China gira para os emergentes, por Nelson de Sá

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Lula gostaria de não depender tanto de Xi Jinping; Tarcísio também

Nelson de Sá, Correspondente da Folha na Ásia

Folha de São Paulo, 15/03/2024

Os alarmes protecionistas dispararam novamente, a partir dos EUA, diante do salto nas exportações chinesas em janeiro e fevereiro em relação ao mesmo período do ano anterior. A diferença é que, desta vez, o que se quer é que os emergentes se voltem contra a China.

O crescimento das vendas chinesas foi para eles, emergentes, como alternativa às barreiras que estão sendo levantadas por EUA e Europa. Em renminbi, a moeda chinesa, segundo a alfândega do país, citada pelo Asia Times, de Hong Kong, o avanço das exportações se concentrou nos países do Brics, inclusive Índia, e Sudeste Asiático, sobretudo Vietnã e Indonésia. Para o Brasil, o salto nas exportações chinesas teria sido de 37,7%, próximo daquele na direção contrária, das importações chinesas de produtos brasileiros, de 37,1% —que levou o Brasil a novo recorde em superávit comercial no bimestre.

Alguns mercados chamam até mais a atenção, como a Arábia Saudita, com o uso das moedas locais para a exportação chinesa de plásticos, têxteis e maquinário em troca de petróleo. Também Singapura, onde a montadora chinesa BYD deixou a japonesa Toyota para trás, num marco para o Sudeste Asiático.

O movimento acompanha o avanço nos investimentos chineses, cada vez mais direcionados aos emergentes. Na região Ásia-Pacífico, o crescimento no ano passado foi de 37%. No Brasil, segundo o Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), o gigante asiático passou a ser o maior investidor externo em termos de fluxo.

Lula gostaria de não depender tanto de Xi Jimping. Evita a Iniciativa Cirturão e Rota, quer levar centenas de empresários à Índia, insiste no acordo do Mercosul com a União Europeia — só para ver o bloco abraçar mais legislação protecionista, agora contra produtos do cerrado.

O governador paulista Tarcísio de Freitas ambém gostaria. Correu à Europa para que a francesa Alstom participasse do recente leilão ferroviário, mas a chinesa CRRC levou sem concorrentes.

Déficits públicos, por Luiz Carlos Bresser Pereira.

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Luiz Carlos Bresser Pereira – A Terra é Redonda – 13/03/2024

A visão de curto prazo, tanto dos governantes à esquerda quanto à direita, gera déficits na conta corrente, criando uma perfeita sintonia entre o populismo dos políticos e a ortodoxia econômica

Era uma vez um país que poupava e investia 18% do seu PIB, quando os países que crescem rapidamente e fazem o “catching up” poupam cerca de 30%. Por outro lado, o déficit na conta corrente do país era de 2% do PIB, ou seja, o país gastava mais do arrecadava e sua dívida externa aumentava. “O que fazer?”, pergunta o governo. A solução chega rápido a ouvidos ansiosos: é tomar emprestado e crescer com poupança externa. Dez anos depois, porém, o que aconteceu? A taxa de investimento continuou a mesma e o país continuou a crescer pouco, muito pouco.

O excelente correspondente do jornal Valor econômico em Genebra Assis Moreira apresentou em 29 de fevereiro algumas das informações que o Human Development Report 2023/2024 do Pnud/ONU apresentará nos próximos dias. A história triste é que os países, muito parecidos com a nossa historieta do parágrafo anterior, estão muito endividados e semiestagnados. “De 59 economias em desenvolvimento examinadas, 32 têm notas de crédito classificadas abaixo do grau de ‘não investimento’. Pelo menos 36 estão classificadas como em risco ou em alto risco de endividamento”. Pior: “Entre 22 dos países mais pobres, o pagamento do serviço da dívida representa mais de 20% de sua receita”. E, segundo o FMI, representa 59,1% do PIB desses países.

Para não haver dúvida sobre o absurdo da situação, “o Pnud estima que países de baixa renda gastam 2,3 vezes mais em média com o pagamento de juros do que com assistência social para sua população, 1,4 vez mais que com gastos domésticos com saúde ou 60% do que destinam para educação”.

Desculpem a citação, mas aí estão os dados de uma tragédia que está sempre acontecendo – uma tragédia contínua que de tempos em tempos se agrava. E que confirma uma tese mais geral que defendo: quanto mais um país se endivida, menos cresce.

Sei que estou indo contra a corrente – contra o saber estabelecido. Estou dizendo que os países devem evitar o mais possível déficits em conta corrente e, portanto, não devem se endividar em moeda estrangeira.

Um comportamento frequente de ministros de finanças dos países em desenvolvimento é buscarem reduzir o déficit público para conseguir crédito no exterior e, assim, poder contar com a poupança externa. Serem responsáveis no plano fiscal é ótimo, mas não por esta razão. Excetuados alguns casos especiais, o principal deles é o país já estar crescendo em ritmo de milagre.

Então, a propensão marginal a consumir cai, a propensão marginal a investir aumenta, e a taxa de substituição da poupança interna cai, e a poupança externa se soma à interna. Fora dessa situação, os países não devem buscar poupança externa para crescer, porque a poupança externa simplesmente substitui a interna, enquanto o país se endivida.

Não devem tentar crescer com poupança externa por dois motivos que ocorrem sucessivamente. O primeiro deles é uma das ideias básicas do “Novo Desenvolvimentismo”. Quando um país tenta crescer com poupança externa, ou seja, com déficits na conta corrente financiados por empréstimos ou investimentos diretos, a taxa de câmbio do país se aprecia no longo prazo (enquanto estiverem entrando mais dólares do que saindo devido aos déficits), as empresas industriais perdem competitividade, e o país, ao invés de se industrializar, se desindustrializa. Este fato já conta com um número elevado de comprovações empíricas.

O segundo motivo se subdivide em dois. Primeiro, é o elevado peso do serviço da dívida externa pública sobre o PIB, cujos dados recentes vimos acima. Como pode o Estado investir se 20% de sua receita é destinada a pagar juros ao exterior? Sem falar no custo da dívida interna. Segundo, é o risco de o país quebrar, entrando em uma crise de balanço de pagamentos.

Uma crise dessas é provável nos países de renda baixa, mas acontece também em países de renda média, como é o caso da Argentina desde o governo de Mauricio Macri. E pode acontecer até em países ricos, como foi o caso do Reino Unido em 1976. Ela prejudica o crescimento de um país por muitos anos.

Os países ricos ignoram o primeiro motivo, mas não podem ignorar o segundo. Diante da ameaça de crise financeira nos países mais frágeis, eles poderiam limitar seus empréstimos a esses países exportar seus capitais – não os investimentos diretos das multinacionais que não são causa de crise de balanço de pagamentos porque não têm data de vencimento.

