O paradoxo da educação, por Rodrigo Zeidan.

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Na China, ser professor dá privilégios; no Brasil, ninguém briga por um sistema educacional melhor

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 15/10/2022

“Professor?”, perguntou o policial quando viu o cartão da universidade depois de ter me parado por estar andando de bicicleta na calçada, algo passível de multa. “Sim”, respondi no meu chinês macarrônico. “Humm…Por favor, não faça mais isso, mas pode ir embora”. Na China, ser professor dá privilégios, pois nenhuma outra profissão é tão respeitada; afinal, é uma honra seguir a carreira de Confúcio.

O respeito se traduz em desenvolvimento econômico. Não é à toa que Coreia do Sul, Japão e China, todos países mais pobres que o Brasil na década de 1950, hoje são mais ricos, seguros e desenvolvidos. Os sistemas educacionais desses países são muito melhores que a média mundial, professores são relativamente bem remunerados, e as famílias se dedicam fervorosamente para garantir que seus filhos entrem nas melhores escolas.

No Brasil, vivemos um paradoxo. No país onde estudar dá mais dinheiro, nenhuma camada da sociedade briga por um sistema educacional de primeiro mundo. E sim, no Brasil, o retorno da educação é altíssimo, resultado de décadas de estrangulamento do acesso ao sistema.

A renda de um brasileiro que termina o ensino médio é 148% (ou seja, 48% maior) que a média daqueles que não o completam. Pior, esse percentual para quem se forma no ensino superior chega a 394%. Para efeito de comparação, na Europa, esses percentuais são de 126% e 192%, respectivamente. Mesmo no México, educação não paga tanto. Lá, terminar o ensino médio resulta, em média, em 133% da renda de quem não termina e, para quem completa a universidade, os valores chegam a 217%. No relatório da OCDE sobre o sistema educacional dos principais países do mundo, em nenhum dos outros 36 países estudados há tal expectativa de ganho.

É comum reclamarmos do sistema educacional brasileiro. Falta tudo: de respeito aos profissionais até estrutura básica para o ensino; e isso mesmo quando os políticos não roubam a merenda. Mas nossos problemas começam em casa.

Valorizamos pouco a educação, seja nas camadas mais ricas ou mais pobres. Na verdade, uma família pobre não valorizar o ensino é racional, embora não a melhor escolha: como investimentos em educação demoram décadas para gerar retorno, a pressão do dia a dia é uma barreira para que os mais pobres se concentrem nos estudos.

O mesmo não pode ser dito das famílias mais ricas. Para muitas, educação em si não tem valor e só importa o diploma. Instrumentalmente, a razão é clara: a histórica dificuldade de acesso aumenta o ganho relativo dos poucos que conseguem se formar. No Brasil, também temos uma situação sui generis: faculdades que querem vender diplomas, alunos que querem comprá-los, e professores que se esforçam para atrapalhar a negociação. No Brasil, também é ilegal a venda de diplomas; à vista. Já a prazo?

Nesse dia dos professores, precisamos nos perguntar: qual dos dois candidatos pode nos tirar desse péssimo equilíbrio, no qual as condições dos professores são ruins e as famílias não valorizam o ensino? Sistemas educacionais não mudam da noite pro dia, mas a resposta é clara. Entre um governo que tentou expandir sobremaneira o sistema, mesmo com várias medidas que desperdiçaram recursos, e outro que considera professores doutrinadores e cujo MEC está sendo desmontado, a resposta é clara: Lula, por mais que tenha defeitos, levou a sério a educação brasileira. E sem educação, não teremos futuro.

Como as democracias morrem, por Levitsky e Ziblatt.

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LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
Clayton Mendonça Cunha Filho*

Lançado em 2018 nos Estados Unidos e traduzido para o português, no Brasil, ainda no mesmo ano, pela editora Zahar, o livro Como as democracias morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, é certamente um caso de best-seller imediato. Embora bastante recente, o livro já recebeu mais de cem citações da sua versão brasileira e quase oitocentas da sua versão original e segue suscitando debates e recebendo elogios ao redor do mundo, impulsionado por um Zeitgeist mundial em que a democracia enfrenta visíveis processos de erosão e ruptura.

O livro busca mostrar como a democracia pode e é frequentemente subvertida por dentro, pelas mãos de líderes e atores de tendência autoritária que, navegando através de suas mesmas instituições e poderes, terminam por transformá-la em um regime distinto e autocrático, sem necessariamente precisar utilizar das forças armadas ou de um golpe de Estado clássico. Segundo os autores, a morte da democracia atualmente viria principalmente através de medidas anunciadas com nobres intenções, tais como combate à corrupção ou segurança nacional, e coberta de vernizes democráticos, frequentemente avalizadas por instituições como parlamentos ou cortes de justiça.

A subversão democrática na maioria das vezes se daria através de medidas graduais e se iniciaria, na verdade, já através de medidas simbólicas e discursos polarizadores que buscam construir a ideia de ilegitimidade dos opositores. E prossegue através da captura ou neutralização de instituições de controle, tais como Procuradorias, Cortes de Justiça ou Tribunais de Contas, removendo seus membros mais independentes e/ou preenchendo-as com lealistas fanáticos, tanto para diminuir os riscos e limitações que tais instituições representariam aos objetivos do autocrata, quanto pelo potencial que representam na coerção dos adversários, que passam a enfrentar um campo de atuação cada vez mais desnivelado. E, apesar de as tendências autoritárias de líderes autocráticos serem frequentemente reconhecíveis e por vezes mesmo explicitamente anunciadas, desde muito antes de suas chegadas ao poder, tais líderes acabam sendo “normalizados” por parte de elites políticas que neles enxergam a possibilidade de se livrar de adversários incômodos. Minimizando os riscos ao próprio regime democrático, aproveitam-se de maneira interessada dos abusos contra seus adversários e terminam na maioria das vezes engolidos pelo avançar do processo.

