Capitalismo é incompatível com democracia, diz italiana que pesquisa austeridade

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Clara Mattei afirma que políticas de redução do Estado são espinha dorsal das economias modernas contra trabalhadores

Uira Machado – Folha de São Paulo, 16/02/2024

Celebrado por figurões como Thomas Piketty e Martin Wolf, o livro “A Ordem do Capital” propõe uma nova maneira de enxergar as políticas de austeridade adotadas por diferentes países.

Não como uma exceção impopular e dolorosa usada só para reduzir o déficit orçamentário em momentos de maior desequilíbrio nas contas públicas, mas como “o sustentáculo do capitalismo moderno”, segundo a italiana Clara Mattei.

No livro, a pesquisadora volta à década de 1920 para mostrar como a austeridade surgiu depois da Primeira Guerra Mundial em países como Inglaterra e Itália, quando trabalhadores organizados cobravam mais direitos sociais.

Para Mattei, a austeridade foi naquela época —e continua sendo hoje— “uma reação antidemocrática às ameaças de mudança social vindas de baixo para cima”. Daí o subtítulo da obra: “Como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo”.

Em entrevista à Folha, ela diz que “as decisões econômicas são em grande parte decisões políticas”, mas que o “capitalismo é incompatível com a democracia no sentido de participação das pessoas nas decisões econômicas”.

Em seu livro, a sra. afirma que os programas de austeridade devem ser vistos não como exceção, mas como o sustentáculo do capitalismo moderno. Qual o ganho analítico dessa perspectiva?

Minha definição tem a vantagem de ser uma definição política, na qual fica claro quem ganha e quem perde com as políticas de austeridade. Essa definição tenta ir além da ideia de que a austeridade seja apenas a redução do tamanho do Estado.

Falar em “menos Estado” é uma maneira muito ideológica de entender a história do capitalismo e nossa situação econômica atual. O ponto não é ver se o Estado gasta menos, mas onde o Estado gasta. Porque austeridade não significa menos Estado, mas Estado gastando a favor das elites em detrimento da maioria da população.

A trindade de políticas de austeridade —fiscal, monetária e industrial— tem o objetivo de enfraquecer os sindicatos e manter os trabalhadores sob controle. E isso enquanto o Estado gasta muito dinheiro no complexo industrial militar, por exemplo, ou subsidiando e desonerando investimentos privados em energia verde, ou resgatando bancos.

Sua pesquisa volta aos anos 1920 para detectar as origens da austeridade na Inglaterra e na Itália. O que explica o surgimento desse receituário?

A austeridade não é um produto da exceção do sistema neoliberal. O que tento mostrar é como, na verdade, a austeridade é funcional e estrutural para o capitalismo. Ela é particularmente útil quando as pessoas querem um sistema econômico alternativo, querem mais direitos sociais. Aí a austeridade é muito importante para a elite, a fim de preservar o status quo.

Após a Primeira Guerra Mundial [1914-1918], isso ficou muito claro, porque foi um momento em que, no coração do capitalismo, os cidadãos estavam exigindo sociedades pós-capitalistas, rompendo com as relações salariais, rompendo com a propriedade privada dos meios de produção em favor da democracia econômica. Ou seja, as pessoas queriam a participação dos trabalhadores no processo de produção e distribuição. Foi aí que a austeridade nasceu.

O subtítulo do livro faz uma ligação forte entre austeridade e fascismo, mas a Inglaterra não teve um governo fascista. É possível generalizar a conexão?

A questão é mostrar que Mussolini se tornou tão poderoso porque ele era muito bom em implementar a austeridade, exatamente as mesmas políticas que os liberais na Itália, nos Estados Unidos e no Reino Unido estavam patrocinando.

A capacidade de subjugar os trabalhadores, de fazê-los aceitar salários mais baixos e parar com as greves; a capacidade de privatizar, de cortar gastos sociais e revalorizar a lira: tudo isso fez de Mussolini quem ele se tornou, um ditador fascista que permaneceu no governo por mais de 20 anos.

O capitalismo é bastante incompatível com a democracia no sentido de participação das pessoas nas decisões econômicas e na distribuição de recursos.

Claro que o capitalismo é compatível com a democracia eleitoral, mas isso é superficial. No capitalismo contemporâneo, você pode se tornar fascista para apoiar as prioridades da economia.

Foi o que aconteceu na Itália sob Mussolini, no Chile sob Pinochet e é o que está acontecendo agora na Argentina com Milei.

Em outros países não é tão diferente, se você olhar para a necessidade de proteger as decisões econômicas da interferência das pessoas. E isso é feito com a independência do Banco Central, com a ideia de colocar orçamentos equilibrados na Constituição, com mecanismos técnicos que têm o mesmo efeito de desdemocratizar a economia.

Há uma tensão entre capitalismo e democracia. Os governos fascistas, obviamente, são antidemocráticos. Mas o que é generalizável é que as supostas democracias liberais também têm tendências antidemocráticas que se associam muito mais ao fascismo do que se costumava pensar.

Que lições podem ser tiradas em relação à extrema direita hoje?

Os governos de extrema direita são muito bons em implementar a austeridade e, por esse motivo, ganham a confiança do mercado e são vistos com bons olhos pelos tecnocratas internacionalmente.

Mas o contexto agora é muito diferente. Quando Mussolini chegou ao poder, ele estava lá explicitamente para esmagar quem estava se mobilizando. Hoje, as pessoas votam em governos de extrema direita porque foram desempoderadas por um século de políticas de austeridade.

O sucesso da austeridade está em nos individualizar, nos tornar muito precários, nos tornar muito inseguros, para que não sintamos que estamos unidos como trabalhadores. A razão pela qual esses governos de extrema direita chegam ao poder é porque, em última instância, representam a expressão da insatisfação com o atual sistema econômico, que as pessoas entendem como um sistema a favor dos ricos e poderosos.

O problema é que as pessoas votam na direita, mas a direita é melhor em implementar a austeridade.

No Brasil, políticas de austeridade não são exclusivas de governos de direita. Por que isso acontece?

Essa é outra lição muito importante que podemos tirar do estudo histórico: infelizmente, a austeridade atravessa as linhas partidárias. É a expressão do falso pluralismo na economia que nossas democracias eleitorais apresentam. Elas nos dão a impressão de que, se votarmos em Lula em vez de Bolsonaro, teremos uma completa mudança nas políticas econômicas, mas é mais complicado doque isso.

