Batalha dos chips entre EUA e China expõe estratégia de sufocamento, por Tatiana Prazeres.

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Diante dos esforços de Pequim no grupo de elite dos semicondutores, nada serviu de incentivo tão poderoso

Tatiana Prazeres, Executiva na área de relações internacionais e comércio exterior, trabalhou na China entre 2019 e 2021

Folha de São Paulo – 08/10/2022

Muitos se surpreendem com o fato de que semicondutores são, de longe, o principal item de importação da China. A vulnerabilidade do país nessa área foi percebida em Washington como oportunidade.

EUA e China hoje protagonizam uma batalha dos chips, emblemática da competição tecnológica, econômica e geopolítica do mundo contemporâneo. Limitar o acesso chinês a semicondutores avançados e a insumos e máquinas para produzi-los foi a linha endossada pelos EUA.

A estratégia do sufocamento caiu no gosto dos “hawks” americanos, e abrir mão dela seria visto como sinal de fraqueza. Nesta sexta (7), Washington adotou mais uma leva de restrições às exportações para a China com esse objetivo.

Semicondutores estão na base de todas as tecnologias do presente e do futuro, desde seu próximo aparelho celular até inteligência artificial e computação quântica. Esses produtos envolvem cadeias produtivas complexas, cujos elos críticos, no entanto, estão concentrados em poucas empresas e mercados.

Centro das atenções geopolíticas, Taiwan concentra 90% da produção de semicondutores avançados —e numa única empresa. A taiwanesa TSMC, entretanto, depende do design desses semicondutores, um segmento de alta tecnologia dominado por empresas americanas como Qualcomm, Nvidia e Apple. Também necessita de equipamentos sofisticados para produzir chips de última geração, e eles vêm basicamente de uma única empresa, a holandesa ASML.

A Lei dos Chips dos EUA, promulgada em agosto, busca estimular a produção de semicondutores avançados em território americano. Dessa etapa da produção também participam a coreana Samsung e a americana Intel.

Biden busca coordenar posições tanto para aumentar a eficácia das medidas contra a China quanto para socializar o prejuízo que suas empresas têm ao serem privadas do mercado chinês. Quer que esse custo seja compartilhado. Fala-se na criação de uma espécie de Opep dos chips.

A China busca há anos se juntar à primeira liga do campeonato dos semicondutores. Já investiu centenas de bilhões de dólares no setor e tenciona produzir 70% dos chips de que precisa. Várias de suas empresas têm feito avanços em elos diferentes da cadeia —mas elas ainda estão distantes dos chips mais avançados de Taiwan. Produzem o chip commodity.

Quando Pequim desenhou mais um pacote de incentivos para o setor em 2020, o anúncio foi acompanhado de um conjunto de três “nãos”: empresas sem experiência, sem tecnologia e sem talentos na área não deveriam se aventurar com recursos públicos. Ainda assim, naquele ano, estima-se que mais de 50 mil empresas tenham sido criadas no setor,
várias delas evidentemente apenas pelas benesses.

Muitos apontam o setor de semicondutores como o grande fracasso da política industrial chinesa. É precipitada a conclusão. A maior produtora do país, a SMIC, anunciou há pouco um salto tecnológico importante e o fez em menos tempo que as concorrentes. Durante o lockdown rigoroso em Xangai neste ano, a empresa não parou. Obteve uma autorização especial para que dois terços dos seus empregados pudessem dormir na fábrica, que operou em circuito fechado em relação ao restante da cidade.

É uma questão de tempo —de recursos, talentos, investimentos em pesquisa e desenvolvimento— para a China participar da briga dos grandes. A estratégia do sufocamento coordenado faz o país convencido da necessidade de dobrar a aposta na autossuficiência. Aos poucos, junto com sinais de fracasso, surgem os de progresso.

Em décadas de esforços da China para entrar no grupo de elite dos semicondutores, nada serviu de incentivo tão poderoso como as medidas dos que querem contê-la.

Não há lugar para muro, por Gobetti e Orair.

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A escolha agora é simples: civilização ou barbárie

Folha de São Paulo – 08/10/2022

Sérgio Wulff Gobetti, Pesquisador e doutor em economia pela UnB

Rodrigo Octávio Orair, Economista, é pesquisador do Made-USP (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades) e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente do Senado Federal

Em artigo nesta Folha (“Em louvor do voto inútil”, 29/9), o economista Alexandre Schwartsman criticou o “voto útil” em Luiz Inácio Lula da Silva (PT), declarando que não o pretendia fazer nem no primeiro nem no segundo turno por não acreditar nas credenciais democráticas do Partido dos Trabalhadores. Partido dos Trabalhadores.

Sim, leitor, apesar de Lula e o PT terem governado o Brasil por 14 anos sem jamais ameaçar nossa democracia, Schwartsman pinça declarações sobre o chamado “controle social da mídia” e sobre a “mídia golpista” para tentar forjar uma falsa —e repugnante— equivalência entre o ex-presidente e Jair Bolsonaro (PL).

Repugnante porque nada se compara à crise institucional e ao clima de golpe criado pelo atual presidente da República. Nada se compara à sua falta de humanidade ao debochar das vítimas da Covid-19 e ao declarar admiração por um torturador da ditadura militar que tinha como um dos seus métodos abusar de mulheres em frente aos filhos.

Nada se compara ao desrespeito cotidiano com jornalistas, especialmente mulheres, e ao estímulo à violência física contra adversários.

Talvez Bolsonaro não tenha forças para transformar o Brasil numa ditadura ao velho estilo da década de 1960, mas poderá transformar nosso país num regime autoritário aos moldes da atual Hungria de Viktor Orbán. Lá, como aqui, a ultradireita cria um inimigo imaginário (o comunismo), monta uma estrutura de propaganda paralela (baseada em fake news), promove uma fusão entre religião e Estado e busca minar a credibilidade das demais instituições para justificar o aparelhamento do Judiciário e das forças policiais.

Isso já está ocorrendo no Brasil e poderá se agravar caso o campo democrático, da esquerda à direita, não se una para derrotar Bolsonaro. Corremos o risco inclusive de retrocesso civilizatório, com a destruição de valores iluministas que balizaram a construção da sociedade moderna, como vemos com a tentativa de intervir no ensino e oprimir minorias.

Lula já deu declarações infelizes? Sim. Já cometeu erros? Sim. Mas o petista jamais falaria que a Covid é uma “gripezinha”, incentivaria tratamento não comprovados cientificamente, debocharia de quem está sofrendo falta de ar ou diria que não vai vacinar os filhos, tendo o dever de dar o exemplo como presidente da República. Ademais, Lula é um conciliador nato, respeitado pelos maiores líderes da democracia ocidental. Tão conciliador que até mesmo Schwartsman, um liberal de direita, ocupou cargo de diretor do Banco Central durante seu governo.

Na economia, a tendência conciliadora se evidenciou numa preocupação (até excessiva) em não desagradar o mercado e na adoção de uma política bem pragmática, ao mesmo tempo em que buscava reduzir a pobreza por políticas de transferência de renda e aumento de salário mínimo —com efeito limitado sobre a redução da desigualdade, como mostraram estudos posteriores. Se for eleito, Lula precisará negociar para avançar na agenda de reformas (tributária e fiscal) e, por isso, já sinalizou que escolherá um ministro da Economia com capacidade de articulação política.

