Um país doente de realidade, por Ana Cristina Rosa

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Insistem em distorcer a realidade para colocar o abusado no papel de abusador

Ana Cristina Rosa, Jornalista especializada em comunicação pública e vice-presidente de gestão e parcerias da Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública)

Folha de São Paulo, 24/03/2024

O Brasil é um país “doente de realidade”. A constante negação da verdade me leva a essa conclusão. Enquanto parte dos indivíduos prefere alterar os fatos a admitir inúmeras situações que fazem de nós uma das nações mais desiguais do planeta, a maioria vive em constante provação por conta da “desrealização” da vida como ela é.

Essa “dissonância cognitiva” emperra o desenvolvimento socioeconômico e nos impede de avançar coletivamente, fomentando discurso de ódio e negando a mais evidente de todas as mazelas brasileiras: o racismo institucional.

No último país das Américas a “abolir” a escravidão (em 1888, há apenas 136 anos), foram criadas leis específicas para impedir a inclusão social dos ex-escravizados. Depois de cerca de quatro séculos de trabalho forçado, os negros não poderiam adquirir a posse de terras, nem estudar e seriam presos por ficar “vadiando” nas ruas.

Sem proporcionar as mínimas condições para que os afrodescendentes se tornassem “cidadãos” de fato e de direito, o país foi adubando as raízes do racismo institucional. Tanto que, até hoje, pretos e pardos enfrentam inúmeras dificuldades para alcançar o básico: alimentação, moradia, saúde e educação.

Mas, apesar das evidências, não falta quem insista em distorcer a realidade para colocar o abusado no papel de abusador quando uma iniciativa é adotada para enfrentar a desigualdade racial. A ponto de cotas raciais nas universidades serem classificadas como “privilégio” ou instrumento capaz de “restaurar o racismo” onde ele havia sido abolido.

Não sei como é no país de Alice, mas no meu, os negros, em geral, não saíram da base da pirâmide. E isso se deve aos obstáculos criados pelo racismo institucional, que entrava a vida de pretos e pardos.

Nada disso é novidade. Mas, como cunhou Tom Jobim, “o Brasil não é para principiantes.” Então, às vezes, é preciso desenhar.

“Ando tão à flor da pele/Que a minha pele tem o fogo do juízo final.” – Zeca Baleiro

Inteligência Artificial: o que esperar dos Estados, por Mariana Mazzucato

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Apropriação do trabalho intelectual coletivo. Precarização. Desenvolvimento de robôs assassinos. Se ficar sob controle de corporações, nova tecnologia será fonte de pesadelos. Por isso as sociedades, mais que regulá-la, precisam dirigi-la

Mariana Mazzucato – OUTRAS PALAVRAS – 22/03/2024

Em dezembro passado, a União Europeia (UE) estabeleceu um precedente global ao finalizar a Lei de Inteligência Artificial, um dos conjuntos de regras de IA mais abrangentes do mundo. A legislação emblemática da Europa pode sinalizar uma tendência mais ampla em direção a políticas de IA mais responsivas. Mas embora a regulamentação seja necessária, não é suficiente. Além de impor restrições às empresas privadas de IA, os Estados devem assumir um papel ativo no desenvolvimento da tecnologia, projetando sistemas e moldando mercados para o Comum.

É claro que os modelos de IA estão evoluindo rapidamente. Quando os reguladores da UE divulgaram o primeiro rascunho da lei sobre o tema em abril de 2021, eles gabaram-se de ele ser supostamente “à prova de futuro”. Apenas um ano e meio depois, correram para atualizar o texto, em resposta ao lançamento do ChatGPT. Mas os esforços regulatórios não são em vão. Por exemplo, a proibição, por lei, do uso de IA no policiamento por biometria continuará provavelmente relevante, em que pesem os avanços na tecnologia. Além disso, os parâmetros de risco incluídos na lei de IA ajudarão os formuladores de políticas a se proteger contra alguns dos usos mais perigosos da tecnologia. Embora a IA tenda a se desenvolver mais rápido do que a política, os princípios fundamentais da lei não precisarão mudar – embora ferramentas regulatórias mais flexíveis sejam necessárias para ajustar e atualizar as regras.

Mas pensar no Estado apenas como regulador é perder de vista o aspecto principal. A inovação não é apenas um fenômeno de mercados sagazes. Ela tem uma direção; e esta depende das condições em que emerge. Os formuladores de políticas públicas podem influenciar essas condições. O surgimento de um design tecnológico ou modelo de negócios dominante é o resultado de uma luta de poder entre vários atores – corporações, órgãos governamentais, instituições acadêmicas — com interesses conflitantes e prioridades divergentes. Ao refletir essa luta, a tecnologia resultante pode ser mais ou menos centralizada, mais ou menos proprietária, e assim por diante.

Os mercados que se formam em torno de novas tecnologias seguem o mesmo padrão, com implicações distributivas importantes. Como o pioneiro do software Mitch Kapor coloca, “Arquitetura é política”. Mais do que regulamentação, o design de uma tecnologia e da infraestrutura que a circunda dita quem pode fazer o quê com ela e quem se beneficia. Para assegurarem que inovações transformadoras produzam crescimento inclusivo e sustentável, não basta que os Estados corrijam os mercados. Eles precisam moldá-los e cocriá-los. Quando os Estados contribuem para a inovação por meio de investimentos ousados, estratégicos e orientados para missões, eles podem criar novos mercados e atrair o setor privado.

No caso da IA, a tarefa de direcionar a inovação está atualmente dominada por grandes corporações privadas. Isso leva a uma infraestrutura que serve aos interesses dos já envolvidos e agrava a desigualdade econômica. É o reflexo de um problema de longa data. Algumas das empresas de tecnologia que mais se beneficiaram de apoio público – como Apple e Google – também foram acusadas de usar suas operações internacionais para evitar o pagamento de impostos. Essas relações desequilibradas e parasitárias entre grandes empresas e o Estado agora correm o risco de ser ampliadas pela IA, que promete recompensar o capital enquanto reduz as rendas conferidas ao trabalho.

As empresas que desenvolvem IA generativa já estão no centro dos debates sobre comportamentos extrativistas, devido ao seu uso desenfreado de textos, áudios e imagens protegidos por direitos autorais, para treinar seus modelos. Ao centralizarem o valor dentro de seus próprios serviços, elas reduzirão os fluxos de recursos para os artistas de quem dependem. Assim como nas redes sociais, os mecanismos estão alinhados para a extração de renda, cuja lógica é permitir que intermediários dominantes acumulam lucros às custas de outros. As plataformas que prevalecam hoje – como Amazon e Google – exploraram sua posição dominante usando seus algoritmos para extrair tarifas cada vez maiores (“rendas de atenção algorítmica”) para acesso aos usuários. Uma vez que Google e Amazon se tornaram um gigantesco esquema de jabaculês, a qualidade da informação deteriorou e as plataformas passaram a extrair valor do ecossistema de sites, produtores e desenvolvedores de aplicativos nos quais as se baseiam. Os sistemas de IA de hoje poderiam seguir um caminho semelhante: extração de valor, monetização disfarçada e deterioração da qualidade da informação.