Sob o capitalismo, a prioridade de qualquer governo, de direita ou de esquerda, é garantir os fundamentos para a acumulação de capital, o que significa não perturbar os investidores privados.

Então não podemos pensar que votamos uma vez a cada quatro anos e nosso trabalho está feito, porque existem pressões muito fortes vindas do mercado. Se o povo brasileiro, como qualquer outro povo, quiser uma mudança social séria, precisa lutar por isso.

Se você olhar historicamente, perceberá que há muito mais potencial para sistemas econômicos alternativos do que estamos acostumados a pensar, porque o objetivo principal dos economistas no poder é nos dizer que não há alternativa possível.

As alternativas existem, mas, para obtê-las, não basta eleger alguém que diga que fará algo diferente. Precisamos de uma participação maior do povo na economia.

Mas como escapar da lógica que comanda a economia em escala global hoje em dia?

A mensagem principal que emerge do livro é que as decisões econômicas são em grande parte decisões políticas, no sentido de que não há nada que seja uma necessidade técnica. São decisões políticas que acontecem dentro de um sistema que funciona sob pressões específicas.

Você pode ir contra essas pressões, mas terá de arcar com as consequências. Essa mudança não acontecerá suavemente. Se você quiser realmente subverter o Estado capitalista de dentro, você precisa entender que não vai ser fácil.

Clara E. Mattei, 35
Formada em filosofia, mestre na mesma disciplina e doutora em economia, é professora associada do Departamento de Economia da New School for Social Research (Nova York)

Missões

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O governo federal apresentou no mês passado uma política industrial objetivando a construção de novas bases para a indústria nacional, num mundo marcado pelo crescimento da concorrência global e o desenvolvimento tecnológico, onde os atores econômicos são, cada vez mais dotados de grande poder financeiro, com estruturas organizacionais complexas, com grande capacidade produtiva e geopolítica, onde as nações que ficarem para trás terão suas autonomias e soberanias diminuídas.

Vivemos momentos de grandes transformações geopolíticas e geoeconômicas, nações que eram vistas como hegemônicas perderam espaço na geopolítica global, desta forma, estes países estão tendo de dividir os poderes globais com outras nações. Discursos vistos como liberais, defensores da abertura econômica e da concorrência generalizada, que defenestravam constantemente a atuação dos Estados Nacionais vem perdendo espaço no debate internacional e desta forma, as políticas industriais vêm ganhando espaço na agenda das economias desenvolvidas e em desenvolvimento.

A política industrial sempre foi vista com desdém pelos economistas liberais, que acreditavam que o mercado deveria ser o grande estruturador e indutor das escolhas econômicas e produtivas, visto que este era o grande formulador da sociedade, dotado de grandes flexibilidades, agilidades e eficiências. Ao Estado, na visão liberal ou neoliberal deveria se restringir a uma atuação secundária, garantindo um ambiente de negócio salutar, estimulando a concorrência e a competição, atuando nas defesas interna e externa e com fortes investimentos em capital humano.

Neste cenário, nações que pregavam a concorrência generalizada como forma de crescimento econômico e produtivo estão se rendendo ao charme das políticas industriais, como os Estados Unidos e a Europa, que foram árduos defensores do pensamento liberal. Estas nações estão despejando trilhões de dólares e euros para protegerem suas estruturas econômicas e como forma de evitar sucumbir na concorrência com as nações asiáticas, que se utilizam fartamente de políticas industriais, protecionismos, subsídios etc.

O Brasil, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI) foi a nação que mais se desindustrializou nos últimos trinta anos, diante disso, faz-se necessário que a sociedade estruture uma estratégia para a reconstrução do setor industrial. Neste cenário, nasce o programa Nova Indústria Brasil (NIB) que está centrada nas chamadas Missões, que nos parece inovador e com uma concepção moderna ao dialogar com experiências internacionais, um conceito criado pela economista italiana Mariana Mazzucato, que defende uma estrutura integrada e interdependente para reconstruirmos a indústria nacional. Neste novo programa, percebemos uma preocupação central no aumento da produtividade e da competividade, enfatizando uma melhor inserção internacional da indústria, se distanciando da velha lógica de substituição das importações.

Dentre as Missões elencadas, destacamos as cadeias agroindustriais, saúde, bem-estar nas cidades, transformação digital, bioeconomia, descarbonização, transição e segurança energéticas e defesa que, se bem-sucedidas, transformarão a estrutura econômica e produtiva nacional. Os programas existem e podem ser positivos, mas antes de mais nada precisamos compreender o que queremos para o futuro, se continuaremos como um grande fazendão ou vamos alçar novos voos num mundo marcado por grandes transformações e incertezas.

Ary Ramos da Silva Júnior, bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Carta Mensal – Dezembro 2023

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O mês dezembro de 2023 foi caracterizado por grandes movimentações da sociedade brasileira, de um lado, ao olharmos as questões econômicas encontramos um grande discussão sobre as questões fiscais do Estado Nacional, uns defendendo a possibilidade de buscarmos o déficit zero, mesmo sabendo que está meta seja improvável e fortemente desafiador, onde teríamos que impor um arrocho fiscal violento, incrementando graves desequilíbrios sociais com impactos imediatos sobre a popularidade do governo Lula.

Depois destas discussões o governo destacou a necessidade de, em 2024, encontramos o déficit zero, alegrando os setores ligados ao mercado financeiro, recebendo aplausos dos setores bancários e gestores de fortunas em detrimento de setores mais ligados aos trabalhadores, que são os grandes prejudicados pelo arrocho do Estado Nacional.

Desta forma, percebemos que o governo federal está acenando para os donos dos recursos financeiros e as lideranças dos setores financeiros, adotando políticas que alegram esses setores, desta forma, acreditam que vão conseguir o apoio deste setor, sabendo que não conseguem governar sem o apoio destes setores da economia. Sabendo que estes são os grupos que foram os agentes que estiveram na linha de frente do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, desta forma, o governo Lula três está buscando agradar os donos do poder como forma de evitar de desagradar esse setor e evitando as represálias dos donos do poder, uma estratégia arriscada que podem levar o governo a perder o apoio dos grupos mais fragilizados economicamente.

