O grande capital impulsiona o colapso climático e social, por David Castells-Quintana

0

David Castells-Quintana

Professor de economia aplicada na Universidade Autônoma de Barcelona

Folha de São Paulo, 27/02/2024

Vivemos em um mundo cada vez mais desigual. Um mundo cada vez mais dominado por grandes multinacionais que geram lucros exorbitantes enquanto pagam salários cada vez mais precários. Em 2023, Saudi Aramco, a grande petroleira saudita, registrou lucros de mais de US$ 247 bilhões. Apple e Microsoft reportaram, respectivamente, US$ 114 bilhões e US$ 95 bilhões.

Enquanto isso, as rendas reais de muitos trabalhadores dessas e de outras empresas se mantêm congeladas há anos. Esse grande poder empresarial está aprofundando as desigualdades. Mas não é só isso, o faz enquanto causa uma degradação constante de nosso planeta, com as emissões de gases de efeito estufa que não param de aumentar, elevando as temperaturas médias globais em quase 2º Celsius em relação aos níveis pré-industriais.

A ganância e as desigualdades

A ganância do capital aumenta a pobreza e a desigualdade; os lucros são a prioridade total. Jan Eeckhout, da Universidade Pompeu Fabra, explica em seu último livro, “The Profit paradox”, como o êxito crescente das grandes empresas aumentou as desigualdades salariais. Além do poder empresarial, as grandes empresas obtiveram a maioria dos lucros derivados dos avanços tecnológicos. Assim, a desigualdade aumentou dada à combinação entre poder de mercado e progresso tecnológico, que favorece a produtividade de alguns em detrimento dos demais.

Por um lado, trabalhadores que veem seus empregos cada vez mais mal remunerados, mecanizados ou deslocados para locais com salários mais baixos. Por outro lado, consumidores pagam preços desnecessariamente altos. Nas palavras de Eeckhout, “em vez de levar os benefícios das melhores tecnologias aos consumidores, essas empresas ‘superestrelas’ aproveitam as novas tecnologias para ganhar margens ainda maiores”.

O resultado é um mundo cada vez mais desigual. Uma desigualdade que se reflete cada vez mais não tanto entre os países, mas dentro deles e, em particular, dentro das cidades. As maiores cidades do planeta, tanto em países ricos quanto nos pobres, concentram hoje tanto os mais ricos quanto os mais pobres. Em cidades como Londres, Paris, Xangai, Lagos, Cidade do México ou Rio de Janeiro, aqueles que acumulam grandes fortunas vivem ao lado de milhares que passam fome todos os dias. Trata-se de dinâmicas que geram importantes fraturas urbanas que atualmente minam a coesão social e estão por trás do recente auge do populismo.

Como ressalta o último relatório sobre desigualdade da Oxfam International, Desigualdade S.A, na história da humanidade, nunca existiu uma desigualdade de renda e riqueza tão alta. Embora a riqueza dos cinco homens mais ricos do mundo tenha duplicado desde 2020, a riqueza dos 5 bilhões mais pobres diminuiu. Este relatório também foca no grande poder empresarial das multinacionais com crescente poder de mercado, que minimizam os custos laborais e evitam o pagamento de impostos.

A ganância empresarial não só aumenta as desigualdades; também intensifica a grande crise ecológica que vivemos. As grandes multinacionais são as maiores responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa e pela destruição de ecossistemas. As multinacionais são as maiores beneficiárias da deterioração do nosso planeta e do sofrimento dos mais pobres.
Mudança climática e desigualdade

Mas além da desigualdade nas emissões, a mudança climática gerada por elas já se tornou outro fator de crescente importância por trás dos recentes aumentos na desigualdade. Com o aumento de temperaturas, as secas, enchentes e outras perturbações climáticas se tornam mais frequentes e intensas. E tudo isso, infelizmente, afeta de forma desproporcional os mais pobres.

Isso não é só anedótico; a análise detalhada dos dados mostra como, nas últimas décadas, os aumentos das temperaturas ajudam a explicar a crescente desigualdade. Nas regiões onde as temperaturas aumentaram mais, a concentração de renda e riqueza também aumentou (ver “The far-reaching distributional effects of global warming”). Os pobres são os mais afetados por secas e desastres climáticos. Por dependerem, em muitos casos, de recursos naturais e da agricultura, são os mais vulneráveis por sua alta exposição e baixa capacidade de adaptação.

Além disso, os pobres geralmente vivem em áreas com maior estresse climático e propensas a desastres como enchentes, deslizamentos de terra ou incêndios. Pior ainda, a mudança climática está associada à maior incidência e intensidade de conflitos por recursos escassos, como a água.

E também à menor produtividade agrícola em áreas tropicais (onde vive a maioria dos pobres globais), maior desnutrição e mortalidade infantil. E, por sua vez, a maior incidência de doenças como a malária e a tuberculose. Tudo isso não só aumenta as desigualdades econômicas, mas também aumenta as diferenças na expectativa de vida em regiões onde ela ainda é baixa.

Um exemplo disso é a realidade de muitas regiões da África Subsaariana, onde as chuvas quase desapareceram nas últimas décadas. A falta de chuvas devastou os meios de subsistência de milhões de pessoas, mergulhando-as na pobreza e em conflito e tornando vários países da região, como Sudão, Sudão do Sul, Somália e Eritreia, em verdadeiros estados falidos.

Colapso ecológico e social

Segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês), já é quase inevitável que as temperaturas globais ultrapassem o limite de 2°C, podendo chegar aos 4°C se não reduzirmos drasticamente nossas emissões de gases de efeito estufa. Esses aumentos já estão desencadeando catástrofes ecológicas de longo alcance. Os ecologistas estimam uma taxa atual de extinção de espécies ao menos 1.000 vezes superior à normal, com até 150 espécies desaparecidas a cada ano. Um colapso ecológico sem precedentes.

E o ser humano não está à margem disso. A mudança climática e a degradação de ecossistemas ao redor do mundo estão a caminho de se tornarem o principal motor por trás das crescentes desigualdades globais, a maior barreira na luta contra a pobreza e, provavelmente, o principal motivo de conflitos em todo o mundo.

Como evitar o quase inevitável?

O crescente poder empresarial, as desigualdades no aumento e as mudanças climáticas são problemáticas bastante conectadas e características de um sistema global que só funciona bem para alguns, à custa do sofrimento de muitos outros e de um planeta em preocupante deterioração.

Para evitar o colapso ecológico e social que enfrentamos, faltam reformas profundas nesse sistema econômico global, começando pela descarbonização da nossa sociedade. Isso requer vontade e valentia política, bem como renúncias a níveis de consumo totalmente insustentáveis. Ou agimos

já ou o colapso é inevitável.

David Castells-Quintana é professor associado Serra Húnter na Universitat Autònoma de Barcelona. Doutor em Economia pela Universidade de Barcelona. Mestre em Desenvolvimento pelo Centro de Assuntos Internacionais de Barcelona (CIDOB). Especializado em economia internacional e economia urbana.

Lula está certo sobre Gaza, por Glenn Gleenwald

0

Glenn Gleenwald – A Terra é Redonda, 25/02/2024.

A quem pertence a memória do nazismo e da Segunda Guerra? As sentenças proferidas em Nuremberg não podem dar a qualquer país, incluindo Israel, uma justificativa para suas próprias ações

Desde que Lula evocou o Holocausto para denunciar a destruição de Gaza por Israel, a grande mídia brasileira se uniu, com raras exceções, para condená-lo. Na segunda-feira (19) à noite, o jornalista William Waack afirmou na CNN Brasil que a declaração de Lula “ofende judeus no mundo inteiro”.

Deixando de lado a incongruência que é ver William Waack se colocar como vigilante da intolerância e fiscal do que se pode dizer no discurso público, a pergunta que faço é: com base no que ele se coloca como porta-voz dos “judeus no mundo inteiro”?

É verdade que a declaração de Lula enfureceu o governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que declarou Lula “persona non grata” em Israel. Mas equiparar o governo de Israel a “judeus no mundo inteiro” não é só falso, é também antissemitismo.