Ao invés disto, porém, encontraram uma “solução”. John Williamson, nos anos 1980 (a década da grande crise da dívida externa), formulou o conceito de taxa de câmbio de “equilíbrio fundamental”, que eu prefiro chamar de taxa de câmbio de “equilíbrio de dívida externa”. É um conceito simples: o país pode se endividar em moeda estrangeira desde que seus déficits em conta corrente em relação ao PIB não sejam maiores que o crescimento do PIB. Em outras palavras, desde que a relação dívida externa/PIB não aumente, não ocorrendo, portanto, o problema do peso excessivo de juros, nem a ameaça de crise de balanço de pagamentos.

Há uma fórmula que permite aos economistas ortodoxos calcularem essa taxa de câmbio “de equilíbrio” e a propô-la como o caminho do desenvolvimento para a periferia do capitalismo. Essa política, porém, implica sobreapreciação cambial (o que já é péssimo) e mais, se o país descuidar quanto ao limite do equilíbrio de dívida externa (o que é muito comum), verá o custo do serviço da dívida aumentar senão entrar em crise de balanço de pagamentos.

Estas considerações me levam afirmar que déficits na conta corrente são sempre maus, mesmo se forem financiados por investimentos diretos, porque sempre apreciam o câmbio. E também empréstimos em moeda estrangeira são sempre maus não apenas pelo primeiro, mas pelos dois motivos já discutidos.

Por que, então, os países periféricos insistem em se endividar? Porque no curto prazo, enquanto não operam os motivos negativos, as entradas de capitais de empréstimo podem aumentar a taxa de crescimento. E porque os governantes, sejam de direita ou de esquerda, além de pensarem só no curto prazo, preferem déficits na conta corrente e uma taxa de câmbio porque isto aumenta o poder aquisitivo dos salários e eles são reeleitos. Como se vê, há aqui uma perfeita sintonia entre o populismo dos políticos e a ortodoxia econômica.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor Emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e ex-ministro da Fazenda. Autor, entre outros livros, de Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil (Editora FGV).

Ações afirmativas sob ataque, por Cida Bento.

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Negras, quilombolas e indígenas nas universidades incomodam porque abalam a hegemonia

Cida Bento, Conselheira do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), é doutora em psicologia pela USP

Folha de São Paulo, 14/03/2024

O receio e o sentimento de ameaça sentidos por parcelas da população como reação à crescente presença negra em lugares antes considerados apenas para brancos pode ser o impulso que dá origem à recente retomada dos ataques às políticas de ação afirmativa —no caso, as cotas raciais nas universidades, iniciativas essas que se colocam na contramão da luta pela democracia multicultural.

Até bem pouco tempo atrás tínhamos nas universidades uma cota não explicitada de quase 100% para a juventude branca. Nos últimos anos, no entanto, provocada pelo movimento negro e de mulheres negras, a sociedade brasileira vem sendo obrigada a reconhecer e debater essa relação de dominação na busca de outro tipo de sociedade e novos pactos civilizatórios.

Porém, se cresce a pressão dos movimentos sociais, também cresce a resistência e são retomadas narrativas, antigas, que pensávamos já mortas, focalizando classe versus raça, ou seja: a luta racial vai “dividir a classe trabalhadora”. Ou ainda sobre “grupos étnicos” ou “movimentos identitários” que viriam para sequestrar o debate político verdadeiro, sem falar na ideia surpreendente de que as cotas iriam “racializar” nossa sociedade “não racista”.

A verdade é que as ações afirmativas e as cotas provocam uma redefinição do modo de funcionamento que torna homogêneas e uniformes as universidades brasileiras, induzindo não só a alterações nos processos, nas ferramentas, nos sistemas de valores mas também nos perfis de docentes, discentes e pesquisadores que ajudam o país a se pensar. Ou seja: ações afirmativas e, dentro delas, as cotas pretendem alterar um processo de estruturação institucional excludente que permaneceu intocado durante quase toda a história do país.

A entrada de outros grupos nas universidades, como mulheres negras, quilombolas e indígenas, incomoda porque abala a hegemonia e traz novas perspectivas e paradigmas, oferecendo a negras e negros um papel de protagonistas da ação política contra a expropriação de riquezas e a brutalidade que sustentam a sociedade e o regime político no qual vivemos. E aí vamos ter que enfrentar o desafio de refletir sobre o que a mudança desses sistemas monolíticos fará com a vida das pessoas que dele vêm se beneficiando.

Como informa o economista Mario Theodoro em seu livro “A Sociedade Desigual: Racismo e Branquitude na Formação do Brasil”, o país teve —e perdeu— três oportunidades históricas de alterar a dinâmica da enorme desigualdade que o caracteriza.

Na primeira metade do século 19, o estabelecimento de um imposto exorbitante tolheu a ascensão social do grande número de africanos libertos que exerciam as profissões de pedreiros, alfaiates, sapateiros, entre outras, o que impediu a criação, em escala ampla, de uma classe média negra no país.

O segundo momento destacado é o longo período de industrialização do país, entre 1930 e 1980, quando o crescimento per capita médio do produto interno brasileiro foi de “impressionantes 3,86% anuais”, por 50 anos! No entanto —como explica Theodoro—, o preceito que orientou a política econômica desse período, o de maior prosperidade vivenciado pelo país, foi crescer gerando pobreza, miséria e desigualdade.

Mais recentemente, entre 2004 e 2014, quando políticas do governo federal retiraram mais de 30 milhões de pessoas da pobreza, o percentual de negros entre os 10% mais pobres subiu de 73,2% em 2004 para 76% em 2014.

Para ser enfrentada com eficácia, essa persistência da desigualdade em prejuízo da população negra justifica a implementação de políticas públicas ou privadas de ação afirmativa —das quais as cotas são uma modalidade— para um efetivo combate às diferenças e uma real promoção da equidade entre brancos e negros no trabalho, saúde, educação e moradia.

Entregadores: Saúde mental e a noia sem fim, por Gringo.

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Num momento em que discute-se a regulamentação do trabalho por app, fala uma liderança dos entregadores. Gamificação do trabalho. Esgotamento. Medo de acidentes. Corpo e mente são triturados, diz. Plataformas não podem ser senhores do tempo…

Edgar Francisco da Silva (Gringo)

OUTRAS PALAVRAS -08/03/2024

Nos últimos anos assistimos a expansão de empresas que operam por meio de plataformas digitais no mundo capitalista. Situadas no processo de uberização aprofundam a mercantilização e a precarização do trabalho, em especial quando analisamos os trabalhadores que atuam por meio de aplicativos de serviços, tais como os entregadores. A conivência de Estados neoliberais acabou institucionalizando a precarização e o aumento da informalidade de milhões de trabalhadores, fazendo recair sobre os de maior vulnerabilidade social processos de adoecimento físico e mental profundos. A ausência de normativas governamentais permitiu que empresas, tais como Uber, iFood e Rappi ludibriassem direitos trabalhistas, usurpando horas e horas trabalhadas e não pagas dos trabalhadores.