Governar modelos de IA generativa para o Comum exigirá parcerias mutuamente benéficas, orientadas para objetivos compartilhados e a criação de valor público, e não apenas privado. Isso não será possível com Estados que agem apenas após os fatos consumados. Precisamos de Estados empreendedores, capazes de estabelecer estruturas pré-distributivas que compartilhem riscos e recompensas ex ante. Os formuladores de políticas devem se concentrar em entender como as plataformas, os algoritmos e a IA generativa criam e extraem valor, para que possam estabelecer as condições – entre elas, regras de design equitativas – para uma economia digital que remunere a criação de valor.

Lembre-se da História

A internet é um bom exemplo de uma tecnologia que foi projetada a partir de princípios de abertura e neutralidade. Considere o princípio do “ponto a ponto”, que garante que ela opere como uma rede neutra,k responsável pela entrega de dados. O conteúdo entregue de computador para computador pode ser privado, mas o código é gerenciado publicamente. E a infraestrutura física necessária para acessar a internet é privada, mas o desenho original assegurou que, colocados online, os recursos para a inovação na rede são livremente disponíveis.

Essa escolha de design, coordenada [nos EUA] pelo trabalho inicial da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (entre outras organizações), tornou-se um princípio orientador para o desenvolvimento da internet, permitindo flexibilidade e inovação extraordinárias nos setores público e privado. Ao visualizar e moldar novos espaços de criação, o Estado pode estabelecer mercados e direcionar o crescimento, em vez de apenas incentivá-lo ou estabilizá-lo.

É difícil imaginar que empresas privadas, encarregadas de desenvolver a internet na ausência de envolvimento governamental, tivessem aderido a princípios igualmente inclusivos. Considere a história da tecnologia telefônica. O papel do Estado foi predominantemente regulatório. A inovação foi deixada, em grande medida, nas mãos de monopólios privados. Este tipo de centralização não apenas prejudicou o ritmo da inovação, mas também limitou os benefícios sociais mais amplos que poderiam ter surgido.

Por exemplo, em 1955, a American Telephone and Telegraph (AT&T) persuadiu a Comissão Federal de Comunicações a banir um dispositivo que reduziria o ruído nos receptores telefônicos, alegando direitos exclusivos para melhorias na rede. O mesmo tipo de controle monopolista poderia ter relegado a internet a ser apenas um instrumento de nicho para um grupo seleto de pesquisadores, em vez da tecnologia universalmente acessível e transformadora em que se converteu.

Da mesma forma, a transformação do GPS – de uma ferramenta militar para uma tecnologia universalmente benéfica – destaca a necessidade de governar a inovação para o bem comum.

Inicialmente projetado pelo Pentágono para coordenar ações militares, o acesso público aos sinais de GPS foi deliberadamente rebaixado, por motivos de segurança nacional. Mas, à medida que o uso civil ultrapassou o militar, o governo dos EUA, sob o presidente Bill Clinton, tornou o GPS mais responsivo aos usuários civis e comerciais em todo o mundo.

Essa mudança não apenas democratizou o acesso à tecnologia de geolocalização precisa, mas também estimulou uma onda de inovação em muitos setores, incluindo navegação, logística e serviços baseados em localização. Uma mudança de política que buscava maximizar o benefício público teve um impacto transformador e de longo alcance na inovação tecnológica. Mas esse exemplo também mostra que governar para o bem comum é uma escolha consciente que requer investimento contínuo, alta coordenação e capacidade de entrega.

Para aplicar essa escolha à inovação em IA, precisaremos de estruturas de governança inclusivas e orientadas para missões, com meios para investir conjuntamente com parceiros que reconheçam o potencial da inovação liderada pelo Estado. Para coordenar respostas de múltipos atores a objetivos ambiciosos, os formuladores de políticas devem estabelecer condições para financiamento público, de modo que os riscos e recompensas sejam compartilhados de forma mais equitativa. Isso significa objetivos claros, aos quais as empresas precisam se adequar; altos padrões de trabalho, sociais e ambientais; e compartilhamento de lucros com o público. As condicionalidades podem e devem exigir que as Big Tech sejam mais abertas e transparentes. Não devemos aceitar nada menos do que isso, se quisermos levar a sério a ideia de capitalismo de stakeholders.

Por fim, enfrentar os perigos da IA exige que os governos ampliem seu papel além da regulação. Sim, diferentes governos têm capacidades diferentes, e alguns são altamente dependentes da economia política global mais ampla da IA. A melhor estratégia para os Estados Unidos pode não ser a melhor para o Reino Unido, a UE ou qualquer outro país. Mas todos devem evitar a falácia de presumir que governar a IA para o Comum está em conflito com a criação de um setor de IA robusto e competitivo. Pelo contrário, a inovação floresce quando o acesso às oportunidades está aberto e as recompensas são amplamente compartilhadas.

Mariana Mazzucato, é uma economista italiana, professora da cátedra RM Phillips de Ciência e Tecnologia da Universidade de Sussex.

Lula não pode temer o militar, por Manuel Domingos Neto

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Manuel Domingos Neto – A Terra ê Redonda – 23/03/2024

O grito “sem anistia” exprime a vontade democrática. Mas há um enorme fosso entre essa vontade e a organização Forças Armadas missionadas para garantir a soberania nacional e democracia
Para Oswald Barroso

A ministra Luciana Santos e o ministro Camilo Santana suspenderão o financiamento de pesquisadores que estudem o golpe de 1964 e a ditadura que se seguiu? A UnB será impedida de promover homenagem póstuma a Honestino Guimarães, assassinado pela ditadura?

O Ministério da Educação sustará reverências a Anísio Teixeira e Paulo Freire? Deixará de implementar políticas contrárias ao ensino cívico-militar propugnado pelos fascistas? Punirá professores que aludam ao golpe militar em sala de aula?

A ministra Marina Silva cancelará estudos ambientais que se refiram à devastação da Amazônia promovida pela Ditadura?

O ministro Sílvio Almeida coordenará o “esquecimento” do terrorismo de Estado praticado por mais de duas décadas?

A ministra Anielle Franco ignorará a homofobia e a misoginia praticada nos quartéis? As homenagens aos golpistas serão suprimidas dos logradouros das cidades brasileiras? O busto do golpista Castello Branco será retirado do hall da Escola de Comando e Estado Maior do Exército?

A orientação governamental para que os agentes públicos silenciem sobre o golpe de 1964 é esdrúxula e inexequível. Como entendê-la?

Dissemina-se entre certos democratas a falsa ideia de que a contenção do intervencionismo político castrense deve ser operada pela Polícia Federal, Ministério Público e STF. O governo não teria nada a ver com isso. Lula teria agido corretamente ao interditar, no âmbito governamental, iniciativas relacionadas ao Golpe de 1964. Assim, apaziguaria “tensões” e governaria com tranquilidade.