Como todos os grupos, os judeus não são um monolito. Qualquer pessoa que, como eu, tenha crescido numa família judaica e imersa nessas tradições sabe que o grupo passa longe de ser homogêneo. Há dentre os judeus discussões e divergências sobre os mais diversos assuntos, inclusive o Estado de Israel, o tratamento desumano dispensado aos palestinos e a abjeta imoralidade da destruição de Gaza.

Um mês antes do ataque do Hamas de 7 de outubro, o ex-chefe do Mossad, agência de inteligência israelense, Tamir Pardo – indicado por Benjamin Netanyahu – afirmou que Israel impõe “uma forma de apartheid aos palestinos”. Muitos líderes Israelenses, incluindo o ex-primeiro ministro Ehud Barak, já disseram o mesmo.

O jornalista judeu brasileiro Breno Altman vem repetidamente comparando as ações de Israel em Gaza ao nazismo, ao ponto de estar sendo investigado pela Polícia Federal por expressar sua visão. Um grupo de judeus brasileiros, conforme relatado pelo jornal Folha de S. Paulo, emitiu uma nota para defender as declarações de Lula.

Nesta semana, a escritora judia russa Masha Gessen recebeu o Award, o segundo prêmio mais importante no jornalismo dos EUA, por seu brilhante ensaio na revista New Yorker intitulado “Na Sombra do Holocausto”. No texto, Masha Gessen aponta como o Holocausto é frequentemente evocado para silenciar as críticas aos crimes de guerra de Israel.

Masha Gessen cita a filósofa Hannah Arendt, judia que em 1948 comparou grupos sionistas extremistas ao Partido Nazista, tanto em sua mentalidade quando em suas táticas – isso tudo menos de três anos depois do fim da Segunda Guerra.

No mesmo ano, o físico judeu Albert Einstein e outros importantes intelectuais judeus publicaram uma carta comparando os métodos de atuação de Menachem Begin, o terrorista sionista que se tornaria depois primeiro-ministro de Israel, aos dos nazistas.

Em seu artigo, Masha Gessen documenta como os intelectuais judeus mais importantes do pós-guerra insistiam que as lições do Holocausto deveriam ser aplicadas universalmente, e que nenhum país ou grupo, sionistas inclusive, deveria se furtar de absorver esse aprendizado.

Masha Gessen então descreve como, visitando os museus do Holocausto pelo mundo, se lembrava do sofrimento da população de Gaza nas mãos de Israel.

Sabendo então dessa enorme pluralidade no seio da comunidade judaica, como explicar a pretensão de uma pessoa como William Waack, que, como a grande maioria da mídia brasileira, se sente no direito falar em nome dos judeus e de impor limites às discussões sobre o Holocausto? E os judeus que rejeitam os ditames dos Netanyahu do mundo, quem falará por nós?

Equiparar as ações do governo de Israel à totalidade dos judeus do mundo é ofensivo. Todas as pesquisas mostram que o público israelense se voltou fortemente contra Benjamin Netanyahu e espera ansiosamente para depô-lo. Há protestos contra ele, liderados por judeus israelenses, toda semana. São judeus muitos dos líderes mais vocais em suas denúncias de que a guerra em Gaza é um genocídio.

Mas há ainda um tema muito mais importante trazido à tona pela controvérsia: a quem pertence a memória do nazismo e da Segunda Guerra? Existe alguém com legitimidade para ditar como o Holocausto pode ser discutido, por quem, e com que agenda política? Existem países específicos cujas ações estão imunes, por algum motivo, às comparações com os piores abusos da Segunda Guerra? Se sim, essa imunidade se baseia em quê?

Quando a Segunda Guerra terminou e a real dimensão do Holocausto foi revelada, os países aliados, uma vez vencedores, decidiram não executar imediatamente os líderes nazistas. Em vez disso, foi realizado um processo jurídico transparente, conhecido como o julgamento de Nuremberg.

O objetivo era publicizar e legitimar o veredito –, mais que isso, mostrar ao mundo as evidências das atrocidades cometidas pelos nazistas para, acima de tudo, estabelecer os princípios pelos quais os países deveriam se guiar no futuro.

O procurador-chefe dos EUA no julgamento, Robert Jackson, enfatizou em suas colocações iniciais que a maldade nazista se repetiria no futuro. “Esses prisioneiros nazistas representam uma influência sinistra que continuará no mundo mesmo depois que seus corpos retornarem ao pó.”

Referindo-se às sentenças contra criminosos nazistas específicos, Robert Jackson disse: “Se esse julgamento for ter alguma utilidade no futuro, deverá servir para condenar também a agressão de outras nações, inclusive as que aqui estão na posição de julgadoras”.

Os horrores do Holocausto não foram uma lição sobre a maldade dos alemães ou a vulnerabilidade dos judeus. Foram uma lição sobre a natureza humana e a nossa capacidade para o mal, e como sociedades sofisticadas e educadas podem sucumbir a impulsos genocidas. Por isso, as sentenças proferidas em Nuremberg não podem dar a qualquer país, incluindo Israel, uma justificativa para suas próprias ações. Pelo contrário: os crimes do Holocausto não podem ser repetidos por nenhum país, nunca mais.

Os horrores da destruição de Gaza por Israel já estão visíveis para todos que quiserem ver. O ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, prometeu no início da guerra: “Estamos impondo um cerco total a Gaza. Nem eletricidade, nem comida, nem água, nem combustível. Tudo bloqueado”. O motivo: “Estamos lutando contra animais e agimos em conformidade”.

Hoje podemos ver que essa promessa, bem como a ideia de que os palestinos são sub-humanos, não era blefe. Segundo relatório da ONU, de todas as pessoas do mundo que enfrentam a fome extrema, 80% estão em Gaza. Trata-de se uma crise humanitária sem paralelo, diz o texto. Há inúmeros casos, incontroversos e amplamente documentados, de crianças à beira da morte por fome.

Ao menos 29 mil pessoas foram mortas em Gaza desde que Israel começou a retaliação aos ataques do Hamas de 7 de outubro: 70% são mulheres e crianças. A destruição da vida civil em Gaza é pior do que qualquer guerra que o mundo tenha visto no século XXI.

Mais bombas foram lançadas por Israel em Gaza, um território pequeno e densamente povoado, na primeira semana do conflito armado (cerca de 6.000) do que foram jogadas anualmente pelos EUA no Afeganistão, de 2013 a 2018 (nesse período, nenhum ano registrou mais de 4.400 bombas), segundo dados da Força Aérea israelense e da Central das Forças Aéreas dos EUA.

Ninguém, nem mesmo Lula, está sugerindo que a escala das mortes em Gaza seja comparável ao Holocausto. O que muitas pessoas estão dizendo – inclusive alguns dos intelectuais judeus mais proeminentes do mundo, como Masha Gessen – é que os mesmos princípios de desprezo pela vida e desumanização coletiva que culminaram no Holocausto estão também por trás da destruição de Gaza.

*Glenn Greenwald é jornalista, escritor, advogado especialista em direito constitucional dos Estados Unidos, Autor, entre outros livros, de Sem lugar para se esconder (Primeira Pessoa).

Publicado originalmente no suplemento Ilustríssima do jornal Folha de S. Paulo.

Para onde estamos indo? Leonardo Boff

0

Leonardo Boff, A Terra é Redonda – 24/02/2024

Não precisamos mais que Deus intervenha para pôr fim à sua criação; coube a nossa geração assistir à possibilidade de sua própria destruição

Há a convergência de inúmeras crises que estão afligindo a humanidade inteira. Sem precisar citá-las me limito a duas, extremamente perigosas e até letais: uma guerra nuclear entre as potências militaristas, disputando a hegemonia na condução do mundo.

Como a segurança nunca é total, aí funcionaria a fórmula 1+1=0. Quer dizer, uma destruiria a outra e levaria junto todo o sistema-vida humana. A Terra continuaria empobrecida, cheia de chagas, mas giraria ainda ao redor do sol por não sabermos quantos milhões de anos, mas ser esse Satã da vida que é o ser humano demente que perdeu sua dimensão de sapiente.

