Uma breve história da igualdade, por Jorge Félix

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Jorge Félix – A Terra é redonda – 25/09/2022

Comentário sobre o livro recém-editado de Thomas Piketty

O surgimento do economista francês Thomas Piketty no debate público mundial, em 2014, ainda precisa ser revisto pelos pesquisadores da comunicação como um dos maiores vexames do jornalismo econômico mainstream. O fato de o hoje best-seller planetário Capital no século XXI, traduzido em mais de 40 idiomas e com vendas acima de 2,5 milhões de exemplares, revelar uma tendência consistente de concentração de riqueza no funcionamento do capitalismo

contemporâneo e defender como remédio um imposto global sobre grandes fortunas e herança da ordem de 80%, fez os mais renomados veículos da imprensa internacional perderem a compostura, a ética e a exatidão e partirem para uma cobertura de desinformação muito antes de arvorarem-se contra opositores de fake news.

É conveniente lembrar esse triste episódio para o jornalismo sempre quando um novo livro do autor chega às livrarias, como agora com Uma breve história da igualdade, que acaba de ser traduzido no Brasil. Essa lembrança é como um antídoto para interpretações equivocadas dos jornalistas de economia e dos leitores. The Economist (que o chamou de “Novo Marx”), Financial Times, Bloomberg passaram maus momentos de credibilidade por estarem mais preocupados em desqualificar a pesquisa de Thomas Piketty do que de analisá-la com a civilidade que deve ser dispensada a todo trabalho acadêmico.

Em 2019, quando lançou Capital e ideologia na França, Thomas Piketty já estava devidamente vacinado contra o vírus do mau jornalismo. A recepção ao seu novo calhamaço [quase 1.200 páginas, parelho ao primeiro livro] foi mais fria, porém, ganhou muito em qualidade. É curioso verificar que os mesmos jornalistas que atacaram Capital no século XXI haviam perdido o fôlego para encarar as novas descobertas e reflexões de Thomas Piketty, justamente no momento em que o mundo se rendia à sua sugestão de adotar programas de transferência direta de renda – embora o autor, em entrevista que fiz com ele, em 2013, portanto, antes de seu sucesso mundial, tenha afirmado que sempre dará preferência à adoção de um sistema tributário progressivo (apesar de uma medida não anular ou dispensar a outra no árduo combate à desigualdade). Ou os jornalistas e veículos de Economia perderam o medo do “Novo Marx” e do “comunismo” ou ficaram, de fato, envergonhados (sem nunca reconhecerem o erro) quando viram governos liberais se “pikettyzarem”, sobretudo depois da pandemia de Covid-19.

O trabalho de Thomas Piketty, porém, é muito mais complexo do que a busca por cliques ou a necessidade de fazer eco à voz do “mercado”. No entanto, embora best-seller, o autor permanece confinado aos muros da universidade. Com exceção do slogan do Occupy Wall Street – I’m 99% – que apareceu em várias placas dos manifestantes, pouco da teoria de Thomas Piketty chegou às ruas. Salvo impulsionar o debate sobre a desigualdade. Mas mesmo o slogan citado ninguém sabia que teve origem em seus trabalhos, apesar de Joseph Stiglitz, a quem o slogan foi atribuído, tenha revelado a legítima autoria (ok, em uma nota de roda-pé!).

É preciso um profundo – profundíssimo – conhecimento econômico, histórico, sociológico, antropológico para dar conta da totalidade de seus argumentos e, talvez, oferecer alguma crítica ou reflexão. Isso, até hoje, como visto com os próprios colegas jornalistas, é um limitador para se entrar no debate. Quebrar essa barreira é a intenção de Thomas Piketty, agora, com seu Uma breve história da igualdade. O autor se propõe a escrever justamente para aqueles que jamais tiveram a coragem de enfrentar suas verdadeiras “bíblias” anteriores. Ou talvez que, antes de fazê-lo, precisam frequentar aulas de alinhamento. Pode ser válido. Inclusive para jornalistas econômicos. Nem sempre Thomas Piketty, nesse livro, é tão simples quanto imaginou ser, no entanto, incomparavelmente, o livro é bem mais acessível e conta a mesma história dos livros anteriores.

O leitor mais familiarizado com a obra de Thomas Piketty perceberá um amadurecimento de determinados pontos teóricos que vão se tornando identificadores de seu pensamento sobre a desigualdade social e a condição sine qua non para o mundo avançar no que ele chama de “marcha rumo à igualdade” – a qual, aliás, para ele, o mundo está condenado. Ainda bem. Embora as desigualdades continuem a se estabelecer em níveis consideráveis e injustificáveis, como sabemos, o leitor encontra um autor muito mais otimista. E quem não está precisando?

Thomas Piketty, como sublinha desde os seus primeiros trabalhos acadêmicos e foi quase uma pedra fundadora de sua linha de pesquisa, destaca a importância da “forte pressão demográfica” em toda a história da igualdade (ou da desigualdade) e como o envelhecimento populacional jogará um papel de destaque no decorrer dessa marcha da humanidade. E seus dispositivos de apoio para torná-la efetiva são: a democracia (sufrágio universal, liberdade de imprensa, direito internacional), o imposto progressivo sobre herança, renda e propriedade, a educação gratuita e obrigatória (e ele defende agora que deve ser “complexa e interdisciplinar”), a saúde universal (alçada nesse livro a um posto bem maior) e a cogestão empresarial junto ao direito sindical.

Esse último ponto merece uma atenção especial. Desde Capital e ideologia, Thomas Piketty explora esse ponto como indispensável dentro de qualquer perspectiva de distribuição de riqueza. De acordo com ele, no atual “hipercapitalismo”, o modelo de administração por gestores ou CEOs remunerados por bonificação e, portanto, centrados apenas no retorno sobre o investimento aos acionistas é um dos maiores estorvos à igualdade.

Sua proposta é a transição para um “socialismo participativo” (como ele usou em Capital e ideologia) ou “socialismo democrático, ecológico e diversificado” (que ele acrescenta agora), baseado em uma “propriedade mista” onde haverá propriedade pública, social e temporária. Dessa forma será possível superar a dicotomia entre o modelo estatal (soviético) versus modelo capitalista (norte-americano). A forma de se instaurar a propriedade temporária é o sistema tributário progressivo, pois, com mais recursos o Estado distribuiria a riqueza por meio de programas de transferência de renda, a começar pelos jovens.