O livro consta de nove capítulos e uma introdução bem encadeados entre si, nos quais os autores alternam entre a apresentação de suas teses ilustradas com casos ao redor do mundo, em distintos tempos, e capítulos onde as aplicam a episódios da história estadunidense. Assim é que, após resumir as teses do livro na Introdução, Levitsky e Ziblatt descrevem no Capítulo 1 os processos de chegada ao poder de outsiders autoritários em alianças com atores da elite política que pensavam instrumentalizá-los e se veem por eles engolidos. Já no Capítulo 2, focam em episódios semelhantes da história política dos EUA em que, no entanto, tais outsiders se viram barrados antes da presidência pelo papel de guardiões democráticos que atribuem aos partidos políticos e suas elites; e, no Capítulo 3, prosseguem com a análise das mudanças introduzidas no sistema de primárias dos partidos do país e que as teriam tornado potencialmente mais porosas à passagem de líderes dessa natureza, sendo Trump uma espécie de culminação do processo.

Nos Capítulos 4 e 5, por sua vez, retornam às ideias mais gerais acerca da morte democrática, descrevendo em detalhes, no quarto capítulo, os processos internos de tomada gradual de poder pelos autocratas eleitos através da cooptação das instituições de controle e da perseguição e afastamento dos principais adversários; e, no quinto, desenvolvem sua tese principal. Para os autores, além de boas constituições e instituições eficientes, a democracia para funcionar necessitaria do que eles chamam de regras não escritas que a protejam. Uma cultura política de tolerância mútua entre os adversários e o que eles chamam de reserva institucional (forbearance), ou seja, o “ato de evitar ações que, embora respeitem a letra da lei, violam claramente o seu espírito” (p. 107) constituiriam as grades de proteção necessárias à sobrevivência da democracia. Sua ausência implica polarizações excessivas, transformando adversários em inimigos essenciais e a competição democrática em um confronto sem meios-termos possíveis em que predominaria o oposto da reserva, chamada por eles de jogo duro constitucional (constitutional hardball), cujo resultado último não pode ser outro que a aniquilação da própria democracia.

Nos três capítulos seguintes, Levitsky e Ziblatt voltam novamente suas atenções ao caso estadunidense, descrevendo no Capítulo 6 as origens e o desenvolvimento das grades de proteção nos EUA, bem como momentos em que as mesmas foram ameaçadas ou mesmo ruíram, como durante a Guerra Civil, e seu processo de reconstrução após o fim da ocupação dos estados derrotados do Sul e que teriam então resistido firmemente pelo menos até os anos 1980. Os autores, no entanto, admitem, ao fim do capítulo, que devem “concluir com uma advertência perturbadora. As normas que sustentam nosso sistema político repousavam, num grau considerável, em exclusão racial. A estabilidade do período entre o final da Reconstrução e os anos 1980 estava enraizada num pecado original: o Compromisso de 1877 e suas consequências, que permitiram a desdemocratização do Sul e a consolidação das leis de Jim Crow. A exclusão racial contribuiu diretamente para a civilidade e a cooperação partidárias que passaram a caracterizar a política norte-americana no século XX” (p. 140). Após as políticas de inclusão dos anos 1960 que desmantelaram a segregação racial sulista, o país teria finalmente se democratizado plenamente, mas a polarização política e as ameaças às grades de proteção voltaram a crescer cada vez mais. No Capítulo 7, então, passam a descrever com exemplos concretos o abandono cada vez maior das regras não escritas sobretudo por parte do Partido Republicano, que passa a se enraizar cada vez mais nos conservadores estados do Sul, incrementando significativamente a polarização. Anteriormente, a heterogeneidade constitutiva dos partidos políticos estadunidenses, com democratas conservadores no Sul racista, mas progressistas no Norte liberal, e republicanos conservadores no Norte, mas progressistas no Sul, conferia certo equilíbrio e proteção ao sistema, segundo sua interpretação. Por fim, no Capítulo 8, os autores se concentram em descrever as sucessivas violações de Donald Trump às grades de proteção do país e as possíveis consequências nefastas que daí adviriam para o futuro democrático estadunidense.
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evitsky e Ziblatt concluem o livro no Capítulo 9, “Salvando a Democracia”, o qual iniciam admitindo mais uma vez que a excepcionalidade democrática dos EUA estivera ancorada na exclusão racial e que as tentativas de superá-la no século XX teriam trazido de volta a polarização e os ataques às grades de proteção que estariam ameaçando a democracia no país atualmente. Tentando, talvez, passar um tom algo mais otimista, voltam-se em seguida a listar alguns países ao redor do mundo em que a democracia estaria sendo aumentada ou pelo menos ainda plenamente preservada, e que seriam, segundo eles, ainda a “vasta maioria”, embora a lista apresentada pareça duvidosa ao incluir o Brasil entre os países em que a democracia ainda “permanece intacta” (p. 195). Mesmo que o livro tenha sido publicado em 2018 e, portanto, os autores não tenham podido considerar os efeitos trazidos pela presidência do claramente autocrático (pelos critérios do livro) Jair Bolsonaro, é imperdoável para pesquisadores do quilate dos dois autores considerar que o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, o qual se utilizou eminentemente das táticas de jogo duro constitucional por eles apontada no Capítulo 5, não tenha sequer arranhado nossa democracia.

Levitsky e Ziblatt, então, passam a conjecturar três possíveis cenários para os EUA pós-Trump: um cenário otimista e considerado improvável, em que os esforços autoritários do presidente são plenamente derrotados e restaura-se a democracia com todas as suas grades de proteção e respeito às regras não escritas; um outro cenário pessimista, considerado por eles como possível, mas ainda não tão provável em que Trump triunfa plenamente e mata de vez o que resta de democracia no país; e uma terceira possibilidade, que consideram a mais provável no futuro imediato, em que a democracia dos EUA passa a viver sem as regras de contenção e com efeitos perigosos e imprevisíveis no longo prazo. Os autores terminam o capítulo e o livro tentando apontar caminhos para a restauração democrática e insistem na reconstrução da tolerância mútua e na reserva institucional como parte fundamental dos mesmos, apresentando como casos de sucesso a reconstrução da direita alemã no pós-Guerra e a ampla coalizão chilena da Concertação que teria permitido o regresso do país à democracia após a ditadura pinochetista.