A outra é a mudança climática crescente que não sabemos em que grau Celsius vai se estabilizar. Um fato é inegável, afirmado pelos próprios cientistas céticos: a ciência e a técnica chegaram atrasadas. Passamos o ponto crítico em que elas poderiam ainda nos ajudar. Agora apenas podem nos advertir dos eventos extremos que virão e minorar os efeitos danosos. Climatólogos sugerem que, nos muito próximos anos, possivelmente o clima se estabeleceria, em termos globais, em torno de 38-40 graus Celsius. Em outras regiões pode chegar por volta de 50oC. Haverá milhões de vítimas, especialmente entre crianças e idosos que não conseguirão se adaptar à situação mudada da Terra.

Estes mesmos cientistas têm advertido os Estados para o fato de milhões de migrantes que deixarão suas terras queridas pelo excesso de calor e pela frustração das safras de alimentos. Possivelmente, e é o desejável, que haja, obrigatoriamente, uma governança planetária global e plural, constituída por representantes dos povos e das classes sociais para pensar a situação da Terra mudada, não respeitando os obsoletos limites entre as nações. Trata-se de salvar não este ou aquele país, mas a humanidade inteira. Realisticamente disse várias vezes o Papa Francisco: desta vez não há uma arca de Noé que salva alguns e deixa perecer os demais: “ou nos salvamos todos ou ninguém se salva”.

Como se depreende, estamos diante de uma situação limite. A consciência desta urgência é muito fraca na maioria da população, entorpecida pela progapaganda capitalista de um consumo sem freios e dos próprios Estados, em grande parte controlados pelas classes dominantes. Estas só olham para um horizonte à frente, crédulas de um progresso ilimitado em direção ao futuro, sem tomar a sério que o planeta é limitado e não aguenta e que precisamos de 1,7 planetas Terra para satisfazer seu consumo suntuoso.

Há uma saída para este acúmulo de crises, das quais nos restringimos a duas? Creio que nem o Papa nem o Dalai Lama, nenhum sábio privilegiado pode predizer qual seja o nosso futuro. Se olharmos as maldades do mundo temos que dar razão a José Saramago que dizia: “Não sou pessimista; a situação é que é péssima”. Lembro o encantador São Francisco de Assis que, encantado, via o lado luminoso da criação. Pedia, no entanto, a seus confrades: não considerem demasiadamente os males do mundo para não terem razões de reclamar de Deus.

De certa maneira todos somos um pouco Jó que reclamava, pacientemente, de todos os males que o afligiam. Nós também reclamamos porque não entendemos o porquê de tanta maldade e especialmente porque Deus se cala e permite que, muitas vezes, o mal triunfe como agora face ao genocídio de crianças inocentes na Faixa de Gaza. Por que não intervém para salvar seus filhos e filhas? Não é Ele “o apaixonante amante da vida” (Sabedoria 11,26)? Atribui-se a Freud, que não se considerava um homem de fé, a seguinte frase: se aparecer diante de Deus, tenho mais perguntas a fazer a ele do que ele a mim, pois há tantas coisas que nunca entendi quando estava na Terra.

Nem a filosofia nem a teologia conseguiram até hoje oferecer uma resposta convincente ao problema do mal. No máximo é afirmar que Deus ao aproximar-se de nós pela encarnação – não para divinizar o ser humano – mas para humanizar Deus – foi dizer que esse Deus vai conosco para o exílio, assume a nossa dor e até o desespero na cruz. Isso é grandioso, mas não responde o porquê do mal. Por que o Deus humanado teve que sofrer também ele,”embora fosse Filho de Deus, aprendeu a obediência por meio dos sofrimentos que teve” (Hebreus,5,8). Essa proposta não faz desaparecer o mal. Ele continua como um espinho na carne.

Talvez tenhamos que nos contentar com a afirmação de São Tomás de Aquino que escreveu, reconhecidamente, um dos mais brilhantes tratados “Sobre o Mal” (De Malo).No fim ele se rende à impossibilidade da razão de dar conta do mal e conclui:”Deus é tão poderoso que pode tirar um bem do mal”. Isso é fé confiante, não razão raciocinante.

O que podemos dizer com certa certeza: se a humanidade, especialmente, o sistema do capital com suas grandes corporações globalizadas continuar com sua lógica de explorar até a exaustão os bens e serviços naturais em função de sua acumulação ilimitada, aí sim podemos dizer, na expressão de Zigmunt Bauman: “vamos engrossar o cortejo daqueles que estão rumando na direção de sua própria sepultura”.

Depois termos cometido o pior crime já perpetrado na história: o assassinato judicial do Filho de Deus, pregando-o na cruz, nada mais é impossível. Como disse Jean-Paul Sartre após as bombas sobre Hiroshima e Nagasaki: o ser humano se apropriou da própria morte. E Arnold Toynbee, o grande historiador, comentou: não precisamos mais que Deus intervenha para pôr fim à sua criação; coube a nossa geração assistir à possibilidade de sua própria destruição.

Pessimismo? Não. Realismo. Mas, pertence também à nossa possibilidade de dar o salto da fé que se inscreve como uma possível emergência do processo cosmogênico: cremos que o verdadeiro senhor da história e de seu destino não é o ser humano, mas o Criador que das ruínas e das cinzas pode criar um homem novo e uma mulher nova, um novo céu e uma nova Terra. Lá a vida é eterna e reinará o amor, a festa, a alegria e a comunhão de todos com todos e com a Suprema Realidade. Et tunc erit finis.

*Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Habitar a Terra: qual o caminho para a fraternidade universal (Vozes)

“Ideia sobre ensinar a pescar não faz sentido”. Entrevista com Marcelo Medeiros.

0

Entrevista com Marcelo Medeiros, Instituto Humanitas Unisinos – 20/10/2023

Para Marcelo Medeiros, há muito preconceito contra a assistência social no Brasil. Em entrevista, economista e sociólogo fala sobre seu novo livro que aborda a desigualdade do país.

Logo na introdução de seu novo livro Os ricos e os pobres: o Brasil e a desigualdade, o sociólogo e economista Marcelo Medeiros enfatiza que “há limites claros para algumas medidas de combate à desigualdade que, com grande frequência, são alçadas quase à condição de panaceia, como é a educação”.

Lançada pela Companhia das Letras, a obra, que chegou às livrarias nesta quarta-feira (18/10), não só escancara a, conforme o próprio autor, “absurda” desigualdade social brasileira, como explica que não existe uma solução mágica para o problema. “Resolver isso vai exigir um esforço gigantesco, custar muito caro e consumir um capital político imenso, porque isso, no fundo, implica em enfrentar diretamente os conflitos distributivos e grupos inteiros vão resistir pesadamente a isso, no campo da política e da economia, em tudo aquilo que puderem, porque os grupos sempre defendem seus interesses”, diz Medeiros, professor visitante na Universidade de Columbia, em Nova York, em entrevista a Edison Veiga, publicada por Deutsche Welle, 19-10-2023.

Eis a entrevista.

E ser rico, o que significa?

Existe muita discussão sobre se ser rico é estar nos 10% mais ricos da população, ou 1%, ou 0,5%. Argumento que definir isso é um pouco perda de tempo. O Brasil é um país extremamente desigual, mas há uma característica: a desigualdade brasileira está altamente concentrada no topo. Se o Brasil fosse composto só pelos 90% mais pobres, seria um país extremamente igualitário.

Existe uma desigualdade gigantesca entre o 1% mais rico e os 10% mais ricos. Para desenhar políticas, não é necessário ter uma divisão exata dos ricos, mas sim entender que essa desigualdade está concentrada no topo. Portanto, nossas políticas, em particular a tributária, têm de ser muito progressivas. É preciso tributar mais quem tem mais capacidade de pagar.

Nos últimos anos, o Brasil voltou ao famigerado mapa da fome. De que forma combater a desigualdade pode ajudar a resolver o problema?

Combater a pobreza vai reduzir a desigualdade? Não. Pobreza tem a ver com pobres, desigualdade tem a ver com ricos. É extremamente importante acabar com a pobreza no Brasil, mas isso não teria efeitos sobre a desigualdade. Se você dobrasse a renda da metade mais pobre do Brasil, a desigualdade não iria cair mais do que 10%.