Em resumo, Lula e o PT têm feito ao longo da história movimentos de moderação, se deslocando da esquerda para o centro, enquanto parte da brasileira, ao contrário, se desloca para o extremo. Se isso não é razão suficiente para liberais como Schwartsman saírem do muro, talvez a explicação esteja na vergonha. Vergonha de reconhecer o erro de ter votado em 2018 num candidato que nunca escondeu seu caráter autoritário, embora fosse inimaginável que demonstrasse tanta crueldade e irresponsabilidade como vimos na pandemia.

Felizmente, muitas personalidades de centro ou de direita, críticos do PT, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). compreenderam a delicadeza do momento histórico que estamos vivendo. A escolha é simples: civilização ou barbárie.

Observação: a economia cresceu 4% em média ao ano sob comando de Lula, declinou para 2,3% no primeiro governo de Dilma Rousseff (PT) e estagnou em 0,07% ao ano de 2015 a 2022 —e Schwartsman insiste em atribuir a década perdida exclusivamente aos erros do PT.

Mas esse é um debate secundário diante da necessidade de união da luz contra as trevas. Vamos juntos, Alex, derrotar Bolsonaro.

Capitalismo não vai resolver crise do clima, diz pai do conceito de sustentabilidade.

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Segundo John Elkington, o atual sistema é incapaz de entregar até mesmo uma fração dos objetivos sustentáveis

Thiago Bethônico – Folha de São Paulo – 09/10/2022

Considerado o pai do conceito de sustentabilidade, John Elkington ganhou destaque no meio corporativo ao trazer os princípios ambiental e social para a discussão sobre desenvolvimento, sem abandonar a perspectiva financeira. Mas, se alguém viu isso como uma defesa de que o atual modelo econômico é capaz de resolver os problemas climáticos, o sociólogo britânico é categórico: “Não acho que podemos confiar no capitalismo de forma alguma.”

Em entrevista durante evento realizado pela Klabin, em setembro deste ano, Elkington defendeu que o atual sistema é incapaz de entregar até mesmo uma fração dos objetivos sustentáveis já definidos.

“A questão é: ou vamos para a revolução ou fazemos algo diferente. Estou otimista de que podemos fazer algo diferente, mas a menos que façamos isso rapidamente, essa revolução à moda antiga vai se impor em nosso mundo”, afirma.

Considerado uma das maiores autoridades no debate sustentável, o britânico tem discurso firme contra empresas poluidoras e defende que negócios que conscientemente poluam a atmosfera sejam levados ao tribunal. “Os danos que estão causando destruirão milhões de vidas, trilhões de dólares. Por que eles deveriam se safar disso?”, questiona.
Sobre a situação brasileira, Elkington critica a política do presidente Jair Bolsonaro (PL), argumenta que ele não seria capaz de melhorar a posição do país no mundo e diz que o Brasil está em um caminho muito perigoso. No entanto, ele também questiona se Luiz Inácio Lula da Silva (PT) seria capaz de mover o país numa direção diferente.

Como está a imagem do Brasil na comunidade internacional hoje considerando os retrocessos ambientais? Você terá de me perdoar porque vou ser indelicado. Muitas vezes, as pessoas não acompanham diariamente as notícias de um país, empresa ou marca. Eles se lembram do que ouviram falar. Por isso, no Norte Global, o Brasil é conhecido há muito tempo pelo desmatamento.

Quando estive no projeto da linha 6 [do metrô de São Paulo], vi grandes pedaços de madeira tropical por lá e minha pergunta óbvia era “de onde vem essa madeira?”. Porque, sendo de fora do Brasil, eu suspeito.

O desmatamento parece ser um problema relevante. [Também] Há uma preocupação crescente com o governo Bolsonaro e seu incentivo quase ativou a diferentes atividades econômicas que se deslocam para florestas praticamente intactas. Uma total disposição de ignorar os direitos dos povos indígenas.

Então depende com quem você fala na Europa ou na América do Norte. Alguns estarão interessados em direitos humanos e lhe darão um conjunto de questões. Outros estarão interessados em ecologia ou nas florestas tropicais.

Alguns ainda vão se interessar por política e pensar se vai ser melhor se Lula ganhar em vez de Bolsonaro. Ontem à noite, as pessoas estavam me dizendo que provavelmente não fará nenhuma diferença. Se for verdade, eu fico muito preocupado, porque acho que o Brasil está em um caminho muito perigoso.

As pessoas te disseram que Lula e Bolsonaro podem não representar muita diferença, mas como o sr. enxerga? Lula está comprometido por causa do processo contra ele —e eu sei que ele foi inocentado. Mas quando estou no Brasil trabalhando para diferentes empresas, e penso, por exemplo, na Petrobras, o nível de corrupção é bastante significativo e está aqui há muito tempo.

Então, mesmo que Lula seja completamente inocente, a percepção no mundo todo é de que o Brasil é outro desses países —como Índia e Indonésia— onde a questão da governança provavelmente ainda não foi abordada.
Quando penso em Bolsonaro, não acho em nenhum momento que ele possa melhorar a posição do Brasil no mundo. Eu acho que ele vai continuar a minar isso.

Acho que Lula é lembrado com algum carinho por muita gente. Lembro-me de algumas das cúpulas que ele fez sobre a agenda social. Ele é um homem extraordinário, mas será que pode realmente dar a volta por cima e mover o Brasil em uma direção diferente? Eu não sei.

O sr. argumenta que separar as questões políticas e ambientais está ficando mais complicado. Por quê? Não me refiro apenas à agenda ambiental. Refiro-me à agenda de sustentabilidade, portanto econômica, social, ambiental, governança e política também.

A maioria das empresas, a maioria dos líderes empresariais, que pensaram em sustentabilidade, pensaram nisso como uma agenda, que é a agenda de ser mais legal, um pouco mais transparente, abrir um pouco [as questões envolvendo] sua cadeia de suprimentos, fazer relatórios, auditorias sociais e todas essas coisas. Tudo isso é bom, mas não podemos pensar que, enquanto fizermos isso, a nossa parte estará feita.

O problema é que, enquanto isso está acontecendo, a política não tem funcionado. Os líderes empresariais foram, por muito tempo, instruídos a ficarem fora da política. Hoje, eles não podem mais esconder o fato de que estão dizendo uma coisa em público e fazendo outra bem diferente no particular. Portanto, devem ser transparentes.

Desculpe-me, mas a ExxonMobil é a inimiga. Sinto muito em dizer isso, e pode parecer irracional, mas há cerca de 15 anos eu tive um embate público com o então CEO da ExxonMobil, Rex Tillerson. Eu estava em uma conferência na

Noruega falando sobre o lobby que a empresa fez para conter a ação climática ao longo de décadas. Tillerson, então, entrou no fundo da sala, ouviu o que eu estava dizendo e gritou “isso é uma mentira maldita!”.
Uma semana depois, a imprensa nos EUA mostrou que não era uma “mentira maldita”. Era exatamente o que eles vinham fazendo há muito tempo. Essas pessoas pensam que podem forçar seu caminho para que os outros as deixem fazer o que quiserem.

Eu acho que elas deveriam ser levadas aos tribunais criminais. Qualquer um que conscientemente permita que seus negócios poluam a atmosfera com gases de efeito estufa deve ser levado ao tribunal. Os danos que estão causando destruirão milhões de vidas, trilhões de dólares. Por que eles deveriam se safar disso? É isso que quero dizer quando falo que [a sustentabilidade] é cada vez mais política.