Como visto, embora traga de fato exemplos concretos de atores e processos que minaram a democracia por dentro em várias épocas e lugares distintos – da Alemanha nazista ao Peru de Fujimori, passando pela Venezuela chavista, as Filipinas de Marcos, e a contemporânea Hungria de Orbán, entre alguns outros casos – e tenha um título “genérico” sobre a morte democrática, levando a crer tratar-se de uma obra de foco teórico geral, o livro é, na verdade, fundamentalmente uma análise do caso estadunidense sob a presidência de Donald Trump (2017-). Embora isso possa vir a frustrar em alguma medida alguns leitores que eventualmente cheguem ao livro buscando uma abordagem mais “universal”, não constitui exatamente um problema na medida em que um foco mais restrito, de fato, frequentemente permite uma análise mais aprofundada de qualquer fenômeno concreto. Além disso, se é correta a tese dos autores de que a democracia estadunidense se encontra atualmente em perigo devido a processos iniciados nas últimas décadas e exacerbados pela presidência Trump, tampouco se trataria de qualquer caso, visto que os EUA representam para muitos, com ou sem razão e dentro ou fora dos próprios EUA, uma representação simbólica da própria ideia de democracia e exercem influência desproporcional ao redor do mundo.

O problema é que os autores parecem não levar às últimas conclusões o alcance do argumento desenvolvido e uma análise aprofundada do mesmo pareceria indicar um veredicto ainda mais pessimista acerca da preservação da democracia no atual contexto mundial do que eles parecem considerar. Se toda a grande pax democrática estadunidense esteve baseada, como eles mesmos admitem, na exclusão racial e as grandes rupturas dessa estabilidade vieram da adoção de políticas de inclusão, não seria um grande wishful thinking a proposta de preservação democrática por meio de amplas coalizões interpartidárias em que os atores voluntariamente freiam suas iniciativas para não derrotar completamente a oposição? O livro é repleto de metáforas esportivas, o que certamente facilita sua leitura pelo público leigo e isso é extremamente positivo, mas será mesmo possível salvar a democracia apenas pela adesão voluntária dos vencedores à reserva institucional como numa partida de basquete de rua, como sugerem Levitsky e Ziblatt?

Extrapolando os achados dos autores para outros países, recorde-se que quando do início da redemocratização da América Latina, nos anos 1980, as perspectivas de sua consolidação aos olhos da Ciência Política eram invariavelmente pessimistas devido a sua extrema desigualdade socioeconômica. Quando a persistência democrática nos anos 1990-2000 colocou em questão tal diagnóstico pessimista, autores como Kurt Weyland (2004) consideraram que a ampla adesão ao neoliberalismo na região havia contribuído para essa estabilidade por retirar da agenda política questões redistributivas que historicamente tinham melindrado as elites da região e ensejado rupturas democráticas, embora reconhecendo que isso, ao mesmo tempo, diminuíra a qualidade de nossas democracias. As décadas seguintes do novo milênio trouxeram a vários países da região questionamentos a essa hegemonia neoliberal, com experimentos redistributivos e intervencionistas em geral bastante moderados, mas que, mesmo assim, propiciaram o retorno da polarização, e mesmo golpes de Estado manu militari, como na Venezuela (2002) e Honduras (2009), ou interdições parlamentares, como no Paraguai (2012) e Brasil (2016). Seria então realmente possível imaginar a preservação democrática apenas pela autorrestrição dos atores políticos em contextos em que há realmente grandes questões em jogo, em que, se talvez não sejam plenamente de soma zero, é preciso que alguém perca algo para que outros grupos possam superar sua situação de exclusão?

Voltando ao caso dos EUA, nas últimas páginas do livro, os autores analisam – e rejeitam – sugestões de superação da polarização política no país por meio do abandono, pelo Partido Democrata, dos interesses de minorias e das políticas de identidade em geral em prol de “recapturar a assim chamada classe trabalhadora branca” (p. 213), propondo em vez disso a adoção de políticas sociais universalistas de combate às desigualdades estruturais do país para fortalecer a democracia e gerar bases para coalizões interpartidárias que restaurassem as grades de proteção.

Mas o quão factível seria realmente a proposta se ele dependesse, para sua execução, da anuência do mesmo Partido Republicano cada vez mais sólido na defesa de interesses econômicos das megaelites econômicas? De fato, infelizmente, a proposta acaba soando mais como utopia do que como concretude, sobretudo se lida à luz de relatos como os de Wolfgang Streeck (2018) sobre o abandono progressivo pelo Grande Capital dos compromissos democráticos que sustentaram a Era de Ouro do Estado do Bem-Estar na Europa e que tanto contribuíram aos desgastes e desencantos cidadãos para com a democracia, a partir de meados dos anos 1980.

Em suma, o livro de Levitsky e Ziblatt oferece uma narrativa sucinta e em linguagem acessível acerca dos processos contemporâneos de erosão democrática e constitui-se em leitura importante, no momento, tanto para pesquisadores do tema quanto para o público em geral. Contudo as soluções sugeridas parecem fundamentadas muito mais em um normativismo voluntarista do que na análise plena dos desdobramentos das teorias e fatos relatados ao longo do livro. É um bom ponto de partida para a discussão de como as democracias morrem, mas, longe da palavra final, sobretudo se de salvá-las se trata.

REFERÊNCIAS
STREECK, W. Tempo Comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo: Boitempo, 2018.
WEYLAND, K. Neoliberalism and Democracy in Latin America: a mixed record. Latin American Politics and Society, v. 46, n. 1, p. 135-157, Spring 2004.

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* Professor-Adjunto do Departamento de Ciências Sociais, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e do Mestrado em Ciência Política da Universidade Federal do Piauí (UFPI).

O Supremo não pode ter dono, por Oscar Vilhena Vieira.

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Estratégia de captura das instituições jurídicas fez escola entre líderes autoritários das mais diversas correntes ideológicas

Oscar Vilhena Vieira – Folha de São Paulo – 12/10/2022

A proposta de ampliação do número de ministros do Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de “esquadrar o judiciário”, nas palavras do líder do governo Bolsonaro na Câmara dos Deputados, constitui uma gravíssima ameaça à sobrevivência de nossa democracia constitucional.

A captura dos tribunais constitucionais e outras esferas de aplicação da lei é uma medida reiteradamente adotada no processo de consolidação de regimes autocráticos. Quem explica a lógica dessa estratégia é Adolf Hitler.

Ao prestar juramento em 1930 perante o tribunal de Leipzig, discorreu de maneira cristalina sobre a estratégia de seu partido: “A Constituição apenas estabelece o mapa da batalha… Nós ingressaremos nas instituições jurídicas e desta forma transformaremos nosso partido numa força decisiva… quando nos assenhorarmos do poder constitucional, iremos moldar o Estado de acordo com aquilo que entendermos conveniente”.