O público leigo desconfiado, com razão, de projeções ou promessas econômicas pode até receber as “utopias” de Thomas Piketty com ceticismo. Mas a leitura de Uma breve história da igualdade é menos teoria e mais uma aula da evolução do pacto social, com suas crueldades, como a herança da escravidão, seus privilégios legitimados pela ideologia e suas revoluções e reações. Antes da “marcha da igualdade”, atestada por Thomas Piketty, precisamos entender o que permitiu a humanidade dar os primeiros passos. Nada foi conquistado sem luta social e o leitor tem no livro um bom resumo dessa lenta desconcentração do poder e da propriedade.

O prognóstico do autor é de que, sendo a desigualdade uma construção política a partir de escolhas históricas, como os sistemas tributário, educacional e eleitoral, outras mobilizações transformadoras serão suscitadas pela injustiça social. Mesmo que isso ainda dependa muito do papel da imprensa, Thomas Piketty insiste que outro mundo é possível, embora ainda incerto.

*Jorge Félix é jornalista e professor de economia no bacharelado em Gerontologia na EACH- USP. Autor, entre outros livros, de Economia da longevidade: o envelhecimento populacional muito além da previdência (Ed. 106 Ideias).

Piketty preconiza crise climática como novo fator de revoluções sociais

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No livro ‘Uma Breve História da Igualdade’, economista relata avanços e falhas na redução das desigualdades

ALEXA SALOMÃO – FOLHA DE SÃO PAULO, 24/09/2022

Nunca foi por empatia ou senso de justiça social. A lenta redução das desigualdades depende da força —de revoluções, crises e leis impostas nos momentos em que se cria espaço para um Estado de direito. O mais novo livro do economista francês Thomas Piketty, “Uma Breve História da Igualdade”, repete esse princípio como um mantra.

Em pouco mais de 250 páginas e capítulos enxutos, o autor entrega o que promete. Faz um relato condensado, mas ilustrativo e bem organizado, de como as diferenças entre base e topo da pirâmide social foram se estreitando nos últimos 300 anos.

Uma profusão de números comprova a redução das desigualdades de renda e propriedade, especialmente de 1914 a 1980, graças ao avanço do Estado de Estado de bem-estar social e à aplicação do imposto progressivo, que passou a cobrar mais tributos dos mais ricos. Há até um capítulo para o tema, no qual Piketty reafirma que esse foi o momento da “grande distribuição”.

Mas o pequeno compêndio traz um truque. Na sua essência, impele o leitor ao sentido oposto —tatear para onde as desigualdades renitentes podem nos levar. Piketty pincela avisos, sempre com gritantes exemplos, sobre como os detentores de poderes político e econômico reinventam alternativas para se preservarem o mais distante possível da maioria menos abastada.

Destaca o autor: “A resistência das elites é uma realidade incontornável nos tempos atuais (com seus bilionários transacionais mais ricos do que Estados), no mínimo tanto quanto na época da Revolução Francesa. Tal resistência só pode ser vencida por meio de poderosas mobilizações coletivas, e em momentos de crises e tensões. Ainda assim, a ideia de que um consenso espontâneo em relação às instituições justas e emancipadoras e que para colocá-las em prática bastaria quebrar a resistências das elites é uma perigosa ilusão”.

O economista elabora a percepção de que o mundo caminha para uma nova etapa em sua busca pela redução das desigualdades, e pontua lacunas, em diferentes áreas, que podem servir de ponto de partida para as tensões propulsoras de mudanças.

Racismo é uma delas. Um exemplo: tornou-se ilegal nas escolas dos Estados Unidos, país que ainda nos anos de 1960 separava brancos e negros em lugares tão triviais quanto banheiros públicos e ônibus. No entanto, a segregação ainda é uma realidade cultural no cotidiano das salas de aulas de estados sulistas.

Há outros muros, étnicos e religiosos. Em 2015, pesquisadores franceses enviaram milhares de currículos para vagas de emprego com a intenção de medir o nível de preconceito a sobrenomes. A taxa de resposta foi quatro vezes menor para candidatos árabes e muçulmanos.

A questão de gênero está longe de ser pacificada. Estudos realizados na Índia com ocupantes de cargos públicos mostraram que a defesa de um mesmo argumento, como para construir uma escola, era considerada mais crível quando proferida por um homem do que por uma mulher.

São também profundos os abismos entre as nações, que refletem, afirma o autor, os efeitos do colonialismo e da desconexão entre Ocidente e Oriente, cada vez mais tensa.

Piketty destaca as disparidades fiscais. De 1970 a 2020, as receitas tributárias dos países mais pobres estagnaram na casa de 15% do PIB (Produto Interno Bruto). Em países africanos, como Nigéria e Chade, representam algo entre 6% e 8% do PIB. As dos países mais ricos, porém, subiram de 20% para 30% no mesmo período.

O economista também relata as dívidas históricas entre ex-dominadores e ex-dominados. O Haiti é um dos exemplos.
O pagamento à França por sua independência é tratado no livro como espoliação. O reinado de Carlos 10º pediu 150 milhões de francos-ouro a título de compensar as perdas de proprietários de terras e de escravos. O valor equivalia, à época (1825), a 300% da renda nacional do Haiti. O pagamento dessa dívida, encerrado apenas em 1950, inviabilizou qualquer chance de desenvolvimento da ilha, ainda hoje um dos lugares mais miseráveis do planeta.

No conjunto dessas antigas disparidades não solucionadas e potencialmente explosivas, Piketty acrescenta novos componentes com desfechos ainda imprevisíveis.

O maior deles é a mudança climática. A herança poluidora está ao Norte. Estados Unidos, Canadá, Europa, Rússia e Japão têm 15% da população mundial, mas representam 80% das emissões acumuladas desde o início da Revolução Industrial.

Hoje a maior parcela das emissões sai dos Estados Unidos, e a menor, da África Subsaariana e do Sul da Ásia. No entanto, quem já sofre os impactos do aquecimento global está no segundo grupo. Piketty teoriza que os cataclismos têm potencial, ainda que não mensurável no atual estágio, de alterar a ordem do mundo que conhecemos.

“A atenuação dos efeitos do aquecimento global e o financiamento de medidas de adaptação para os países mais afetados (em particular no Sul) demandam uma transformação total do sistema econômico e da distribuição das riquezas, o que passa pelo desenvolvimento de novas coalizões políticas e sociais em escala mundial. A ideia de que todos sairiam ganhando é uma perigosa e anestesiante ilusão, que precisamos abandonar o mais rápido possível.”