Não é que reduzir a desigualdade vai acabar com a pobreza, é que as medidas que vão acabar com a pobreza vão se beneficiar do fato de a renda ser menos concentrada. Uma pequena redução da desigualdade seria suficiente para provocar uma grande redução da fome no país. Se a gente conseguisse tributar mais as pessoas mais ricas, a gente conseguiria levantar mais recursos para gastar com mais assistência social, por exemplo, o que é algo importante para a fome.

Seu livro defende que tudo o que se faz em termos de políticas públicas, das taxas de juros aos subsídios para as empresas, passando por programas sociais, deve ser pensando no sentido do combate à desigualdade. Como isso pode ser feito?

Respondo com uma outra pergunta, uma brincadeira: você está me perguntando como eu faço para transformar o Brasil em uma Dinamarca em termos de desigualdade.

Eu pergunto como é que eu faço para transformar o Brasil em uma Dinamarca em termos de PIB per capita. E a resposta para as duas questões eu não sei, não conheço ninguém que tenha qualquer noção de fato sobre como isso pode ser feito na prática.

Não é um problema simples combater a desigualdade ou fazer o Brasil crescer. Vai exigir um esforço gigantesco, custar muito caro e consumir um capital político imenso, porque isso, no fundo, implica em enfrentar diretamente os conflitos distributivos e grupos inteiros vão resistir pesadamente a isso, no campo da política e da economia, em tudo aquilo que puderem, porque os grupos sempre defendem seus interesses.

Uma sociedade mais igualitária é necessariamente melhor?

O que justifica a desigualdade? Vem de uma situação justa, porque há pessoas se esforçando mais do que as outras? Essa seria a resposta para a desigualdade racial no Brasil? Ou isso vem de uma série de estruturas muito maiores que são injustas? Toda sociedade tem alguma desigualdade e alguma desigualdade é tolerável e pode ser até funcional.

Para você ter uma enfermeira trabalhando de madrugada no hospital, você tem de pagar a ela mais do que a que trabalha durante o dia. É uma desigualdade funcional, totalmente aceitável. O que não é aceitável é o nível de desigualdade do Brasil, que é difícil demais de justificar.

Uma sociedade mais igualitária é, muito provavelmente, mais justa.

Alguma microdesigualdade sempre vai existir e vai ser tolerável e aceitável. O que estamos discutindo não é isso: é o nível extremamente elevado da desigualdade na sociedade brasileira.

Uma das ideias centrais do livro é que não existe solução mágica para combater a desigualdade. Há esperança, então?

Há esperança, sim. Eu poderia argumentar que vai ser muito difícil o mundo manter o crescimento sob as restrições imensas que vão ser impostas pelas crises ambientais. A gente deve ter esperança? Sim. A gente vai enfrentar crises e dificuldades. Vai dar muito trabalho, vai levar muito tempo e haverá um preço político gigantesco. Digo isso para acabar com a ilusão das soluções fáceis, de que basta fazer uma reforma educacional ou tributar os ricos e a desigualdade vai diminuir. Não é só isso. A desigualdade está em tudo. E, portanto, dá muito trabalho mexer, tem de mexer muito.

Os desafios da esquerda, por Paulo Nogueira Batista Júnior

0

Paulo Nogueira Batista Júnior – A Terra é Redonda, 23/02/2024

Os desafios se avolumam e esquerda se debate sem sucesso contra eles. O Brasil, com Lula, até constitui uma exceção, mas apenas parcial
“Decifra-me ou te devoro” (Esfinge de Tebas)

Em vários países do Ocidente e do Sul Global, inclusive no Brasil, a esquerda se defronta nas décadas recentes com desafios talvez sem precedentes – e não está se saindo bem, de uma forma geral. Com o passar do tempo, os desafios se avolumam e esquerda se debate sem sucesso contra eles. O Brasil, com Lula, até constitui uma exceção, mas apenas parcial.

Estou me referindo, na verdade, à centro-esquerda, à esquerda moderada. A extrema esquerda não desempenha papel relevante. Em contraste, no campo da direita, os extremistas, apesar de alguns reveses importantes (notadamente as derrotas eleitorais de Donald Trump e Jair Bolsonaro), continuam fortes, ameaçando os partidos tradicionais de centro-direita e centro-esquerda.

O pano de fundo desses movimentos políticos é a crise da globalização neoliberal, iniciada ou agravada com o quase-colapso dos sistemas financeiros dos EUA e da Europa em 2008-2009. Essa crise financeira trouxe à tona um mal-estar generalizado da população dos países desenvolvidos com a economia e o sistema político. Os bancos privados foram socorridos com grande mobilização de recursos públicos enquanto a população endividada foi basicamente deixada à própria sorte. Cresceu o ressentimento, alimentando a eleição de Donald Trump em 2016 e de outros políticos do mesmo naipe na Europa.

Esse mal-estar com a globalização é mais antigo e mais amplo do que a crise financeira de 2008.

O que aconteceu nos últimos 30 ou 40 anos nos EUA e na Europa foi uma dissociação crescente entre as elites e o resto da população. A renda e a riqueza se concentraram nas mãos de poucos, os ricos ficaram mais ricos, ao passo que o grosso da população viu a sua renda estagnar ou retroceder.

A confiança no sistema político desabou. Espalhou-se a percepção de que não há democracia, mas plutocracia – o governo dos endinheirados. Pior: ficou patente que o que prevalece é uma caquistocracia – o governo dos piores. A baixa qualidade da maioria dos líderes políticos ocidentais está aí, à vista de todos.

Esse declínio das lideranças do Ocidente reflete algo maior: o declínio do establishment dessas nações, crescentemente dominado pelo rentismo e pelo capitalismo predatório. Especulação financeira, privatizações destrutivas, fusões e aquisições, manobras de mercado de todo tipo substituem a produção e a geração de empregos de qualidade. A decadência parece bem evidente.

Versões anteriores do establishment dos EUA teriam permitido que o eleitorado ficasse reduzido a escolher em 2024, como tudo indica, entre um presidente senil e um bufão irresponsável?

Não por acaso, a China, que nunca seguiu o modelo neoliberal, tornou-se “a fábrica do mundo” às expensas das indústrias do Ocidente. O Brasil, infelizmente, também caiu na armadilha da globalização e ainda não conseguimos dela escapar. Era inteiramente previsível. As elites locais, em geral servis e medíocres, mimetizam as elites estado-unidenses, trazendo para cá o que há de pior.

No plano político-partidário, quem foi prejudicado e quem foi beneficiado pela crise da globalização neoliberal? Entre os prejudicados se destacam, merecidamente, os partidos tradicionais de direita, identificados com a defesa do modelo concentrador. Note-se, entretanto, que o prejuízo recai não só sobre eles, como também sobre os da esquerda moderada – a social-democracia, os socialistas e outros semelhantes.

Previsível: afinal, a centro-esquerda foi sócia das políticas econômicas excludentes. Em muitos países, governou em coalizões com a direita tradicional. Quando chegou ao poder como força hegemônica, pouco ou nada fez para mudar o rumo da economia e da sociedade. Assim, passaram a ser vistos, junto com a centro-direita, como parte de um mesmo “sistema”.

Contra esse “sistema”, a extrema direita se insurge, mesmo que muitas vezes apenas da boca para fora. Comandada por líderes carismáticos e espalhafatosos, como Donald Trump, Jair Bolsonaro e Javier Milei, conseguiu vencer diversas eleições importantes. Despreparada e primitiva, contudo, a extrema direita não governa de modo eficaz e promove mais confusão do que reformas.
Mantém ou aprofunda a orientação conservadora em economia, disfarçando essa concessão com atitudes extremadas na pauta de costumes. Não passou no teste de fogo da pandemia da Covid-19, o que contribuiu de modo importante, como se sabe, para a não-reeleição de Donald Trump e Jair Bolsonaro. Recuperou-se, contudo, dessas derrotas, como se nota pela vitória de Javier Milei, o prestígio de Donald Trump e Jair Bolsonaro, sobretudo do primeiro, e a ascensão de radicais de direita em alguns países da Europa.