Essa ideia destitui Lula da condição de comandante supremo das Forças Armadas, conforme definido pela Constituição. Cabe ao presidente definir as diretrizes para a organização, funcionamento e emprego do aparelho militar. Cumpre-lhe exigir que seus subordinados acatem a lei.

A orientação de Lula confere autonomia descabida às Forças Armadas. As corporações militares não podem ser entregues à sua própria vontade. Isso respaldaria a noção de que o militar constitui poder moderador, conforme o discurso fascista. Militar não é responsável, em última instância, pelos destinos do Brasil.

Não cabe ao Comandante Supremo negociar politicamente com os comandantes. Comandante comanda; político negocia com político. A ideia de confronto entre o poder político e as Forças Armadas admite a insubordinação. Ao poder político cumpre exercer autoridade constitucional cobrando obediência e disciplina. A atuação do Judiciário não suprime a responsabilidade do Presidente.

É compreensível a atitude temerosa de Lula diante dos quartéis. Todos nós tememos o desconhecido e Lula, como a maioria dos brasileiros, desconhece o militar.

Lula parece não entender que o militar é um agente público educado para cumprir ordens. Se não as recebe, decidirá por conta própria o que fazer. Tramará em busca do comando político.
Desavisado, Lula está estimulando a insubordinação da caserna.

É verdade que a Polícia Federal, o Ministério Público e o Judiciário cercam os militares mais reconhecidos como atuantes na arena política. Mas trata-se de um cerco limitado: o conjunto das corporações têm responsabilidades na eleição de um promotor do descalabro. A punição de algumas dezenas de oficiais, mesmo de alta patente, será recado importante, mas insuficiente.

O Brasil precisa de novas diretrizes para a Defesa Nacional. Se bem definidas, essas diretrizes orientarão uma reforma do aparelho militar. Não se trata de punir e, muito menos, promover desforra. Trata-se de preparar o Estado para exercer sua soberania em um mundo conflagrado. Neste mister, o Comandante Supremo é insubstituível.

O grito “sem anistia” exprime a vontade democrática. Mas há um enorme fosso entre essa vontade e a organização Forças Armadas missionadas para garantir a soberania nacional e democracia.

Quando Lula detiver conhecimento dos problemas da Defesa e dos assuntos militares, compreenderá que não tem direito de temer o soldado. Nem terá motivo para isso. Emitindo ordens claras e justificadas, o soldado atenderá o Comandante.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Autor, entre outros livros de O que fazer com o militar – Anotações para uma nova Defesa Nacional

Mazzucato: a chance de mudar as redes sociais

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Avançam, em todo o mundo, ações judiciais contra Big Techs. Sociedades reagem à dependência que induzem, em prol do lucro máximo. Base de um plano para transformá-las é redesenhar os algoritmos, para que priorizem a invenção humana

Mariana Mazzucato e Ilan Strauss – OUTRAS PALAVRAS – 13/03/2024

A implantação de algoritmos para maximizar o engajamento do usuário é a forma como as grandes empresas de tecnologia maximizam o valor para os acionistas, e os lucros de curto prazo geralmente têm precedência sobre os objetivos de negócios de longo prazo. Agora que a inteligência artificial está preparada para impulsionar a economia das plataformas, são urgentemente necessárias novas regras e estruturas de governança para salvaguardar o público.

Num novo processo judicial nos Estados Unidos contra a Meta, 41 estados e o Distrito de Colúmbia sustentam que duas das redes sociais da empresa (Instagram e Facebook) não são apenas viciantes, mas também prejudiciais ao bem-estar dos menores. A Meta é acusada de implementar um “esquema para explorar jovens usuários com fins lucrativos”, o que inclui mostrar-lhes conteúdo prejudicial que os mantém grudados em suas telas. De acordo com uma pesquisa recente, os jovens estadunidenses de 17 anos passam 5,8 horas por dia nas redes sociais. Como tudo isso veio à tona? A resposta, em uma palavra, é “engajamento”.

A utilização de algoritmos concebidos para maximizar o “engajamento” dos usuários é a forma das Big Tech maximizarem o valor para os acionistas, cujo resultado são lucros a curto prazo muitas vezes superiores aos objetivos empresariais de longo prazo (isso sem falar da saúde coletiva).

Como explica o cientista de dados Greg Linden, algoritmos baseados em “más métricas” promovem “maus incentivos” e abrem caminho aos “maus atores”.

O Facebook começou como um serviço básico para conectar amigos e conhecidos na internet, mas com o tempo seu design evoluiu da satisfação das necessidades e preferências dos usuários para mantê-los dentro da plataforma e longe de outras pessoas. Para atingir esse objetivo, a empresa desconsiderou repetidamente as preferências explícitas dos consumidores em relação ao tipo de conteúdo que desejam visualizar, à privacidade e ao compartilhamento de seus dados.

A primazia dos lucros imediatos passa por induzir os usuários a clicar, mesmo que o resultado global desta estratégia seja dar prioridade a materiais sensacionais e de baixa qualidade, em vez de dar a devida recompensa a um universo mais vasto de criadores de conteúdos, usuários e anunciantes. Chamamos estes lucros de “rendas algorítmicas de atenção”, porque são gerados através da posse passiva (como a dos proprietários de terras) em vez de atividade produtiva destinada a satisfazer as necessidades dos consumidores.

Identificar o comportamento rentista na economia atual requer a compreensão de como as plataformas dominantes exploram o controle algorítmico que têm sobre os usuários. Um algoritmo que degrada a qualidade dos conteúdos que promove está abusando da confiança dos usuários e da posição dominante reforçada pelo efeito de rede. É assim que o Facebook, o Twitter e o Instagram podem seguir seu caminho e continuar enchendo suas páginas com anúncios e viciantes conteúdos “sugeridos”. Como explica o especialista em tecnologia Cory Doctorow de forma um tanto colorida, “a merdificação (enshittificação) das plataformas vem do canhão de um algoritmo” (que por sua vez pode depender de práticas ilegais de coleta e compartilhamento de dados).

O processo contra o Meta tem a ver, em última análise, com suas práticas algorítmicas, cuidadosamente projetadas para maximizar o “engajamento” dos usuários: mantê-los na plataforma por mais tempo e suscitar mais comentários, “curtidas” e republicações. Muitas vezes acontece que uma boa maneira de conseguir isso é exibir conteúdo prejudicial e que beira o ilegal, e transformar o tempo gasto na plataforma em uma atividade compulsiva, por meio de recursos como “rolagem infinita” e o envio incessante de notificações e alertas (técnicas que em muitos casos também são utilizadas com grande eficácia na indústria dos jogos de azar).

À medida que os avanços na inteligência artificial (IA) começam a potencializar as recomendações algorítmicas e a torná-las ainda mais viciantes, são urgentemente necessárias novas estruturas de governança orientadas para o “bem comum” (em vez de uma ideia estreita de “valor para os acionistas”) e alianças simbióticas entre empresas, governos e sociedade civil. Felizmente, está ao alcance das autoridades reformar estes mercados para os colocar ao serviço do bem comum.