Historicamente processos de exploração do trabalho são acompanhados de enfrentamento e estratégias diárias de resistência e revolta. Submetidos ao trabalho das empresas-plataforma, entregadores – organizados coletivamente ou não – enfrentam os abusos da relação pautada pelas demandas que chegam pela tela do celular.

O termo empreendedor, usado pelas empresas para definir o trabalhador nessa relação de trabalho sem vínculo jurídico trabalhista, onde este aparece como “dono do seu tempo”, poderia ser traduzido como parte do novo vocabulário encobridor de antigas formas de exploração. As refinadas tecnologias digitais foram definitivas para a manutenção e aperfeiçoamento das formas de organização e gestão que visam o extremo controle do trabalhador. Algoritmos podem controlar os movimentos dos trabalhadores e pressionar por longas jornadas de trabalho com períodos ociosos e sem remuneração, podem direcioná-los para territórios à revelia, são também capazes de estabelecer avaliações, punições e valores de entrega de forma unilateral mantendo regras desconhecidas. O sentimento de desvalorização pelo não reconhecimento do trabalho, a impossibilidade de projeção de planos futuros, a angústia por não ter condições de manter seu veículo de trabalho em dia, o sentimento de injustiça, a ausência de tempo de lazer, a certeza de estar em uma profissão de risco – onde a gamificação os empurra para acidentes muitas vezes fatais -, produzem medo, insegurança, sofrimento.

Tudo isso é apenas parte do processo que leva ao adoecimento, levando o corpo e a mente à exaustão.

Quase 600 mil entregadores estavam nas ruas do país em 2022 executando o trabalho intermitente, com jornadas mais longas e rendimentos inferiores aos trabalhadores não plataformizados (IBGE, 20231), dados que corroboram desigualdades estruturais da nossa sociedade. Estes trabalhadores, em sua maioria homens negros, encontram-se em trabalhos desvalorizados socialmente.

Recentemente, vemos uma profusão de manchetes noticiou diversas formas de violência sofridas por entregadores: racial, de classe, de gênero, urbana e policial, rompendo com a narrativa, construída a partir da pandemia de covid-19, da indispensabilidade dos entregadores para a manutenção do nosso modo de vida e consumo.

No início de 2023, o governo Lula, através do Ministério do Trabalho e Emprego, reuniu trabalhadores, centrais sindicais, sindicatos e representantes das empresas por aplicativos para a construção de uma regulação do trabalho de entregadores e motoristas. O grupo de trabalho (GT) constituído se prolongou por meses sem, contudo, produzir resultados que se mostrassem favoráveis aos trabalhadores.

Diante de um quadro nada promissor, trabalhadores de diferentes associações e coletivos enfrentaram os embates no GT. Sentaram-se à mesa novos e velhos sindicalistas compartilhando experiências e propostas para a categoria. Boa parte desses trabalhadores atravessou transformações profundas com a chegada das empresas-plataforma. Daí, ao compartilharem experiências comuns, expuseram a relação entre trabalho, saúde, adoecimento e acidentes vivenciados no cotidiano. Essa percepção tornou a questão da saúde fundamental para a luta, pautando reivindicações.

Algumas lideranças se destacaram no processo. Gringo é um deles. Edgar Francisco da Silva, 40 anos, motofretista de São Paulo, fundador e presidente da Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil (AMABR), criada no 1º de maio de 2018, e membro da ANEA (Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos), surgida no cerne da luta dos trabalhadores diante da necessidade de integrar o grupo de trabalho organizado pelo governo federal. Possui mais de duas décadas de experiência no trabalho como motoboy.

Na entrevista que se segue, Gringo nos ajuda a compreender, a partir da sua trajetória e com conhecimento de causa, como vem se dando o processo de precarização e seus efeitos nocivos para a saúde e segurança dos trabalhadores, no contexto da plataformização do trabalho.

Sabemos que a plataformização do trabalho é um fenômeno mundial no atual contexto da aceleração de processos de precarização, embora apresentando especificidades nos diversos países e regiões do planeta. O trabalho de entregadores e motoristas por plataformas se apresenta como a ponta de um iceberg da exploração do trabalho no capitalismo. Como você vê o trabalho de entregadores e entregadoras hoje no Brasil?

Sem os entregadores e entregadoras na economia, acaba aquela agilidade toda para resolver problemas urgentes. Acaba a questão de pessoas que precisam se alimentar com rapidez. Que precisam pedir um lanche pra já. Mas eu enxergo a precarização de quem faz esse tipo de serviço e leva as empresas nas costas. Enquanto a gente vê, por um lado, empresas que acabaram de ser criadas virando bilionárias, do outro lado há entregadores que colocam seus bens [como suas motos] na rua cada vez mais precarizados, ao ponto de não terem descanso semanal. E, durante os anos que o entregador trabalha, não tem férias – não as férias do benefício da CLT, mas as férias de descanso para o corpo. É diferente de um outro serviço onde você só vem com a mão de obra, como um segurança, um porteiro… Eles só entram com a mão de obra. Aqui a gente não tem só a mão de obra, tem o custo operacional para exercer a profissão, o custo da máquina; então a gente tem que ganhar pela hora-homem e pela hora-máquina. O aplicativo se aproveita e coloca como se a gente estivesse ganhando o suficiente. Uma comparação: se eu trabalhava no açougue ganhando R$ 1.500, agora vou ganhar R$ 3.000 na moto! E se o entregador catou o fundo de garantia dele e comprou a moto, tirou habilitação, comprou capa de chuva, capacete, celular, bota de chuva, baú… Ele comprou tudo para exercer sua profissão! E aí ele se precariza; a sensação é de uma cenoura no ralador. Daqui a dois anos, quando ele sair da profissão, perceberá que os bens que investiu para poder trabalhar se desgastaram e ele não atingiu nenhum de seus sonhos ou objetivos. O que ganhou foi multa de trânsito ou sofreu algum acidente. Quando não se tem o poder de negociação do preço do serviço e das condições de trabalho, não se é autônomo nem empreendedor.

O que é ser um entregador hoje no Brasil? Há impactos deste processo de plataformização na forma como a categoria profissional se identifica? Com a entrada destas empresas, muda o modo como o motoboy se vê?