O que aconteceu com a centro-esquerda em outros países, talvez seja relevante para o governo Lula e os partidos que o apoiam. Parece intrigante, à primeira vista, que a centro-esquerda dos países desenvolvidos não tenha conseguido capitalizar para si a crise da globalização. Parte da explicação já foi mencionada acima: o condomínio de poder formado com a direita tradicional. Mas vamos tentar aprofundar a questão um pouco mais. O fato é que a centro-esquerda também se tornou tradicional e elitista, acomodou-se, perdeu contato com a população e mostra não compreender os seus problemas reais. Corre o risco de definhar por não entender as mudanças em curso. Como na mitologia, a esfinge de Tebas adverte: “Decifra-me ou te devoro”.

Um exemplo de uma estratégia problemática: abraçar a agenda identitária, que é uma agenda liberal, contribui para o isolamento da esquerda. Vamos nos entender: defender as mulheres, os negros, os indígenas, os homossexuais e outros grupos discriminados é indispensável. Porém, essa defesa não pode ser a plataforma central da esquerda. De um modo geral, o identitarismo não conta com a atenção ou a simpatia da grande maioria dos trabalhadores e dos setores de menor renda, geralmente às voltas com a luta pela sobrevivência.

Os temas econômicos e sociais – emprego, renda, injustiça social – continuam prioritários para eles. A extrema direita tenta desviar a atenção desses temas com discursos religiosos e conservadores. A centro-esquerda acaba esquecendo-os ao focar nos temas identitários.

Uma questão crucial na Europa e nos EUA, ainda não presente no Brasil, é a imigração. A extrema direita vem se beneficiando amplamente da sua oposição virulenta à entrada de imigrantes – oriundos da África e do Oriente Médio na Europa; da América Latina nos EUA. A centro-esquerda não sabe o que fazer com o tema. As suas tradições iluministas e internacionalistas levam-na a rejeitar a resistência à imigração. Não percebe que ela tem fundamentos reais. A rejeição do imigrante não é apena diversionismo, como muitos imaginam.

Os imigrantes trazem problemas significativos, não para as elites por suposto, que vivem à parte no seu mundo privilegiado, mas para os cidadãos comuns. A imigração em larga escala afeta o mercado de trabalho, pressionando para baixo os salários e levando à substituição de empregados locais por imigrantes. As firmas veem com bons olhos, claro, o barateamento da “mão-de-obra”, mas os trabalhadores sentem na pele e sofrem. Note-se que a imigração vem sobrecarregar um mercado de trabalho já adverso, em razão dos deslocamentos produzidos pelo rápido progresso tecnológico.

Mas a questão não é só econômica. A imigração massiva do século XXI é muito diferente, por exemplo, da imigração europeia para as Américas em épocas anteriores. O imigrante hoje é essencialmente diverso das populações do país hospedeiro, em termos raciais ou étnicos, assim como em termos culturais ou religiosos. A sua presença numerosa ameaça descaracterizar as sociedades dos países desenvolvidos, trazendo insegurança e reações xenófobas. Em outras palavras, a questão é também nacional – tema com o qual grande parte da esquerda sempre lidou mal.

Como reagirá a centro-esquerda a esses problemas? Continuará no rumo atual ou tentará se conectar com as novas realidades e as preocupações da maioria? Se ela optar por apegar-se às suas tradições, só nos resta desejar-lhe boa sorte.

Paulo Nogueira Batista Jr. é economista. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém(Leya).

Versão ampliada de artigo publicado na revista Carta Capital, em 22 de fevereiro de 2024.

Cessar-fogo na Baixada Santista, por Djamila Ribeiro

0

Temos que seguir alertas para a realidade sangrenta do nosso país

Djamila Ribeiro, Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

Folha de São Paulo, 23/02/2024

A diplomacia brasileira trabalha pelo cessar-fogo na Palestina desde o início da guerra. A morte em massa de crianças, mulheres e homens civis e a destruição de comunidades inteiras vêm intensificando os apelos.

Contudo, o confronto desigual e massacrante prossegue, fundado em um suposto direito de defesa ilimitado que vem sendo exercido pelo extermínio de civis, em nome da famigerada “Guerra ao Terror”.

É verdade que muito se tem dito sobre essa guerra. Como brasileira e paulista, gostaria de chamar a atenção para outra guerra mais próxima —para a qual também devemos pensar em um cessar-fogo. Descendo a serra do Mar há um banho de sangue em curso que tem resultado em consequências drásticas para toda a população, em especial a negra.

Refiro-me aos índices recordes de letalidade policial na Baixada Paulista desde a morte de um policial da Rota, no início do mês. Dezenas de pessoas foram mortas por forças policiais, em uma retaliação infinita que ultrapassa os envolvidos no confronto e vitimam comunidades inteiras.
Segundo dados oficiais —os quais, em tempos de cólera, são passíveis de uma ainda maior subnotificação—, em menos de dois meses deste ano já são mais de 50 pessoas mortas pela PM na região. O número representa o triplo do registrado na cidade de São Paulo, que tem quase seis vezes mais habitantes que a Baixada.

Some-se a isso mais de 700 presos, bem como mais de 250 mandados de prisão em aberto, incontáveis feridos e três policiais mortos. E, repito, apenas em janeiro e fevereiro de 2024. Uma verdadeira guerra em curso, que engana parte da população, pois promete segurança e entrega terror para todos os envolvidos.

Fosse uma atuação estatal eficiente, a Polícia Militar não estaria preocupada em vingar-se matando pessoas, independentemente de quem sejam. Não é essa a função da polícia e, além de desumanizante, gera violência que se volta contra os agentes. O Brasil é um dos países em que mais policiais morrem no mundo e a política da bala —histórica em comunidades periféricas— tem sido um enorme fracasso, que produz mortes de agentes do Estado.

Quanto à população, é importante dizer que, embora não haja um alvo oficial definido para pessoas negras por parte do Estado, é esse grupo social que vem sofrendo consequências radicalmente desproporcionais como resultado do confronto. Tanto vêm sendo essas as pessoas sumariamente julgadas e executadas quanto são a maioria absoluta de moradoras das comunidades afetadas pelo ambiente de profunda insegurança e medo.

Sou uma mulher negra santista, tenho irmãos e sobrinhos negros que vivem em bairros periféricos na Baixada. Meu sobrinho é um bom menino, quer ser fotógrafo e modelo; jamais se envolveu com droga, trabalha e estuda. Mas nada disso importa para as balas perdidas e execuções sumárias. As mulheres da família não podem imaginar vê-lo sair de casa sem ficarem com o coração apertado, com medo que lhe aconteça alguma violência em qualquer esquina.

Em conversa com Claudio Silva, o Claudinho, que é ouvidor da Polícia Militar, tomei ciência de casos muito preocupantes. Crescem as mortes de civis denunciadas pela população como execução sumária. Um exemplo foi a morte de José Marcos Nunes da Silva, catador de materiais recicláveis que, segundo sua família, não tinha envolvimento com crime e implorou desarmado para não morrer, sem sucesso.

Uma investigação independente e rigorosa do Ministério Público há de revelar muitos outros casos. Há que se debater ainda o papel de membros do poder público para determinar a interrupção desse morticínio, já que não só se omitem como comandam essas operações. Serão essas pessoas responsabilizadas?

O desenvolvimento social na região começa com um cessar-fogo, acompanhado de políticas públicas de moradia, emprego, educação, saúde, assistência social e saneamento básico, entre outras, que visem a construção da humanidade e do bem-estar da população local. Esta, embora nada tenha a ver com os agentes envolvidos nessa guerra, paga o preço salgado por ser constituída de pessoas negras, pobres e desconsideradas pelas políticas de Estado.

Dito isso, que sigamos com a pressão pela paz na Palestina e alertas para a realidade sangrenta do nosso país, que também precisa de um cessar-fogo.

Presente nebuloso

0

Num mundo marcado por grandes transformações estruturais, centrado em uma imensa competição e pelo desenvolvimento tecnológico, as nações que não acordarem para este cenário contemporânea, os indicadores econômicos e sociais tendem a piorar rapidamente, aumentando os desajustes em todas as áreas e setores, aumentando a violência, os conflitos políticos e reduzindo as esperanças de dias melhores.