Outro fator de mudança, já dado como certo pelo autor, ainda que igualmente insondável, é a ascensão da China ao posto de potência número um do planeta.

A China não faz parte da lista dos 50% de países mais pobres desde 2010. Seu PIB supera o dos Estados Unidos desde 2013. A renda nacional, porém, ainda está abaixo, cerca de € 15 mil (R$ 76 mil), ante € 40 mil (R$ 203 mil) na Europa e € 50 mil (R$ 254 mil) nos Estados Unidos. Mantido o crescimento atual, as diferenças serão superadas entre 2040 e 2050.

Piketty acredita que o regime chinês verá na mudança climática uma brecha para firmar força política.
“Em geral, a China não se priva de lembrar que se industrializou sem recorrer à escravidão e ao colonialismo, do qual ela mesma pagou o preço. Isso lhe permite marcar pontos sobre o que é percebido pelo mundo como a eterna arrogância dos países ocidentais, sempre prontos a dar lições a todos no plano da Justiça e da democracia, mesmo se mostrando incapazes de enfrentar as desigualdades e discriminações que os corroem, e pactuando por conveniência com todos os potentados e as oligarquias que os beneficiam.”

Dica. Não deixe de ler as notas. São como capítulos adicionais.

Governo, sim, calango, não, por Rolf Kuntz

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Hoje sem rumo e com milhões empobrecidos, o Brasil poderá retomar o avanço a partir de 2023, sedispuser de um governo de fato.

Rolf Kuntz, jornalista.

Estado de São Paulo, 25/09/2022

Um bife e uma salada – para todos. Com essas palavras, o ministro francês Valéry Giscard d’Estaing, magro e saudável, contou a um robusto brasileiro, numa charge publicada há algumas décadas, a fórmula da boa alimentação.

Desigualdade, pobreza e fome eram temas inevitáveis, naquele tempo, quando o lagarto calango, desconhecido na maior parte do Brasil, se tornou fonte de proteína para nordestinos. A fórmula simples, comida para todos, é requisito básico da ordem civilizada. Com a mesma simplicidade, qualquer candidato poderia desenhar um programa para o novo mandato presidencial. As necessidades, agora, são elementares e singelas. A mais urgente, depois de quatro anos sem rumo, será a implantação de um governo. E governar é muito diferente de mandar e de usar meios públicos, embora esse fato, como tantos outros, seja ignorado pelo presidente Jair Bolsonaro.

Governar é mais do que executar leis, administrar o dia a dia e manter a ordem. É definir objetivos, atender a demandas, desenhar planos e programas e construir o futuro. A maior parte dessas tarefas foi negligenciada a partir de 2019. O ministro da Economia, Paulo Guedes, nega a fome e acusa até o Banco Central de errar para baixo nas projeções de crescimento econômico. Mas é incapaz de ir além dos ataques e das bravatas e de apontar um rumo para o País. Nada fez, em quase quatro anos, para reverter a desindustrialização do Brasil – um dos primeiros, mais evidentes e mais importantes desafios para quem tiver de cuidar dos assuntos econômicos.

O retrocesso da indústria brasileira pode ter começado há mais de 20 anos, mas ficou mais evidente há cerca de uma década. Em julho, a produção industrial foi 17,3% menor que a de maio de 2011, pico da série registrada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A curva oscilou nesse período e pareceu, em alguns momentos, indicar uma recuperação, mas a tendência foi mesmo de recuo. Alguns distraídos confundem a desindustrialização do Brasil com a mudança observada em países mais avançados, onde se fala de uma era pós-industrial.

Distraídos continuam falando, também, de um suposto compromisso liberal de Paulo Guedes, como se liberalismo, na economia contemporânea, consistisse em combater direitos trabalhistas e em cortar tributos indiretos, como o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Mas a bobagem maior é reduzir o debate à aplicação de rótulos.

Muito mais séria é a discussão, ainda com pouco efeito, sobre o custo Brasil, os entraves à modernização e à competitividade e os obstáculos à integração no mercado global. Quase nada se avançou nesse front, nos últimos anos. Falou-se muito sobre reforma tributária, mas pouco se discutiu, no Executivo, a funcionalidade dos tributos.

Pouco atento à realidade das cadeias de produção e de circulação de bens, o ministro da Economia chegou a defender a adoção do cumulativo, regressivo e desastroso “imposto único”, já conhecido pela sigla CPMF.

É indispensável, sim, redesenhar o sistema de tributos, a partir, porém, de boas propostas, algumas já apresentadas por técnicos competentes. Também é preciso cuidar dos custos e da eficiência da administração, mas isso requer muito mais que a limitada reforma de RH projetada pelo Ministério da Economia. O retorno ao desenvolvimento econômico e social depende de uma ampla reversão das políticas do atual mandato.

Não haverá modernização, nem prosperidade, sem a reabilitação das políticas de educação e saúde, estraçalhadas nos últimos quatro anos. Nem o financiamento de creches foi respeitado. Além disso, o Executivo federal terá de se reconciliar com a cultura e com a atividade acadêmica. O presidente – ninguém deveria esquecer – declarou guerra à ciência e à tecnologia no começo de seu mandato, quando atacou o Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe) por mostrar, com imagens de satélite, o aumento de queimadas na Amazônia.

Ao facilitar a devastação ambiental, o presidente prejudicou a reputação do setor mais competitivo da economia brasileira, o agronegócio, e deu argumentos ao protecionismo europeu. Combinada com outras ações diplomaticamente desastrosas, a negação dos valores ambientalistas contribuiu para deformar a imagem do País. Além disso, a ação presidencial foi particularmente eficaz na aproximação com governos autoritários. A visita de Bolsonaro a Vladimir Putin pouco antes da invasão da Ucrânia foi um dos pontos mais altos dessa política.

Apesar dos elogios à ditadura militar, da valorização da tortura e dos esforços para desacreditar o sistema eleitoral, o presidente foi incapaz, até agora, de reverter a experiência democrática das últimas décadas.

Judiciário e Congresso funcionam e a imprensa permanece atenta e vigorosa. A poucos dias das eleições, parece razoável apostar em tempos mais luminosos, com valorização da democracia, reconstrução do governo e retorno ao caminho do desenvolvimento e da criação de oportunidades, a partir de uma agenda tão elementar quanto a garantia de comida para todos.