Embora não se queira estabelecer qualquer paralelo com o nazismo, a estratégia de captura das instituições jurídicas fez escola entre líderes autoritários das mais diversas correntes ideológicas.

Após a derrubada da Primeira República, uma das primeiras medidas do governo provisório de Vargas foi ampliar de 11 para 15 o número de ministros do Supremo Tribunal Federal, cassando ministros insubordinados a partir de 1937. Da mesma forma, o regime militar, instaurado em 1964, decidiu ampliar de 11 para 16 o número de membros do Supremo, por meio do AI nº 2, de 1965, que também suspendeu as garantias dos magistrados. Posteriormente promoveu a aposentadoria compulsória de seus mais proeminentes membros, como Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal.
Para que não pareça que apenas os autoritários brasileiros se deixaram inspirar por essa ideia torpe, cabe lembrar os casos da Venezuela, Turquia e Hungria, três autocracias contemporâneas, em que a captura dos tribunais constitucionais foi parte central do processo de erosão democrática.

Após ascender ao poder por via eleitoral, em 1999, Hugo Chávez convocou uma assembleia constituinte que, em menos de dez meses, produziu uma nova Constituição. Descontente com a atuação independente do Supremo Tribunal de Justiça, que ousava contrariar seus interesses, em 2004, ampliou de 20 para 32 o número de membros do tribunal. O general Mourão, que serviu como adito militar brasileiro na Venezuela, certamente conhece o desfecho dessa história.

Na Hungria, após conquistar a maioria absoluta do parlamento, em 2010, o primeiro-ministro Viktor Orbán, promoveu uma ampla reforma constitucional, complementada por duas emendas à Constituição que ampliaram o número de membros do então independente Tribunal Constitucional, assim como restringiram o acesso dos cidadãos à corte, que deixou então de importunar o primeiro-ministro.

No mesmo ano, Recep Erdogan, então primeiro-ministro da Turquia, aprovou uma emenda constitucional ampliando o número de juízes da proeminente Corte Suprema do país. Em 2015, já presidente da República, determinou a prisão de nada menos que 2.745 juízes e promotores, consolidando seu regime autocrático.

Para se proteger de um processo de erosão democrática, como os acima mencionados, a Corte Constitucional colombiana declarou, em 2010, a inconstitucionalidade de uma proposta de emenda que permitiria ao presidente Uribe, embalado pela ampla popularidade, concorrer a um terceiro mandato.

Para a maioria do tribunal o “poder de emendar a Constituição não inclui a possibilidade de derrogar, subverter ou substituir a Constituição na sua integridade”. E a possibilidade de um terceiro mandato permitiria, entre outras coisas, que o presidente nomeasse a maioria dos membros de tribunais, ameaçando a independência do judiciário, elemento central do edifício democrático. Com isso, salvou a democracia colombiana de uma maioria eventual que buscava sequestrá-la.

Como foi taxativamente colocado pelo ex-ministro Celso de Mello, a proposta de ampliar o número de membros do Supremo Tribunal Federal, oriunda de um governo que tem feito emprego sistemático de medidas infralegais voltadas a subverter o Estado de Direito e desacreditar nossa Corte Suprema, afronta a independência do Poder Judiciário, colocando em risco a integridade de nossa democracia. E numa democracia o Supremo não tem dono.

A Constituição de 1988, seguindo o exemplo da Lei Fundamental de Bon, de 1949, estabeleceu que determinados pilares do Estado democrático de Direito, como o sistema de separação de Poderes, o voto direto, secreto e universal, a federação, além dos direitos e garantias fundamentais, não podem ser objeto de supressão, mesmo que por meio de emendas constitucionais.

Ao impedir que o poder constituinte reformador possa deliberar sobre emendas tendentes a abolir as premissas básicas da nossa democracia constitucional, as cláusulas pétreas nos protegem de maiorias autoritárias contingentes.

São, paradoxalmente, limitações habilitadoras da democracia, pois proíbem que uma geração, eventualmente seduzida pelo canto mortal do populismo autoritário, furte da próxima geração o direito de conduzir de forma autônoma e democrática o seu próprio destino.

Risco financeiro permanece um desafio de política pública, por Armínio Fraga.

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As contribuições dos vencedores do Nobel de Economia a um problema ainda não completamente resolvido

Armínio Fraga, Sócio-fundador da Gávea Investimentos, presidente dos conselhos do Ieps (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde) e do IMDS (Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social), ex-presidente do Banco Central e colunista da Folha

Folha de São Paulo, 11/10/2022

Recebi com alegria a notícia de que Bernanke, Diamond e Dybvig ganharam o Nobel de economia deste ano. Tive a boa fortuna de ler, como aluno de doutorado em Princeton no inicio dos anos 80, as contribuições seminais agora merecidamente agraciadas com o prêmio. O tema foi nada mais nada menos do que uma faceta desconcertante e recorrente das economias de mercado: as crises bancárias e financeiras. Desde então, uma parte importante de minha vida profissional lidou com o assunto, como bem demonstra a minha careca.
Ben Bernanke, ex-presidente do Federal Reserve Board, o BC americano, publicou em 1983 um artigo que caracterizou o decisivo papel causal que a crise bancária que ocorreu nos Estados Unidos no início do anos 30 teve no que viria a ser a Grande Depressão. O que se viu foi um exemplo das externalidades negativas e de rede inerentes ao funcionamento de um sistema financeiro.

Trata-se de um fenômeno de fácil compreensão: bancos (e, hoje em dia, o sistema não bancário também) captam depósitos a curto prazo e resgatáveis ao valor de face e emprestam a prazos mais longos, tipicamente financiando o setor produtivo. Se, por qualquer razão, houver um aumento da demanda por liquidez no sistema e os intermediários financeiros não conseguirem financiar os seus balanços, pode se instalar uma espiral de venda de ativos e mais demanda por liquidez, que trava a circulação do dinheiro e deprime a economia.

A não identificação tempestiva desse processo contribuiu para transformar uma recessão em uma duradoura depressão. Em 2008, Bernanke, na cabine de comando do Fed, rapidamente diagnosticou o caso e expandiu agressivamente a política monetária, evitando assim o que poderia ter sido uma outra depressão. Foi um caso raro de um trabalho acadêmico influenciar na prática o seu próprio autor.
Praticamente ao mesmo tempo em que Bernanke escrevia o seu artigo premiado por abordar aspectos macroeconômicos do tema, a dupla Douglas Diamond e Philipp Dybvig desenvolveu o arcabouço analítico microeconômico que revolucionou o entendimento das corridas bancárias e fenômenos similares.