O sr. defende uma mudança no capitalismo para atingir os objetivos sustentáveis. Mas ainda dá para confiar na lógica capitalista da acumulação e do lucro se realmente quisermos alcançá-los? Não. Eu não acho que podemos confiar no capitalismo de forma alguma. Acho que precisamos de formas diferentes de revolução. Não como a Revolução Russa, onde você gasta quase 200 anos, mas uma combinação de revolução da tecnologia industrial.

Acabei de comprar um livro, não me lembro como se chama, mas é sobre os bilionários que querem ir para a Patagônia, para a Nova Zelândia, e estão investindo cada vez mais em bunkers. É isso que o capitalismo, particularmente nos Estados Unidos e no Reino Unido, está nos dando no momento.

Minha experiência no Brasil é exatamente a mesma. Conheci pessoas aqui que administram grandes negócios e que estão completamente isoladas do mundo em geral.

Esse modelo não vai entregar nem mesmo uma fração dos objetivos de desenvolvimento sustentável. O capitalismo não vai desaparecer e acho que já estamos vendo o capitalismo evoluir para muitas formas diferentes.

A agenda ESG está crescendo no mundo e as empresas estão falando sobre sustentabilidade mais do que nunca. Ao mesmo tempo, vemos as emissões atingirem níveis recordes, o desmatamento no Brasil crescer… Quão otimista você realmente está sobre o futuro? Nasci otimista e sou otimista. Eu acredito, porque a história sugere isso, que quando as coisas estão ficando realmente terríveis, esse é o momento em que elas começam a mudar.

Não acho que a Guerra da Ucrânia terminará com um belo tratado de paz e Putin decidindo ser legal com as pessoas.

Acho que estamos caminhando para um período de expansão do conflito, não de encolhimento. E parte disso é a rivalidade de superpotências, como entre China e Estados Unidos —ou devo dizer Estados Unidos e China.

Sou otimista em certos níveis, mas também penso como espécie. Às vezes podemos ser incrivelmente míopes e incrivelmente estúpidos. E é onde estamos agora.

No entanto, acho que nos próximos 15, 20 anos veremos a inovação em diferentes formas. As pessoas vão começar a mudar o sistema, porque está cada vez mais claro que o sistema que desenvolvemos, por exemplo, nas décadas de 1940 e 1950, simplesmente não está funcionando para muita gente.

A questão é: ou vamos para a revolução ou fazemos algo diferente. Estou otimista de que podemos fazer algo diferente, mas a menos que façamos isso rapidamente, essa revolução à moda antiga vai se impor em nosso mundo.

Há um crescente movimento anti-ESG nos EUA. Você vê algum risco disso se espalhar para outros países? Qualquer movimento social ou empresarial com poder suficiente —e com alguma intenção radical— ameaçará os interesses dos investidores e das indústrias tradicionais.

Eu tenho dito há anos, e não estava falando sobre ESG, mas sobre sustentabilidade, que chegará o momento em que as pessoas perceberão quais são as implicações dos compromissos envolvendo carbono e a perda de espécies para seus investimentos e suas indústrias —e elas iriam começar a lutar de volta.

Elas estão lutando há muito tempo, como a ExxonMobil. Mas isso se tornará mais público e mais desagradável.
Vamos ter sucesso no final? Não sei, todas as civilizações entraram em colapso, seja por causa de pandemias, guerras ou mudanças ambientais críticas. Por que seríamos diferentes?

Eu espero poder continuar ajudando a manter essa agenda por mais tempo. Acho que o Brasil tem as condições e algum tipo de superpoder, mas não com essa classe política atual e provavelmente também não com a maioria de seus líderes empresariais.

John Elkington, 73
Autoridade mundial em responsabilidade corporativa, John Elkington é sociólogo, fundador da Volans, criador do conceito de tripé da sustentabilidade e autor de 20 livros, sendo o mais recente “Cisnes verdes: o boom que se aproxima do capitalismo regenerativo”. Nascido no Reino Unido, Elkington foi membro do corpo docente do Fórum Econômico Mundial de 2002 a 2008, atuou em mais de 70 conselhos consultivos e ajudou a criar o GRI (Global Reporting Initiative) e os índices de sustentabilidade do Dow Jones.

Brasil passa por mais um momento Gramsci, por Nelson Barbosa.

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Sintomas mórbidos aparecem enquanto o velho morre e o novo ainda não nasce

Nelson Barbosa, Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

Folha de São Paulo, 07/10/2022

O Brasil passa por mais um momento Gramsci. Falo do historiador, filósofo e político italiano do século 20, que disse: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”.

Começando pelo que está acabando, assim como em outras democracias ocidentais, a extrema direita ocupou o espaço da centro-direita no espectro político brasileiro.

A nova composição do Congresso registrou grande avanço do bolsonarismo, espremendo a antiga centro-direita. A centro-esquerda e a extrema esquerda também cresceram, mas infelizmente menos do que a extrema direita.

Em minha opinião de cientista político amador, o encolhimento da centro-direita deve-se a dois fatores mundiais: o fracasso do neoliberalismo em gerar crescimento para todos e o surgimento das redes antissociais.

Na economia, a crise de 2008 e a estagnação que se seguiu, em parte derivada da hipótese de austeridade expansionista adotada em várias democracias ocidentais, desacreditaram o discurso neoliberal e os políticos a ele associados.

Somem-se à crise neoliberal os temores da classe média branca sobre globalização e imigração em países avançados e sobre corrupção e falsa ameaça comunista em países como o Brasil, e você tem a avenida aberta para a extrema direita.

Nos dois casos, o surgimento das redes antissociais, onde todos falam e quase ninguém escuta, permitiu a aglutinação de movimentos minoritários, mas ruidosos, de extrema direita. Existem também doidos de extrema esquerda (o pessoal que defende stalinismo), mas esses são minoria da minoria.

A maioria da minoria doidivana de rede antissocial está na extrema direita, em que vários “homens de bem” acharam a oportunidade de extravasar suas frustrações em racismo e misoginia, sempre com a desculpa: “Eu estava brincando”. Bolsonaro é a versão nacional de um fenômeno mundial.

E os sintomas mórbidos previstos por Gramsci? Há vários. Na economia, discurso fiscalista com prática populista, basta ver o pacote eleitoral de Bolsonaro e a crise atual no Reino Unido. Na política, judicialização crescente de todo e qualquer assunto, com paralisia administrativa. Nas relações sociais, crescimento do porte de arma e discussões pessoais que acabam em tragédia.

Os sintomas mórbidos continuam na saúde pública, educação, meio ambiente e outras áreas, mas paro por aqui para não desanimar os leitores.

Do lado positivo, a frente ampla construída por Lula é um sinal positivo do que pode aparecer. Do PSOL a eminentes tucanos, várias pessoas constataram que é preciso se juntar para barrar o bolsonarismo enquanto isso é possível, mas falta definir o que fazer depois.

Apesar de o “novo” ainda não ter nascido, é possível antever dois princípios para que ele tenha sucesso: 1) de nada adianta responsabilidade fiscal com paz de cemitério e 2) o crescimento econômico tem que ser para todos, em vez de para poucos. É por esses dois motivos que Lula ganhou o primeiro turno das eleições presidenciais. Convém escutar o que ele tem a dizer.

Do meu lado, digo apenas que há várias formas de reequilibrar o orçamento público com geração de emprego e redução de desigualdades, desde que petistas e ex-antipetistas concordem com uma pauta mínima de estímulos de curto prazo e reformas de longo prazo, mas hoje isso virou “detalhe” para depois das eleições.