Como regular as Criptomoedas? por Celso Ming

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Criptoativos trouxeram grandes inovações na área monetária, mas ainda não há clareza sobre o que pode ser regulado nesse mercado.

Celso Ming, comentarista de Economia.

Estado de São Paulo, 24/09/2022

De todos os lados afloram pressões para regulamentar a criação e a circulação das criptomoedas. Faz mais de 10 anos que apareceu a primeira delas, o bitcoin. Hoje existem mais de 21 mil, cujo valor de mercado, embora altamente volátil, passa dos US$ 900 bilhões.

Neste mês, o Fundo Monetário Internacional (FMI) publicou artigo (Regulating Crypto) que relata as dificuldades para avançar nessa matéria.

Vítimas de fraudes, de escândalos financeiros, de pirâmides que envolvem esses ativos vêm cobrando ação das autoridades para controlar essas novidades.

Não há clareza sobre o que regular. Os criptoativos assumem inúmeras formas. Grande número de produtos digitais, muitos deles já incorporados pela rede bancária supervisionada pelos bancos centrais, também é considerado criptoativo.

As instituições reguladoras operam com objetivos diferentes. Os bancos centrais, por exemplo, temem que, à medida que se avolumam, essas moedas corroam sua capacidade de exercer a política monetária. Outras veem nelas importantes instrumentos de sonegação de impostos, fraude, lavagem de dinheiro e de financiamento de terrorismo e criminalidade. E há aquelas que estão mais preocupadas com a defesa do investidor. Alguns governos estão mais preocupados com o altíssimo consumo de energia elétrica exigido pela “mineração” dessas moedas.

São muito diferentes e numerosos os agentes que estariam sujeitos a uma regulação: “mineradores” de moedas, desenvolvedores de sistemas de informática (como o blockchain e afins), detentores e administradores de fundos que levam essas moedas. É um campo confuso onde escasseiam informações seguras.

Os reguladores enfrentam dificuldades para entender e acompanhar a rápida evolução dos programas e dos sistemas de informática adotados pelos criadores das moedas.

Mas não consta no artigo do FMI um ponto relevante. Como a emissão e as transações feitas com essas moedas ignoram fronteiras, qualquer regulação de âmbito apenas nacional será sempre insatisfatória. E, no entanto, a partir de todas as tentativas feitas pelos organismos internacionais, está distante um acordo mínimo sobre como avançar.

As criptomoedas trouxeram grandes inovações na área monetária e nos sistemas de pagamentos. Embora não exerçam todas as funções clássicas de uma moeda, elas mostram que não precisam da chancela de um Estado ou da efígie de César para operar como ativos monetários.

Discurso empreendedor da classe C mascara exclusão social e acena a Bolsonaro, por Barlach e Mendes.

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Fenômeno se manifesta em conservadorismo que alia forte individualismo e desconfiança no Estado

Breno Barlach, Sociólogo e mestre em ciência política pela USP, com participação como pesquisador visitante na Cornell University (EUA). É diretor de pesquisa e inovação da Plano CDE, instituto de pesquisas sociais e de inteligência de mercado focado nas classes populares (C, D e E) brasileiras
Vinícius Mendes, Jornalista e sociólogo, mestre em sociologia pela USP

Folha de São Paulo, 25/09/2022.

[RESUMO] Precarizados e sujeitos a rendas incertas, milhões de brasileiros da classe C reforçam um discurso de empreendedorismo que, para eles, reflete uma condição em que são descartáveis no mercado de trabalho. A tradução política desse fenômeno é um tipo de conservadorismo que alia forte individualismo e desconfiança no papel do Estado, apontam pesquisadores.

Bacharéis inconformados sob o volante de um carro de aplicativo. Autônomos ansiosos com uma crise que não termina, embora estejam melhores que os informais, extenuados em longas jornadas para segurar o orçamento do mês com dificuldade. “Pejotas” inseguros em seus empregos, à espera de uma próxima oportunidade que os manterá na mesma condição.

Essa realidade de boa parte da massa de trabalho brasileira não é apenas uma fotografia do presente. Nessas mesmas condições, muitas pessoas ascenderam na primeira década do século 21, mas agora experimentaram os impactos de uma crise que perdura, ainda mais depois da Covid-19.

É dessa perspectiva que elas vislumbram o futuro imediato e, a partir disso, tomam suas decisões políticas.
Dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), analisados pela Plano CDE, instituto de pesquisas sociais e de inteligência de mercado, iluminam essa estrutura econômica com clareza: de 2015 para cá, a proporção de rendimentos oriundos de fontes incertas, como atividades informais ou por conta própria, sem contar os “bicos”, se manteve em torno de 43% da composição total do orçamento das famílias da chamada classe C, que representa metade da população.

Um número que mostra como esse tipo de arranjo baseado em uma conjunção de informalidades foi se tornando uma característica comum da economia nacional, sempre interpretada à luz dos diferentes contextos do país.

Nos anos de bonança, essa era uma situação quase imperceptível. No pano de fundo daquele período, porém, essas camadas já nutriam uma insatisfação com a dificuldade em encontrar um emprego celetista ou em ter estabilidade financeira. Só não era uma sensação profunda a ponto de superar o otimismo inevitável que se tinha com os rumos pessoais e, por consequência, com os do país.

Agora as circunstâncias são outras, e não é à toa que se vê a ascensão de um conceito torto de “empreendedorismo” para dar conta delas. Trata-se da narrativa econômica triunfante de um Brasil em crise. Ela diz que esses “empreendedores” seriam o que de mais livre, do ponto de vista econômico, o país produziu em muito tempo.

No Brasil popular, o empreendedorismo ganha outros nomes, embora mantenha o mesmo núcleo de valor: nas pesquisas qualitativas feitas nos últimos anos pela Plano CDE com esse público, que representa 100 milhões de pessoas com renda familiar per capita mensal entre R$ 500 e R$ 1.500, ele aparece ora como “corre”, ora, em uma associação essencialmente masculina, com a imagem do “batalhador” —o homem provedor da casa que se enxerga como baluarte de uma configuração social que premia qualquer mérito individual.

Trata-se de um sujeito sempre em competição com outros batalhadores, todos de vida parecidas. Nessa visão de mundo, é central a ideia de que o esforço de cada um determina a posição social que se ocupa —métrica que naturaliza a própria precariedade como mão de obra no mercado.