No mês de dezembro, o governo se utilizou de instrumentos para mostrar todas as políticas que foram implementadas no decorrer do ano, um período marcado pela adoção de uma estratégia de reconstrução de muitos setores da sociedade que foram esquecidos no governo anterior e retomando políticas sociais, tais como projetos que foram reduzidos e renomeados pelo governo de Jair Bolsonaro. Neste ano de 2023, o governo retomou o programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), visto como um projeto fortemente gerador de empregos, responsável pela movimentação de variados setores da economia, com injeção de investimentos, movimentação do mercado de trabalho, financiamentos subsidiados, estimulando os setores bancários, além de seguro, logística, construção civil, dentre outros.

Destacamos ainda a retomada de recursos financeiros para os setores de educação, segurança pública, saúde e cultura, setores que seus recursos foram arrochados, gerando forte degradação para variados setores da economia, além de destacarmos programas de reindustrialização, todos setores que foram muito degradados e o presidente se comprometeu com a retomada dos investimentos para a recuperação.

No mês de dezembro foi marcado por uma grande discussão sobre a segurança pública, uma área que os governos progressistas não apresentaram índices positivos, desta forma surge novamente uma discussão se era prudente separar o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, criando o Ministério de Segurança Pública para atacar uma das maiores feridas da sociedade contemporânea brasileira, os índices elevados de violência que crassa as cidades nacionais.

Essa discussão aparece com maior força com a indicação do Ministro da Justiça Flávio Dino para o cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e de Paulo Gonet para Procurador Geral da República (PGR). Ambos foram sabatinados no Senado Federal e foram conduzidos aos cargos indicados pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva.

Um dos grandes feitos do governo federal em 2023 foi a reforma tributária, medida que estava parada desde décadas anteriores, que geravam grandes constrangimentos para todos os setores econômicos e produtivos, essa medida foi aprovada e promulgada em dezembro pelo presidente da República, movimentando o Congresso Nacional.

Embora percebamos que essa reforma tributária está distante de uma reforma mais abrangente e com impactos generalizados para a economia nacional, a adoção desta nos traz algum alento de melhoras tributárias, com medidas mais progressivas para os setores sociais, reduzindo as medidas esdrúxulas que permanecem em todo o arcabouço tributário nacional. Um dos grandes avanços trazidos pela Reforma foi taxação de fundos exclusivos, além do IVA nacional, desta forma o Brasil entra no rol das nações que atuem essa forma de tributação.

Percebemos ainda, internamente, uma economia que já nos dá sinais claros de desaceleração econômica, onde os estímulos do primeiro semestre estão se enfraquecendo e deixando mostras de incertezas fiscais para o final do ano. Muitos defendem um maior gasto público como forma de estimular o crescimento dos investimentos, fomentando os setores produtivos, aumentando o emprego, incrementando a renda agregada e retomando o crescimento da economia. De outro lado, percebemos que os indicadores fiscais estão preocupantes e precisamos criar uma nova estratégia para melhorarmos os indicadores fiscais, sem isso, o fiscal pode se espalhar para a economia e gerar graves constrangimentos para todo o sistema econômico, gerando incertezas crescente e redução dos investimentos, levando a Autoridade Monetária a elevar as taxas de juros e reduzindo as atividades econômicas e com impactos para a economia nacional.

No campo internacional, os conflitos militares entre Ucrânia e Rússia, percebemos poucas movimentações, onde os ucranianos estão cotidianamente passando a sacolinha para arrecadar recursos para financiar a guerra, onde os governos europeus e os Estados Unidos estão menos afeitos aos investimentos do conflito. No campo da guerra, percebemos que os russos estão mais na frente, ganhando novos territórios e avançando mais efetivamente, mesmo sabendo que o presidente Putin sente que a vitória deste conflito está cada dia mais próximo.

Neste cenário, percebemos as movimentações da Otan, Organização do Tratado do Atlântico Norte, que geram preocupações para os rumos do conflito, isto porque a organização está dando sinais claros de estar se preparando para entrar nesta guerra, com custos altíssimos financeiros e graves constrangimentos para todas as nações, será que estamos visualizando a proximidade de uma terceira guerra mundial? Só o tempo pode nos responder.

Outro grave conflito em curso na sociedade internacional, a guerra entre Israel e Hamas, cujo conflito já deixou mais de 25 mil pessoas mortas, com devastação em todas as regiões da Palestina, com destruição da infraestrutura, matanças generalizadas e críticas internacionais de todas as regiões do mundo.

Esse conflito pode gerar graves constrangimentos para a sociedade mundial, a guerra pode se espalhar por todo Oriente Médio, levando muitas nações a adentrar ao conflito e podendo gerar uma verdadeira guerra mundial, arrastando os países mais desenvolvidos, como os europeus e os Estados Unidos e toda a comunidade árabe e chegando a Rússia, a China e outras nações, desta forma arrastando o mundo a uma terceira guerra mundial, com destruição generalizada.

O mês de dezembro nos mostra as grandes dificuldades para encontrarmos o comportamento correto econômico e necessário para retomarmos o crescimento da economia, no campo político percebemos grandes incertezas e instabilidades, fortalecimento de grupos de extrema direita com posições fortemente fascistas, crescimento de ideias e pensamentos que defendem retrocessos da democracia, estimulando intervenções militares e disseminando fake news como forma de gerar graves constrangimentos, cancelamentos e violências crescentes, gerando uma nação dividida e fortemente degradada.

Neste cenário, percebemos que depois de mais de 12 meses de um governo dito progressista ainda patinamos para reduzir as polarizações que alimentam a degradação e um ambiente de hostilidade e agressividade, sem reduzirmos essas polarizações dificilmente encontraremos o caminha para a reconstrução e o caminho correto para retomarmos o crescimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Mudanças climáticas e a economia, por Cecília Machado

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Eventos climáticos extremos impõem custos substanciais para o crescimento e desenvolvimento dos países

Cecília Machado, Economista-chefe do Banco BoCom BBM, é doutora em economia pela Universidade Columbia

Folha de São Paulo, 13/02/2024

O clima é uma variável fundamental para promover diversas atividades. Considerando sua relevância para o funcionamento das economias, espera-se que mudanças climáticas —como o aumento de temperatura, o aumento do nível do mar e a maior frequência na ocorrência de eventos climáticos extremos— possam impor custos substanciais para o crescimento e desenvolvimento dos países mais adversamente impactados por elas. O que se sabe até o momento sobre os impactos das mudanças climáticas sobre a economia?