Agora a prioridade é apoiar o santo guerreiro contra o dragão da maldade, por isso é Lula de novo com a força do povo!

Economia Comportamental

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As transformações econômicas são gigantescas na sociedade contemporânea, as estruturas produtivas estão se alterando rapidamente, os modelos de negócios estão passando por grandes alterações, o mundo do trabalho está em forte modificação, a riqueza vem sendo transformada, anteriormente, as riquezas eram tangíveis e, na atualidade, as riquezas são intangíveis, com isso, percebemos novos campos de estudo na economia e de reflexões sociais, surgindo a economia comportamental, com novos desafios, novas perspectivas e novas oportunidades de reflexão sobre o pensamento econômico.

Neste momento de novas reflexões, percebemos que alguns pressupostos centrais da ciência econômica estão perdendo espaço e sendo questionados abertamente, gerando constrangimentos e novas formas de refletir sobre as realidades econômicas da contemporaneidade. O homem econômico, anteriormente era visto como o agente dotado de grande racionalidade, que era visto como a base da maioria das teorias econômicas clássicas e que defendiam a tese de que o comportamento dos indivíduos era constantemente racional e automático, advogando que as escolhas dos seres humanos eram sempre racionais. Neste momento, está surgindo novos instrumentos de reflexão teórica e novas formas de tomada de decisão. Com o passar do tempo, essa visão perdeu força e vem perdendo espaço nas discussões econômicas, gerando novos constrangimentos, novas discussões, novos horizontes e novas inquietações.

O princípio da racionalidade econômica é baseado no sentido de que os indivíduos se comportam de maneira sempre racional e consideram opções e decisões dentro de estruturas lógicas de pensamento, em oposição a envolver elementos emocionais, morais ou psicológicos. A maioria das teorias econômicas clássicas é baseada na suposição de que todos os indivíduos que participam de uma atividade estão se comportando racionalmente. Este pensamento contribuiu para que a ciência econômica se afastou do pensamento social e gerou um sistema baseado em cálculo matemático, com equações de grande compreensão e modelos sociais distantes na realidade prática.

Nos anos 1950, alguns autores começaram a refletir sobre a interação entre o campo da economia e do campo da psicologia, até então estas duas ciências pouco se relacionavam, a primeira sempre muito matemática, a segunda, baseada no experimental. Posteriormente, alguns teóricos passaram a flertar com essas disciplinas buscando criar modelos mais realistas de como os indivíduos tomavam decisões econômicas. Destas reflexões teóricas, destacamos autores como Richard Thaler e Daniel Kahneman, que publicaram trabalhos explorando as anomalias das teorias econômicas convencionais. A economia comportamental nasce para responder essas situações não explicadas através do método experimental, garantindo a estes autores o prêmio Nobel da Economia.

Seus pesquisadores partem de uma crítica à abordagem econômica tradicional, apoiada na concepção do “homo economicus” que é descrito como um tomador de decisão racional, ponderado, centrado no interesse pessoal e com capacidade ilimitada de processar informações. A economia tradicional considera que o mercado ou o próprio processo de evolução são capazes de solucionar erros de decisão provenientes de uma racionalidade limitada, com isso, percebemos a fé cega nos mercados como agentes de organização social.

Em contraposição a essa visão tradicional, a Economia Comportamental sugere que a realidade é diferente: As pessoas decidem com base em hábitos, experiência pessoal e regras práticas simplificadas. Aceitam soluções apenas satisfatórias, buscam rapidez no processo decisório, tem dificuldade em equilibrar interesses de curto e longo prazo e são fortemente influenciadas por fatores emocionais e pelo comportamento dos outros.

As novas ideias trazem novos horizontes para a ciência econômica, recolocando os seres humanos no centro das questões mais relevantes, mostrando que por trás dos cálculos econômicos existem indivíduos, com vontades, desejos e necessidades.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 05/10/2022.

Bem-aventurados os perseguidos, por Juliano Spyer.

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Igrejas evangélicas estão sendo cúmplices de perseguição religiosa e política e de assediar moralmente seus fiéis?

Juliano Spyer, Antropólogo, pesquisador do Cecons/UFRJ, autor de Povo de Deus (Geração 2020) e criador do Observatório Evangélico.

Folha de São Paulo, 29/09/2022.

Quando pensamos em perseguição religiosa, vem à mente a imagem de uma religião reprimindo representantes de outra. Nesta eleição, essa atitude foi superada: líderes e fiéis atacam, humilham e perseguem seus próprios irmãos e irmãs em Cristo.

O motivo da perseguição não é a igreja ter abandonado a posição de neutralidade para fazer política. Nem é o fato de líderes evangélicos terem abraçado a candidatura do presidente Bolsonaro e, por isso, usarem o espaço das igrejas para fazer propaganda eleitoral. O problema está em atacar e demonizar quem pensa diferente.

O pastor Nilson Gomes, da Assembleia de Deus, resumiu a indignação do evangélico que rejeita a bolsonarização das igrejas. Em uma pregação de 2019 que viralizou na internet, ele diz: “Eu sei [que] a Igreja tem sua vocação política. Eu não sou contra… Não quero nem saber em quem você votou. O voto é secreto, é livre e democrático. E você exerceu a sua obrigação e o seu direito de cidadão. Não é disso que eu estou falando, mas eu não posso me calar. E eu não vou me calar com pastores e igrejas que, para apoiar candidato, fazem arminha com a mão.”

É tragirônico uma igreja que se diz perseguida perseguir e tornar um inferno a vida de alguns de seus pastores e fiéis. De um lado, pregam o medo da “ameaça comunista” e, do outro, praticam a mesma perseguição ideológica de regimes totalitários.

Repreendido por participar de uma reunião de pastores com Lula, o pastor batista Sérgio Dusilek escreveu: “Não contaminei o espaço religioso: o templo. Não profanei o sagrado: o culto. Tampouco violei a consciência de qualquer congregação. Estava em um clube, em um evento político, com cidadãos e cidadãs de variados matizes de fé e ideologias… [Entretanto,] os batistas permitiram acenos ao espectro político mais à direita, tolerando inclusive a fala presidencial em assembleia. Tampouco condenaram o apoio de líderes denominacionais a candidatos.”

Neste domingo (25), no culto de posse do pastor batista Deividson Brito, transmitido pela internet, a igreja exibiu mensagem do presidente Bolsonaro. A Convenção Batista se manifestará como fez em relação ao pastor que declarou apoio a Lula?

A maneira como pastores e fiéis vêm sendo repreendidos, perdem seus cargos ou são cancelados e expulsos, a partir de decisões internas, sem prestar contas a suas comunidades, avisa como a dissidência é tratada.

É tragirônico também que essa nova inquisição esteja partindo de igrejas protestantes. Foram elas que lutaram e sofreram perseguições pela defesa da liberdade de culto, de expressão e de consciência. A ideia do estado laico é produto do ativismo protestante, para que estado e igreja existam separadamente e para que todas as formas de crer (e de não crer) tenham espaço.

Quantos fiéis vivem com medo e vergonha em suas igrejas porque não querem votar em Bolsonaro? O que temos de dados é o crescimento de número de desigrejados especialmente entre os jovens, e os casos conhecidos de pastores afastados de suas funções. Entre eles, Ed Rene Kivitz, Odja Barros, Sérgio Dusilek, Edson Nunes, Tiago Arrais e Alan Gentil. É a ponta visível desse iceberg.