Esse grupo é composto de autônomos sujeitos à demanda e entregadores de comida, jovens universitários em busca do primeiro emprego e recém-formados desempregados pendurados em “bicos”, motoristas de aplicativos e a multidão de MEIs (microempreendedores) à espera de uma convocação.

Todavia, mais que empreendedores, eles também se definem como descartáveis. Em outras palavras, a narrativa da “liberdade do empreendedor” tenta esconder uma realidade mais perversa.

Nela, eles se sujeitam, por “conta própria”, à instabilidade constante do mercado de trabalho, recebem os mesmos salários há pelo menos meia década e ficam à mercê de fontes alternativas de renda para conseguir chegar até o fim do mês.

Em muitos casos, vivem quase totalmente desses rendimentos incertos e voláteis. Esses trabalhadores notam que o trabalho que oferecem é uma moeda de pouco valor no mercado, facilmente substituível e, por isso mesmo, repleto de incertezas.

Assim, se são alvos do discurso do empreendedorismo, é justamente porque já estão inseridos nesse contexto de descartabilidade. É desse jeito que observam a vida, os outros ao redor, o Estado, o país onde vivem.

O limite dessa realidade se observa na falta de perspectivas dos mais jovens: se até alguns anos atrás havia alguma esperança de que o curso universitário fosse o caminho mais sólido para mudar uma trajetória familiar: a geração que chegou ao ensino superior a partir de 2010, sobretudo por meio dos programas de auxílio estudantil, percebeu que a história não era mais desse jeito.

Nas duas últimas décadas, houve um crescimento exponencial de pessoas que concluíram a graduação, mas elas não se inseriram no mercado de trabalho como imaginavam. Muitas acabaram descartadas em empregos que, na maioria dos casos, nem sequer exigem o diploma e quase sempre oferecem salários baixos e padrões precários.

Nesse mundo, a informalidade reina. É por isso que cresceu o volume de pessoas com curso superior que trabalham por conta própria: no terceiro trimestre do ano passado, por exemplo, eles já somavam 4 milhões, como mostrou a Folha.

Esse grupo é mais sensível a essa descartabilidade porque levou adiante o projeto que prometia mudar a trajetória familiar e hoje engrossa a lista de inadimplentes do Fies, que teve um salto de 300% entre 2019 e 2021, segundo dados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.

Foi da crise atual que se colocou sobre a ascensão social da classe C que muitas análises extraíram uma mesma conclusão: o bolsonarismo, como fenômeno social, seria resultado, principalmente, de um ressentimento dessas camadas.

A crítica a esse argumento já foi feita pela antropóloga Rosana Pinheiro-Machado: tal sentimento negativo explica melhor a reação raivosa dos trabalhadores do Norte à crise dos empregos, como o trumpismo nos EUA, que a realidade dos sujeitos ao Sul, que nem chegaram a ter um trabalho formal para poder perdê-lo.

Para Pinheiro-Machado, o bolsonarismo é o sucesso definitivo de toda essa narrativa individual: o presidente encampa esse discurso e promete institucionalizá-lo. Mas não é só isso. Nos nossos estudos, é visível também como essas camadas compartilham a sensação de que foram enganadas.

Naquele momento em que o país prometia uma ascensão permanente, em que o bom momento da economia era experimentado no cotidiano, elas construíram seus projetos de futuro vislumbrando exatamente o contrário desse cenário de descartabilidade: uma formação universitária daria empregos mais seguros, o mercado de trabalho não seria um universo de precariedades e a renda não estaria em constante ameaça.

Enfim, elas esperavam uma transformação real, uma mudança na trajetória familiar que, de fato, foi prometida. É, então, mais do que só ressentimento ou uma vitória definitiva da narrativa individual: é ainda uma cobrança incisiva pelo que esperavam ter neste momento.

A tradução política desses sentimentos não terminou. O empreendedorismo à brasileira encontrou em Jair Bolsonaro a sua representação momentânea.

Descartadas no mercado de trabalho, cada vez mais abandonadas à própria sorte, essas pessoas tendem a elaborar uma visão de mundo conservadora, o que também representa uma formação política.

No centro dela está, sem dúvida, o batalhador, o protagonista do corre que segura as contas do mês na viração —no bico, no trabalho informal, na atividade autônoma ou na conjunção de todas elas. Nas pesquisas da Plano CDE, essa perspectiva comum aparece como um “conservadorismo moderado”, tendo em vista alas mais radicais que compõem a base de apoio irrestrito ao governo atual.

Esse grupo diz que o Estado não é só corrupto, como também promotor de desigualdades, pois produz políticas apenas para os mais pobres ou para detentores de “privilégios”, como seriam os negros no caso das cotas raciais.
Vem daí a adesão a uma ideia de Estado mínimo, cujo papel principal seria não atrapalhar quem está no corre, embora tivesse a obrigação de criar “oportunidades” de empregos que os contemplasse.

Há também a individualização da política, a crença de que as soluções não deveriam ser coletivizadas, já que o futuro depende do esforço de cada um. É nesse sentido que programas de transferência de renda, como o antigo Bolsa Família, soam como aberrações.

Essa visão de mundo se encaixa muito bem ao contexto familiar; o esforço individual é um valor transmitido às próximas gerações como forma de fazer surgir um país menos desigual. Bicos e trabalhos por conta própria são mais que o corre cotidiano, são a saída para o país.

Descartáveis não apenas no mercado, mas em seus próprios corpos, já que são objeto da violência urbana, materialmente insatisfeitos, mas convencidos pela narrativa do empreendedorismo, integrantes da classe C veem no Brasil um estado de pré-contrato social, um conflito cotidiano em que cada um luta por si e pelos seus.

Lidar com essa experiência da maioria da população é o desafio da eleição de outubro. Há caminhos possíveis para diálogo, e o primeiro deles é refinar o discurso em torno da CLT. Criada para promover segurança, ela não se encaixou em um país em que os empregadores são eles mesmos parte da base da pirâmide.

É preciso ainda reestabelecer alguma confiança em soluções públicas para os problemas do Brasil. As ineficiências do Estado têm contribuído para a desconfiança nutrida diante de qualquer proposta de política pública endereçada a grupos mais vulneráveis.

Milhões de brasileiros compõem esse vasto campo dos que não recebem benefícios dos programas do governo e nem acessam os melhores empregos.

Essa condição se transforma em uma posição social que, há quase uma década, dá o tom também da política nacional. O conservadorismo dos descartáveis está posto, e o desafio é agir agora para que ele não permaneça no horizonte do Brasil.

