populista, a afiliação ao grupo passa a ser determinante das escolhas individuais, mesmo em assuntos que transcendem os interesses do grupo, subvertendo o senso comum, que nos ajuda a separar o certo do errado, o decente do indecente, a verdade da mentira.

Que a responsabilidade e o bom senso de uma maioria plural, que abraça uma concepção mais liberal e generosa de democracia, prevaleça nas urnas no próximo dia 30.

Crise com queda de Liz Truss lembra que brexit custa caro e isola Reino Unido

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Partido Conservador governa com arrogância travestida de autoconfiança

Carolina Pavese, Doutora em relações internacionais pela London School of Economics e professora da ESPM
Folha de São Paulo – 22/10/2022

A renúncia de Liz Truss, nesta quinta (20), foi recebida com um misto de consternação e resiliência pelos britânicos —afinal, já era em certa medida esperada. Os últimos quatro primeiros-ministros abandonaram o navio em naufrágio. Além de pertencerem ao Partido Conservador, todos também ficaram marcados pela incapacidade de redefinir a identidade do Reino Unido nas relações internacionais pós-Brexit.

Ignorando um contexto em que já não há espaço para grandes impérios, os conservadores instauraram o caos. Após anos de governo dos trabalhistas, o partido se consolidou majoritário nas eleições de 2010, com David Cameron como primeiro-ministro. Cinco anos depois, ele recorreu a discursos nacionalistas e eurocéticos para agradar a certos eleitores, comprometendo-se a convocar um referendo se ficasse no poder. Vitorioso, cumpriu a promessa.
Em junho de 2016, 54% dos eleitores optaram por deixar a União Européia. A campanha vitoriosa foi marcada por narrativas sensacionalistas, disseminação de fake news e discursos xenófobos, revivendo com saudosismo a ideia de um império. Cameron, que ironicamente havia defendido a permanência no bloco, renunciou quando percebeu o problema que criara.

Desde então, foram três novos líderes conservadores (Theresa May, Boris Johnson e Liz Truss), todos reafirmando o discurso de que uma grande potência como o Reino Unido anda melhor sozinha. É justamente essa arrogância, travestida de autoconfiança, o ponto franco da política externa britânica; o erro de análise permeia toda a história das interações entre o país e a União Europeia.

Em discurso histórico na Universidade de Zurique, em setembro de 1946, Winston Churchill argumentou em favor da criação de “uma espécie de Estados Unidos da Europa”, com a participação da França e da Alemanha, mas sem a adesão do Reino Unido. Em 1951, o Tratado de Paris criou o embrião do processo de integração, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, ampliado para mais dois grupos em 1957.

Na década de 1960, os britânicos pleitearam a adesão à então Comunidade Europeia. Charles de Gaulle, presidente da França na época, opôs-se, argumentado que o Reino Unido seria um “cavalo de Troia” —a história mostrou que não estava errado. Finalmente aceitos no bloco em 1973, os britânicos não pareciam convencidos da ideia, e em 1975 realizaram um primeiro referendo sobre a permanência; 67% da população optou por ficar.

Ao longo das quatro décadas que se seguiram, a participação na UE foi marcada por tentativas de frear certas agendas e buscar uma participação seletiva na medida do possível para “preservar sua soberania”. Foi concedido, por exemplo, o direito de o Reino Unido não aderir a um acordo de 1993 e preservar sua moeda. Por outro lado, houve inegável reforço de uma interdependência comercial e econômica e ganhos mútuos em projeção política.

Em 2015, ano anterior ao referendo do brexit, 44% das exportações e 53% das importações de bens e serviços britânicas tinham o bloco europeu como mercado. Mais de 3 milhões de empregos estavam ligados às exportações para a UE, também o maior investidor direto do mercado financeiro britânico (48% dos investimentos em 2014).

A saída do bloco levou à revogação de acesso ao livre mercado. Estudo do think tank europeu Instituto de Pesquisa Econômica e Social estimou que o valor das exportações de Londres para Bruxelas está 16% abaixo do que num cenário sem o brexit, enquanto importações caíram 20%. O resultado na economia é claro.
Continuar ignorando a importância do mercado europeu é insistir no erro. A solução passa exatamente em priorizar o comércio com a UE e se empenhar em derrubar as barreiras impostas pelo brexit. Há, ainda, a necessidade de definir as relações bilaterais com Bruxelas, ancoradas em um acordo temporário e com muitos pontos de tensão, como a questão com a Irlanda do Norte.

A perda de mercado se estende aos mais de 41 acordos comerciais que o bloco possui com cerca de 70 países. Depois do brexit, o Reino Unido se empenhou em estabelecer os próprios acordos preferenciais —hoje são 33, muitos com vigência temporária e poucos com a abrangência dos europeus.

A menor atratividade tem reverberado na dificuldade de celebrar pactos com parceiros estratégicos, como os EUA.