A pressão nas igrejas aumenta na medida em que metade dos eleitores evangélicos não pretende votar em Bolsonaro no primeiro turno. Sair da igreja é uma decisão cara e dolorosa para o crente comum. Ficar na igreja também pode ser traumático: viver escondido, silenciado, eventualmente perder cargos e ser excluído do convívio social dentro de suas comunidades de fé. Além de ouvir que você será punido por supostamente contrariar a vontade de Deus. Não é pouca coisa para alguém que crê.

Por isso, o ambiente das igrejas dominadas pelo bolsonarismo lembra o de empresas que acobertam atos de assédio sexual. A vítima muitas vezes silencia porque tem medo de sofrer retaliações e de ser estigmatizada.

Me pergunto, então, em que medida, juridicamente, igrejas – que deveriam oferecer acolhimento – estão sendo cúmplices de perseguição ideológica e religiosa, e de assediar moralmente e provocar problemas de saúde mental em uma parte dos fieis?

A proposta do Emprego Digno Garantido, por Ladislau Dowbor.

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Nova bandeira de luta, em tempos de crise: livro de Pavlina Tcherneva demonstra que Estados podem assegurar trabalho com direitos a todos os que o desejem. Garante renda e pertencimento social. Economiza recursos e esforço administrativo

Ladislau Dowbor – Outras Palavras – 03/08/2022

É perfeitamente possível assegurar uma sociedade com garantia de emprego. O setor privado empresarial constitui uma ótima fonte, e dominante, e o emprego público complementa. Mas lembremos que no caso do Brasil temos apenas 33 milhões de empregos formais privados, e 11 milhões de emprego público, o que nos deixa longe dos 106 milhões da nossa força de trabalho. Somando os 40 milhões do setor informal, que ganham em média a metade do que ganham os empregados do setor formal, os 15 milhões de desemprego aberto e os 6 milhões de desalentados, temos algo como 60 milhões de pessoas mal inseridas em atividades produtivas, o que significa um gigantesco desperdício de potencial produtivo. Segundo a ideologia primitiva que domina, devemos restringir o emprego público, e aguardar que os mercados resolvam. É a ideologia da austeridade, apoiada na narrativa da responsabilidade fiscal e de concentração de renda e riqueza. O problema não é as pessoas não terem vontade de trabalhar, e sim de não terem oportunidades.

O estudo de Pavlina Tcherneva, centrado nos Estados Unidos, mas sem dúvida cheio de lições para qualquer economia, foca precisamente como o governo pode assegurar uma garantia de emprego para todos os adultos, absorvendo, de maneira contracíclica, as flutuações de desemprego no setor privado, com pagamento do piso salarial. O financiamento viria do orçamento federal, mas a gestão se daria no nível local, nos Estados e municípios, apoiando-se inclusive nas organizações da sociedade civil, comunidades organizadas. A ideia geral é que como o desemprego e a subutilização do trabalho representam custos humanos e econômicos muito elevados, assegurar trabalho remunerado constitui uma opção de win-win: no balanço de custos e benefícios, a sociedade ganha em produtividade, em estabilidade social, e em equilíbrios financeiros, inclusive das contas públicas.

Não se trata de tiros no escuro. A Índia, com o National Rural Employment Guarantee Act (NREGA), garante um mínimo de 100 dias de trabalho pago por família por ano, um programa que atinge uma grande massa de subempregados rurais, mas hoje se expandiu para áreas urbanas. Uma das primeiras experiências foi o New Deal americano dos anos 1930, que envolveu 13 milhões de trabalhadores no quadro do Works Progress Administration, com efeito anticíclico: programas de infraestruturas urbanas nas cidades, saneamento básico, expansão de serviços básicos e outras iniciativas permitiram não só melhorar as condições de vida dos habitantes, como geraram demanda com a renda criada, o que por sua vez redinamizou o setor empresarial e o emprego privado. Celso Furtado há tempos mencionava que frente a trabalhadores parados, qualquer atividade é lucro.

A resistência a essa ideia por parte das elites é compreensível. A garantia de um emprego decente oferece aos trabalhadores uma alternativa a remunerações e condições de trabalho indignas que tanto se expandem no quadro de uma grande massa de desempregados e subutilizados, argumento particularmente forte nessa era de precariado. Como o programa é financiado com recursos públicos, o argumento utilizado é que geraria a inflação. No Brasil hoje, em nome de proteger o país da inflação, eleva-se a remuneração dos títulos públicos, essencialmente nas mãos dos 10% mais ricos (85%), e se aprofunda ainda mais a desigualdade. Na realidade, no quadro de uma ampla subutilização da capacidade e do potencial econômico do país como temos hoje (as empresas produtivas trabalham com 30% de capacidade ociosa), expandir atividades de utilidade pública que aumentam a demanda termina ampliando o nível de produção do próprio setor privado, além de contribuir com bens e serviços públicos necessários. Gera-se assim um ciclo virtuoso de ampliação de demanda, redução de desemprego e crescimento econômico.

Em termos administrativos Tcherneva traz numerosos exemplos de como as próprias estruturas de provimento de serviços sociais, inclusive todo o sistema de apoio financeiro aos desempregados, podem perfeitamente ser utilizadas para administrar o programa. De certa forma, em vez de financiar o desemprego, passa-se a financiar a garantia de emprego. As experiências já antigas no Brasil, com “frentes de trabalho”, acabaram com coronéis do Nordeste financiando açudes nas próprias fazendas, em vez de aumentar o capital do território com obras e serviços públicos. Mas numerosas iniciativas como a recuperação de praias em Santos, na “Operação Praia-limpa”, com obras de saneamento na cidade, não só tiveram custos limitados, como tornaram a cidade novamente atrativa para o turismo, dinamizando hotelaria, restaurantes e outros serviços, transformando o que foi uma operação temporária de uso dos desempregados da cidade numa fonte de empregos permanentes.

A visão de Tcherneva é que se trata de considerar o acesso ao emprego básico como um direito humano. (“to reaffirm the access to a basic job as a human right”, p.104). Mais governo? “A preocupação com o tamanho do governo tem o seu contrário. Já temos um ‘big government’, envolvendo centenas de bilhões de dólares, tempo, recursos, e esforço administrativo para lidar com os custos econômicos e sociais do desemprego, subemprego e pobreza. Como notado, o desemprego já foi custeado, possivelmente com custos multiplicados muitas vezes. A Garantia do Emprego reduziria esses custos do governo federal, enquanto também cortaria os custos de famílias, empresas e estados.” (p.101) Keynes já mencionava o absurdo de tanta gente parada com tantas coisas para fazer.

A existência de uma massa de desempregados e subempregados melhora sem dúvida a capacidade, por parte das empresas, de negociar contratações em situação desfavorável para o trabalhador, forçado a aceitar o que lhe propuserem, expandindo inclusive o trabalho informal. Uma garantia de emprego não substitui o setor empresarial privado, mas gera um contexto mais equilibrado, inclusive enriquecendo a sociedade com atividades que não interessam necessariamente ao setor privado. A autora lembra que “nos anos 1930, o programa Tree Army do Roosevelt plantou 3 bilhões de árvores, criou e reabilitou 711 parques estaduais, construiu 125 mil milhas de trilhas para caminhões, desenvolveu 800 parques estaduais novos, controlou a erosão de solo em 40 milhões de acres de solo agrícola, melhorou pastagens em terras públicas, e aumentou a população de animais. Esses projetos inspiraram uma vida nova no movimento de conservação ambiental dos Estados Unidos, antecessor do movimento de proteção climática dos nossos dias.” (p.94) Nesta era de prioridade de políticas ambientais, são ganhos em todos os níveis.