Vivemos em momentos de grandes modificações estruturais. Os comportamentos humanos estão se alterando, os relacionamentos estão em constantes transformações, os modelos de negócio estão passando por grandes modificações, as organizações familiares estão se reconfigurando rapidamente, as nações hegemônicas estão perdendo poder e influência no cenário internacional, o mundo do trabalho está em franca reestruturação, gerando desempregos, subempregos e informalidades.

As nações estão em guerras variadas, no campo econômico e produtivo, as empresas buscam apoio dos setores políticos e governamentais, rogando por proteção crescente e subsídios variados como forma de sobrevivência, barganhando para evitar a bancarrota e pressionando os orçamentos dos Estados Nacionais. No campo militar, as guerras crescem em todas as regiões, na atualidade encontramos mais de 180 conflitos militares em curso na sociedade mundial, gerando destruição na infraestrutura das nações, mortes generalizadas e um rastro de ódio, rancor e ressentimento, perpetuando novos confrontos e novas devastações.

No campo econômico, as nações estão em situação fiscal e financeira degradantes, seus recursos monetários são limitados para satisfazer as necessidades da população, desta forma, percebemos impactos sobre as estruturas políticas, fragilizando a democracia e estimulando a ascensão de grupos radicais, impulsionando polarizações em todas as regiões do mundo, incrementando fascismos e racismos crescentes.

Vivemos num momento de grandes desafios, as lideranças estão cada vez mais escassas, as discussões econômicas são limitadas, os donos do poder se perpetuam no controle da sociedade e usam seus poderes materiais e imateriais para influenciar os debates da sociedade, fomentando discussões ultrapassadas e de pouca relevância para compreendermos os desafios do mundo contemporâneo.

Em todas as regiões do mundo encontramos um grande contingente de trabalhadores desempregados, na informalidade e subempregados, cujos rendimentos não garantem condições dignas de sobrevivência, estamos criando uma explosão social que não demorará para explodir e seus impactos são desconhecidos. Décadas atrás, esse quadro de desalento era mais evidente em países pobres e subdesenvolvidos, onde a pobreza e a indignidade eram constantes. Na contemporaneidade, essa situação de desalento se espalha para todas as regiões do mundo, afetando países ricos e nações vistas como em desenvolvimento, desta forma, o futuro tende a ser nebuloso para todas as comunidades.

A tecnologia que era vista como instrumento de melhorias sociais, pode ser um complicador deste cenário de devastação social. No século XIX, a tecnologia era vista como uma forma de fazer os indivíduos a trabalharem menos e usar seu tempo ocioso para o lazer e para a convivência familiar. No mundo contemporâneo, dominado por tecnologias variadas, os trabalhadores se sentem pressionados pelas máquinas e pelos instrumentos tecnológicos, obrigando-os a trabalhos intermináveis e degradantes, incrementando os medos, as ansiedades, as depressões e até os suicídios.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Carta Mensal – Janeiro 2024

0

O ano de 2024 começou com avanços substanciais na economia nacional e boas perspectivas para o ano novo, mas percebemos que essas modificações positivas estão assentadas em estruturas frágeis, temos um governo fraco, com uma sustentação no Congresso Nacional limitada e com uma oposição muito empoderada que impõe ao governo federal perdas homéricas, levando o presidente a negociar todos os momentos, alterando projetos e cedendo espaços ao centrão como forma de conseguir aprovar projetos estratégicos para que o governo nacional tenha governabilidade.

As negociações entre o governo federal e o Legislativo é sempre complexa e marcada por inúmeros conflitos, afinal, nestes últimos seis anos, os presidentes eram fracos nas negociações políticas. O presidente Temer era visto como um presidente bastando, sua ascensão estava ligada a um golpe parlamentar para retirar do governo uma presidenta legítima, neste período, o Presidente Temer sempre foi refém do legislativo, sua bancada sempre foi reduzida e marcada pela ascensão do Centrão, que passou a controlar grande parte do orçamento, desta forma seu governo e sua legitimidade sempre foram limitados, levando o governo a entregar partes substanciais do governo como forma de governabilidade, perdendo sua capacidade de gestão e sua reduzida capacidade de liderança.

O governo Bolsonaro tentou inicialmente alguma autonomia política, rechaçando o Centrão inicialmente como forma de gestão diferenciada, mas os resultados foram sofríveis, levando seu governo a entregar, por completo, toda e qualquer negociação política nas mãos do Centrão, empoderando o Congresso Nacional, que passou a controlar e manipular grande parte do orçamento, criando a emenda do relator ou orçamento secreto e dando mais poderes aos congressistas, desta forma, o Congresso Nacional que saiu nas eleições de 2022 é visto como o mais conservador e reacionário da história nacional. Tudo contribuiu para o empoderamento do Legislativo e fragilizou o Executivo, reduzindo a capacidade do Presidente Luís Inacio Lula da Silva de gerir com maior autonomia e soberania seu governo.

O ano começou com grandes medos e preocupações no nosso vizinho na América do Sul, com a eleição de Xavier Milei na presidência da Argentina, um ultradireitista radical que, desde a campanha trazia propostas desestabilizantes, tais como o fim do Banco Central Argentino, privatização de todas as empresas estatais, acabar com o Mercosul, alinhamento automático com os Estados Unidos e Israel, além de dolarizar a economia argentina, medidas pouco viáveis economicamente, mas que podem gerar graves constrangimentos nas relações bilaterais com os grandes parceiros da Argentina, Brasil e China.

Nestes primeiros dias de governo, o Presidente Milei enviou ao Congresso Nacional mais de 600 alterações de lei, com a criação de um decreto presidencial respaldando inúmeras medidas liberais ou neoliberais, com alterações de venda de empresas nacionais, abertura econômica, redução da burocracia, diminuindo os poderes dos sindicatos, retirando benefícios sociais e previdenciárias, além de extinguir subsídios, encarecendo o preços dos produtos e as mercadorias, tudo isso, mesmo que esses medidas estejam em conversação no Congresso, os resultados imediatos para a economia da Argentina são preocupantes, com incremento da inflação e graves constrangimentos com os maiores parceiros comerciais da Argentina, Brasil e China. É importante destacar, que o presidente argentino carece de poder no Congresso, sua coalizão abarca menos de 15% de um total de 257 deputados, para conseguir aprovação de suas medidas, são necessárias muita capacidade de negociação.

Internamente, destacamos a adoção de uma política industrial, a Nova Indústria Brasil (NIB), que se baseou no conceito criado pela economista italiana Mariana Mazzucato, que se baseia nas chamadas Missões, centrada na busca crescente de produtividade e competitividade, se afastando das chamadas teorias de substituição de Importação.

No novo modelo de Política Industrial, as Missões estavam diretamente ligado a integração em variadas áreas e setores, onde destacamos setores de sustentabilidade, saúde, cadeias agroindustriais, bioeconomia, energias renováveis, dentre outros, que indicam que o Brasil do século XXI vai buscar, efetivamente, se inserir em um mercado de grande potencial, mostrando ao mundo uma forte capacidade de organizar suas estruturas econômicas e produtivas, se destacando em toda a economia internacional.

A política industrial trazida pelo governo federal deve ser visto como um avanço, pois anteriormente falar essa política era vista como um afronta aos economistas liberais, que detonavam os governos e suas políticas intervencionistas. Mas com o Novo Consenso de Washington que está surgindo na comunidade internacional, as políticas industriais passaram a ser aceitas e são recomendadas, uma mudança estrutural.

Embora percebamos que o mês de janeiro é marcado por férias da classe política, percebemos inúmeras descobertas referentes as questões policiais da Polícia Federal com variadas operações que visam investigar vários malfeitos do governo anterior, malfeitos que estavam ligados a financiadores, religiosos, militares e divulgadores de fake News, levando a prisões, perseguições, delações e conflitos variados. Depois de 13 m3ses do novo governo, as investigações policiais estão gerando graves descobertas, confrontos políticos, narrativas, discursos e confrontos, tudo isso, contribuíram para que o Brasil esteja sendo visto como um exemplo positivo de investigações judiciais contra tentativas de golpes de Estados e da ascensão da extrema direita mas acaba gerando mais incertezas e instabilidades no cenário econômico e produtivo, reduzindo investimentos produtivos.