Fica claro que não é possível retornar ao passado glorioso sem abraçar a globalização e enfrentar as contradições do capitalismo. Não há espaço para protecionismo nem nacionalismo, sobretudo em uma economia tão inserida no mercado global e altamente dependente de mão de obra estrangeira.

O que preocupa é que os conservadores continuam inclinados inclinados a reforçar esse discurso populista.

É importante ressaltar que o Reino Unido tem posição de destaque em processos globais de tomada de decisão, como membro de G7, G20, FMI, Banco Mundial, Otan e Conselho de Segurança da ONU. Permanece sendo, apesar da crise, uma das maiores economias do mundo. Assim, é protagonista.

A questão é que agora age sozinho —o que não seria ruim em outro contexto. Diante da crise econômica e da instabilidade política, vê sua reputação comprometida. Na ausência de perspectivas de reverter esse panorama, crescem os custos do brexit.

Ao subjugar a importância da cooperação com a Europa continental, o Reino Unido perde oportunidades de ampliar seu protagonismo nas relações internacionais. Torna-se mais forte a percepção do erro cometido. Era melhor estar mal acompanhado do que só.

Mundo em transe

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É comum discutirmos neste espaço as crescentes instabilidades e incertezas da economia global, os ciclos econômicos se repetem constantemente, gerando momentos de crescimento e quedas abruptas, que geram preocupações, medos e desequilíbrios para toda a comunidade internacional. Neste momento, percebemos que a sociedade mundial passa por grandes transformações, modelos dominantes e consolidados durante décadas estão sendo superados por novos modelos de negócios, gerando poucos empregos, grandes incertezas, medos e preocupações que repercutem sobre as relações sociais, aumentando os conflitos nas estruturas produtivas, desagregações familiares, crescimento da depressão, ansiedades e novos desequilíbrios sociais, psicológicos e emocionais.

A integração econômica ganhou relevância na economia internacional desde os anos 1980, aumentando a competição entre os agentes econômicos, incrementando a concorrência entre empresas, governos e indivíduos, impulsionando a produtividade dos setores produtivos, aumentando a complexidade tecnológica, barateando produtos, mercadorias e serviços. Neste movimento, percebemos uma busca crescente por novos espaços de produção em escala global, os grandes conglomerados passaram a buscar países com mão-de-obra abundante e salários reduzidos, com isso, os países ocidentais perderam empresas e as nações asiáticas ganharam novos investimentos, novos espaços de acumulação, fortalecendo os oligopólios e consolidando um novo modelo produtivo global.

Neste momento surgem as cadeias de produção global, onde as nações orientais ganham espaços na lógica produtiva e os grandes conglomerados econômicos e financeiros passam a pressionar as nações em desenvolvimento, exigindo a adoção de medidas liberalizantes, redução do protecionismo, aumentando a concorrência, gerando a desnacionalização dos setores produtivos, reduzindo benefícios sociais, degradando o trabalho e aumentando os ganhos dos setores financeiros, que ganham lucros crescentes com taxas de juros elevadas em detrimento da fragilidade do poder de compra da população, aumentando a desigualdade e a degradação das condições sociais, um fenômeno desta envergadura se espalhou para a comunidade internacional.

A pandemia aumentou os desequilíbrios econômicos, matando milhões de indivíduos em escala internacional, degradando as cadeias produtivas, impactando sobre a oferta de produtos, elevando os custos produtivos e trouxeram de volta o fantasma da economia mundial, levando os bancos centrais a adotarem choques de juros que aumentam os custos do capital, elevando o endividamento, degradando a renda das famílias, reduzindo as vendas e criando ambientes de fragilidades econômicas.

Dentro deste cenário de incertezas e instabilidades crescentes, o conflito militar entre Ucrânia e Rússia traz de volta um outro fantasma na sociedade internacional, o medo de um conflito nuclear, cujas consequências são impensáveis. A entrada da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) no conflito, além dos países europeus e asiáticos, como a China e a Índia, podem levar a sociedade internacional a uma terceira guerra mundial, com dimensões inimagináveis, impensáveis e destrutivas.

Além dos desequilíbrios globais destacamos a fragilização da democracia, levando governos das mais variadas matizes ideológicas a adotarem políticas autoritárias, fragilizando a democracia, criminalizando a política, reprimindo as minorias, aparelhando o judiciário, degradando as instituições de Estado e garantindo ganhos substanciais para setores específicos da comunidade, estimulando o cassino financeiro, culminando num processo de desindustrialização e aumentando a dependência da estrutura econômica internacional.

Neste ambiente de incertezas e instabilidades, marcados por momentos de medos e ameaças de desastres nucleares, precisamos reconstruir os instrumentos para superarmos este momento de desequilíbrios globais. A coesão política interna é fundamental, lideranças conscientes com forte capacidade de aglutinação dos agentes sociais, além da visão estratégica e o planejamento para construirmos um verdadeiro projeto nacional, sem isso, continuaremos fomentando discussões desnecessárias, discursos de ódio e ressentimento, difundindo inverdades e caminhando diretamente para o caos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 19/10/2022.