Na Índia o programa exige que as administrações municipais organizem um cadastro de projetos de utilidade social e que sejam intensivos em trabalho. No projeto mencionado de Santos, no levantamento dos desempregados da cidade, foram encontradas numerosas pessoas com curso superior, o que permitiu enquadrar grupos mais amplos, e diferenciar as atividades. Nas propostas de Tcherneva, “Os municípios em cooperação com grupos comunitários poderiam conduzir levantamentos semelhantes, catalogando as necessidades da comunidade e os recursos disponíveis ao desenhar os bancos de empregos comunitários. As organizações comunitárias, ONGs, empreendedores sociais e cooperativas podem também solicitar fundos diretamente no Ministério do Trabalho. Os financiamentos são concedidos com condições de 1) criação de oportunidades de emprego para desempregados; 2) sem efeito de substituição de trabalhadores existentes; 3) atividades realizadas úteis, medidas pelo seu impacto social e ambiental.” (p.86)

A autora faz um levantamento detalhado do custo-benefício do programa. “Assumindo uma visão conservadora sobre as economias realizadas, o impacto do programa sobre o orçamento, no cenário mais elevado, é de menos de 1,5% do PIB por ano. É plausível que ao se contar todas as reduções de gastos no setor governamental para desemprego, junto com todos os efeitos multiplicadores econômicos e sociais, o impacto orçamentário do programa seria neutro, ainda que isso não seria um critério de sucesso já que em momentos recessivos o governo normalmente precisa aumentar os gastos deficitários.” (P.79) Lembremos que no Brasil a evasão fiscal custa cerca de 7% do PIB, e que 80% do aumento da dívida pública, que atinge 90% do PIB, resulta não do uso produtivo dos recursos públicos, por exemplo com políticas sociais e financiamento de infraestruturas, mas com pagamento de juros às grandes instituições financeiras que aplicam na dívida pública. Pagamos o Estado para que transfira dinheiro para grupos financeiros, em vez de assegurar o financiamento do que a sociedade precisa.

“Um trabalhador não tem poder para dizer ‘não’ a um emprego ruim, a não ser que tenha a garantia de uma opção de um bom trabalho com pagamento decente.”(p.62) Neste sentido, um programa de garantia de emprego constituiria uma alavanca para relações de trabalho mais civilizadas. E ao dinamizar a economia no seu conjunto, gera efeitos positivos para o próprio setor empresarial privado. Tcherneva refuta radicalmente a visão ensinada nos cursos de economia, de que um desemprego básico é importante, ou “natural”, para que não haja pressões salariais ou inflação.

E traz o impacto dramático do desemprego para as famílias: “O desemprego está entre as causas da desnutrição, de crianças prejudicadas no crescimento, de problemas de saúde mental, resultados fracos na educação e no mercado de trabalho, redução de mobilidade social de esposas e de crianças. Nos Estados Unidos, as crianças sofrem a maior taxa de pobreza e 80% das crianças pobres moram numa família sem um trabalhador empregado.”(p.37)
De certa forma, ao invés de mitigar os impactos, miséria, fome, aumento de criminalidade, de prostituição e outros efeitos de adultos sem saída na vida, trata-se de enfrentar a principal causa, a ausência de um enquadramento laboral que permita tanto o acesso à renda como um sentimento de pertencimento social. Os Estados Unidos têm 4% da população mundial, mas 25% da população carcerária. Um suicídio de cada cinco é ligado ao desemprego. E mesmo nas famílias com emprego, o sentimento da permanente ameaça da destituição, de uma situação em que não poderão proteger os filhos, gera sofrimento e angústia simplesmente desnecessários.

O livro de Pavlina Tcherneva é curto, muito bem documentado, e centrado nas questões práticas: como funciona ou pode funcionar, quanto custa, como se administra, como se financia, quais os resultados já constatados em diversas experiências. Sai muito mais barato tirar os pobres da miséria do que arcar com as consequências. Se ainda por cima nos permite realizar um conjunto de atividades que clamam por braços e cabeças, temos tudo a ganhar. O livro convence.

Riscos Mundiais

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Não é uma novidade para ninguém que vivemos numa sociedade global marcada por grandes incertezas e instabilidades, dificuldades econômicas crescentes, desafios geopolíticos, conflitos militares, desigualdades sociais, degradação ambiental, crescimento da imigração e as polarizações políticas. Neste ambiente, as perspectivas são preocupantes, aumentando o individualismo, o imediatismo, a violência e a insegurança, levando muitos indivíduos e grupos sociais a pregarem medidas extremadas, respostas insatisfatórias e teses equivocadas, postergando soluções e reflexões mais estruturadas.

A economia internacional vive momentos de volatilidades, inflação crescente com impactos sobre a renda da população, taxas de juros elevadas, aumento do desemprego ou degradação das condições de trabalho, endividamento da população e o crescimento das desigualdades sociais, contribuindo para a construção de um cenário econômico com baixo crescimento e aumento da pobreza. A eclosão de uma guerra na Europa aumenta os custos energéticos, eleva os preços dos combustíveis, dificuldades econômicas para empresas e conglomerados, levando governos nacionais a nacionalizarem setores, aumentando os subsídios para impedir as asfixias dos consumidores, com isso, impedindo a bancarrota das famílias e dos setores produtivos, além de pressionarem as contas públicas, elevando o endividamento das nações com juros maiores.

Depois de uma pandemia que gerou milhões de mortos em todas as regiões do mundo, o mínimo que a sociedade mundial deveria fazer era auxiliar na reconstrução das estruturas econômicas, produtivas e sociais devastadas, reaproximando as nações, coordenando as ações necessárias e reconstruindo novos espaços de investimentos públicos e privados, além de recuperarem a educação e a saúde, setores que foram imensamente impactados. Neste momento, infelizmente, o pós-pandemia incrementou os conflitos militares, aumentando os gastos bélicos e as rivalidades entre as nações, os discursos ásperos nos encontros mundiais, os comportamentos hostis e agressivos, gerando animosidades e preocupações com a escalada de uma guerra nuclear, cujos impactos são assustadores, perturbadores e incalculáveis.

Vivemos um momento de grandes desafios e oportunidades, onde devemos destacar o aumento das desigualdades econômicas e sociais. que crassa a comunidade internacional, neste cenário um pequeno grupo de bilionários domina a grande parte das riquezas globais em detrimento de uma massa de indivíduos fragilizados e precarizados, sem empregos, sem benefícios, sem perspectivas e sem dignidades. Sem combatermos as desigualdades crescentes da sociedade contemporânea, gerados por um sistema excludente, imediatista e dominados pelos agentes financeiros, os conflitos tendem a aumentar, as desigualdades tendem a elevar, os medos tendem a crescer e a insegurança tende a aumentar.

Percebemos ainda, neste ambiente externo instável, o aumento das tensões entre as grandes potências econômicas, EUA e China, constantemente duelam verbalmente nos palcos internacionais, gerando incertezas econômicas e preocupações políticas, que impactam negativamente sobre investimentos, aumentando o protecionismo e políticas unilaterais que prejudicam o sistema econômico e produtivo mundiais, reduzindo a oferta de empregos e fragilizando as condições de vida da população global.

Depois de uma crise sanitária como a gerada pelo coronavírus, que fragilizou as sociedades e criou desafios contemporâneos, um conflito militar e o incremento de confrontos econômicos entre as grandes superpotências, podem piorar as condições econômicas internacionais, aprofundando a desigualdade social e a degradação das estruturas políticas e sociais, abrindo espaço para o surgimento de movimentos autoritários, mais violência, discursos de ódio e desesperanças.