Outro assunto que precisamos destacar é o incremento do conflito entre Israel e o grupo Hamas, um confronto que passou dos 90 dias, com mortes de quase 30 mil pessoas, sendo que a maior parte são mulheres e crianças, destruições generalizadas na infraestrutura, cortes de energias e alimentos, gerando uma crise humanitária na região, gerando protestos internacionais de todas as regiões que pedem um cessar fogo, retomada das conversações diplomáticas e uma reconfiguração geográfica da região.

O mês de janeiro começou com esperanças reduzidas, a mídia comercial está cada vez mais atrelada aos interesses israelenses e dos norte-americanos, desta fora, as esperanças de acabar com o conflito nos parece cada vez mais distante e a destruição nos parece cada vez mais assustadora e imediata.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Para compreender o paradoxo chinês, por Ladislau Dowbor

0

Uma política centralizada para definir grandes rumos e uma filosofia de gestão radicalmente descentralizada. A interação entre o público e o privado. Entender o modelo econômico adotado pela China exige compreender seu povo, sua cultura e sua história

Ladislau Dowbor – OUTRAS PALAVRAS – 16/02/2024

“Nessa nova era conectada em rede, o paradigma tradicional da competição precisa deixar o lugar para a complementariedade, a conectividade e a cooperação.”
Keyu Jin (282)

Era tempo que tivéssemos um livro de primeira linha sobre a China, país sobre o qual todos têm opiniões, ou melhor dizendo, julgamentos, mas poucos compreendem. Keyu Jin é economista, é chinesa, estudou nos Estados Unidos. É professora de economia em Londres e em Beijing. Isso é tão importante não apenas porque a qualifica cientificamente, mas porque a levou a enfrentar os diversos tipos de simplificações que existem sobre o país, bem como as polarizações que resultam. A China não se simplifica, precisa ser compreendida. E Keyu é suficientemente segura nas suas análises para poder apontar tanto os sucessos, como as dificuldades e ameaças no que é hoje a economia mais dinâmica do planeta. Não é cosmética nem ataque, é explicitação dos mecanismos.

A autora tem hoje 42 anos, o que significa que pertence à nova geração chinesa, que viveu os tempos da dificuldade da tigela do arroz dos seus pais, até a prosperidade atual. Ou seja, viveu as transformações que descreve, além de estudá-las dentro e fora da China. Na escrita, sente-se o orgulho de uma nova geração que não precisa pedir desculpa, e Keyu traz com força o fato que uma nova geração está mudando o próprio clima social, político e econômico do país. Não se trata apenas de descrever a China, e sim de captar a complexa dinâmica de transformações que hoje continua. Mais do que presa a simplificações ideológicas, a China busca permanentemente novas formas de organização e gestão. A imagem que utilizam é que, ao atravessar um rio, é preciso ir sentindo com os pés onde estão as pedras.

Isso não significa pragmatismo de “crescimento” a qualquer custo. A China não é apenas uma economia, é um universo cultural. “A tradição de colocar os interesses da comunidade acima dos interesses pessoais representa um contraste forte com a ênfase ocidental no indivíduo.” (291)

Isso tem muito peso. Nas várias vezes que estive na China, me impactou muito esta atitude espontânea das pessoas de naturalmente pensar o interesse individual no contexto do bem-estar da sociedade. Não se sentem “oprimidos” por haver rumos gerais definidos pelo governo e pelo partido: se sentem co-construtores do seu país, e compreendem com naturalidade que o sucesso individual deve se dar dentro de uma visão mais ampla. E vendo o ritmo das transformações, se sentem orgulhosos de participar do processo.

Um segundo eixo importante, em termos de herança cultural, é que a China sempre teve, e o ‘sempre’ envolve muitos séculos, uma tradição de formação e promoção ligada ao mérito, nos diversos sistemas de gestão pública. “Devemos também ter em mente que a China já foi a nação mais rica do mundo, com a tecnologia e infraestruturas mais avançadas, apoiada por uma burocracia que encorajava a seleção dos mais competentes. A herança meritocrática da China tornou a transição para um governo moderno mais fácil, e liberou essa capacidade latente para dinamizar a ciência e a tecnologia modernas na nova era.”(291) A exigência de muita formação e experiência para avançar na hierarquia administrativa não é de hoje.

Os avanços da China espantam: Como ordem de grandeza, em poucas décadas a riqueza da nação foi multiplicada dezenas de vezes. A China emerge como país efetivamente soberano em 1949, destruído por tantas guerras e a exploração colonial. Ou seja, o ponto de partida é trágico. Mas depois de algumas décadas de busca de formas de organização interna, inclusive com políticas desastradas, a partir de 1978, com Deng Xiaoping, a China opta por um sistema que combina de maneira criativa os mecanismos de mercado, o planejamento como eixo organizador, uma política centralizada de fixação de grandes rumos, e uma filosofia de gestão radicalmente descentralizada na aplicação prática dos rumos fixados. O resultado é que permite assegurar a coerência do conjunto ao mesmo tempo que libera a iniciativa local e a criatividade. “Esse modelo de concentração de poder político com descentralização econômica é característica única do Estado chinês.” (121)

A autora chama este sistema de mayor economy, economia de prefeitos, porque a ampla autonomia local permite que as iniciativas sejam radicalmente desburocratizadas. “São funcionários locais nas províncias, nos municípios, nos ‘counties’ e cidades que batalham o desenvolvimento local, atingem objetivos de crescimento, implementam as reformas, e atraem investimentos internacionais. Esses são os quadros locais que transformaram aldeias de pescadores e zonas rurais atrasadas em núcleos modernos de exportação, de manufatura, e em zonas econômicas hightech. Por trás de história de sucesso está um governo local que o apoiou em cada passo na caminhada.”(120) O organograma da hierarquia administrativa, nesta mesma página, ajuda muito na compreensão do funcionamento do conjunto.

Lembrando que se trata de administrar um país de 1,4 bilhão de habitantes, com toda a complexidade da transição, em poucas décadas, de uma era de miséria rural para uma era de urbanização e alta tecnologia. Não há como promover este ritmo e coerência de desenvolvimento de um imenso país, nos mais diversos setores, com uma ditadura centralizada, como até hoje tantos desinformados “opinam”. Lembro que Arthur Kroeber, no seu China’s Economy, (2016) insiste muito nesta dimensão da descentralização, afirmando inclusive que a China é mais descentralizada do que a Suécia, onde cerca de 70% dos recursos públicos são repassados diretamente para as administrações regionais e locais. (1) Nos diversos trabalhos que tenho publicado, insisto muito que no caso brasileiro, com 5.570 municípios, esperar que tantas coisas se resolvam a partir de Brasília é simplesmente um contrassenso de gestão, de elementar lógica de processo decisório. (2)

É uma questão de bom senso, não de ‘ideologias’: “Conforme resultou, dividir o poder no nível local fez sentido de várias maneiras. São os funcionários locais, afinal, que conheciam melhor as condições locais, tinham as mais amplas redes locais, e sabiam como juntar a informação local, e tomavam decisões informadas sobre a alocação de recursos. Isso os colocou numa posição muito melhor do que um governo central distante, para desenvolver a sua economia local. Na realidade, o eterno dilema sobre a centralização política é que enquanto este é bom para estabelecer os objetivos de longo prazo para melhores resultados, isso é frequentemente associado com burocracias distantes pouco sensíveis às necessidades locais. Os funcionários locais na China gozam de autonomia substantiva para desviar das normas, e a aproveitaram bem.”(128)

Grandes rumos do governo central, autonomia de decisão local, mas também os meios financeiros correspondentes, com o LGFV (Local Government Financial Vehicle), sistema descentralizado de financiamento.(p. 179 e ss) As taxas de juros estão na faixa de 4,6% ao ano, para uma inflação da ordem de 2%, o que significa um juro anual real de 2,6%. Um organismo central do governo controla as tentativas de agiotagem. Os poderes locais se endividaram, mas Keyu traz o óbvio: “Quando as taxas de juros são mais baixas do que as taxas de crescimento, o juro sobre a dívida é baixo, e a relação entre a dívida e o PIB irá cair com o tempo.”(187) O problema não está no endividamento, e sim em como se usa os recursos: se promovem o desenvolvimento, o processo se equilibra, gerando mais recursos que o custo da dívida. No Brasil ainda nos debatemos com a “austeridade”, e os prefeitos viajam para Brasília para tentar uma fatia de emenda parlamentar junto a um deputado aliado. É disfuncional tanto para as prefeituras como para os legisladores, atolados em micro negociações.