São muitas as formas pelas quais as alterações climáticas operam na atividade econômica. De maneira direta, elas podem afetar componentes básicos de produção, como danos à infraestrutura construída ou prejuízos à produção física de bens, com efeitos que também se estendem a recursos humanos, já que as mudanças climáticas também trazem deterioração da saúde —física e mental— das pessoas.

Os efeitos indiretos, por sua vez, são decorrentes das ações de mercados, governos e outras instituições, que se ajustam para absorver os impactos do clima na economia e para direcionar mudanças. Por exemplo, variações nos padrões de precipitação e a subida do nível do mar colocam as edificações existentes em risco de inundações, provocando queda de preço ou mesmo aumento no custo de seguros contra inundação.

Pensando nisto, o Congresso americano promulgou, em 1990, uma lei que institui um programa para coordenar pesquisa e investimento relacionados a mudanças no ambiente global, que tem, entre seus objetivos, a produção de uma avaliação sobre os efeitos das mudanças climáticas em diversos assuntos, incluindo a economia. Elaborado em um intervalo máximo de quatro anos por uma comissão de especialistas, ele é o alicerce científico para que decisões políticas sejam tomadas de maneira informada.

O último relatório, de 2023, traz vários números alarmantes. No caso do aumento da temperatura, alguns estudos já são capazes de mostrar que ele reduz o aprendizado dos alunos, amplia a chance de acidentes no trabalho, reduz salários e aumenta a mortalidade.

Em termos de impactos para o futuro, há estimativas que apontam para prejuízos na produção agrícola, para a queda do crescimento e para a redução da renda per capita.

Ainda que as estimativas dos impactos econômicos futuros estejam sujeitas a algum grau de incerteza —já que o resultado depende de uma complexa interação entre forças naturais e humanas—, as projeções têm alto grau de confiança.

O relatório também estabelece que seus impactos serão distribuídos de forma desigual, afetando justamente regiões e grupos socioeconomicamente mais vulneráveis. Por exemplo, pessoas mais velhas ou com problemas de saúde são mais sensíveis a mudanças de temperatura e de qualidade do ar.

No Brasil, a sensibilidade à temperatura, à disponibilidade de água e aos eventos climáticos extremos coloca em risco os rendimentos e os ganhos históricos de produtividade do setor agropecuário. Já seria muito se fosse apenas isso. Mas nosso ponto de partida traz preocupações adicionais: ainda temos 12,7 milhões de pessoas em extrema pobreza, 4 milhões vivendo em áreas de risco, e um contingente de trabalhadores pouco capacitados para se adaptar a mudanças que também acontecem no mercado de trabalho, na direção de setores da economia verde.

São justamente estas pessoas que mais sofrem com perdas materiais decorrentes das mudanças climáticas, que têm menos recursos para se adaptar ou de se recuperar das perdas causadas por elas, e menor capacidade para se realocar em setores que passarão ser mais demandados pela sociedade na transição para uma economia de baixo carbono.

Os efeitos das mudanças climáticas sobre a economia não se restringem apenas ao crescimento.

Eles também são amplificadores de desigualdades, constituindo um motivo adicional —se não o mais importante— para que também no Brasil se pratique uma avaliação criteriosa de políticas que fortaleçam a preparação do país para as alterações climáticas.

Priorizar a educação exige mais investimentos, por Alves e Cardoso do Amaral

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País possui riqueza para aplicar 10% do PIB em ensino público de qualidade

Miriam Fábia Alves, Presidenta da ANPEd (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação)

Nelson Cardoso do Amaral, Presidente da Fineduca (Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação)

Folha de São Paulo, 13/02/2024

No editorial “Educação a sério” (1º/2), esta Folha avaliou que a Conferência Nacional de Educação (Conae) “desperdiça tempo” e é pautada por “bandeiras demagógicas”.

O texto aponta o pedido de revogação do ensino médio como “revanchismo”. Em 2023, a ANPEd (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação) demonstrou em cinco seminários regionais e documento para o MEC resultados de pesquisas que indicam que o novo ensino médio amplia desigualdades, prejudica a formação humana pela redução de carga horária e retirada de disciplinas e se ampara em itinerários pouco claros e inexequíveis. Portanto, uma política frágil, com graves prejuízos aos estudantes, que não dá para ser remendada.

O editorial também cita o aumento doinvestimento em educação para 10% do PIB (Produto Interno Bruto) como “meta farsesca” e afirma que o dispêndio atual é compatível com o padrão global.

Vejamos: o Education at a Glance de 2023, da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), mostra que o Brasil investe bem menos que a média dos países-membros, segundo o Dólar por Poder de Paridade de Compra (US$-PPC), que permite a comparação. Em 2020, a média da OCDE foi de US$-PPC 11 mil contra US$-PPC 3.300 no Brasil —ou seja, 30% do montante aplicado nos “países desenvolvidos”.

A leitura atenta do documento-base da Conae 2024 evidencia de onde “sairiam tais recursos”. Além de novos impostos, o Brasil possui riqueza para aplicar 10% do PIB em educação pública, como já expôs a Fineduca (Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação) em nota técnica.

Além disso, medidas adotadas em “países desenvolvidos” mostram, por exemplo, que a Noruega mantém um fundo soberano com sua riqueza natural. E a Coreia do Sul saltou o investimento por aluno de US$ 151 para US$ 8.230 (1970 a 2018).

Já o argumento falacioso de que “a educação brasileira precisa antes de gestão do que de mais verbas” ignora a falta de recursos estruturais em milhares de escolas e condições mínimas de carreira a docentes e profissionais.

O editorial também cita metas não alcançadas do atual Plano Nacional de Educação (PNE), como matrículas em creches e oferta de escola em tempo integral, para justificar que o novo plano necessita de “metas mais palpáveis”.Com isso, ignora que o último decênio foi marcado pela lei do teto de gastos (que ceifou a viabilização de metas), pela pandemia e por um governo que de 2019 a 2022 trabalhou pelo desmonte da educação.

O que está em jogo na Conae é a construção de um projeto de país com propostas robustas e ambiciosas que coloquem a educação como protagonista no desenvolvimento social e político brasileiro, com justiça social, ambiental e equidade. Assim, o texto-base ao PNE 2024-2034 avança em aspectos como a transição ecológica e o desenvolvimento sustentável.