A profissão sempre foi vista como um escape para quem está desempregado, para quem saiu da cadeia, para quem teve algum problema. O que equilibrava muito a profissão é que tinha muita gente procurando entregadores, motoboys, motofretistas. E o que era o controle natural da profissão? A profissão matava muitas pessoas por causa dos acidentes e também era [realizada] no guia [mapa de ruas impresso]. O guia era um filtro, hoje tem GPS, mas antes era no mapa de papel, aquilo era difícil de olhar para quem entrava na profissão, você tinha que saber as abreviações e como procurar as ruas. E o guia era o seguinte: está chovendo, como é que você vai [manusear] com a mão molhada, mexer naquele negócio de papel?… Era tipo ensinar a fazer malabarismo, essas coisas que você vê que não é todo mundo que faz… Trabalhar na profissão era dessa forma.

O GPS facilitou para qualquer um começar a andar pela cidade sem conhecimento da cidade. Quando veio os aplicativos pagando muito bem, era coisa da gente ganhar quatro, cinco vezes melhor do que a CLT. A gente viu um sonho.

Uma coisa que não pode deixar de falar é que a CLT estava há tanto tempo estabilizada que o patrão aprendeu a usar ela contra a gente. O patrão fazia a gente fazer serviço de dois em um. E o aplicativo veio com aquela mágica de te pagar muito bem para fazer as entregas, de ganhar mais do que na CLT e livre, sem pressão. Isso fez com que a gente começasse a ter acesso a férias dignas, não férias de tempo afastado do serviço, mas férias merecidas, aquelas aonde eu saio com a minha família, eu consumo, eu me divirto. Os aplicativos surgiram em 2013, eu estou falando entre 2014 e 2018, que era a época boa ainda. Depois de 2018, foi só ladeira abaixo. O aplicativo veio trazendo todas essas facilidades para a vinda de muita mão de obra.

O impacto das plataformas começou quando eles começaram com o oligopólio. Faziam o seguinte: “traz um entregador igual a você para trabalhar aqui e eu te pago”. Aí você trazia o entregador. Você está tirando das empresas de motoboy, entende? “Agora me forneça um cliente que eu te pago R$200 por cada cliente”. O aplicativo está dando dinheiro para aquele cliente usar o aplicativo pela primeira vez para ver se gosta. Tudo isso fez um dumping social: o aplicativo atacou e derrubou todas as empresas existentes, tirando os entregadores e os clientes delas; e isso fez com que o aplicativo se tornasse um oligopólio. E, com isso, muitas pessoas se endividaram para entrar nessa terra dourada. Agora que o aplicativo está saturado, ele baixa o preço. E, quando ele baixa o preço, quem estava acostumado com aquele tipo de vida, pula fora. As pessoas endividadas viram refém. Elas são obrigadas a ficar naquele sistema e eles [as empresas] baixam mais [a remuneração pelo serviço]. Um retrato claro disso foi a pandemia, quando muitos perderam o seu trabalho por causa do lockdown – não os entregadores: pessoas que trabalhavam em outras profissões. Eles perderam seu trabalho, então quem tinha moto foi para o aplicativo. É isso: as plataformas tinha muita gente desempregada com moto, viraram a saída. O que eu quero dizer com tudo isso? Que aumentou a receita dos aplicativos, novos clientes apareceram de tudo quanto é lado, mas o entregador passou a ganhar menos e se expor mais. Porque antes ele fazia 15 entregas a R$10 e aí ele passou a fazer 12, 13 entregas a R$6. Entende? Este é o impacto dos aplicativos.

Antes a gente tinha opção. Por mais precarizado que fossemos, a gente achava trabalho em outras empresas. Hoje não acha, não tem outra opção, virou oligopólio mesmo.

Características dessa forma de organização e controle do trabalho, como o rebaixamento da remuneração dos trabalhadores – levando à necessidade de extensão da jornada de trabalho -, o gerenciamento algorítmico e a falta de acesso às regras de funcionamento das empresas se relacionam com o desgaste e adoecimento físico e mental dos trabalhadores. Estudos apontam o crescimento de índices de acidentes de trânsito associado ao aumento do número de entregadores por aplicativos, acidentes esses que deveriam ser encarados como acidentes de trabalho. Como você observa a relação entre o trabalho e a saúde e segurança dos entregadores e entregadoras?

Na forma que está com essa desvalorização e precarização que os aplicativos vêm fazendo, o entregador passou a absorver o prejuízo. Ele deixou de se alimentar adequadamente, de fazer a manutenção no seu veículo, o que é crucial para sua segurança, passou a fazer gambiarras nos veículos, ficam com excesso de horas em trabalho, o que também é prejudicial. Quem trabalha o dia inteiro como se fosse um atirador de elite ali, precisa ser preciso ao passar no meio do trânsito. Para quem está cansado, isso faz uma diferença gigante: de passar no farol vermelho sem perceber, de acertar um carro ali no meio do corredor sem perceber, por falta de atenção… O cansaço com tomadas de decisões que a gente tem é que coloca nossa vida em risco… Você precisa estar descansado para fazer esse trabalho que a gente faz.