A China não teria como se reinventar em tão pouco tempo sem aproveitar um conjunto de tecnologias desenvolvidas no resto do mundo. A partir de 1978, com a abertura, soube atrair corporações internacionais, interessadas na mão de obra barata, e também no amplo mercado, mas exigindo que as corporações assegurem participação chinesa na gestão das empresas, e compartilhamento de tecnologia. São negociações caso a caso, cujo mecanismo acompanhei em Shanghai, que permitem equilibrar os interesses, em vez do país simplesmente se submeter às condições das transnacionais. “Quando empresas estrangeiras queriam operar na China e aproveitar os seus custos mais baixos e amplo mercado, era lhes exigido que formassem joint ventures com empresas chinesas, o que frequentemente envolvia compartilhar a própria tecnologia.”198)

Em outros termos, para assegurar o ganha-ganha do processo, foi preciso ter soberania, e uma sólida visão dos interesses nacionais. Lembro que a Coreia do Sul também recorreu a uma forte participação estatal na gestão da economia, e negociando de forma dura os interesses do país frente às multinacionais: aqui também os avanços externos foram utilizados como trampolim para dinâmicas internas. Hoje a China é um gigante tecnológico, “o pêndulo começou a se deslocar para o outro lado”, como comenta Keyu, relativamente ao tempo em que a China tinha mão de obra barata e as corporações tinham a tecnologia. E o próprio peso da economia muda as relações. Em 2023, em dólares PPP (Purchasing Power Parity, tirando deformações por taxas de câmbio, ou seja, em volume efetivo de produção) a China tem um PIB de 33 trilhões, os Estados Unidos de 27 trilhões. (3)

Uma melhor compreensão da economia da China está ligada ao conceito de juguo, ou seja, de missão, visão que lembra o Mission Economics de Mariana Mazzucato. No mais recente plano de desenvolvimento (2021-2025), dado o deslocamento das prioridades da base industrial para a esfera tecnológica, a visão é de dinamizar a nação através da ciência, da tecnologia e da educação: “Quando um objetivo estratégico recebe a designação de juguo, as considerações de custos são deixadas de lado. Desperdícios serão tolerados. A essência do sistema juguo é que toda a nação se mobiliza para atingir um objetivo estratégico.”(218) “A China está construindo uma cadeia completa de incubação ligando os laboratórios nacionais chave, universidades e parques industriais hightech ao redor do país. Já atraiu milhares de pesquisadores e cientistas do exterior, para residirem na China.”(219) Enquanto interessa sim aos cientistas chineses trabalhar em outros países, hoje a tendência se inverteu.

Ao chamar este livro de New China Playbook, Keyu Jin traz com força essa visão de um país que não apenas se transforma, mas transforma as regras de jogo à medida em que o mundo e a China mudam os paradigmas tecnológicos, sociais e políticos. O subtítulo, “além do socialismo e do capitalismo”, ajuda na compreensão dessa dinâmica. A China não está presa às simplificações ideológicas, que por exemplo, no chamado Ocidente global, proíbem de regular os bancos, as plataformas de comunicação, os desmandos da indústria farmacêutica, ou seja, qualquer interferência sobre “os mercados”. Busca o que funciona. Nessas poucas linhas, trouxe um pouco das ideias do livro, mas vale a pena adquirir o texto, alguma editora traduzi-lo, pois não se trata, no caso da China, de um “modelo”, mas de um sistema que aprende. Uma “learning economy” poderia ser uma qualificação adequada.

E recomendo ver no meu site http://dowbor.org alguns documentários de primeira linha sobre a China, em particular em como organizaram o enfrentamento da pobreza, através de políticas radicalmente descentralizadas. Basta colocar “China” na busca no site, há bastante material de apoio.

Ladislau Dowbor, Economista e professor titular de pós-graduação da PUC-SP. Foi consultor de diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações do sistema“S”. Autor e co-autor de cerca de 45 livros, toda sua produção intelectual está disponível online no website www.dowbor.org.

Aumento da concentração de renda agrava quadro sociopolítico, por André Roncaglia

0

Após duas décadas de crescimento real, salários se estagnaram sob Temer e Bolsonaro

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 16/02/2024

Os dados recentes das Contas Nacionais, divulgados pelo IBGE, mostram um acirramento do conflito distributivo no Brasil. Entre 2017 e 2021, os lucros (fonte principal de renda dos mais ricos) cresceram mais do que os salários e benefícios sociais (fonte de renda principal dos mais pobres e da classe média). Esta tendência reflete movimentos estruturais da economia brasileira.

A perda do poder de barganha dos trabalhadores explica a estagnação da renda do trabalho. Depois de duas décadas de crescimento real dos salários (1994-2016), os salários estagnaram sob Temer e Bolsonaro: 0,2% de ganho real entre 2017 e 2022. A reforma trabalhista de 2017 reduziu os custos para o empregador, mas não gerou os milhões de empregos formais prometidos. A reforma piorou o mercado de trabalho, com aumento na proporção de empregos precários no setor de serviços de baixa qualificação.

Além disso, a queda da fatia dos salários na renda também se deve à lógica antiestatal de Temer e Bolsonaro, que implicou arrocho dos salários do funcionalismo público civil e a não reposição de 7,3 mil servidores aposentados, segundo dados do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI).

A crítica genérica aos “privilégios” do funcionalismo ignora desigualdades internas ao setor público. Por exemplo, segundo dados do Tesouro Nacional, entre 2017 e 2022, os ganhos reais da renda de militares ativos (2%) e inativos (7%) contrastam com as perdas reais de servidores civis ativos (11%) e inativos (8%).

Ademais, um setor público com menos empregos e menor remuneração enfraquece as demandas salariais da economia (FMI, 1991) e normaliza a anemia sistêmica do mercado de trabalho, onde o prêmio salarial pela escolaridade vem caindo pela escassez de oferta de bons empregos, fruto da perda de sofisticação tecnológica da economia e das nossas exportações.

No lado dos lucros, concentração de poder de mercado, isenções tributárias, digitalização e automação se unem ao avanço da “pejotização”, pela qual trabalhadores são contratados como pessoa jurídica, transformando o rendimento do trabalho em lucro de empresa.

Essa metamorfose quantitativa implica mudanças qualitativas. Excluído da desidratada rede de proteção do emprego formal, o trabalhador convertido em “empresário de si mesmo” muda de lado na luta distributiva e amplia o racha na unidade já precária dos interesses do trabalho.

Seja por meio de salários, seja por meio de lucros, as melhores remunerações correm para os mais ricos, impulsionadas pela desigualdade de acesso às oportunidades, ligada à estrutura e ao patrimônio familiares, às conexões sociais e à propriedade concentrada do capital empresarial e o acesso a crédito e benefícios tributários. Vejamos o caso do agronegócio.

No período 2017-2022, o rendimento da atividade rural —isento de tributação na sua maior parte— teve ganho real de 140% e beneficiou principalmente os estratos mais ricos. Nota técnica de Sérgio Gobetti (Ibre-FGV) mostrou que, em estados dominados pelo agronegócio, o crescimento real da renda do 0,1% mais rico chegou a 117% em Mato Grosso, a 99% em Mato Grosso do Sul e a 78% no Tocantins —ante 42% na média nacional para o mesmo estrato de renda.

No mesmo período, o agronegócio adicionou apenas 4% do total de vagas criadas no Brasil e o ganho salarial real de empregados no agronegócio foi de 0,5%, na média (Cepea,Esalq/USP). Ou seja, a recente bonança das commodities não beneficiou a base da distribuição de renda.

A tática de dividir para conquistar os trabalhadores protege os privilégios das elites, pouco interessadas em gerar empregos de alta qualidade. Reindustrialização e maior justiça tributária ajudam a reequilibrar esse jogo.