Eleitor civilizado não tolera ver o país atolado na lama da extrema direita, por Marcelo Leite.

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Hora de mostrar que Brasil não seguirá irracional, ecocida, racista, misógino e homofóbico

Marcelo Leite, Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

Folha de São Paulo, 25/09/2022.

Esta é a última coluna do mês, chance derradeira de opinar sobre a eleição de domingo que vem. Invertendo o passo titubeante de Fernando Henrique Cardoso sobre o muro, cabe indicar não as razões para eleger alguém (todos sabem quem), mas para escorraçar os que se empenham em apodrecer o Brasil.

São quase quatro décadas escrevendo sobre ciência e meio ambiente, portanto sobre mudança climática, desmatamento e povos indígenas. Poucos e valentes companheiros levam essa cobertura à frente, mas viram nos últimos quatro anos um retrocesso sem par.

A floresta amazônica nunca esteve tão ameaçada. O corte raso recrudesceu e voltou ao patamar de cinco dígitos, em quilômetros quadrados, abaixo do qual se conservara por uma década inteira. Teme-se que o bioma entre em colapso, interrompendo a bomba hidrológica que irriga o país.

Não é só a Amazônia. O cerrado sofre mais, proporcionalmente, perdendo cobertura vegetal e enorme biodiversidade para a agropecuária. A mata atlântica, quase extinta, volta a ser ameaçada após tímida regeneração. Pantanal em chamas, caatinga desprezada.

Terras indígenas sucumbem ao assédio de invasores, em especial garimpeiros tidos como empreendedores e heróis no Planalto. Assassinatos, estupros e doenças vêm no rastro de suas retroescavadeiras. Nenhum centímetro de demarcação.

Ibama e ICMBio manietados na missão de fiscalização e controle, erodidos por dentro, a mando de sicários alçados a dirigentes. O equivalente a instalar um negro racista no comando de políticas contra a discriminação racial e a favor da cultura afro-brasileira.

Policiais e generais no topo da Funai. Um ex-astronauta vendedor de travesseiros e bugigangas para cuidar de ciência, tecnologia e inovação. Um almofadinha tocador de boiada no Ministério do Meio Ambiente. A musa do veneno na pasta da Agricultura. Um advogado do diabo no MPF.

Banda podre do agronegócio acima de tudo, grileiros e madeireiros pra cima de todos. Pastores argentários na linha de frente do farisaísmo, entrando pela porta dos fundos do MEC e pela porta da frente do Alvorada, enchendo as burras enquanto esgotam o bom senso de damas em transes pentecostais no palácio.

Irracionalismo e negacionismo campeiam. Dados só valem quando confirmam aquilo em que se põe fé. Fato e opinião se equivalem. Se um luminar diz que universidades públicas se distinguem por cultivar maconha, deixa de ser criminoso relegá-las à míngua e estimular o êxodo de cérebros.

Uma conversa retrógrada sobre segurança pública privilegia o armamento da população, quer dizer, daquela franja de machistas que se sentem ameaçados por mulheres assertivas e LGBTQIA + à vista de todos. Surpresa! —feminicídios e homofobia em alta.

O crime organizado pelo tráfico e pelas milícias condecoradas da família festejam. Armas e munições amontoados por CACs chegam depressa às mãos dos bandidos, que matarão mais competidores e inocentes na linha de tiro, além de policiais que tombam numa guerra insana.

Orçamentos secretos financiam máfias parlamentares no centrão do Congresso. Elogia-se a tortura, e nada acontece. Caluniam-se urnas eletrônicas que os elegeram, recrutam-se para fiscalizá-las militares que mal sabem pilotar escrivaninhas.

Nem nos momentos mais escuros da ditadura militar o Brasil desceu tão baixo, porque os generais e seus torturadores não eram eleitos. Os que hoje enxovalham o país foram escolhidos pelos eleitores. Os que tiverem vergonha na cara podem mudar tudo isso —no voto.

É hora de recobrar a sobriedade, por Oscar Vilhena Vieira.

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A eleição deste ano é crucial para nosso futuro como nação democrática

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Folha de São Paulo, 24 setembro 2022.

O mundo vem enfrentando um forte processo de regressão democrática. Na última década, 30 países, que congregam cerca de 26% da população mundial, deixaram de ser considerados democracias eleitorais, elevando para 5,4 bilhões o número de pessoas vivendo sob regimes autocráticos. Ou seja, nada menos que 70% da população mundial vive hoje sob regimes não democráticos.

Outros 35 regimes democráticos, entre os quais o brasileiro, vêm passando por um processo de erosão a partir de 2011, marcado por uma crescente polarização tóxica, ampliação das restrições à liberdade de expressão, manipulação de regras eleitorais e ataques ao poder judiciário. Importa salientar a natureza incremental desses processos contemporâneos de regressão democrática, que se consolidam, sobretudo, com o segundo mandato de líderes populistas autoritários.

É neste contexto global de enfraquecimento da democracia que os norte-americanos foram às urnas em 2020 e mais de 150 milhões de brasileiros estão aptos a irem às urnas no próximo dia 2 de outubro. A derrota eleitoral de Trump levou a uma grotesca tentativa de golpe de Estado na mais antiga democracia do mundo. No Brasil o presidente Jair Bolsonaro tem advertido que não aceitará um resultado que lhe seja adverso.

Não se pode tomar as próximas eleições brasileiras, portanto, como um evento ordinário na vida política nacional.

Dois são os desafios. Em primeiro lugar é preciso evitar algum curto-circuito no processo eleitoral. A sociedade organizada e as diversas instituições precisam entrar em vigília cívica para esvaziar iniciativas maliciosas de subverter o processo eleitoral, como ocorreu nos Estados Unidos. À Justiça Eleitoral cabe com exclusividade a apuração dos resultados. Quaisquer tentativas de sabotagem do processo eleitoral ou de usurpar competência do Tribunal Superior Eleitoral constituem crime e devem ser repudiadas.

O principal desafio, no entanto, recai sobre o eleitor. Numa eleição normal, o dilema incide sobre escolher políticas mais conservadoras, liberais ou progressistas. Nesta eleição, no entanto, o que está em jogo é a própria sobrevivência de nossa democracia, a possibilidade de continuarmos a poder fazer escolhas e coordenar nossos conflitos de maneira pacifica.