A situação internacional gera preocupações e constrangimentos, além do ambiente econômico hostil, destacamos os problemas climáticos e as questões de imigração que necessitam de uma cooperação internacional e lideranças políticas engajadas e, internamente, precisamos reconstruir novos espaços de sociabilidade, aumentando nossa autonomia, fortalecendo a democracia, reduzindo a pobreza e retomando o verdadeiro crescimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 28/09/2022.

Refazer o país, por Marilena Chauí.

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Marilena Chauí, professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Contra a servidão voluntária (Autêntica).

A terra é redonda – 26/09/2022

A tarefa do novo governo será enorme, difícil, e exige que a esquerda encontre seus pontos em comum
A tarefa da esquerda

Há uma visão ideologizada e, por tanto, ilusória, de que a pluralidade da esquerda representa uma crise. Eu penso que, pelo contrario, a multiplicidade enriquece a concepção da esquerda. Sem apagar as diferenças, nem pretender uma falsa unidade, a reunião periódica das esquerdas, em determinadas circunstâncias, é essencial. Há momentos em que um setor paralisa e outros procedem. De vez em quando o PT se paralisa, mas isso é compensado por inovações do PSOL.

Tenho insistido de que, pelo menos no primeiro ano de governo, tem que haver uma reunião, uma perspectiva comum, porque o governo vai enfrentar uma dificuldade gigantesca. Vai ter que refazer o país.

Há 33 milhões de desempregados no Brasil, 30 milhões de pessoas passando fome. Não há condição de pensar num plano econômico e de restruturação se a esquerda não operar em conjunto. Porque a oposição que vai ser feita, tanto pela direita como pelo centro, vai ser gigantesca.

A tarefa é enorme, difícil, lenta, e exige que a esquerda encontre seus pontos comuns.

Cinco pontos em comum
Será preciso recuperar uma proposta contra a economia neoliberal. É preciso recuperar o papel do fundo público e dirigi-lo a atender os direitos sociais. O fundo público tem que assumir novamente seu papel de garantia desses direitos.

Um segundo ponto é retomar aquilo que foi característica importantíssima do primeiro governo Lula: as conferências nacionais. O PSOL denomina de “consulta contínua às bases”. É necessária a retomada, num nível mais intenso, das conferências nacionais. O Poder Executivo e uma parte do Legislativo devem estar em contacto permanente com as demandas sociais.

Um terceiro ponto comum é a ideia de uma reconfiguração do Legislativo. Não sei se vai ter êxito, nem se será possível, mas é preciso encaminhar, logo no início, uma reforma política.

Um quarto ponto é o lugar proeminente da educação, a retomada da educação contra o desmonte do que foi trazido pela doutrina difundida por Olavo de Carvalho. Não houve um Ministro de educação deste governo que se salvasse. Não houve intervenção sobre a docência, mas houve no financiamento das pesquisas, nas escolhas dos Reitores, um desbaratamento total das faculdades técnicas (uma ideia muito cara à Dilma Rousseff).

Um quinto ponto é a questão de gênero. Não pensava ser possível, no Brasil, o machismo exposto nas formas mais perversas como nestes últimos cinco anos. Não é só a questão do machismo. É a da sexualidade, de gênero, das mulheres.

A agenda anticomunista
A agenda anticomunista esvaziou e eles pegaram uma carona na agenda do Donald Trump, que também se esvaziou.

A desmontagem dessas duas perspectivas faz com que a extrema direita caminhe em direção ao totalitarismo (não ao fascismo), por meio das Igrejas evangélicas, que desbarata a classe trabalhadora, toma o precariado para si e impede uma organização da base social. Esse é o projeto: impedir a organização da base social, da classe trabalhadora. Esse é o programa do movimento “Escola sem partido” e era a plataforma do Olavo de Carvalho.

Ao mesmo tempo, o percurso politico vai ser o da ameaça contínua da derrubada do governo, de intervenção no Legislativo e de ameaça de golpe quase cotidiana. Eu temo o que possa acontecer de outubro ou novembro até primeiro de janeiro, quando o novo governo toma posse. Não é só a ameaça de golpe, mas também a possibilidade do assassinato do Lula. Tem voluntário à beça para fazer isso.

A vitória de Lula
Essa é a única possibilidade que temos de refazer o país. Por um lado, ela representa uma exigência social e política de encontrar uma barreira para a extrema direita e para as formas mais perversas do neoliberalismo.

Eu vejo Lula como um estadista. Ele representa a percepção do Brasil na América Latina e no mundo; do nosso papel, que aparece com a criação do Mercosul e logo se desenvolve com nossa presença em grupos como o G-20 e o G-8, em nossa política externa de afirmação e não de subordinação.

Em termos populares, é a esperança de retorno dos direitos sociais, de recomposição da economia e da educação, que precisa ser refeita de cima abaixo.

Ele vai ter que negociar muito e não é por acaso que escolheu como candidato a vice-presidente o ex-governador Geraldo Alckmin. O vejo capaz de perceber quais são as negociações que garantirão direitos à sua base social. Não é uma negociação para se manter no poder, é uma negociação na qual certas exigências básicas terão que ser negociadas. Ele é capaz de fazer isso.

Lava Jato
Fui contra essa operação desde o primeiro instante, quando ainda aparecia como algo honesto. Nunca deixei de relacionar o timing da aparição do projeto com as dificuldades da economia, na época do governo de Dilma Rousseff. Havia dificuldades no manejo da economia, com a troca de ministros e a Lava Jato funcionando. Dilma Rousseff é uma mulher de princípios que não negocia. Não era desconhecido, no país, o antagonismo entre ela e o Michel Temer. Ela tolerou aquele vice, mas não o deixava participar em nada do governo.

A Lava Jato me fazia recordar a figura do Carlos Lacerda. Em instante nenhum considerei que havia seriedade na Operação Lava Jato. Pesquisei um pouco a formação e o trabalho dos principais agentes da Lava Jato. Eles não eram expressão do que havia de excelente no mundo jurídico brasileiro. Eram figuras inexpressivas.

Considerei a Lava Jato como emissária do Departamento de Estado norte-americano. A vi como uma operação política. Isso logo tornou-se uma evidência enorme. O fato de ter como alvo a Petrobras (e sabemos o que quer dizer isso), indica que havia alguma coisa por trás.

As Forças Armadas
O golpe de 1964 ocorreu sob o guarda-chuva da Aliança para o Progresso, da política do Departamento de Estado dos Estados Unidos, e do governo Kennedy. Militares brasileiros, educados nos Estados Unidos, trouxeram a ideia de que Cuba era uma ameaça, vieram com um projeto, logo adaptado à realidade brasileira.

No início do governo do Marechal Castelo Branco (1964) e no período final da ditadura militar, com o general Golbery do Couto e Silva, eles tinham uma ideia do que era o Brasil, do que devia ser a América Latina e do que deviam fazer. A resposta armada da esquerda ao governo militar provoca algo não previsto: o Ato Institucional número 5 (AI-5), em 1968. Após esse Ato foi preciso reelaborar o projeto, e isso é o que o Golbery tentou fazer.

Havia no governo gente bem formada, informada, com projetos. Não é o que temos agora.