O Ministério do Trabalho reconhece a nossa profissão como uma profissão de risco na lei 12.997 de 2014. Para isso, existe uma regulamentação federal que é a lei 12.009/09. Essa regulamentação serve para diminuir os acidentes, pois exige que o motofretista seja maior de 21 anos e tenha dois de CNH [carteira nacional de habilitação]. Porque se você olhar o ranking de acidentes, a imensa maioria tem idade abaixo dos 21, entre 18, 24, mas abaixo de 21 é tipo o dobro. E dois anos de CNH quer dizer que pelo menos você praticou depois de tirar a habilitação. Enfim, a gente vem com um processo de regulamentação precário, onde os aplicativos não respeitam nenhuma dessas exigências e acabam colocando pessoas sem capacitação para exercer uma profissão de risco, sem os acessórios de segurança, sem o curso. O curso é de 30 horas e 25 delas são teóricas, mostrando os riscos da nossa profissão, como evitar situações desse tipo… Cinco horas são práticas para aprender técnicas de pilotagem que não se aprendeu na autoescola e que vão salvar sua vida no dia a dia. Mas os aplicativos não cumprem essa legislação e ainda estão tirando todas as formas daquela pessoa de exercer a profissão de forma saudável, com disposição de saúde tanto de trabalhar no dia a dia, quanto de estar bem psicologicamente. Porque se barateia o serviço se você não consegue nem fazer a manutenção do veículo, está sem capacitação, mal alimentado, com veículo precarizado e ainda trabalhando numa carga horária excessiva? Qual resultado a gente espera a não ser o aumento de acidentes de trabalho — E eles ainda são escondido como acidente de trânsito.? A soma de tudo não tem como dar em outra, mais cedo ou mais tarde. Quem escapa é como acertar na loteria. É um profissão de risco, com trabalhadores mal alimentados, veículos precarizados, excesso de carga horária, sempre correndo… Porque a gente é forçado a correr pela gamificação, te dão bônus ou te bloqueiam parcialmente se você não fez aquela entrega no tempo certo, então você precisa correr para entregar [os pedidos] no tempo certo, para que o aplicativo não fique sem tocar… E alguém te induzindo a correr… O resultado não tem como ser outro a não ser acidente. E esse acidente termina de três formas: o óbito; ou essa pessoa sequelada; ou, se o acidente não foi tão grave, ela volta [para o trabalho] propícia para um novo acidente. Agora você coloca aí uma pessoa que não está ganhando o suficiente para se manter, na hora que ela recebe o bruto ainda tem que tirar o custo para exercer a profissão, então sobra pouco, ela só está se mantendo. Então, quando ela toma uma multa, quando chega alguma coisa, acontece algum imprevisto financeiro, essa pessoa começa a se desesperar, isso faz com que ela perca o centro dela mesma, ela começa a trabalhar com a cabeça também. Imagina o aplicativo te jogando bônus para você correr, ou “eu vou te bloquear”, essa pressão… O psicológico não aguenta — e muitos nem sabem que estão ficando ruins porque não percebem que estão estressados, tratando a família mal, sem mais paciência com o filho e acham que o filho é o chato. E você fica ali sendo pressionado pelo aplicativo, pelas contas, por toda essa situação, naquela perspectiva de que “vai tocar, vai tocar, vai tocar” e não toca; aquela gamificação do aplicativo. É como o Instagram: quando você entra e aceita algum amigo, fica aparecendo aquele amigo para você o tempo todo; é igual quando você entra no aplicativo: fica saindo corrida o tempo todo para você. Só que daqui a pouco [no Instagram] aquele amigo vai desaparecendo e ele não é mais importante; e eles dão visibilidade para outro. O aplicativo faz a mesma coisa, ele te substitui. Ele já te viciou: “agora que você está viciado, agora vou mandar o vício para outro”. E aí a gente vai colocando todo mundo no esquema e no automático, e todo mundo é um refém com sua força de trabalho, seu tempo, sua saúde, sem segurança e sem o seu psicológico.

Pra você, lutar e se organizar coletivamente é saúde?

Se é saudável para mim, não é. Na minha opinião, o que estão fazendo comigo, como liderança, não é saudável. Eu estou lutando para as pessoas serem valorizadas, para que elas tenham saúde, para que elas tenham segurança, para que elas tenham previdência e para que não sejam refém de um jogo de manipulação, que no caso é o algoritmo dos aplicativos. Mas eu estou passando por tudo isso, sem ser valorizado, sem ganhar o que eu precisava de acordo com o que eu faço, sem saúde, sem previdência e vítima dessa manipulação do sistema. Então para mim não é saudável. E eu sou um insistente, não sei se eu posso dizer teimoso ou persistente –persistente é a teimosia inteligente, não é? Mas, às vezes, me pego como teimoso. Sou persistente quando eu vejo que há uma demora para dar um passo, mas quando esse passo acontece, aí eu vejo que era persistência, não teimosia. Mas eu cansado, estou exausto. E isso começou a comprometer minha saúde, segurança, remuneração… Em 2021, eu estava aqui em casa, aí eu fui para um evento do Detran, que eles pediram minha ajuda, e eu consegui colocar 12 mil motocas lá. Durante aquele negócio doido, aquele monte de pessoa ao meu redor — “e aí Gringo, não sei o que lá etc” — você parece uma celebridade… E aí minha mãe me liga e fala: “olha, cortaram a luz de casa”. Eu estava tendo visibilidade, mas o financeiro não acompanhava aquela minha visibilidade: eu fiquei três dias sem luz aqui em casa numa época de frio. Todo mundo aqui em casa sofreu por minha causa e eu me estressei muito tentando religar [a energia elétrica]. Olha, então, o que acontece nessa luta.

Se a pergunta é para mim como liderança, digo que ela está me fazendo muito mal, mas eu sou persistente.

E como se amplia todo este debate que a gente teve aqui para a sociedade, para além de quem pesquisa esse assunto ou para quem trabalha no dia a dia?

Eu acho que aproveitando essas oportunidades, entendendo o que esses meios de comunicação querem e usar eles a nosso favor. A gente precisa aprender a usar todas as ferramentas disponíveis, ir passando a informação: união, organização, informação e ação.

A vingança do lixo, por Fernanda Mena

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Vai ser difícil escondê-lo como se fazia na Paris de Eugéne Poubelle

Fernanda Mena, Mestre em direitos humanos pela LSE (London School of Economics), doutora em relações internacionais pela USP e repórter especial da Folha.

Folha de São Paulo, 09/03/2024

A lixeira é uma invenção mágica do final do século 19: faz desaparecer tudo o que é depositado nela. Longe dos olhos, não é preciso se responsabilizar pelo que acontece dali por diante com os itens descartados.

Essa mágica da modernidade, atribuída ao francês Eugéne Poubelle (1831-1907), cujo sobrenome batizou as latas de lixo na França, se tornou cada vez mais conveniente. A escalada da urbanização e da industrialização, o crescimento da população e o surgimento do consumo de massa fizeram a produção de resíduos explodir.

Em 1900, as cidades concentravam 13% da população global, ou 220 milhões de pessoas, que produziam 300 mil toneladas de lixo por dia, entre embalagens, restos de alimentos, itens domésticos quebrados e peças de vestuário inutilizadas.

De lá pra cá, a população urbana aumentou 20 vezes e bateu 4,4 bilhões de pessoas (ou 56% da população global), e a produção de resíduos cresceu na mesma proporção, chegando a 6,3 milhões de toneladas diárias.

O peso é equivalente a 121 Titanics de lixo todos os dias. E boa parte dele é descartado de maneira inadequada, já que 2,7 bilhões de pessoas no mundo não têm acesso à coleta regular de lixo, segundo relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma).

O lixo está mais relacionado às mudanças climáticas e à perda da biodiversidade do que se supõe. Ele polui o solo, os lençóis freáticos, os rios e os mares. Estima-se que em 2050 os oceanos deverão ter mais plástico do que peixes.

Sua decomposição em aterros sanitários também é responsável por cerca de 20% das emissões humanas de metano, o pior dos gases de efeito estufa.

Além disso, o ritmo e a escala com que as pessoas compram e descartam embalagens, roupas, alimentos e tudo mais estão diretamente ligados à quantidade de recursos naturais gastos, de energia consumida e de poluição gerada. Não é pouca coisa.

Se nada mudar, em 2050 a produção anual de lixo terá atingido a marca de 3,8 bilhões de toneladas.

Será difícil esconder dos olhos essa quantidade brutal de lixo como se fazia na Paris de Poubelle.