Em primeiro lugar, em vez de se basearem exclusivamente na legislação antitruste e de defesa da concorrência, as autoridades devem adotar ferramentas tecnológicas que evitem que as plataformas encarcerem usuários e desenvolvedores. Uma forma de evitar a criação espaços fechados anticoncorrenciais é exigir a portabilidade e a interoperabilidade dos dados entre os serviços digitais, para que os usuários possam facilmente passar de uma plataforma para outra se aquela em que se encontram não corresponder às suas necessidades e preferências.

Em segundo lugar, é essencial uma reforma da governança corporativa, uma vez que o que levou as plataformas à exploração algorítmica dos usuários foi o princípio da maximização do valor para o acionista. Dados os custos sociais bem conhecidos deste modelo de negócio (a busca do maior número possível de cliques conduz muitas vezes à multiplicação de fraudes, desinformação e materiais que incentivam a polarização política), a reforma da governança exige uma reforma dos algoritmos.

Um primeiro passo para a criação de um modelo de base mais saudável é exigir que as plataformas divulguem (no seu relatório anual 10K [que fornece aos investidores uma análise abrangente da empresa] que devem apresentar à Comissão de Valores Mobiliários dos EUA) as métricas que os seus algoritmos visam otimizar, bem como o modo que isso monetiza os usuários. Num mundo onde os executivos da tecnologia vão a Davos todos os anos para falar sobre o “propósito” social das suas empresas, uma divulgação oficial de dados irá pressioná-los a cumprir o que dizem e ajudar os decisores políticos, reguladores e investidores a distinguir entre lucros merecidos e rendas indevidas.

Terceiro, os usuários precisam ter mais influência sobre como os algoritmos priorizam as informações que lhes são mostradas. Caso contrário, o desrespeito pelas preferências dos usuários continuará a causar danos, pois os algoritmos criam ciclos de retroalimentação nos quais induzem os usuários a clicar em determinados conteúdos e depois inferem erroneamente que essas são as suas preferências.

Em quarto lugar, a metodologia padrão da indústria de “teste A/B” deve dar lugar a avaliações de impacto mais abrangentes a longo prazo. O mau uso da ciência de dados leva ao imediatismo algorítmico. Por exemplo, uma teste A/B pode mostrar que o aumento do número de anúncios em exibição terá um efeito positivo a curto prazo sobre os lucros, sem causar uma deterioração óbvia na retenção de usuários; mas isto ignora o impacto na aquisição de novos usuários, para não mencionar quase todos os outros efeitos potencialmente prejudiciais a longo prazo.

A ciência de dados bem utilizada mostra que otimizar os sistemas de recomendação para não buscar recompensas imediatas (por exemplo, visando, em vez disso, a satisfação do cliente e a aquisição e retenção de usuários futuros) é a melhor maneira que as empresas têm para reforçar o crescimento e a lucratividade no longo prazo (supondo que eles possam parar de concentrar toda a sua atenção no próximo relatório de lucros trimestrais). Em 2020, uma equipe da Meta determinou que, em um horizonte de tempo mais longo (um ano), a redução do número de notificações intrusivas melhoraria a utilização do aplicativo e a satisfação dos usuários. Uma grande diferença foi encontrada entre os efeitos de longo prazo e os efeitos de curto prazo.

Em quinto lugar, a IA pública deve ser posta em ação para avaliar a qualidade dos resultados dos algoritmos, particularmente na área da publicidade. Face aos danos consideráveis causados pela flexibilização dos critérios de aceitação de anúncios por parte das plataformas, a autoridade britânica responsável pelo controle publicitário começará a utilizar ferramentas de IA para analisar anúncios e identificar aqueles que fazem “afirmações duvidosas”. Outros países deveriam seguir o exemplo. Igualmente importante, a avaliação da IA deve ser um componente regular da disposição das plataformas para permitir auditoria externa dos resultados dos algoritmos.

Criar um ambiente digital que recompense a criação de valor a partir da inovação e puna a extração de valor rentista (particularmente nos maiores mercados digitais) é o desafio econômico fundamental dos nossos tempos. Para preservar a saúde dos usuários das corporações de tecnologia e da totalidade de seu ecossistema, é necessário evitar que os algoritmos fiquem subordinados ao desejo dos acionistas de lucros imediatos. Se os diretores empresariais realmente acreditam no princípio do valor para as partes interessadas, devem aceitar que é necessária uma mudança radical na forma como o valor é criado, com base nos cinco princípios detalhados acima.

O julgamento iminente contra a Meta não pode desfazer os erros do passado. Mas à medida que nos preparamos para a próxima geração de produtos de IA, temos que instituir mecanismos para uma supervisão adequada dos algoritmos. A utilização de algoritmos baseados em IA influenciará não só o que consumimos, mas também a forma como produzimos e criamos; não apenas o que escolhemos, mas também o que pensamos. Não há espaço para erros aqui.

Protecionismo

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Nos últimos anos, principalmente depois da crise financeira de 2008, a economia internacional vem percebendo o incremento do protecionismo, as nações estão aumentando as medidas protecionistas como forma de fortalecer suas estruturas econômicas e produtivas internas, reduzindo a entrada de produtos produzidos em concorrentes diretos para fortalecer suas empresas nacionais, impedindo que empresas internacionais gerem constrangimentos para suas organizações internas.

Neste ambiente, percebemos uma alteração nítida e evidente do discurso econômico de muitas nações desenvolvidas. Anteriormente, essas nações defendiam fortemente a abertura econômica, a privatização generalizada de empresas estatais e o incremento da competição como forma de alavancar seus setores produtivos, rechaçando toda e qualquer intervenção dos governos nacionais, vistos como negativos, perdulários e geradores de privilégios elevados.

Atualmente, os discursos estão sendo alterados, nações desenvolvidas vêm perdendo espaço no comércio internacional, empresas altamente qualificadas e geradoras de grandes ganhos financeiros e dotados de alto valor de mercado, estão perdendo espaço para organizações mais eficientes, ágeis e flexíveis, com novos modelos de negócios, ganhando valores no mercado global e gerando graves perdas econômicas para organizações tradicionais, levando muitas nações a adotarem medidas de salvaguarda para impedir que essas organizações nacionais sejam engolidas por concorrentes internacionais e gerando graves constrangimentos internos.

O protecionismo sempre existiu na economia mundial, as nações que conseguiram alçar seu desenvolvimento industrial e produtivo só conseguiram se desenvolver através de medidas de proteção, de políticas industriais ativas, de compras governamentais e de subsídios generalizados de seus governos nacionais. Embora saibamos que essa fórmula, que foi fortemente adotada por todas as nações que conseguiram se desenvolver, todos os países que tentaram adotar essas mesmas medidas foram fortemente criticados, pressionados e fragilizados financeiramente como forma de inviabilizar seu crescimento industrial, garantindo a perpetuação da dependência externa.