Partindo de premissas bastante intuitivas, os autores construíram um modelo que mostra que corridas bancárias podem ocorrer mesmo em circunstâncias tidas como seguras. Diamond em particular, sozinho e em parceria com Raghuram Rajan, estendeu esse modelo em várias e importantes direções, que enriqueceram ainda mais o entendimento do funcionamento de sistemas financeiros.

Crises financeiras têm uma longa história, que a partir do século 19 inspiraram inúmeras respostas de política pública. A primeira foi a pioneira transformação do Banco da Inglaterra em emprestador de última instância, com a missão de reduzir a instabilidade do sistema, até então mais regra do que exceção. No século 20, sobretudo a partir da Grande Depressão, surgiram outros mecanismos de defesa contra corridas bancárias, com destaque para o seguro de depósitos bancários, que reduziu o incentivo de sacar recursos dos bancos ao menor sinal de perigo.

Mas nem tudo se resolveu. Ao mesmo tempo em que foram introduzidas defesas contra corridas bancárias e pânicos, as instituições financeiras, se sentindo mais seguras, foram aumentando o nível de risco de suas operações. Uma primeira resposta a esse aumento foram as exigências de níveis mínimos de capital, conhecidas como as regras da Basileia. Mesmo assim, em função de brechas nas regras e no crescimento do segmento não regulado do mercado, os níveis de risco dos intermediários (e portanto do sistema como um todo) seguiram em sua trajetória de alta.

Essa tendência fica clara quando se observa que os empréstimos dos bancos subiram de cerca de 3 a 5 vezes seu capital no século 19 e chegaram aos inimagináveis 50 a 100 vezes às vésperas da grande crise de 2008. Claramente esse assunto permanece um grande desafio de política pública que, quem sabe, talvez os três ganhadores do prêmio possam nos ajudar a encarar.

Inovação

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As transformações geradas pela globalização da economia impulsionaram as estruturas produtivas, alterando as relações entre trabalhadores e empresários, reduzindo os instrumentos de intervenção dos Estados Nacionais, alterando os interesses nacionais e novas formas de autonomia, criando oportunidades promissoras, desafios inéditos, repensando as estratégias das organizações e criando novas formas de planejamento.

Neste momento de grandes inquietações, incertezas e instabilidades no sistema econômico global, reencontrei-me com os escritos e as reflexões do economista austríaco Joseph Schumpeter, autor de clássicos da ciência econômica “Capitalismo, Socialismo e Democracia” e “Teoria do Desenvolvimento Econômico”, obras fundamentais para refletirmos e compreendermos conceitos que ganharam espaço na sociedade, tais como destruição criativa e empreendedorismo.

Para o economista austríaco, o empreendedor deveria ser visto como o agente do desenvolvimento econômico, responsável por grandes inovações que impulsionava a sociedade, garantindo novos espaços de acumulação, criando novos modelos de negócios, gerando riquezas maiores, possibilitando novas formas de acumulação, promovendo o crescimento econômico, transformando o ambiente econômico e produtivo.

No pensamento de Schumpeter, o sistema capitalista tem como característica inerente, uma força que ele denomina de processo de destruição criativa, fundamentando-se no princípio que reside no desenvolvimento de novos produtos, novos bens e novas mercadorias, além de novos métodos de produção e novos mercados; em síntese, trata-se de destruir o velho para se criar o novo, gerando conflitos entre ganhadores e perdedores, instabilidades sociais e preocupações constantes, neste momento, faz-se fundamental a intermediação e a construção de novos consensos políticos, estimulando o surgimento de líderes com capacidade de administrar e evitar desequilíbrios generalizados.

Nos últimos anos percebemos o crescimento, na sociedade internacional, das discussões sobre o empreendedorismo, visto como um processo de criação de algo novo ou diferente, que agrega valor, que exige dedicação e esforço, e que incorre em riscos financeiros, psicológicos, emocionais e sociais, cujo retorno, na maioria das vezes, é a satisfação econômica e pessoal. Embora entendamos a importância do empreendedorismo para a sociedade contemporânea, percebemos que empreender depende de inúmeros fatores que devem atuar conjuntamente, exigindo políticas públicas concatenadas como forma de identificar as oportunidades, investimentos maciços em educação, além da construção de instrumentos de viabilização econômica, viabilizando instrumentos de financiamento, transformando ideias e pensamentos difusos em espaços de inovação e a geração de valor.

Pela definição de Schumpeter, o agente básico desse processo de destruição criativa está na figura do empreendedor, indivíduo que vislumbra novos horizontes, novas oportunidades, dotado de grande criatividade, sensibilidade, visionarismo e imaginação. Nesta visão, o empreendedor é dotado de grande capacidade de criação, estimulando a geração de empregos, aumentando a riqueza material e impulsionando o sistema econômico e produtivo, desenvolvendo novos modelos de negócios e contribuindo para o desenvolvimento econômico. Seguindo os conceitos descritos pelo economista austríaco, estamos distantes de construirmos um ambiente propício para a inovação e para o empreendedorismo. O estímulo do empreendedorismo e da inovação são fundamentais para a competitividade da economia
e da melhoria das condições de vida da população, mas não devemos nos esquecer que vivemos em uma sociedade marcada por uma educação precária e fragilizada, com taxas de juros escorchantes, investimentos produtivos limitados, diminuições crescentes de investimentos em ciência e tecnologia, centros de pesquisa e de inovação sendo fechados, infraestrutura degradada, desemprego elevado, informalidade dominante e desempregos camuflados, fome em ascensão e renda declinante.

Sem resolvermos estes desequilíbrios, criaremos uma sociedade centrada no individualismo, no imediatismo, no hedonismo e num verdadeiro darwinismo social, sem solidariedade, sem dignidade, com salários degradantes, jornadas de trabalho escorchantes e alguns acreditando que isso é meritocracia.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 12/10/2022.

Qual economia para o futuro? por Dom Odílio Scherer

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Na terra de São Francisco, o papa conclamou jovens economistas à reflexão diante de uma realidade que lhes diz respeito.