Um segundo mandato de Jair Bolsonaro fragilizaria ainda mais o Estado de direito, o pluralismo político, a laicidade do Estado, os direitos fundamentais (especialmente de negros e indígenas), o processo eleitoral, os mecanismos de controle da corrupção, o processo orçamentário (como expressão dos esforços da sociedade para enfrentar seus principais desafios), o meio ambiente, assim como as políticas sociais voltadas a assegurar o bem-estar da população mais vulnerável. Ainda fortaleceria o crime organizado, a intolerância política e religiosa, grupos radicais e a difusão de armas. A reeleição de Bolsonaro também aprofundaria o processo de isolamento internacional do Brasil, ferindo nossos interesses econômicos e estratégicos.

Trata-se, portanto, de uma eleição crucial para nosso futuro como nação democrática, plural e consciente de nossas responsabilidade e oportunidades nos campos do clima e da segurança alimentar de todo o planeta.

Se a polarização tóxica que marcou a eleição de 2018 impeliu muitos eleitores a fazer escolhas irracionais, que a dramática experiência desse período de arbítrio, obscurantismo e anormalidade contribua para que o eleitor brasileiro recobre sua serenidade e sensatez.

O futuro que escolhemos, por Ilona Szabó de Carvalho.

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Está em jogo nas eleições o direito das próximas gerações de viver em um planeta habitável

Ilona Szabó de Carvalho, Empreendedora cívica, mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”.

Folha de São Paulo, 21/09/2022

Estamos às vésperas das eleições mais consequentes para o país desde a ditadura militar. Para além da democracia, está em jogo o nosso futuro e o direito das próximas gerações de viver em um planeta habitável. Não há exagero nesta afirmação. Nossa floresta amazônica é peça-chave da luta coletiva pela regulação climática planetária. Meu pedido é para que, ao votar, tenham consciência desta questão.

A real dimensão do potencial do Brasil para se tornar uma potência verde não está posta em nenhuma das candidaturas majoritárias. Mas pode ser construída, ao menos que por enorme desventura e para o azar da humanidade, caso seja mantido o curso político atual. Desconsiderando este último cenário, compartilho uma sucinta visão e missão para o país, que considero viável de ser colocada em prática por quem assumir a responsabilidade e o peso das canetas com o interesse público como guia.

A partir de janeiro de 2023, o Brasil deve se reerguer e assumir a liderança global da transição justa para uma economia de baixo carbono e com soluções baseadas na natureza. Podemos estar na vanguarda da mobilização de países que estão trabalhando em parcerias multisetoriais para reverter a tripla crise planetária —que inclui a disrupção climática, a poluição e a perda de biodiversidade e natureza.

Para tal, precisamos ter uma ambição muito maior nas agendas climática e ambiental, resolver de uma vez por todas os problemas que já deveriam ter ficado no passado, e pactuar a nossa agenda de futuro. Isso implica pensar políticas para as pessoas e para o planeta de forma integrada. Trazer quem ficou para trás de forma definitiva, para um modelo econômico novo, verdadeiramente circular, inclusivo e sustentável.

E o que nos garante que podemos alcançar tudo isso?

Primeiramente, temos um enorme ativo estratégico, a Amazônia —a maior floresta tropical do planeta. Também temos o potencial de regenerar nossos outros biomas, ainda mais destruídos e degradados. Isso nos traz a chance de ser uma economia desenvolvida de base florestal, com ênfase em mercado de carbono, bioeconomia, biotecnologia, turismo sustentável, e outras atividades econômicas compatíveis com as florestas de pé.

Precisamos aproveitar essa abundância de biodiversidade e aumentar a complexidade econômica dos produtos da floresta. Essa visão não só não impede de garantir a segurança alimentar dos brasileiros e outras populações do globo como é fundamental para manter nossa vantagem competitiva, investindo em uma indústria mais produtiva, regenerativa e sustentável, alinhada ao conhecimento mais atual disponível. Mas, por certo, não devemos mais nos limitar a ser grandes somente na economia primária.

Em segundo lugar, podemos ser um país com matriz energética totalmente renovável, e assim rapidamente transformar nossas indústrias pesadas, como a siderúrgica e a cimentícia por exemplo, investindo em ciência e tecnologia para desenvolver processos de produção de primeira linha. Com a amônia verde, podemos também nos tornar independentes em fertilizantes e ainda exportar energia renovável como o hidrogênio verde.

Isso demandará do novo governo o fim dos subsídios que nos ancoram no atraso, e a criação dos incentivos certos que nos antecipam o futuro. Será também fundamental garantir a segurança jurídica para atrair os investimentos responsáveis e pacientes. Desta forma, não só recuperaríamos o papel de destaque que sempre tivemos no cenário multilateral, mas teríamos a chance real de deixar de ser um dos líderes do mundo em desenvolvimento e passar a ser um país desenvolvido.

Se essa for a ambição da sociedade, será a do novo governo, desde que ele seja um governo democrático —aberto às interações e à construção coletiva. Já pensou que futuro você vai escolher nas urnas no dia 2 de outubro?

Sistema Único de Saúde

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As políticas públicas são instrumentos fundamentais para melhorarmos os indicadores econômicos, sociais e políticos, garantindo a sobrevivência digna para todos os cidadãos, aumentando as oportunidades de trabalho e de desenvolvimento e contribuindo para que possamos sonhar com um futuro melhor, mais decente e com oportunidades crescentes, mesmo percebendo que vivemos numa sociedade que cultiva as incertezas, as instabilidades e as volatilidades.

Neste cenário, no final dos anos oitenta, surge na sociedade brasileira um projeto ambicioso e dotado de grande potencial humanístico, neste momento nasce o Sistema Único de Saúde (SUS), centrado em princípios como a equidade, a universalidade, a integralidade, a descentralização e o controle social. Esta política pública tem como princípio basilar a universalização do acesso às ações e serviços de saúde, garantindo que todos os cidadãos tenham direito a serviços de saúde, sem privilégios ou exclusões e sejam atendidos conforme suas necessidades, de forma resolutiva, considerando-se ainda as necessidades coletivas. O surgimento do SUS pode ser visto como um marco fundamental de civilidade e de humanismo, afinal, fomos o primeiro e único país do mundo, com mais de 100 milhões de pessoas, que garantiu saúde universal para todos os seus concidadãos.

A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) fez com que a saúde se transformasse num direito de todos os cidadãos, exigindo da sociedade a criação de instrumentos financeiros para financiar esta política pública, extraindo impostos da coletividade visando garantir que este direito fundamental seja uma prioridade nacional, universalizando os serviços de saúde, melhorando os indicadores sanitários e para o incremento da produtividade da mão de obra.