O gerenciamento de resíduos já é o maior gasto de orçamentos municipais pelo planeta, competindo com outras áreas vitais como saúde e educação. Seu custo direto global foi estimado em US$ 252 bilhões (mais de R$ 1,2 trilhão) e pode chegar a US$ 640,3 bilhões (quase R$ 3,2 trilhões) em 2050.

Por outro lado, também segundo a ONU, o lucro líquido potencial de uma economia verdadeiramente circular é de mais de US$ 100 bilhões ao ano, ou quase R$ 500 bilhões.

A vingança do lixo, desprezado desde sempre, é se fazer notar de duas maneiras opostas: como fonte de destruição e doença, num tsunami malcheiroso de tudo o que se queria fazer desaparecer, ou como a chave para novas oportunidades econômicas.
A escolha é urgente.

Negação do Antropoceno tira urgência do clima, por Marcelo Leite

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Decisão contrária de geólogos reforça agenda de viciados em petróleo, como Lula
Marcelo Leite, Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

Folha de São Paulo, 10/03/2024

Especialistas da União Internacional de Ciências Geológicas decidiram que não é o caso, ainda, de designar uma nova etapa na história da Terra, o Antropoceno. A decisão tecnocrática contrasta com a percepção geral de que algo portentoso está afetando o globo.

O pessoal de ciências da Terra pesquisa e pensa sob a égide da imensidão do tempo geológico. O planeta conta 4,5 bilhões de anos; o Universo, 13,7 bilhões. Dessa perspectiva, encerrar o Holoceno (era atual) após meros 11 mil anos pode parecer precipitado.

Deixando de lado razões técnicas para a recusa, por falta de competência para julgá-las, cabe dizer que a decisão veio em má hora. O Antropoceno, categoria indicativa do impacto profundo da atividade humana sobre a Terra, oferece um símbolo poderoso para impulsionar o enfrentamento da crise climática.

Para quem duvida de estarmos deixando marca profunda na história do planeta: nos últimos 250 anos, a concentração atmosférica do dióxido de carbono (CO2), principal gás do efeito estufa, aumentou 50%, de 280 partes por milhão (ppm) para mais de 420 ppm.

A queima de combustíveis fósseis e de florestas lançou cerca de 1,5 trilhão de toneladas de CO2 no ar, engrossando o cobertor que faz subir a temperatura na superfície e nos oceanos. Com os recordes de 2023, em 17 de novembro ultrapassamos pela primeira vez a marca de 2ºC acima da era pré-industrial.

Considerando a média de várias décadas e não o registro diário, como recomendam climatologistas, a atmosfera está 1,17ºC acima do que era até então o normal. Perigosamente perto dos 1,5-2ºC preconizados como limite de segurança no Acordo de Paris (2015).

Pouco se fez de lá para cá para mitigar o aquecimento global. Seguem em alta as emissões de CO2, as marcas dos termômetros e a ocorrência de eventos extremos –como as atuais cheias devastadoras no Acre e secas idem em Roraima, origem de incêndios florestais disseminados no segundo caso.
O governo brasileiro, após a eleição de Lula e a volta de Marina |Silva ao Ministério do Meio Ambiente, até conseguiu reverter a tendência de desmatamento na Amazônia. Mas se mostra impotente diante de desastre pior causado pelo agronegócio no cerrado.

Pior ainda, pisa fundo no acelerador da Petrobras. A desculpa é usar a renda do petróleo para fazer a transição energética, para a qual, no entanto, não tem plano detalhado e exequível.

Considere o contraste com a União Européia (UE), que cogita cobrar das empresas petroleiras a conta da mudança climática desastrosa. Ou com a decisão do governo de Joe Biden, em janeiro, de congelar nos EUA a ampliação de licenças para exportar gás natural liquefeito, outro impulsionador do efeito estufa.

Ambas as iniciativas podem, é verdade, retroceder diante de reviravoltas políticas com a vitória de partidos de direita. A UE se acha sob pressão de agricultores sublevados contra altas nos preços de combustíveis e exigências ambientais. Nos EUA, torna-se cada vez mais provável a eleição do negacionista Donald Trump.

Lula almeja liderança global na onda verde pelo clima, mas seu desenvolvimentismo petroleiro anos 1950 pode erodir-lhe o protagonismo na COP30 de Belém do Pará, no final de 2025. Pesará também sua camaradagem com autocratas violentos montados em jazidas fósseis como Maduro, Putin e Mohammed bin Salman.

Ambos os cenários, nacional e internacional, não auguram nada de bom para a crise do clima. O termostato controlador da transição energética parece estar avariado, e um dos sintomas é a rejeição do Antropoceno –mas ele ainda vai voltar para nos assombrar.

Invasão chinesa

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Vivemos momentos de grandes rupturas e transformações estruturais na sociedade brasileira, os comportamentos estão em franca modificação, o mundo do trabalho está de cabeça para baixo, os relacionamentos se alteram rapidamente, as hegemonias estão em movimento, os modelos de negócios estão sendo reconfigurados e as incertezas crescem de forma acelerada, gerando preocupações, instabilidades e o incremento de novos medos.

Neste ambiente, percebemos as modificações geopolíticas e geoeconômicas na sociedade internacional, países dominantes vêm perdendo espaço e reduzindo seus poderes e outros contendores ganham espaços, surgindo novos modelos de negócios, novas estruturas culturais, novas lideranças e novos desafios surgem cotidianamente. O século XXI nos mostra a ascensão asiática, principalmente o grande crescimento da economia chinesa, com suas especificidades, novas organizações corporativas e novas formas de estruturação socioeconômica.

Nestas novas reconfigurações econômicas e produtivas, percebemos que a economia chinesa vem se transformando na indústria do mundo, com grande capacidade de produção e faturamento superior a mais de US$ 4 trilhões, despertando ressentimentos, preocupações e o crescimento das políticas protecionistas, tudo isso, vem gerando aumento dos conflitos comerciais e confrontos financeiros, com instabilidades na economia global, gerando preocupações geopolíticas e receios de conflitos militares.

A ascensão chinesa está criando espaços de negociação na economia internacional, novas oportunidades de negócios e abrindo novas oportunidades de investimentos e, infelizmente, podem gerar novas formas de dependência financeira e tecnológica. Diante deste quadro, precisamos compreender as movimentações globais das nações, estudar estas novas configurações e criar instrumentos de atuação para evitar a eterna perpetuação de uma histórica dependência estrangeira, inicialmente europeia, passando pela norte-americana e agora, na contemporaneidade, na dependência chinesa.

Com o crescimento das negociações internacionais, faz-se necessário compreendermos os interesses nacionais, o que queremos nos próximos anos e quais os setores que devemos alavancar na economia brasileira nos próximos anos e, a partir daí, criar instrumentos para extrairmos nas conversações globais novas tecnologias que podem impulsionar o crescimento econômico e produtivo, nestas negociações precisamos exigir a transferência de tecnologia para consolidarmos os setores produtivos.