Dom Odilo P. Scherer, Cardeal-Arcebispo de São Paulo – O Estado de S. Paulo – 08/10/2022

O papa Francisco reuniu-se no dia 24 de setembro passado com jovens na cidade de Assisi, terra de São Francisco, para refletir com eles sobre a economia e as alternativas para os modelos econômicos adotados atualmente pela maioria dos países. Cerca de 1.500 jovens de mais de cem países, geralmente economistas, compareceram ao encontro, depois de uma preparação de três anos em suas comunidades de origem.

Talvez o evento não tenha despertado muita atenção dos especialistas em teorias econômicas e na gestão da economia dos países e organismos nacionais e internacionais. Não foi a esses que o papa se dirigiu, chamando apenas alguns poucos deles para ajudarem na reflexão. Francisco quis tratar a questão com os jovens, por dois motivos principais: por serem eles os maiores interessados no futuro da economia e nos desdobramentos da sua atual gestão; e porque eles ainda não estão demasiadamente comprometidos com os sistemas vigentes, sendo capazes de ousar e de sonhar com alternativas possíveis.

No seu discurso, o papa referiu-se a algumas situações que questionam os atuais rumos da economia: as persistentes crises sociais, a pobreza e a miséria endêmicas em muitos países e regiões do mundo; a crise sanitária desencadeada pela pandemia de covid-19, que pôs de joelhos a economia; as migrações e as crises humanitárias decorrentes de guerras, como acontece na Ucrânia e em várias regiões da África, da Ásia e da América Central. Francisco referiu-se, também, ao sério desafio ambiental e climático que o mundo enfrenta, em boa parte como consequência de modelos econômicos que avançam de maneira predatória sobre a natureza.

É preciso reconhecer, refletiu o papa, que com o modelo de economia e a ideia de desenvolvimento econômico atualmente em voga, o ambiente, nossa casa comum, está sendo descuidado. A enorme riqueza produzida não chega a beneficiar a grande família humana, não resolve o problema da miséria e da fome nem assegura a justiça e a paz. Francisco questionou os modelos de desenvolvimento econômico que levam à destruição do ambiente e produzem e consolidam desigualdades e injustiças sociais e internacionais. Os rumos da economia não estão bem e algo precisa ser feito, antes que seja tarde demais! Como passar de uma economia que mata a uma economia que gera vida e a ampara? De uma economia que gera tensões e sofrimentos a uma economia que esteja a serviço da paz?

O papa já havia tratado do conceito da “economia que mata” na exortação apostólica Evangelii Gaudium (EG, 2013), o primeiro grande documento magisterial do seu pontificado. A economia mata quando produz exclusão e desigualdade social; quando descarta alimentos para manter certa política de preços, em vez de os colocar à disposição dos pobres; ou quando a competitividade no mercado é buscada mediante a supressão de postos de trabalho, deixando na insegurança os trabalhadores. A economia mata quando considera o próprio ser humano um bem de consumo usável e descartável; ou quando tem no seu centro o lucro e o acúmulo de bens, mesmo ao preço dos valores da justiça e da dignidade humana.

A economia gera vida quando o ser humano é o centro e o objetivo final de toda atividade econômica, quando está a serviço do homem, e não o contrário; onde as leis da economia e da finança deixam de ser tiranos impessoais, aos quais todos precisam se submeter e obedecer, querendo ou não (cf EG 53-56).

A própria noção de crescimento econômico, sempre presente nos discursos e nas preocupações dos governantes e gestores da economia, foi questionada pelo papa em sua fala aos jovens. Qual crescimento econômico, com quais critérios e a quem interessa? É possível pensar num crescimento econômico indefinido e infinito? Existe outra forma de pensar o crescimento econômico, sem que ele aconteça à custa da depredação ambiental e da exclusão social? E quem será responsável pela reparação dos danos já causados pela atual orientação da economia mundial? Quem justificará, diante das futuras gerações, o mundo depauperado e insalubre que lhes será deixado em herança?

Esses questionamentos do pontífice aos jovens na terra de São Francisco podem parecer nada ortodoxos e pouco realistas. Não era intenção do papa confirmar alguma teoria econômica, nem propor receitas para resolver as questões abordadas. Ele conclamou os jovens à reflexão diante de uma realidade que lhes diz respeito, convidando-os a serem protagonistas na busca de alternativas de esperança para uma economia que está produzindo morte e comprometendo o seu futuro. E convidou-os a olharem para São Francisco, que viveu um estilo de vida simples, sóbrio e solidário, em harmonia com a natureza e em fraternidade com as demais pessoas, considerando todos como irmãos e irmãs.

Seria demais sonhar que a economia das nações tivesse na sua base esses critérios? As sementes foram lançadas no coração de jovens economistas. O futuro da economia e da nossa casa comum é deles. Que sonhem alto!

Saúde: uma questão vital, por Fábio Giambiagi.

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Por mais ser austeros os governos, a democracia fará com que gastar mais com o setor se torne imposição

Fábio Giambiagi, Economista pela FEA/UFRJ, com mestrado no Instituto de Economia Industrial

Estado de São Paulo – 07/10/2022

Recentemente, com Rudi Rocha e Miguel Lago, organizei A Saúde do Brasil, publicado há poucas semanas pela Editora Lux, com 15 capítulos e participação de 28 autores da mais alta qualidade. O livro abre com uma epígrafe do dr. Adib Jatene, que é uma espécie de adaptação para a área médica da fábula da “Belíndia”, do economista Edmar Bacha, acerca do velho dualismo brasileiro: “Temos de ser contra a distorção a que estamos assistindo, da coexistência do mais alto nível de assistência médica e do mais baixo nível de assistência à saúde, na mesma cidade e no mesmo local”. Com os condicionantes impostos pela limitação de espaço, sintetizo o que poderia ser um roteiro dos principais ensinamentos que deixa a leitura do livro.

i) O Serviço Único de Saúde (SUS) é uma conquista civilizatória que deve ser preservada e aperfeiçoada por qualquer governo que tiver a saúde da população como prioridade.

ii) O sistema de saúde representa uma política pública que, inequivocamente, reduz o grau de desigualdade da sociedade brasileira.

iii) A chave para o aperfeiçoamento do sistema passa pelo aprimoramento da cooperação federativa, que falhou terrivelmente na pandemia de covid-19.