Na contemporaneidade, percebemos a ascensão asiática, principalmente o crescimento da China, do Japão,, da Índia e da Coréia do Sul, angariando grande crescimento econômico, produtivo e tecnológico, ameaçando posições ocidentais conseguidas ao longo de todo o século anterior e gerando constrangimentos internos na Europa e nos Estados Unidos, obrigando seus governos a adotarem políticas fortemente protecionistas, rasgando seus manuais de economia política como forma de sobrevivência, num mundo marcado pela forte competição externa, pelo surgimento de novos espaços tecnológicos e novos modelos de negócios.

Neste momento, os governos ocidentais de países desenvolvidos estão injetando trilhões de dólares em seus setores produtivos, impedindo a entrada de novos competidores e criando formas de atração de empresas internacionais, organizações dotadas de grande complexidade econômica e auxiliando na redução dos hiatos produtivos de concorrentes externos.

Vivemos momentos de grandes instabilidades e incertezas em todas as regiões do mundo, os discursos dos defensores da abertura econômica perderam espaço, antes de estimularmos a concorrência generalizada, precisamos repensar as teorias que dominaram a economia internacional e contribuíram ativamente para o incremento das riquezas na comunidade global, mas infelizmente, aumentaram o fosso entre os grupos sociais, aumentando as desigualdades, incrementando a exclusão e a indignidade. Neste cenário, para piorar, estamos cada vez mais envoltos numa guerra de grandes proporções que podem culminar numa destruição nuclear.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Europa à deriva, por Flávio Aguiar

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A demolição da social-democracia, nos anos 90, talvez tenha sido o começo da crise. Submisso aos EUA, continente tornou-se marionete geopolítica na contenção da Rússia e China. Resultado: econômica instável, agitações sociais, ascensão da ultradireita e o retorno do militarismo

Flávio Aguiar – OUTRAS PALAVRAS – 19/03/2024

O continente europeu possui uma coluna dorsal: a União Europeia. Mesmo os países que não pertencem a ela, como a Ucrânia, a Noruega, a Suíça, a Turquia e a Islândia, além de outros, gravitam em torno da UE. E esta coluna dorsal está sendo desossada, e periga se liquefazer. Em parte, esta crise lhe veio das próprias entranhas. Em parte, foi importada de fora, ou lhe foi imposta. Quem lhe impôs? Os Estados Unidos, através das injunções e exigências de seu braço armado multinacional, a Otan.

O ideal e a ideia da União Europeia nasceram dos escombros da Segunda Guerra, através da Comunidade Econômica Europeia e da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, criadas em 1957.

Consolidou-se oficialmente em 1993, depois do Tratado de Maastricht, assinado em 1992. Foi reformulada com o Tratado de Lisboa, assinado em 2007 e em vigor desde 2009. 20 dos 27países membros da UE adotam o euro como moeda comum, criada como valor de transferência em 1999 e sob a forma de notas e moedas a partir de 2002. A primeira grande crise da UE. ocorreu com a saída do Reino Unido, em 2020, depois de um plebiscito votado em 2016. E hoje ela tem a vizinha Rússia como sua principal adversária.

Isto significa que o ideal da União Europeia foi desenhado enquanto a parte Ocidental do continente vivia, genericamente, sob a hegemonia ideológica da social-democracia, como alternativa e resposta ao comunismo que vigia na sua parte Oriental, sob a liderança da finada União Soviética. Entretanto ela foi criada quando o sonho social-democrata e sua generosidade social cedia o passo ou se rendia ao pesadelo neoliberal e seus planos de austeridade fiscal, monetária e social. Esta é a raiz interna da crise hoje vivida pela União e pelo continente como um todo.

Se a União Europeia nasceu também com ideal de paz num continente continuamente marcado por grandes conflitos armados, ela nasceu igualmente sob a sombra das guerras iugoslavas e do Kosovo (1991-1999), marcadas por genocídios e pelas intervenções dos Estados Unidos e da Otan, sob a forma de mediação imposta e bombardeios seletivos. A presença do belicismo se agravou com a guerra na Ucrânia, entre este país, apoiado pelos Estados Unidos, a Otan e a União Europeia, e a Rússia, a partir de fevereiro de 2020, quando esta invadiu aquela alegando sentir-se ameaçada por uma possível adesão de Kiev à Otan. Os governos da UE, uns a gosto e outros a contragosto, se viram empurrados para dentro do conflito, liderado do lado Ocidental pelos EUA e pelo Reino Unido. Os EUA viram na conjuntura uma oportunidade para pressionar pela diminuição da dependência energética da Europa em relação à Rússia, caso, sobretudo, do carro-chefe da economia europeia, a Alemanha. Em consequência da guerra e da adesão europeia ao auxílio militar prestado à Ucrânia e das sanções adotadas contra Moscou, a situação das economias europeias foram profundamente afetadas. Os cortes no fornecimento do gás russo, dos fertilizantes e dos grãos ucranianos provocaram uma espiral inflacionária em todos os países, sobretudo na Alemanha, nos preços da energia, dos transportes, dos insumos agrícolas e de fármacos. Paradoxalmente, as sanções econômicas adotadas contra Moscou parecem prejudicar mais a Europa do que a Rússia.

Deste modo a Europa se aproxima mais e mais de tornar-se – ou voltar a ser – um protetorado militar da Otan atravessado pelas necessidades políticas dos Estados Unidos em sua campanha contra a Rússia e a China.

O continente vê-se marcado por agitações sociais ainda de médio porte, mas cada vez mais amplas e difundidas. Os protestos dos agricultores contra o que vêm como um falta de apoio dos governos e da União no que se refere a insumos, particularmente no preço do diesel, se espalharam da Polônia à Península Ibérica. Protestam também pelo que consideram uma política restritiva de agrotóxicos e de proteção do meio ambiente. Greves em aeroportos, portos, ferrovias e transportes urbanos pipocam em toda parte. No Reino Unido o setor da saúde é dos mais afetados, tanto em falta de investimentos como de pessoal, devido em parte à insegurança provocada pelo Brexit, a saída da União. A Alemanha vive um processo crescente de desindustrialização, com o fechamento de grandes unidades produtoras.

Tal clima de insegurança vem favorecendo em toda parte a ascensão da extrema direita. Partidos como o Vox, que na Espanha reivindica a herança falangista, o Rassemblement National na França, o Alternative für Deutschland na Alemanha, o Frateli d’Italia na Italia vem crescendo continuamente. Quando não ganham eleições, como foi o caso do Frateli na Itália, ditam a pauta política, o que envolve um traço de ceticismo em relação à União Europeia, pelo menos do modo como está constituída. Ultimamente estes partidos têm amenizado sua retórica anti-União Europeia, falando mais em reformular seus princípios em nome da preservação das soberanias nacionais. E puxam todo o espectro político mais para a direita, em torno de políticas reacionárias quanto a costumes e valores culturais, da xenofobia, da islamofobia, esta última agravada pelo desejo de aproximação com Israel e sua política de apartheid em relação ao povo palestino e massacre da população civil na Faixa de Gaza.

Tal crescimento se alimenta da falência dos planos de austeridade em produzir bem-estar social, o que não surpreende ninguém de bom senso. E também se alimenta da retração divisionista das esquerdas ou da rendição de vários setores aos ditames da real politik europeia impulsionada pelas consequências geopolíticas da guerra na Ucrânia.