Contando que este texto subsidiará o projeto de lei do governo a ser apreciado por um Congresso Nacional conservador, é essencial que expresse tudo o que a sociedade brasileira de fato almeja e precisa para o desenvolvimento educacional e democrático do país.

A complexa luta dos agricultores europeus, por Sergio Ferrari

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Protestos espalham-se pelo continente e ultradireita tenta capturá-los. Mas eles rejeitam a concentração de riquezas, financeirização do campo e o endividamento – e querem mercados regulados e transição energética com apoio dos Estados

Sergio Ferrari – OUTRAS PALAVRAS – 05/02/2024

O protesto foi, particularmente, pronunciado na Alemanha e na França, embora também tenha havido grandes manifestações na Bélgica, na Romênia e na Polônia, bem como na Itália, começando pela Sicília, e se espalharam para o norte. Na terça-feira (30), manifestações ocorreram nos arredores de Milão. Quarta e quinta-feira em outras cidades. Para a segunda semana do mês, eles antecipam o “cerco de Roma”, ou seja, uma mobilização maciça de agricultores em direção à capital italiana. O conflito também pode se alastrar, no curtíssimo prazo, para a Espanha e para outros países do continente, nesta primeira quinzena do mês em que o campo volta a estar em pé de guerra em boa parte do continente.

Na segunda-feira (29), organizações do setor rural francês pediram o “cerco de Paris” e bloquearam oito pontos estratégicos de algumas das rodovias que dão acesso à capital. Segundo o jornal Le Monde, a rodovia A4 foi interditada ao início da tarde e em ambos os sentidos a cerca de 30 quilômetros a leste da capital. Os agricultores anunciaram que vão manter a greve até que o governo responda às suas reivindicações. O diário francês citou um dos promotores do protesto: “O cerco a Paris, uma ação simbólica… Tudo está organizado milimetricamente e não aceitaremos nenhum transbordamento. Sabemos quando começa, mas não sabemos quando vai acabar”. Com o passar da semana, a medida continuou e, inclusive, se ampliou.

Ao mesmo tempo em que várias das principais estradas da França estavam paralisadas, os protestos agrícolas voltavam com força para várias regiões da Alemanha, onde agricultores bloquearam estradas que levam a vários portos. Entre eles, o de Hamburgo, o mais importante do país, e o da Baixa Saxônia, o acesso a Jade-Weser-Port, perto da cidade de Wilhelmshaven.

Na quinta-feira, 1º de fevereiro, centenas de agricultores de diferentes países com seus tratores e meios de transporte se reuniram em frente à sede das instituições europeias em Bruxelas, em um dia de grande tensão, violência e total descontrole do trânsito da capital. Os manifestantes conseguiram ser atendidos pelas mais altas autoridades do continente preocupadas com a mobilização continental do campo, particularmente em ano eleitoral, já que, em junho próximo, haverá eleições para o Parlamento Europeu.

Guerra na Europa: os agricultores são os que perdem

Embora as causas da agitação camponesa europeia sejam múltiplas – algumas delas resultado de políticas especificamente nacionais –, um denominador comum que impacta a produção, a distribuição e a venda de produtos agrícolas é uma consequência direta da guerra na Ucrânia.

Como acaba de assinalar a BBC britânica: “O efeito dominó da guerra na Ucrânia provocou protestos em quase todos os cantos da Europa”.

Em resposta ao bloqueio das rotas comerciais através da região do Mar Negro, um resultado inevitável dessa guerra, a União Europeia (UE) levantou temporariamente as restrições às importações da Ucrânia. Mas, a medida significou que certos produtos agrícolas ucranianos inundaram os mercados da UE a preços muito mais baixos, principalmente para os vizinhos Hungria, Polônia e Romênia.

As regras do jogo dificilmente podem ser iguais: uma fazenda orgânica ucraniana média tem cerca de 1.000 hectares. Seus equivalentes europeus, apenas 41. Uma diferença significativa, que praticamente impede os agricultores da UE de poderem competir com a produção em grande escala e com os preços mais baixos dos produtos da Ucrânia. Após a abertura inicial ao mercado ucraniano, a UE não podia ignorar o descontentamento dos seus próprios Estados-membros nem evitar uma política inconsistente. Assim, e de forma mutável, houve aberturas comunitárias, fechamentos temporários e até, em alguns casos, decisões protecionistas nacionais por parte dos países mais afetados.

Por sua vez, os países do Leste Europeu exigem que a UE reveja definitivamente suas medidas de liberalização comercial com a Ucrânia. Na Romênia, por exemplo, agricultores e transportadores têm protestado contra o elevado preço do diesel, o aumento das taxas de seguro e as medidas de “mente aberta” da UE, bem como contra a concorrência desleal da Ucrânia. Em 24 de janeiro, seus colegas poloneses lançaram um protesto nacional contra as importações agrícolas do país devastado pela guerra. Um líder polonês do setor denunciou em poucas palavras o que constitui o principal problema: “O grão ucraniano deve ir para onde corresponde: para os mercados asiáticos ou africanos; não para a Europa”. Como resume a BBC, sentimentos semelhantes também existem na Eslováquia e na Hungria.

Em outros países da UE, como a Alemanha, a guerra russo-ucraniana teve impacto direto no aumento dos preços dos combustíveis. No caso específico do setor agropecuário, a crise foi agravada pela proposta do governo federal de suspender os subsídios ao diesel para o campo.

Os governos devem dar respostas

Para a Coordenação Europeia Via Campesina (CEVC), principal rede de pequenos e médios produtores agropecuários a nível internacional, a rejeição de acordos de livre comércio, bem como a exigência de rendimentos dignos, são as principais causas das recentes mobilizações dos agricultores na Europa.

Na Alemanha, na França, na Polônia, na Romênia e na Bélgica, entre outros países, “estamos vendo um número crescente de agricultores indo às ruas”, disse o CEVC, em um comunicado, em 25 de janeiro. E defendeu que “os baixos rendimentos e a falta de perspectivas de futuro para a grande maioria dos agricultores estão na origem deste descontentamento, que, em grande parte, está ligado às políticas neoliberais que a União Europeia tem seguido há décadas”. O CEVC também exige aos governos do continente que levem a sério os protestos atuais e mudem o rumo das políticas agrícolas e alimentares europeias: “É hora de pôr fim aos acordos de livre comércio e embarcar resolutamente no caminho para a soberania alimentar”.

A Comissão Europeia respondeu que, entre 2014 e 2023, face à crise no setor agropecuário, tomou 63 medidas excecionais a favor dos agricultores e dos criadores de gado, mas as organizações de pequenos e médios produtores consideram-nas insuficientes.

Os manifestantes exigem preços justos. O endividamento e o excesso de trabalho estão disparando, enquanto os rendimentos agrícolas só despencam. “Os nossos rendimentos dependem dos preços agrícolas e é inaceitável que estes estejam sujeitos à especulação financeira”, diz a Via Campesina Europa, que reclama políticas agrícolas “baseadas na regulação do mercado, com preços que cubram os custos de produção”.

E exige que seja definido um orçamento justo “que permita a redistribuição dos subsídios da Política Agrícola Comum (PAC) para apoiar a transição para um modelo agrícola capaz de enfrentar os desafios da crise climática e da biodiversidade”. Segundo a Via Campesina, é inaceitável que, na atual PAC, uma minoria de grandes empresas agrícolas receba centenas de milhares de euros em ajuda pública, enquanto a maioria dos agricultores europeus recebe pouco ou nenhuma ajuda.

A tendência dos últimos 15 anos é particularmente preocupante: entre 2005 e 2020, registou-se uma redução maciça de 37% do número de explorações agrícolas na União Europeia, especialmente entre as fazendas menores.

Já em 2022, o estudo O Futuro do Modelo Econômico Europeu, elaborado por iniciativa do Parlamento Europeu, antecipava que em 2040 haveria quase três vezes menos fazendas agrícolas na União Europeia. Ou seja, um prejuízo de US$ 6,4 milhões – de US$ 10,3 milhões em 2016 para US$ 3,9 milhões. As principais vítimas dessa extinção em massa são e serão as pequenas unidades de produção com menos de 4 hectares, especialmente nos novos Estados-Membros da Europa Oriental e Meridional. A produção está cada vez mais concentrada em grandes estruturas de produção intensiva.

Contra o Tratado Europa-Mercosul

Em sua reflexão no final de janeiro, a Via Campesina Europa incorpora dois elementos analíticos para compreender, a partir de sua perspectiva, a tensão particular vivida pelos pequenos e médios produtores rurais do continente, bem como suas demandas atuais.

Por um lado, a VCE exige o cancelamento imediato das negociações do Acordo de Livre Comércio (TLC) com os países do Mercosul, bem como uma moratória sobre todos os outros TLCs em andamento por considerar que eles ameaçam pequenos e médios produtores, tanto europeus quanto dos países do Sul. “Os agricultores europeus precisam de respostas reais para os seus problemas, não de fumaça e de espelhos”, enfatiza a Via Campesina.

Por outro lado, pede a desarticulação das tentativas da “extrema direita de explorar e usar essa raiva [dos movimentos rurais] e as mobilizações atuais para impulsionar sua própria agenda, que inclui a negação das mudanças climáticas, propondo padrões ambientais mais baixos e a culpabilização dos trabalhadores imigrantes nas zonas rurais”. Nenhuma dessas posições coincide com os interesses dos agricultores ou contribui para melhorar suas perspectivas futuras, acrescenta a Via Campesina.

A Coordenação dessa organização aprofunda a sua leitura da realidade agrária continental: “Negar a realidade da crise climática poderia aprisionar os agricultores numa sucessão de desastres cada vez mais intensos, desde ondas de calor e secas até inundações e tempestades”. A CVCE defende que é preciso tomar medidas – e os agricultores estão dispostos a fazer as mudanças necessárias – para abordar as questões ambientais, climáticas e alimentares. No entanto, essa mudança de direção “não será possível enquanto formos forçados a produzir a preços baixos em um mercado globalizado e desregulado”.

Ao mesmo tempo, defende que, hoje, os trabalhadores migrantes desempenham um papel fundamental tanto na produção agrícola como na indústria agroalimentar: “Sem estes trabalhadores, nós, na Europa, teríamos falta de mão de obra para produzir e processar alimentos. Seus direitos devem ser plenamente respeitados”.

E conclui exigindo “aos responsáveis políticos do continente que ajam rapidamente para responder à raiva e às preocupações dos agricultores. Precisamos de uma mudança real na política agrícola que coloque os agricultores no centro da formulação de políticas e nos dê perspectivas para o futuro”.

O sector agrícola está ameaçado pela dinâmica estrutural vigente, como demonstrou o estudo encomendado pelo Parlamento Europeu; daí a urgência de que as reformulações a ser feitas sejam de fundo e decisivas; essencialmente, para evitar a todo o custo que a hemorragia agrícola se torne um bumerangue contra o esforço a favor da autossuficiência e da soberania alimentar europeia.

Política industrial de volta à cena, por Ana Paula Avellar

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Plena execução exigirá amadurecimento institucional, diálogo e liderança

Ana Paula Avellar, Professora titular do Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

Folha de São Paulo, 12/12/2024

Em 22 de janeiro último, o governo federal anunciou a política industrial “Nova Indústria Brasil “ (NIB), constituída por seis missões, que englobam os seguintes temas: cadeias agroindustriais, saúde, bem-estar nas cidades, transformação digital, bioeconomia, descarbonização, transição e segurança energéticas e defesa. A iniciativa prevê R$ 300 bilhões para a custear até 2026, entre financiamento com recursos orçamentários do BNDES e desembolsos do FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da Finep (Financiadora de Estudos e projetos).

Ao relembrar as últimas políticas industriais do Brasil – a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (2003-2007), a Política de Desenvolvimento Produtivo (2008-2010), o Plano Brasil Maior (2011-2014) e o Programa Inova Empresa (2011)—, observa-se que há praticamente dez anos não se executa política industrial. Essa opção pela “não política industrial” aprofundou o processo de desindustrialização, de queda da produtividade e da inovação industrial.

Ponto positivo para o governo, que colocou a política industrial de volta ao debate e em sintonia com a prática de países como EUA, membros da União Europeia e China.

Ainda que algumas críticas considerem que a proposta seja um conjunto “requentado” de experiências passadas, é possível observar pontos de pioneirismo.

O conjunto de princípios da NIB é inédito e ultrapassa os aspectos relacionados ao desenvolvimento produtivo e tecnológico ao preocupar-se com o aumento da produtividade e competividade e ter orientação voltada à melhor inserção internacional da indústria —distante, portanto, da velha lógica de substituição de importações.

O conjunto de princípios ainda se orienta por elementos relacionados ao desenvolvimento econômico, como a busca pela equidade de gênero, cor e etnia, a redução das desigualdades e a inclusão socioeconômica, a distribuição regional, a promoção do trabalho com qualidade e a sustentabilidade.

O recorte por missões é inovador e se apresenta com uma concepção moderna ao dialogar com experiências internacionais. O formato orientado por missões, proposto por Mariana Mazzucato, da University College London, estrutura-se por objetivos a serem alcançados, que definem a forma como as ações da política se efetivarão. Muda-se, assim, o eixo lógico do plano dos antigos recortes por setores industriais ou mesmo de empresas “campeãs nacionais”.

Ademais, alguns temas que compõem as missões merecem destaque pela atualidade e pela relevância no debate mundial, como os relacionados às cadeias agroindustriais sustentáveis, ao bem-estar nas cidades inteligentes, à transformação digital e à transição energética.

Ainda que críticos afirmem que os instrumentos são os mesmos “de sempre”, como incentivos fiscais e créditos subsidiados, o menu disponível é mais abrangente e conta com instrumentos que são comumente (e historicamente) utilizados no mundo, como empréstimos, créditos tributários, compras públicas, conteúdo local, margem de preferência, infraestrutura de qualidade e regulação.

Dado seu complexo desenho institucional, será essencial que haja uma boa coordenação das ações com escolha das prioridades e sua distribuição ao longo do tempo. Dada a forma democrática como foi construída e institucionalizada pelo CNDI (Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial), a plena execução da NIB exigirá amadurecimento institucional, manutenção do diálogo entre as esferas envolvidas e liderança para o enfrentamento das adversidades. Conforme afirma Dani Rodrik, da Universidade Harvard (EUA), o sucesso da política industrial depende de um ambiente institucional forte e de decisões tomadas com transparência.

É eminente a necessidade de um constante monitoramento dessa nova experiência para que sejam possíveis correções em curso. Desse modo, será fortalecida a capacidade de execução bem como de atuação das instituições participantes.

Com novos desafios e pioneirismo, a NIB traz novamente luz ao debate sobre o papel da indústria e a construção de uma estratégia de desenvolvimento econômico sustentável para o país.

Ensino sem celular, por Editorial FSP.

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Aumenta a restrição aos aparelhos em escolas, mas deve-se evitar radicalismo

Editorial Folha de São Paulo – 11/02/2024

Cresce o número de países, cidades e escolas que estão restringindo, ou até proibindo, a utilização de telefones celulares por alunos.

Relatório da Unesco, publicado em julho do ano passado, mostra que esses aparelhos podem prejudicar o aprendizado. O impacto negativo mais óbvio é a distração —jogos e redes sociais são mais atraentes do que aulas expositivas.

Segundo o Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes (Pisa), 65% dos alunos de 15 anos nos países pesquisados em 2023 disseram que se distraem nas aulas de matemática com o celular; no Brasil, a média atinge 80%.

Mas não só. Mesmo quando o apetrecho fica na mochila, o toque da mensagem que o aluno não poderá conferir tende a deixá-lo ansioso, numa reação similar à síndrome de abstinência de drogas.

Até tecnologias supostamente mais benignas, como e-readers, que servem quase exclusivamente para ler livros e textos, apresentam problemas. Estudos mostram que a leitura em tela gera menos retenção do que em papel.

Com base nessas evidências, um em cada quatro países monitorados pela Unesco —como Espanha, Portugal, Finlândia, Holanda, Suíça e México— já baniu ou restringiu o uso de celulares e tablets.

No Brasil não há norma federal sobre o tema, mas, no Rio de Janeiro, a prefeitura proibiu celulares nas escolas da rede até durante o recreio. E não são poucos os colégios particulares em todo o país que caminham na mesma direção.

Contudo, se há razoável consenso de que a utilização de celulares e tablets em instituições de ensino deve ser restringida, a forma de fazê-lo permanece em aberto.

É apenas por tentativa e erro que se chegará a protocolos adequados, que não serão os mesmos em contextos diversos. O nível de restrição depende muito da faixa etária, por exemplo, e é preciso cuidado para não pecar por radicalismo.

A chamada educação midiática é fundamental, principalmente em tempos de desinformação e bullying virtual. O celular pode ser usado de forma guiada para que os alunos aprendam como obter aquilo que a internet tem de melhor e se protejam daquilo que nela há de pior.

Anatomia golpista remete à Comissão da Verdade, por Marcos Augusto Gonçalves

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Insatisfação militar com apurações e voto de Bolsonaro no impeachment prenunciavam golpismo

Marcos Augusto Gonçalves, Editor da Ilustríssima, formado em administração de empresas com mestrado em comunicação pela UFRJ. Foi editor de Opinião da Folha.

Folha de São Paulo, 09/02/2024

Os primeiros sinais mais enfáticos de politização e insatisfação de setores das Forças Armadas, em especial do Exército, começaram a ser notados após a instalarão da Comissão da Verdade durante o governo de Dilma Rousseff.

No dia 16 de maio de 2012, com a presença dos ex-presidentes José Sarney, Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, uma cerimônia no Palácio do Planalto, presidida pela então presidente, que tinha um passado de militância em organização de esquerda da luta armada, deu início aos trabalhos, embasados em lei aprovada no ano anterior.

Tratava-se, nas palavras de Dilma, de reconhecer que “o Brasil merece a verdade, as novas gerações merecem a verdade e, sobretudo, merecem a verdade factual aqueles que perderam amigos e parentes e que continuam sofrendo”. O principal objetivo seria apurar episódios de desaparecimento de mais de uma centena de opositores da ditadura, sem registro de prisão, que teriam sido sequestrados por agentes da repressão.

Em que pesem as ressalvas de que não haveria ódio ou revanchismo, a comissão, que apresentou relatório em 2014, foi muito mal recebida por militares, que viam na iniciativa a quebra de um pacto estabelecido em torno da anistia.

A contrariedade com as apurações e com as pressões que se avolumavam para levar militares a julgamento espalhou-se e chegou à cólera, notadamente entre os mais radicais, ligados aos chamados porões da ditadura, os subterrâneos da tortura e da eliminação de oponentes.
Na votação do impeachment, ao se formalizar a conspiração que derrotou e depôs a petista, as manifestações de exasperação eram gritantes.

A mais escabrosa veio no voto contra Dilma proferido pelo então deputado Jair Bolsonaro, ex-militar afastado da caserna: “Perderam em 64, perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve. Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff. Pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, por um Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim”.

A saudação ao notório torturador e demais considerações eram uma síntese do projeto de governo do futuro presidente. Antes de chegar ao poder, porém, o maior beneficiário da deposição da mandatária, Michel Temer, deu vazão à movimentação militar ao nomear um general para o Ministério da Defesa pela primeira vez desde que a pasta fora criada por Fernando Henrique Cardoso, em 1999 –além de banalizar as requisições das Forças Armadas para operações de segurança.

Na esteira dos abusos cometidos pela Lava Jato, que culminaram na prisão sem solidez jurídica de Lula, veio um novo anúncio do ânimo intervencionista. Por ocasião do julgamento de um pedido de habeas corpus da defesa do ex-presidente ao STF, no início de abril de 2018, o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, foi ao Twitter proferir uma ameaça – que de velada de fato nada tinha – às instituições, caso os ministros do tribunal concedessem o pedido.

Ao vencer o pleito, Bolsonaro, como se sabe, entulhou o governo de militares, com direito a general da ativa até na Saúde, cooptou instituições policiais, manipulou a Abin, confrontou o sistema eleitoral, ameaçou o Supremo e tentou articular um golpe de Estado, como agora novas evidências vão reiterando.

Muitos anos (quase oito completos) e muitos panos se passaram desde que o populista celerado da ultradireita anunciou suas intenções na votação do impeachment. Só não viu quem não quis. Felizmente, a democracia venceu.

As Forças Armadas e a preservação das corporações, por Manuel Domingos

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Elas podem aceitar a queda de alguns generais, para conservar a capacidade de interferir na vida política do país, e uma concepção de Defesa voltada contra o “inimigo interno”. Mas Augusto Heleno, Braga Netto e Bolsonaro aceitarão o sacrifício?

Manuel Domingos – OUTRAS PALAVRAS – 09/02/2024

As operações de busca e apreensão na residência de generais próximos de Bolsonaro e a prisão de dois oficiais superiores deixou confiantes os que prezam a democracia. Quem grita, “sem anistia”, sentiu-se contemplado. Muitos salientaram tratar-se de momento histórico sem precedentes e aplaudem a coragem do ministro Alexandre de Moraes. A maioria aceita a ideia de que a democracia venceu. Nestes tempos obscuros, é bom demais ter algo de relevante a comemorar.

Mas, caberia pensar… ao acatar decisões judiciais desta monta, as corporações, profundamente envolvidas em manobras antidemocráticas nos últimos anos, não passam a falsa noção de que, repentinamente, em lance histórico inédito, assumem seriamente a institucionalidade do jogo democrático?

Uma ação da Justiça, por contundente que seja, teria o condão de alterar a velha tendência castrense de interferir no jogo político?

Mais sensato seria imaginar que a postura dos comandantes revela a satisfação diante da prevalência dos desígnios das fileiras.

O atual governo não mostrou disposição para alterar as orientações da Defesa Nacional e, consequentemente, reformar instituições militares ineptas para dizer não ao estrangeiro hostil e aptas ao controle da sociedade.

O militar continua pautando o governo em matéria de Defesa. O ministro José Múcio assume com todas as letras sua condição de “representante” das Forças, abdicando da condição de integrante da corrente política sufragada nas urnas.

Como se sabe, a condução da política de Defesa guarda implicações diretas com os mais variados domínios da atuação do Estado, em particular com as relações externas, a Segurança Pública, o desenvolvimento técnico- científico e industrial. A política de Defesa é uma peça-chave da
integração sul-americana. Ao ditar a política de Defesa o militar se imiscui como quer nas entranhas do Estado e da sociedade. Em outras palavras, persiste exercendo a tutela configurada ao longo do regime republicano.

O atual governo assegura a continuidade de práticas corporativas ancestrais que garantem a priorização do combate ao “inimigo interno” em detrimento da capacidade de dizer não ao potencial agressor estrangeiro. O Brasil continua sustentando extensas fileiras terrestres e evitando priorizar sua capacidade aeronaval; persiste sem instrumentos de força para respaldar decisões soberanas em política externa. As Forças Armadas brasileiras continuam integrando oficiosamente o vasto esquema militar comandado pelo Pentágono.

Vitoriosos no embate político principal, os comandos militares acatam o sacrifício de alguns dos seus em troca da preservação da capacidade de ingerir nos negócios públicos e na vida social.

Hoje, em essência, ao tempo em que a institucionalidade democrática mostra vigor, foi dado um passo importante para conter a corrosão da imagem das Forças Armadas. Talvez seja esse o significado mais relevante da operação comandada pelo Polícia Federal: o acatamento da decisão judicial ocorre como ato de proteção corporativa.

Os comandantes sabiam da impossibilidade de sair incólumes depois da aventura em que se meteram ao apadrinhar Bolsonaro e respaldar seus desmandos. Afinal, atuaram em favor da prisão de Lula e confraternizaram com baderneiros reunidos diante dos quartéis. Em sua trágica aventura, envolveram o conjunto das corporações.

O preço a pagar pela preservação das instituições militares seria o sacrifício de alguns camaradas, os mais notoriamente associados ao ex-presidente.

Mas nada garante que o jogo de cena em curso se desenvolva de forma exitosa. Os oficiais hoje investigados se comportarão altivamente na defesa de suas corporações? Aceitarão ser punidos solitariamente preservando a imagem das fileiras?

Eis uma hipótese remota, se considerarmos a conduta do coronel Mauro Cid, que forneceu elementos preciosos aos investigadores. Difícil imaginar homens arrogantes e truculentos, como os generais Augusto Heleno e Braga Netto resignando-se ao cárcere. Mais fácil é imaginá-los atirando, inclusive em seus desafetos fardados. A caserna cultiva camaradagem e desafeições.

Quanto ao ex-presidente, pior ainda. Quem aposta no padrão moral de Bolsonaro? Na cadeia, esse homem, com arrobas de crimes nas costas, poderá bater com a língua nos dentes e desmontar o imaginário coletivo tão cultivado pelas fileiras. Não seria surpresa caso seja silenciado.

Qualquer que seja o rumo dos acontecimentos, o fato é que estamos longe do final de um triste e trágico capítulo da história brasileira.