Antes do surgimento do SUS, apenas pessoas com vínculos formais de trabalho (carteira assinada) ou que estavam vinculados à previdência social poderiam dispor dos serviços públicos de saúde. As demais pessoas deveriam pagar pelos serviços privados ou contariam com a assistência médica de instituições filantrópicas, que não conseguiam atender o grande contingente de pessoas nesta condição, com isso, as condições sanitárias eram sofríveis e preocupantes.

A criação do SUS deve ser vista como uma medida ousada e visionária, desde então o sistema carece de recursos financeiros para garantir que os princípios criados nesta política pública sejam efetivados, com isso, percebemos as dificuldades de subfinanciamento e as deficiências de gestão de recursos, gerando críticas e descontentamento de uma parcela significativa da comunidade, mesmo sabendo que poucos cidadãos conhecem a importância e a centralidade desta política pública para melhorar os indicadores sociais e as condições de sobrevivência da população.

Vivemos um momento de grandes desafios, marcados pela pós-pandemia, por deficiências sanitárias que remontam a séculos, o incremento de doenças infecciosas, como a tuberculose, a sífilis e a varíola, aliadas ao envelhecimento da população nacional, o câncer e as doenças cardiovasculares, além de transtornos mentais, psicológicos e emocionais, além das demandas geradas pela pandemia, com isso, percebemos que estamos vivendo um momento de grandes reflexões sobre o modelo de saúde pública e um momento de fazermos escolhas fundamentais que exijam uma nova estrutura tributária, novas formas de gestão e de financiamento para fortalecermos o bem-estar da população.

O Sistema Único de Saúde (SUS) deve ser visto como uma política pública exitosa e de grande potencial humanístico, mas ao mesmo tempo retrata uma sociedade bipolar e fortemente desigual, marcada por grandes avanços científicos e tecnológicos na área da saúde e, ao mesmo tempo, centrada no atraso, no desperdício, na ganância e nas deficiências do saneamento básico. O Sistema Único de Saúde é um retrato verdadeiro do Brasil.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 21/09/2022.

A preocupante expansão das milícias

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Em 16 anos, milicianos ampliaram seu território em mais de 130% no Rio. Crescimento acelerado, capilarização do crime e defasagem das instituições de repressão são grande desafio

Notas & Informações, O Estado de São Paulo – 18/09/2022

Há quatro décadas grupos armados expandem seu domínio territorial na região metropolitana do Rio de Janeiro.

Segundo o Mapa dos Grupos Armados, do Grupo de Estudos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense e do Instituto Fogo Cruzado, nos últimos 16 anos o crime organizado ampliou seus territórios em 131%, saltando de 8,7% da área urbana habitada para 20%. O fato novo é que as milícias estão se tornando a principal ameaça à segurança no Rio.

Nesse período, enquanto as áreas sob domínio do Comando Vermelho (CV) cresceram 59% e seu controle sobre a população cresceu 42%, o domínio territorial das milícias aumentou 387% e o populacional, 185%. Sua participação sobre as áreas controladas pelo crime subiu de 24% para 50%, enquanto a do CV caiu de 59% para 40%. No domínio sobre a população, se a participação do CV caiu de 54% para 46%, a das milícias subiu de 22% para 39%.

A pesquisa destaca dois marcos na expansão das milícias. O primeiro no início dos anos 2000, quando havia ambiguidade sobre o papel das milícias no debate público e nas arenas políticas. Esse crescimento foi freado a partir de 2008, quando a CPI das Milícias desbaratou parte da arquitetura do crime. Desde 2017, contudo, a expansão explodiu, em parte pelas disputas entre o CV e o PCC pelas rotas internacionais da droga, em parte pela crise socioeconômica de 2015, e em parte pela gestão de segurança estadual, que, desde o governo de Wilson Witzel, se caracterizou pelo incentivo ao uso desmedido de força letal e pela autonomização das polícias em relação a diretrizes, metas e protocolos estabelecidos por políticas de Estado.

A expansão das milícias não só é quantitativamente maior que a do narcotráfico, mas é qualitativamente mais complexa. “O tráfico de drogas é a criminalidade desorganizada; ele atua na interface com o Estado de maneira muito mais precária”, explicou um pesquisador. “Já os milicianos têm uma relação de tolerância e participação direta de agentes públicos. É um mercado de atuação muito mais diversificado e articulado do que o do tráfico, que é, basicamente, um varejo de droga. Os milicianos controlam a água, a internet, o transporte; ou seja, toda a infraestrutura urbana da cidade é produzida com a mediação desses grupos.”

Trafegando na zona cinzenta entre a legalidade e ilegalidade, as milícias contam com uma dupla vantagem, política e econômica. O que as diferencia é precisamente a participação de agentes públicos, como policiais da ativa e da reserva, juízes ou parlamentares. Assim, elas não só são mais eficientes que o narcotráfico em criar um “Estado paralelo” em seus territórios, como se infiltram no Estado, pervertendo-o a seu favor. Isso facilita, por exemplo, a obstrução de investigações, assim como o emprego das forças policiais para retaliar adversários do narcotráfico – os dados mostram que as ações policiais são bem menores em áreas controladas pelas milícias do que nas controladas pelas facções. Além disso, as milícias são favorecidas por agentes públicos em seu mercado legal e ilegal, sobretudo imobiliário.

A sua expansão impõe novos desafios. Primeiro, uma atualização da legislação, já que o complexo de crimes das milícias ultrapassa os delitos tipificados no Código Penal. Além disso, não há uma dimensão oficial do fenômeno nem políticas integradas de prevenção e enfrentamento. Operações policiais, além de frequentemente ineficazes e catastróficas para a população, vêm sendo instrumentalizadas pelas milícias a favor de sua expansão. Mais importante seria sufocar a fonte do vigor das milícias, o clientelismo de atores estatais, com mais regulamentação, transparência e prestação de contas sobre o que se passa nos mercados urbanos.

Em suma, a expansão das milícias é triplamente alarmante: pela sua velocidade e diversificação; pela sua capilarização na economia e na política; e pela defasagem das instituições responsáveis por investigá-la e reprimi-la. A menos que esse mal seja extirpado pela raiz, no futuro o Rio de Janeiro será lembrado como apenas o foco de uma metástase nacional.