E em toda parte renasce o velho militarismo como alternativa geopolítica alimentada pela russofobia, e econômica, diante das agruras e amarguras de uma possível recessão de longo alcance. E desta vez o Velho Mundo não está assente apenas sobre a novidade dos drones, os blindados e outros armamentos convencionais, mas diante do risco sem retorno de um confronto nuclear.

Flávio Aguiar, é membro da Frente Brasileiras e Brasileiros pela Democracia e contra o golpe (FIBRA), na Alemnha.

A ordem do capital, por Clara Mattei

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Clara E. Mattei – A Terra É Redonda – 19/03/2024

Nota à edição brasileira, recém-lançada

É uma verdadeira conquista ver A ordem do capital publicado em português. Afinal, ainda que narre algo que teve lugar na Europa de um século atrás, seguindo uma linha que revisita e revê os fundamentos da economia a fim de relacionar os efeitos das políticas econômicas de austeridade do início do século XX à ascensão do fascismo, neste livro há elementos analíticos que podem contribuir para compreender a natureza e a lógica da austeridade no Brasil atual.

Não obstante se concentre nas relações de classe em contextos europeus nos quais a austeridade foi usada como instrumento político para esmagar as reivindicações de democracia econômica,
transporta essa dinâmica à compreensão de como as relações de classe foram forjadas em países cujo histórico é de escravidão e colonialismo. Entender as relações de classe da Europa do século XIX serve para calibrar como o discurso da austeridade vem acompanhado de uma pauta argumentativa que cancela o aspecto de classe das políticas adotadas, como se estas atingissem a todos de maneira equânime.

Os eventos ocorridos entre Europa ocidental e Norte global no início do século passado reverberaram no eixo centro-periferia e orientaram como os subalternos pautariam a própria política. Economistas do Sul global buscaram validação nas vertentes econômicas que disseminaram a austeridade e assumiriam os contornos neoliberais que testemunhamos hoje.

Outra chave que a história nos ensina consiste na inseparabilidade da austeridade fiscal e monetária, por meio do comprometimento orçamentário com o constante aumento das taxas de juros, afetando diretamente o mundo do trabalho. A escassez de crédito em razão da política rentista de juros altos faz que o trabalhador seja impactado em duas frentes: de um lado, pela redução do emprego e, por conseguinte, pela sujeição ao trabalho precarizado; de outro, por uma política salarial baixa que comprime o poder de compra entre as inúmeras necessidades a ser satisfeitas no vácuo deixado pela ausência do serviço público.

Não por outra razão, uma das primeiras medidas recentes na implementação da austeridade no Brasil consistiu em eliminar leis trabalhistas.

Também as privatizações para atrair investidor nas famigeradas parcerias público-privadas, acompanhadas da desregulamentação do mercado, desempenham um papel fundamental na dinâmica da austeridade. Boa parte do discurso gira em torno de justificar a redução dos gastos públicos ao comprometer o orçamento com o pagamento dos juros e amortização da dívida. Tal ideia, ainda que equivocada, permitiu, como veremos, que a autoridade máxima no Banco Central se tornasse imune à política de juros sugerida pelo chefe do Executivo.

Após a promulgação da Lei complementar n. 179, de 2019, as necessidades orçamentárias do presidente da República são completamente irrelevantes para o presidente do Banco Central, uma vez que seu mandato é dotado de garantias a exigir um dificultoso processo de exoneração, dependente da maioria absoluta do Senado. O aprofundamento da austeridade alcançada por diversos estratagemas durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro, sob o disfarce de conferir plena autonomia ao Banco Central, retirou do poder político as alianças, tão caras à construção de um programa orçamentário harmônico e consentâneo, com as indispensáveis políticas sociais de um país de modernidade tardia.

Dado o presente cenário, vale ressaltar que o Brasil já conta com a maior taxa de juro real do mundo, superando países que agonizam com a inflação, como a Argentina. Ao mesmo tempo, o comprometimento do PIB brasileiro com a dívida pública é inferior ao de países desenvolvidos, de maneira a inviabilizar o argumento de que o país deve reduzir gastos, de que o país gasta descontroladamente.

Enquanto a Itália, objeto central de estudo desta obra, apresenta uma relação entre o PIB e a dívida pública que supera os 150%, a proporção do Brasil é inferior a 80%. Países como o Japão e a Grécia superam os 200%, e os Estados Unidos atingem 120%. Portanto, o argumento de que o Brasil não possui alternativas senão implementar políticas de austeridade não se sustenta. O ponto nodal do orçamento nacional reside no importe destinado ao pagamento dos juros da dívida pública, injustificável e propagador das mazelas sociais das quais o país padece.

O ano 2022 encerrou-se com a aprovação de uma emenda de transição do então futuro governo Lula, a Emenda constitucional no. 126, que ampliou o orçamento público para permitir que despesas correntes na ordem de 145 bilhões não fossem limitadas ao teto de gastos. A emenda também balizou outro teto de gastos, que viria a se chamar “novo arcabouço fiscal”. As balizas estabelecidas pelas novas regras mostraram-se tímidas, senão covardes, sobretudo em abolir o nefasto teto de gastos estabelecido pela Emenda constitucional no. 95/2016, impedindo o país de austeridade que ignora a facção política que ocupa o poder. O regime de austeridade, apesar de não alcançar os resultados de estabilização econômica almejados, não falha em atingir seu verdadeiro intuito: assegurar que a tríade de políticas fiscais, políticas monetárias e erosão da capacidade da classe trabalhadora de reagir a elas silenciem a dissidência.

Ademais, por compor o Sul global, o Brasil é mais suscetível às pressões das elites internas e globais. Portanto, a imposição de medidas de austeridade pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) para a concessão de empréstimos internacionais não foi acaso. A ingerência do FMI a afetar diretamente assuntos ínsitos à soberania do país culminou na aprovação da lei de responsabilidade fiscal, em 2000, como parte de uma pauta de “recomendações” que asseguraria o pagamento da dívida. Contudo, para além de estabelecer garantias desse pagamento, o verdadeiro intuito era ditar como a política deveria orientar-se, a prescindir do governante no poder.

Antes de assumir seu primeiro mandato, em 2003, Lula entregou uma carta de compromissos para “tranquilizar o mercado”, prometendo manter a “estabilidade” de seu predecessor Fernando Henrique Cardoso. Em 2023, retornando à Presidência após o período de convulsão que o país atravessou, Lula comprometeu-se a “colocar o pobre no orçamento”; no entanto, até o momento, impera o continuísmo em relação a Michel Temer e Jair Bolsonaro. Uma maior incursão na história política do país revela que o período da ditadura militar e as mudanças de poder pouco alteraram a forma como o capital é extraído da classe trabalhadora. Em alusão ao ex-ministro da Fazenda do “milagre econômico”, Delfim Neto, seria necessário “fazer o bolo crescer para depois dividi-lo” – só que o momento da divisão jamais alcança os desfavorecidos do sistema.

A austeridade não consiste em remédio amargo administrado para brecar a “gastança desenfreada” e “retomar o crescimento”, jargões já tão conhecidos quanto desgastados. A austeridade tampouco é um erro de percurso na política para desfazer o “agigantamento do Estado” e proporcionar “menos Estado, mais mercado”. A lente através da qual o economista enxerga as variáveis de mercado distorce o modo como a realidade opera, vislumbrando o agregado (a unidade nacional) a despeito do bem-estar social e apresentando uma acentuada miopia as distinções de classe.

Como bem evidenciado, a definição comum de austeridade enquanto corte nos gastos e aumento de impostos mascara a escolha da alocação de recursos, que são abundantes para financiar guerras, arcar com juros da dívida pública, mas ínfimos na expansão do gasto social. No Brasil, os cortes foram significativos em setores que não comportavam ulterior achatamento. O salário mínimo carece de aumento real comparado à inflação, as reformas da previdência passaram a estabelecer critérios mais rígidos para concessão de benefícios, e as privatizações encareceram o preço dos serviços públicos ao longo dos anos.

A austeridade que se delineia nos países desenvolvidos continua admitindo um elevado comprometimento do PIB com a dívida pública, porém segue o preceito de eliminar prestações sociais, condicionando-as ao recrutamento de trabalho mal remunerado, ao corte de gastos em saúde, educação e moradia e à eliminação da tributação dos mais ricos, transferindo o ônus aos mais pobres por meio da taxação regressiva do consumo e dos serviços. O capital sai ainda mais privilegiado das equações de austeridade, mercantilizando as prestações sociais como barganha em detrimento da sociedade.

No caso brasileiro, os juros elevados agradam o especulador internacional, ávido por retornos substanciais em um país que não investe e, portanto, jamais se liberta da situação de dependência. Ao mesmo tempo, optando pela constituição em pessoa jurídica, o capital conta com a benesse sem precedentes – afora na Estônia e na Letônia – de não incidência de imposto de renda em lucros e dividendos.

A austeridade fiscal, inseparável da monetária, atua junto à imposição de um incremento artificial dos juros sob o argumento de conter a inflação, comprometendo, assim, o orçamento público com o pagamento de juros injustificáveis. O valor do salário – outro fator relevante –, a despeito do que se possa pensar, possui correlação direta com a política de austeridade.

Existe uma relação inversamente proporcional entre a privatização dos serviços públicos e a estabilidade da remuneração proveniente desse setor. Esse fenômeno ocorre em paralelo à revogação das proteções trabalhistas, previdenciárias e assistenciais e à supressão das prestações públicas, enfraquecendo o poder de negociação de sindicatos e trabalhadores. Quanto mais escassos são os recursos disponíveis para satisfazer as próprias necessidades de subsistência, mais suscetível estará o trabalhador a sujeitar-se a relações de trabalho opressivas. Não por coincidência, as políticas de austeridade no Brasil vêm acompanhadas de precarização das relações de trabalho e de uma disseminada incapacidade de mobilização sindical e reinvindicação política dos direitos trabalhistas e, mais amplamente, dos direitos sociais.

O presente contexto político é bastante desfavorável à realização de direitos sociais e econômicos dos contingentes mais vulneráveis da sociedade brasileira. Desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff – sob a falsa acusação de violação das leis orçamentárias, as chamadas “pedaladas fiscais”, indispensáveis para conciliar o gasto com o não atingimento das receitas diante da crise econômica que assolou o país, providências que nada mais eram que instrumentos para a execução de despesas públicas inadiáveis –, o cenário de desfazimento do Estado social ganhou fôlego com o rompimento do pacto social por meio da forjada Emenda constitucional n. 95/2016, resultado da aprovação da “PEC da morte”. Tal reforma elevou ao status constitucional um estado de coisas que subverte os primados estabelecidos na própria Constituição.

Não bastasse, a “austeridade expansionista” do então ministro Paulo Guedes aprofundou o processo de empobrecimento social, acompanhada das reformas trabalhistas previdenciárias e de uma desenfreada busca pela privatização de setores pertencentes ao poder público. Tal programa mostrou-se, desde o princípio, um fracasso, pois, assim que a pandemia de covid-19 interrompeu o funcionamento da economia, tornou-se impossível manter a força de trabalho, refém do ambiente doméstico, sem qualquer alternativa para mitigar a crise. A pandemia expôs a fragilidade do sistema em lidar com o excepcional, e algumas das medidas de contenção de gastos essenciais precisaram ser abrandadas para fazer frente à aprovação de auxílios emergenciais, que teria vigência provisória e, portanto, transformaram um então direito em faculdade de quem exerce o poder.

*Clara E. Mattei é professora no Departamento de Economia da The New School for Social Research.

Senado na contramão civilizatória, por Thiago Amparo

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Democracias que se prezem adotam política oposta com relação às drogas

Thiago Amparo, Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Folha de São Paulo, 14/03/2024

Se a intenção da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado era atestar, na letra da Constituição, o quão atrasado em matéria de política de drogas é o país, conseguiu. Nesta quarta (13), a comissão aprovou uma PEC que cristaliza o oposto do que todas as democracias que se prezem estão fazendo mundo afora: incute ma Carta o crime de possuir ou carregar qualquer tipo de droga, mesmo que seja para consumo próprio.

Ao usar o cartucho de uma PEC para piorar a já ruim lei de drogas —principal responsável pelo inchaço de 257% das prisões brasileiras nas duas últimas décadas—, o Senado usa uma arma nuclear para explodir um ladrão de galinha. Para justificar a emenda que piora o soneto, o relator da proposta, Efraim Filho (União Brasil-PB), inventou um oximoro: “Tráfico em pequenas quantidades”. A realidade, senador, é outra: a maioria dos presos por tráfico nem sequer tem relação com facções, conforme estudo do Ipea de 2023.

Na ausência de um critério objetivo que ajude a diferenciar traficante de usuário —principal gargalo da lei de drogas ora sob análise do STF —, ser negro e pobre parecem ser fatores determinantes para enquadrar o réu como traficante, mesmo quando não o é. O que o Senado faz é agravar essa situação ao criar uma punição genérica que torne ainda mais nebulosa a diferença entre traficante e usuário; e sabemos que, mesmo com categorias turvas, o Judiciário não falha em ver negros como o primeiro e não o segundo.

A CCJ do Senado Federal, ainda, exagera os efeitos da decisão do STF. Mesmo que decida uma quantidade objetiva de maconha para consumo pessoal, o parecer da corte deve ter pouco ou nenhum efeito sobre um sistema judicial que privilegia a palavra do policial e sobre um sistema policial que se alimenta da impunidade referendada pelo Judiciário para praticar abordagens e operações violentas. A deliberação do Supremo em nada muda isso, e é justamente com essas mazelas, e não com populismo penal retrógrado, que o Senado deveria se preocupar.

A felicidade no ambiente de trabalho, por Natália Beauty.