Hoje temos na ativa as Forças Armadas tradicionais, mas destituídas de um projeto nacional. Do lado do Executivo temos simplesmente uma apropriação econômica dos recursos do Estado. Jair Bolsonaro absorveu, no Poder Executivo, um setor das Forças Armadas. Há quase dez mil militares no governo. Os militares se viram numa posição de poder sobre o mundo civil e, mediante uma corrupção sem fim, a possibilidade de ficarem ricos.

Se houver golpe será feito por esse grupo que se encravou no poder do Estado e que não quer perder os privilégios que conseguiram.

Texto estabelecido a partir de entrevista concedida ao jornalista Gilberto Lopes.

O parasitismo financeiro derrotou a independência, por Ladislau Dowbor.

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Desindustrialização, desnacionalização e endividamento opressivo sugam recursos da maioria para servir a interesses estrangeiros e uma elite local clientelista. Ao celebrar o bicentenário, temos a soberania por resgatar
Ladislau Dowbor – Outras Palavras – 14/09/2022

A economia hoje é em grande parte globalizada. Em particular, com o dinheiro impresso por governos substituído por dinheiro virtual emitido também por bancos (97% da liquidez), as finanças passaram a funcionar em escala planetária. Por exemplo 3 corporações privadas, BlackRock, Vanguard e State Street, administram cerca de US$ 20 trilhões de dólares, três vezes o orçamento federal dos Estados Unidos. A globalização financeira reduz drasticamente a autonomia dos países definirem os seus rumos, já não só frente a países mais fortes, mas frente ao poder corporativo. Basicamente temos governos nacionais que enfrentam uma economia globalizada. O conceito de independência encontra aqui uma limitação estrutural.

Um segundo eixo que limita a autonomia de decisão é o controle norte-americano sobre as transações internacionais, por meio da dominação do dólar. Essa herança de Bretton-Woods, do fim da II Guerra Mundial, permite aos Estados Unidos emitirem dólares sem limites, sem gerar inflação ou desvalorização da moeda, na medida em que são absorvidos por bancos centrais de diversas partes do mundo. Tentativas de os países comercializarem entre si sem passar pelo dólar e taxas de transação são até hoje atacados militarmente pelos Estados Unidos (Iraque e outros). Um novo polo está se constituindo, inicialmente com China, Rússia e Irã, e numerosos interessados. A soberania do dólar é uma herança da hegemonia americana de 1945, hoje fragilizada e pouco realista. As propostas em discussão vão no sentido de um sistema internacional com várias moedas, mas por enquanto a limitação à soberania continua.

A soberania de um país depende também da sua capacidade de canalizar os recursos financeiros segundo as suas prioridades. A facilidade com a qual os recursos financeiros no Brasil são canalizados para paraísos fiscais torna qualquer tentativa de regulação muito precária. No Brasil o poder das corporações internacionais do agronegócio, ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus (ABCD), que controlam 80% do comércio de grãos, leva a que o país priorize exportações, enquanto 33 milhões de pessoas passam fome, e 125 milhões estão em situação de insegurança alimentar.

A Índia, por exemplo, frente ao problema da fome, proibiu as exportações de trigo. O Brasil não só mantém a fome como isentou os exportadores de impostos (Lei Kandir, 1996), e os lucros e dividendos distribuídos são igualmente isentos de impostos (1995). O país é simplesmente drenado, inclusive com o Ministro da Economia escondendo milhões em paraíso fiscal (sob o nome código Dreadnaught). Ou seja, a opção de orientar os recursos para onde o país deles precisa, se vê muito limitada pelo sistema internacional de dreno. Em 2012 o Tax Justice Network estimou que o volume de capitais brasileiros em paraísos fiscais era da ordem de um terço do nosso PIB.

Interesses semelhantes atingem a autonomia energética. O fato do Brasil ter forte base hidrelétrica, e grandes reservas de petróleo, deveria assegurar independência no setor. Não se imagina a China, por exemplo, entregar o controle da sua base energética a corporações transnacionais. A Petrobrás, no quadro de um governo submisso a interesses internacionais, passou a cobrar preços absurdos no mercado interno – não há nenhuma razão econômica de se cobrar preços internacionais por um produto que é nacional – de forma a alimentar acionistas globais com dividendos elevados. Acionistas nacionais estão amarrados aos interesses internacionais, gerando travamento da economia pela elevação de preços da energia. Custos energéticos impactam numerosos setores. O processo pode ser encontrado nas diferentes privatizações: ao abrir acesso aos recursos do país pelos acionistas internacionais – por exemplo BlackRock, Glencore, Billiton e outros – com os seus aliados internos, perde-se a capacidade de usar recursos primários para financiar atividades industriais, ciência e tecnologia e semelhantes. Grande parte do legislativo depende de lucros indiretos obtidos pelo dreno de riquezas assim constituído. A privatização, na medida em que abre as empresas para compra de ações, significa desnacionalização. A independência cultural tem uma importância essencial. Mas a mídia comercial vive de publicidade paga em parte dominante pelos mesmos interesses.

Quando vemos grandes jornais explicar que devemos pagar os preços internacionais por um produto que é da nação, é o próprio conteúdo jornalístico que é apropriado pela lógica corporativa e da ideologia norte-americana. É muito impressionante varrermos os canais de televisão para encontrar um filme decente, passando por uma sequência de conteúdos quase idênticos, norte-americanos, com aviso de “violência, sexo, drogas”. O mundo tem uma imensa riqueza cultural que não aparece. O vazio cultural criado não aparece como vazio, pois sequer o conhecemos. O uso político da religião nos faz olhar para os céus quando deveríamos olhar para as crianças que passam fome.

É importante entender que hoje o país perdeu grande parte da sua independência não por intervenções ou ameaças externas, mas pela constituição de elites internas que são “clientes” (no sentido de Estado clientelista) dos interesses externos. A dependência está enraizada na força das fortunas internas e dos seus representantes políticos. A perda de soberania tem poderosas raízes locais. Há conexões profundas entre a desigualdade explosiva, a miséria de tantos, a entrega dos recursos naturais, o endividamento generalizado da população, e a orientação geral da economia e da política. Há poucos anos o Brasil foi tirado do mapa da fome, hoje a fome se generalizou. O país tinha se industrializado.

Hoje apenas dois setores são pujantes na economia: a exportação de bens primários e a intermediação financeira, ambos ligados aos mesmos interesses de um mundo financeirizado. A chamada autonomia do Banco Central, tirando do governo ferramentas de regulação financeira, completa um quadro de entrega de soberania que hoje depende mais de quem manda no dinheiro do que de quem manda na tropa. Quando vemos quem se veste de bandeira do Brasil, não podemos deixar de ver a ironia.

O reverso da medalha é que voltar a desenvolver o país em função dos interesses nacionais, do interesse geral da população, envolve uma reorientação econômica profunda: eliminar a Lei Kandir, para que a alimentação sirva ao país que a produz. Voltar a cobrar impostos sobre lucros e dividendos, para que os ricos paguem um imposto como o paga a população em geral. Usar as receitas geradas para voltar a financiar a educação, a ciência e a tecnologia, a pequena e média indústria, a saúde, as políticas ambientais. A independência hoje significa colaborar com a comunidade internacional para enfrentar os dramas globais, construir uma sociedade mundial economicamente viável, mas também socialmente justa e ambientalmente sustentável. Colaboração construtiva, em vez de submissão. O que fazer não é mistério: voltar a usar os recursos em função do bem comum. Isso gera PIB, gera emprego, gera desenvolvimento, e sobretudo resgata a dignidade nacional.