iv) A descontinuidade administrativa, em qualquer dos níveis de governo, é um dos maiores traços de nosso subdesenvolvimento como nação.

v) O êxito do combate às doenças e a mudança no perfil epidemiológico da população trazem como resultado uma mudança dos desafios a enfrentar. Por exemplo, quando se consegue evitar que adultos morram cedo por doenças infecciosas, teremos, no futuro, mais pessoas sofrendo de câncer, de problemas cardíacos e, mais tarde, de outras doenças, como o Alzheimer.

vi) A demografia conspirará contra os esforços de contenção fiscal: por mais austeros que sejam os governos, a mudança do perfil etário da população fará com que gastar mais com saúde se torne uma imposição da realidade.

vii) Saúde não tem ideologia: na gestão do sistema, o pragmatismo é fundamental para que os setores público e privado possam conviver da forma mais harmônica possível e com o melhor desempenho.

viii) O País precisa que a política pública de saúde tenha um braço voltado para a ampliação da autonomia tecnológica.

ix) E a maior digitalização do sistema de saúde, especialmente da atenção primária, com o uso adequado da ciência de dados, bem como da telemedicina, será chave para o aumento da eficiência – e é um elemento central de uma estratégia de superação dos problemas do setor.

Carta Mensal – Apresentação

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Carta Mensal

www.aryramos.pro.br

A Carta Mensal foi criada como um instrumento de refletirmos sobre as atividades no mês anterior, este serviço será enviado a todas as pessoas que se inscreveram no site, onde será enviado um artigo sintético e condensado sobre os principais assuntos relativos aos eixos de publicação do site.

Vivemos numa sociedade que se transforma rapidamente, gerando medos e grandes preocupações, alterando as estruturas econômicas e produtivas impactando todos os indivíduos, as organizações e as nações, espalhando instabilidades e incertezas que exigem reflexões sobre o comportamento dos seres humanos, exigindo novas habilidades, mais flexibilidade, mais assertividade, mais sensibilidade e mais agilidade para compreendermos os grandes desafios de um mundo novo, altamente conectado, centrado no conhecimento, na imaterialidade e no imediatismo.

Neste assunto constará no máximo 600 palavras refletindo sobre assuntos prementes e variados sobre economia, gestão, sociologia, educação, gestão pública, política, cultura e saúde contemporaneidade, visando refletirmos sobre a sociedade brasileira e internacional, trazendo elementos para pensarmos os grandes desafios da sociedade do século XXI, marcados por grandes oportunidades criadas pelo incremento da tecnologia, alterações nas comunicações, mudanças nos modelos de negócios, no conhecimento e nos instrumentos de geração de riquezas.

A Carta Mensal será publicada sempre até o dia 10 dos respectivos meses, analisando os assuntos mais comentados na sociedade, além dos temas mais analisados e que mais chamaram mais atenção, com isso, teremos um período maior para destacar os assuntos mais relevantes que foram destaque no mês anterior, comentando, analisando e criando espaços de discussões.

A Carta Mensal foi criada e idealizada pelo site www.aryramos.pro.br e é mantida pelo professor doutor Ary Ramos da Silva Júnior, professor universitário desde 1997, formado em Ciências Econômicas (Unesp) e Administração (Unirp), Especialista em Economia Criativa (Unyleya), Mestre e Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).

O futuro do agronegócio é a ciência, por Ronaldo Lemos.

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Vamos competir também em propriedade intelectual, patentes, cultivares, insumos?

Ronaldo Lemos, Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

Folha de São Paulo – 10/10/2022

Quais os elementos essenciais para um agronegócio competitivo e sustentável? Abundância de água, terra fértil, sol, ciência e tecnologia. De todos esses, o peso começa a crescer para os dois últimos.

O futuro do agronegócio não será de quem tem os melhores recursos naturais, mas sim de quem aplica melhor ciência e tecnologia. Competição por sementes, cultivares, know-how e implementos.

O Brasil sabe disso. Tanto é que a agricultura brasileira é das mais competitivas globalmente, especialmente em razão da Embrapa. No entanto, liderança é, por definição, um lugar instável.

Outros países estão constatando que, com ciência e tecnologia, é possível ganhar mais competitividade no agro, avançando sobre espaços que hoje são detidos pelo Brasil.

O país mais recente a transformar ciência e tecnologia no agro em prioridade nacional é um velho conhecido dos produtores brasileiros: a China. Nos últimos anos, o país decidiu que não quer mais depender de importações para garantir sua segurança alimentar.

O país abriga hoje 20% da população mundial, mas possui apenas 8% das terras aráveis do planeta. Por isso foi dada a largada para um esforço de aumento da produtividade por hectare. E também por reorganizar a forma como a produção agrícola acontece na China.

No entanto, o passo mais ambicioso do país relaciona-se diretamente à cadeia de suprimentos agrícolas global. Trata-se da aquisição da gigante global de tecnologia agrícola Syngenta. De origem Suíça, e até hoje com sua sede em Basileia, a empresa foi adquirida em 2017 por US$ 43 bilhões pela empresa ChemChina (atualmente Sinochem Holdings). Essa foi a maior aquisição internacional feita por uma empresa chinesa.

A Syngenta tem presença forte globalmente, inclusive no Brasil, no ramo de sementes, pesticidas, herbicidas e outros produtos e cultivares relacionados a lavouras de soja, milho e biocombustíveis.

Na China, a aquisição da empresa tem provocado uma verdadeira revolução agrícola. A empresa está desenvolvendo no país os chamados MAPs (sigla de Plataforma de Agricultura Moderna).

Mais de 500 MAPs foram implantados nas áreas rurais do país. Em cada um deles há sempre centros de pesquisa e aprendizado, onde se destaca a frase “In Science We Trust” (Na ciência nós confiamos).

Cada um deles tem uma estética parecida com a do Vale do Silício e ajuda produtores locais a desenvolver práticas mais “produtivas, eficientes e sustentáveis”. Vale lembrar também que a produção rural é apenas um dos segmentos do agronegócio.

Outro segmento fundamental, do qual o Brasil participa pouco, é o da propriedade intelectual, das patentes e dos cultivares. Nesse campo, a Syngenta é gigantesca. Antes da aquisição, a empresa já havia assimilado a Novartis e o braço agrícola da AstraZeneca.