A transferência de tecnologias pode ser vista como forma de encurtarmos os caminhos do desenvolvimento econômico, mas só será exitosa se conseguirmos melhorar os indicadores educacionais, com sólidos e garantidos investimentos em pesquisa científica, somente assim compreenderemos e dominaremos essas tecnologias que crescem, se espalham e dominam a economia internacional.

A ascensão chinesa deve ser vista como uma oportunidade de crescimento dos investimentos e a geração de empregos, mas precisamos compreender que essa entrada de produtos asiáticos pode gerar graves constrangimentos para a economia nacional e fragilizar setores importantes, desta forma, precisamos utilizar o nosso grande mercado interno para angariar vantagens expressivas, ganhando escalas produtivas e garantindo condições de competir numa economia altamente integrada e interdependente. Vivemos um momento de apreensão, de oportunidades e grandes conflitos pela hegemonia mundial, as escolhas nacionais podem mostrar os caminhos que queremos trilhar no século XXI.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Da janela do quartel, por Manuel Domingos Neto

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Manuel Domingos Neto – A Terra é Redonda – 29/02/2024

Por que o militar não gosta de Lula?

O militar não gosta de Lula e o chama de ladrão. Em suas especulações sobre a crise brasileira, salienta a falta de padrão moral consentâneo com a presidência da República. O militar enxerga o mundo da janela do quartel: a sociedade seria demasiado anárquica, indisciplinada, desprovida de formação moral e incapaz de escolher boas lideranças.

Por “militar”, estou designando o tipo preponderante nas Forças Armadas brasileiras. Nas corporações, há diferenças entre seus integrantes, mas predomina a unidade de valores e convicções indispensável à adoção de doutrinas norteadoras da organização e do emprego das fileiras.

O militar não gosta de Lula porque esse líder, mesmo não sendo um reformista radical, acena com mudanças sociais. Instila, de algum modo, esperança em um tempo novo, enquanto o militar cultua o legado colonial.

O militar preza a estabilidade. Mudanças sociais roubam-lhe o azimute. Pretendendo-se criador da nação, constrangeu o constituinte a designar-lhe o papel de mantenedor da lei e da ordem. Admite, no máximo, uma modernização contemporizadora, que preserve o domínio oligárquico característico da sociedade brasileira.

Lula não bate de frente com os poderosos, mas condena iniquidades e promete “incluir o pobre no orçamento”. Em que pese seu gosto pela conciliação de classes, sua carreira política não deixa de desafiar a hierarquia social em que se ampara a organização militar. Seu jeito de ser e de falar incomoda porque anima parcelas socialmente rebaixadas.

Apegado à estabilidade e sem argumentos válidos para se contrapor à mudança social, o militar vê em Lula um demagogo, um espertalhão em busca de proveito próprio. Um político prejudicial à boa ordem. Lula é perigoso: na condição de chefe de Estado, pede desculpas aos africanos pela escravidão. Prega a tolerância e fere a cultura homofóbica do quartel.

Quando o militar condena Lula moralmente, evita o desgaste de rebater seu discurso antiescravagista e de repúdio ao patriarcalismo.

O militar não gosta de Lula por conta de amizades perigosas: abraça João Pedro Stédile, percebido no quartel como encarnação do inimigo interno, negador da lei e da ordem.

Lula sempre atendeu às demandas do quartel. Na cadeia, em Curitiba, disse não entender a animosidade do militar consigo, posto não o contrariara. Retornando à presidência, persiste satisfazendo a caserna. Garante recursos para uma gigantesca escola de sargentos concebida para reforçar a ordem interna no Nordeste, região supostamente propensa à insurreição.

Abona projetos que reforçam a capacidade de combater brasileiros em detrimento da capacidade aeronaval, mais adequada à guerra contra o estrangeiro. Usa, inclusive a expressão “Exército de Caxias”, que significa Exército repressor de insubordinações populares. Rejeita discussão sobre Defesa Nacional para não ferir cânones estabelecidos desde sempre.

A razão principal para o militar se contrapor a Lula está na insegurança quanto ao futuro das corporações. O militar brasileiro integra o esquema de forças liderado por Washington. Raciocina como defensor da “civilização ocidental”. Depende estruturalmente do Pentágono e absorve a pregação ideológica imperial.

Nestes tempos em que se redefine uma nova ordem internacional, o contraditório entre a veleidade de soberania nacional e os laços de dependência das corporações armadas em relação a Washington será crescentemente exposto. O ambiente guerreiro que toma conta do planeta não permite neutralidade. O militar não gosta da aproximação de Lula com nações que considera dominadas por “ditaduras comunistas”.

A indisposição militar com Lula se agravará, não obstante seu empenho em livrar as corporações de responsabilidades quanto à tentativa de quebra da ordem institucional.

Nas democracias modernas, militar não teria que gostar ou desgostar do político, mas obedecê-lo.

A vida real, entretanto, mostra que as predileções políticas do militar contam decisivamente.

O militar considera a polarização política o principal problema brasileiro, mas gostou da demonstração de força da extrema direita na avenida paulista no último final de semana. A docilidade do militar para com Lula é uma quimera que cobrará seu preço.

*Manuel Domingos Neto é professor aposentado da UFC, ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). Autor, entre outros livros de O que fazer com o militar – Anotações para uma nova Defesa Nacional (Gabinete de Leitura)

A ofensiva da extrema direita, por Igor Felippe Santos

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Igor Felippe Santos – A Terra é Redonda – 28/02/2024

As milhares de pessoas que participaram do ato na Avenida Paulista no último domingo não se
moveram apenas para apoiar seu líder diante da “perseguição”

Ninguém imaginava uma década atrás que o então deputado federal de baixo clero Jair Bolsonaro poderia chegar à presidência da República e levar milhares de pessoas às ruas. Naqueles tempos, a direita tinha o PSDB como referência política, disputando as urnas e respeitando a “alternância de poder”. Seu projeto neoliberal defendia bandeiras como a “modernização do Estado”, responsabilidade fiscal e políticas sociais focalizadas.

Dez anos depois, com o recrudescimento das contradições da crise mundial do capitalismo, a coalizão tucana naufragou. Emergiu uma força política que rejeita os princípios da Constituição de 1988 e o arranjo institucional da Nova República. As bases de convivência democrática das forças neoliberais e da esquerda moderada foram corroídas, sobretudo, com a manipulação política e midiática de casos de corrupção.

Ganhou força o discurso hipócrita do “tem que mudar tudo que está aí”, com o ódio de parcela da elite e da classe média conservadora tragando a democracia formal. O motivo: os avanços dos direitos dos trabalhadores, especialmente dos mais pobres.