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Colaboradores felizes não são apenas mais produtivos, mas também mais criativos e motivados

Natalia Beauty, Multiempreendedora e fundadora do Natalia Beauty Group

Folha de São Paulo, 18/03/2024

Num mundo empresarial onde a produtividade e a criatividade são moedas de valores incalculáveis, a felicidade dos colaboradores tem se tornado um diferencial competitivo significativo.

Recentemente, um artigo chamou minha atenção, sobre o conceito inovador de um diretor de
felicidade (chief happiness officer, ou CHO), cuja missão é cultivar um ambiente de trabalho mais feliz e, consequentemente, mais produtivo. Inspirada por essa abordagem e refletindo sobre a minha trajetória e os valores da minha empresa, percebi o quanto transformador pode ser um CHO para qualquer empresa, inclusive a nossa.

A pesquisa discutida no artigo revelou que, embora a felicidade no trabalho seja um objetivo almejado, muitas vezes se encontra em níveis perigosamente baixos. Empresas como Ikea, Lidl e Adidas estão levando a sério a ideia de investir na felicidade dos colaboradores, compreendendo que colaboradores felizes não são apenas mais produtivos, mas também mais criativos e motivados.

Eu sempre acreditei que o bem-estar da equipe é fundamental. Não se trata apenas de oferecer um bom salário ou benefícios tangíveis, mas, sim, de criar uma cultura que valorize cada indivíduo, suas ideias, sonhos e, claro, sua felicidade.

O cargo de CHO, inicialmente visto com ceticismo, tem se mostrado essencial para redefinir as prioridades organizacionais, se afastando das tradicionais métricas de sucesso para abraçar um ambiente de trabalho onde o bem-estar mental e físico dos colaboradores é prioritário. A ideia não é apenas proporcionar momentos de alegria efêmeros, como happy hours ou mesas de pingue-pongue, mas garantir que os colaboradores encontrem propósito, reconhecimento, realização e senso de pertencimento. Esses são os verdadeiros pilares da felicidade no trabalho.

Essa percepção, para mim, não é novidade. Sempre procurei criar um ambiente onde minha equipe se sentisse valorizada e ouvida, onde a criatividade florescesse não apenas como um meio de atingir objetivos empresariais, mas como uma expressão do ser. Contudo, a ideia de formalizar essa abordagem por meio da figura de um CHO é algo que vejo como um divisor de águas. Seria uma forma de garantir que a felicidade e o bem-estar da equipe sejam não apenas priorizados, mas continuamente avaliados e melhorados.

A implementação de “microintervenções” mencionada no artigo, como cursos introdutórios para novos colaboradores ou o envolvimento das equipes na definição de perfis para novas contratações, são estratégias que ressoam profundamente com a minha filosofia. É uma maneira de empoderar cada membro da equipe, garantindo que todos tenham voz ativa na construção da cultura empresarial.

É bom ressaltar que adotar a figura do CHO não substitui ou duplica as funções de um departamento de RH, mas agrega um foco especializado e estratégico no bem-estar dos colaboradores como um todo. Isso envolve desde a criação de programas de desenvolvimento pessoal e profissional até a garantia de um ambiente de trabalho inclusivo e acolhedor.

Eu acredito firmemente que a implementação de um Diretor da Felicidade nas empresas poderia ser um marco na jornada para, não apenas termos empresas de sucesso, mas comunidades onde cada membro se sinta verdadeiramente feliz, valorizado e parte de algo maior. A felicidade no trabalho não é apenas um ideal: é um pilar essencial para a inovação, criatividade e sucesso sustentável.

É hora de abraçarmos essa transformação.

Crises conectas

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Vivemos numa sociedade que se transforma rapidamente. Nesta sociedade, percebemos a convivência de grandes crises e, para piorar os cenários cotidianos, todas essas crises estão acontecendo ao mesmo tempo, impulsionando as instabilidades, incrementando as incertezas e estimulando as desesperanças.

Destas crises conectas, destacamos a econômica, a demográfica, a social, a ecológica, a psíquica e a política. Todas essas estão acontecendo ao mesmo tempo, levando a sociedade a grandes encruzilhadas, decisões demoradas, levando grupos de pressão a se organizar para defender seus interesses imediatos, impedindo medidas sensatas e garantindo seus ganhos econômicos e financeiros. Neste cenário assustador que vivemos na contemporaneidade, percebemos que as discussões políticas estão sendo postergadas e a situação de urgência se tornam mais prementes.

A crise econômica recente começou no período posterior a crise imobiliária dos EUA, ocorrido em 2008, que fragilizou o pensamento liberal e impulsionou crises generalizadas na economia internacional, levando conglomerados sólidos e consistentes a perderam espaço no cenário global, levando seus governos nacionais a injetaram trilhões de dólares para evitarem a bancarrota, evitando o desemprego crescente e reduzindo os riscos econômicos e financeiros, contribuindo para que o sistema produtivo se recuperasse.

A crise ecológica está agitando a comunidade internacional, embora encontramos variados grupos negacionistas, os efeitos no meio ambiente estão cada vez mais nítidos e evidentes, impactando regiões inteiras, modificando plantios e culturas, degradando comunidades inteiras, aumentando as chuvas, devastando cidades e conglomerados urbanos, mostrando-nos que não estamos preparados para as grandes transformações climáticas em curso na sociedade.

A crise demográfica está gerando calafrios, regiões prósperas e desenvolvidas perderam populações e, desta forma, precisam urgentemente de mão de obra para movimentar a economia e os setores produtivos, buscando indivíduos para incrementar suas atividades. Ao atrair mão de obra para garantir a pujança econômica, as nações percebem a chegada de culturas diferentes, com novos valores que podem gerar constrangimentos internos, conflitos religiosos, étnicos e violências cotidianas,

Neste ambiente de fortes instabilidades e incertezas crescentes, os seres humanos sentem na pele a degradação psíquica, a carga de trabalho excessiva, as violências cotidianas, a competição degradante e a escassez monetária que contribuem para os desequilíbrios emocionais e espirituais, tudo isso contribuem ativamente para o incremento das crises psíquicas que se espalham para a comunidade internacional, desde nações em desenvolvimento até as nações desenvolvidas.

As crises sociais crescem rapidamente, gerando constrangimentos assustadores, de um lado percebemos o crescimento da riqueza concentrada nas mãos de poucos afortunados e, ao mesmo tempo, a indignidade se espalha para a sociedade internacional, exigindo atuações da sociedade para reverter este quadro desastroso. A política, tão degradada na contemporaneidade, é a única forma de revertermos este quadro.

Na crise política, percebemos uma fragilização da democracia, que perdem espaço para movimentos autoritários e reacionários. Os canais de discussão política perdem espaço, a governança global se reduz em decorrência de pressões de grupos abastados e detentores dos recursos monetários e financeiros, desta forma, percebemos uma limitação da política de espaço democrático para a organização da comunidade.

Neste momento de crises conectas, precisamos construir maturidade para encontrarmos caminhos para sair deste caos generalizado… afinal o fim pode estar próximo.

Ary Ramos da Silva Júnior, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.