Com isso, detém inúmeras patentes e cultivares, relacionados a milho, soja e alface, além de inúmeros produtos químicos. Até uma variedade de tomate típica da América do Sul a empresa chegou a patentear antes da aquisição, mas depois de muitos protestos a patente foi revogada.

Os produtores brasileiros são clientes da Syngenta com relação a vários produtos, muitos deles essenciais para as lavouras no país. E o Brasil? Apesar de sermos potência agrícola, dominamos só uma parte do setor.
Vamos competir também em propriedade intelectual, em patentes, cultivares, insumos e implementos? O futuro do setor depende da resposta a essa pergunta.

Já era – Pensar em agricultura apenas como exploração direta da natureza

Já é – Agricultura como atividade científica e tecnológica

Já vem – Competidores do Brasil com menos recursos naturais, mas mais tecnologia

Livre concorrência e livre-comércio – o fim de uma era? por Alessandro Octaviani.

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Alessandro Octaviani – A Terra é Redonda – 09/10/2022

Nos países centrais, os anos do neoliberalismo e dos modelos mentais jurássicos de livre-comércio e livre-concorrência ficaram para trás

“You vitriolic, patriotic, slam fight, bright light\ Feeling pretty psyched\ … It’s the end of the world as we know it” (R.E.M).

A explicitação de conteúdos jurídicos protecionistas e de “segurança econômica nacional” exarados pelas principais economias do mundo, visando a remodelar seu ordenamento básico referente à livre-concorrência e ao livre-comércio, é um fato rotineiro da última década.

A Alemanha fornece um desses exemplos, principalmente porque se notabilizou, ao longo de todo reinado de Ângela Merkel, como uma das cidadelas do aglomerado retórico de “austeridade + livre-comércio + livre-concorrência” (as mais de 15.000 empresas estatais alemãs não figuram nesse amálgama porque são reais demais para a manutenção da ideologia…).

A recente reformatação de sua disciplina jurídica do setor energético é marcante. Após a consistente escalada da OTAN e da União Europeia rumo aos escombros da antiga URSS, absorvendo espaços geoeconômicos e geopolíticos sob a égide ocidental, a Rússia deflagrou a reação que teóricos do “realismo ofensivo”, como John Mearsheimer, em seu influente The tragedy of great power politics, previam: uma guerra que busca limitar tal avanço, podendo migrar para pressões crescentes no fornecimento de energia e ataques contra infraestruturas críticas.

A atual infraestrutura de energia alemã foi estrategicamente modelada pelo período Merkel, tendo como símbolo máximo a construção dos gasodutos do sistema Nord Stream. A configuração do setor de energia tinha (i) como premissa uma relação amistosa com a Rússia e (ii) como utopia a suposição de que o livre-comércio e a livre-concorrência criariam (paulatina, mas inexoravelmente) uma convergência institucional entre estratégias nacionais de desenvolvimento e ordenamentos jurídicos. Superando esse momento retórico, a nova doutrina da Alemanha e da União Europeia (ameaçadas pela posição de compradora exercida pela China, pela detenção das Big Techs pelos EUA e pela dependência energética em relação à Rússia) remete ao termo “autonomia estratégica”, durante décadas ridicularizado e escanteado pelo pensamento liberal que a OCDE e os centros bem-pensantes empurraram para os desavisados consumidores de jurisdições periféricas, dentre as quais o Brasil.

Demonstrando que, para os alemães, livre-concorrência e livre-comércio são conceitos mutáveis e imersos no pragmatismo que sempre deve manter seu país no cume, o governo de Olaf Scholz nacionalizou as subsidiárias alemãs da estatal petrolífera russa Rosneft, tomando o controle das refinarias e submetendo-as juridicamente ao Bundesnetzagentur, autoridade reguladora do mercado energético alemão, fato qualificado pelo ministro da Economia como “fundamental para garantir a segurança de sua cadeia nacional de abastecimento energético”, afastando o livre-comércio em área sensível à segurança econômica nacional: “The trust management will counter the threat to the security of energy supply”.

Esse não é um ato isolado. Há método na sanidade germânica. A conjunção da Außenwirtschaftsgesetz, lei de comércio exterior e pagamentos, com o Außenwirtschaftsverordnung, seu regulamento concretizador, organiza estruturas e condutas em conformidade com os ditames da segurança nacional e dos interesses externos do país, abrindo imenso leque retórico para imposição de restrições e obrigações a fim de “garantir os interesses essenciais à segurança alemã e membros da União Europeia”, visando a “prevenir distúrbios na coexistência pacífica das nações” ou “nas relações internacionais do país”, e para “implementar decisões do Conselho Europeu” ou “impor sanções econômicas no escopo da política comum de defesa europeia”.

São sujeitos a tais restrições e obrigações, em particular, os não-residentes da União Europeia que tentarem adquirir empresas ou meramente participações acionárias de companhias alemãs que possam ameaçar, por qualquer flanco, os interesses essenciais de sua segurança econômica nacional. Da mesma maneira, os atuais diplomas reguladores dos comportamentos em mercados “de relevante interesse coletivo”, como as normativas administrativas para definição de infraestruturas críticas, dispõem diversas hipóteses de controle administrativo e judicial de investimentos estrangeiros que “representem possível risco à segurança nacional”, destinando-se a proteger setores inteiros da economia alemã de concorrência estrangeira.

Como se vê, um dos atuais impulsos econômicos alemães é o velho e conhecido nacionalismo econômico. A erosão da retórica liberal no centro da disciplina jurídica da economia mais relevante da Europa revela o que ainda no Brasil temos dificuldade de assumir: nos países centrais, os anos do neoliberalismo e dos modelos mentais jurássicos de livre-comércio e livre-concorrência ficaram para trás. Chegaram a “concorrência estratégica”, “autonomia estratégica”, “políticas contra a vulnerabilidade externa”, “políticas contra a dependência”, “cadeias locais de produção”, “segurança econômica nacional” e outras expressões do gênero. It’s the end of the world as we know it, como anunciou o clássico do R.E.M. Só “a bailarina que não tem”, responderiam Chico e Edu Lobo.

*Alessandro Octaviani é professor de direito econômico da Faculdade de Direito da USP e ex-membro do Tribunal do Cade. Autor, entre outros livros, de Estudos, pareceres e votos de direito econômico (Ed. Singular).