O manejo da pauta conservadora contra as conquistas das agendas das mulheres, da negritude e dos LGBTs aproximou os interesses da extrema direita com a ideologia das igrejas fundamentalistas, colocando uma base popular a serviço dessa força política.

Não se pode subestimar o processo político que está em curso, que tem conexões internacionais e conquista governos pelo mundo. As milhares de pessoas que participaram do ato na Avenida Paulista no último domingo, atendendo o chamado de Jair Bolsonaro, não se moveram apenas para apoiar seu líder diante da “perseguição” que sofre dos seus supostos algozes. Foram, sobretudo, para defender sua visão de mundo, sua ideia de Brasil, seu entendimento de democracia e seu projeto de sociedade – mesmo que ele seja para poucos.

Quem procura analisar os efeitos dessa manifestação na conjuntura nacional, especialmente nos processos contra Jair Bolsonaro, pode concluir que os impactos são pequenos. Em determinada medida, o ato pode até prejudicá-lo, com a inclusão no processo de trecho do discurso no qual o ex-presidente admite que sabia da minuta que previa a decretação de estado de sítio.

O cerco judicial está se fechando e Jair Bolsonaro passa por uma defensiva tática com o avanço das investigações, a prisão de aliados próximos e o aumento da possibilidade de ir para a cadeia. Contraditoriamente, a capacidade de direção política e a coesão ideológica do seu campo, que se expressaram neste domingo em força de mobilização, demonstram que a extrema direita faz uma ofensiva estratégica.

Suplantou a direita tradicional e conquistou a fidelidade de uma base social conservadora. Incidiu sobre setores populares com a aliança com as igrejas fundamentalistas e com a ideologia do medo, que assola das capitais ao interior do país. Ganhou postos na disputa institucional, com uma bancada puro sangue de parlamentares, governadores e prefeitos. Construiu uma máquina de disputa ideológica com a defesa de seus valores.

O presidente Lula venceu a eleição de 2022, na disputa mais acirrada da história recente. O Brasil está profundamente dividido: quase metade do eleitorado votou em Jair Bolsonaro, mesmo depois das contradições de quatro anos de governo. Essa força da extrema direita mantém um nível de coesão; e milhares foram às ruas com a sua engenharia de mobilização de massas.

De um lado, o ódio da elite brasileira e da classe média conservadora contra a esquerda, mobilizada a partir das redes sociais, em defesa de seus interesses de classe. Por outro lado, a articulação das igrejas fundamentalistas, com pesado investimento de recursos, viabilizou caravanas de recorte mais popular, das cidades do interior e de Estados mais próximos.

A manifestação em defesa de Jair Bolsonaro, líder de uma articulação golpista, foi convocada em defesa do Estado de Direito. No entanto, tinha como pano de fundo a defesa de um projeto de sociedade, representado por Jair Bolsonaro, que faz parte de uma rede internacional ultraconservadora.

A tentativa de naturalizar o 8 de janeiro de 2023, relativizando o significado de democracia, os ataques ao presidente Lula e ao MST, a exaltação de discursos religiosos fundamentalistas e o desfile das bandeiras de Israel colocaram nas ruas a ideologia da extrema direita.

Quando a democracia se torna um valor social relativo, com significados diferentes a depender do lado da polarização, defendê-la é insuficiente para enfrentar aqueles que querem destruí-la.

Mais do que nunca, é necessário fazer a disputa de ideias, valores e projetos de sociedade.

*Igor Felippe Santos é jornalista e ativista de movimentos sociais.

Perpetuando Desigualdades

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A sociedade brasileira vem passando por grandes desafios que estão moldando as estruturas econômicas e produtivas, com impactos sociais, políticos e culturais. Neste ambiente centrado por grande concorrência e forte incremento tecnológico, as nações prescindem de lideranças conscientes e qualificadas para superar os grandes desafios contemporâneos, sob pena de perderem o bonde da história, perpetuando desequilíbrios estruturais, aumentando as desigualdades e aprofundando os graves constrangimentos existentes na sociedade.

Dentre os grandes desafios na sociedade brasileira, gostaria de salientar dois desafios que nos parecem urgentes e prescindem de políticas públicas imediatas para reverter essa situação de caos e graves constrangimentos. Destacamos as questões climáticas, cujas alterações tendem a gerar graves desequilíbrios por todo o meio ambiente, com aumento da temperatura e seus impactos sobre toda a estrutura produtiva, com fortes modificações e preocupações que podem gerar graves prejuízos para a agricultura, fragilizando as exportações e impactando a solidez das contas externas.

Estas transformações climáticas em curso na sociedade estão deixando claro que essas mudanças tendem a gerar graves prejuízos materiais e imateriais sobre as cidades, incrementando um caos, com destruições urbanas, com o crescimento de enchentes e mortes na comunidade. Diante destas modificações climáticas, a sociedade precisa tomar a liderança para modificar esse cenário desastroso, estimulando transformações estruturais, aumentando investimentos em energias alternativas, fortalecendo a bioeconomia e consolidando a economia circular, vislumbrando uma melhora no meio ambiente e reduzindo a dependência do combustível fóssil.

Outra questão que a sociedade brasileira precisa se atentar é com relação as desigualdades da renda. Sabemos que existem variadas formas de desigualdade na sociedade, mas quando nos referimos as desigualdades sociais, entramos num ambiente muito pantanoso. Vivemos numa sociedade em que milhões de pessoas vivem ou sobrevivem em condições sociais degradantes e num ambiente marcado por grandes paradoxos e contradições, de um lado percebemos a existência de setores altamente qualificados, dotados de grande desenvolvimento tecnológico, máquinas de primeira geração, inteligência artificial, dentre outros. Do outro lado, percebemos uma parte substancial da população nacional vivendo em condições indignas, sem educação, sem atendimento médico, sem saneamento básico, sem eletricidade, sem esgoto e grande dificuldade de sobrevivência. Esse é o retrato da sociedade brasileira, onde uma parte vive no século XXI e uma outra parte, substancial, sobrevive nos meados do século XIX.

As desigualdades crescem em todas as regiões do mundo, criando grandes conflitos, muitas guerras e violências generalizadas. Anteriormente, essas desigualdades sociais existiam em países pobres e subdesenvolvidos, gerando variadas dificuldades, pobrezas e violências crescentes. Atualmente, essas desigualdades crescem em países ricos e desenvolvidos, gerando novas formas de confrontos sociais e instabilidades políticas, ascendendo setores intolerantes, radicalismos, fascismos e violências crescentes.

O combate desses desequilíbrios que crescem na sociedade brasileira são fundamentais para melhorarmos o ambiente social, criando oportunidades para todos os grupos sociais, evitando que os radicalismos e os extremismos cresçam na sociedade que, com certeza, vai contribuir para a perpetuação das desigualdades que existem deste os primórdios da história da sociedade brasileira.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativo, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário