Que mundo estamos criando? por José Domingos Godoi Filho

0

José Domingos de Godói Filho – A Terra é Redonda, 08/02/2024

O mundo chegou a uma situação sem volta, com a sociedade humana contaminada pelo apartheid, a guetificação e o extermínio

“Em minha parede há uma escultura de madeira japonesa \ Máscara de um demônio mau, coberta de esmalte dourado. \ Compreensivo observo \ As veias dilatadas da fronte, indicando \ Como é cansativo ser mau”

(Bertolt Brecht, A máscara do mal).

Guerra contra a vida é a herança que 2023 deixou para 2024. Pode-se avaliar que o mundo chegou a uma situação sem volta, com a sociedade humana contaminada pelo apartheid, a guetificação e o extermínio. Guerra contra a natureza, apesar das alterações climáticas, das COP, da transição energética global, das dimensões da exploração dos recursos naturais e da mercantilização da natureza em nome da “economia verde” e demais propostas de “greenwashing”.

A herança mais aterrorizadora é o genocídio, mostrado em tempo real, em Gaza, repetindo o que foi denunciado por Edgar Morin,1 em 2002, como “Israél-Palestine: le Câncer”: “Os judeus de Israel, descendentes das vítimas de um apartheid denominado ghetto, guetificam os palestinos. Os judeus que foram humilhados, desprezados, perseguidos, humilham, desprezam e perseguem os palestinos. Os judeus, que foram vítimas de uma ordem impiedosa, impõem sua ordem impiedosa aos palestinos. Os judeus, vítimas da desumanidade, mostram uma terrível desumanidade.”

Na Faixa de Gaza está ocorrendo um dos piores crimes deste século, um genocídio generalizado (sem com isso isentar crimes cometidos pelo Hamas) que já atingiu, até o final de janeiro 2024, cerca de 25 mil mortes na Palestina, das quais mais de 8600 crianças,310 profissionais de saúde, 35 funcionários da defesa civil ,97 jornalistas e, aproximadamente 2 milhões de pessoas deslocadas, segundo dados levantados pela BBC Verify(2) e considerados confiáveis pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Somam-se, escondidos ou pouco informados pela “grande mídia”, dentre outros, os massacres que ocorrem na África (Sudão e Sudão do Sul, Nigéria, Ruanda, Mali, Burundi, República Democrática do Congo e Angola); o apoio dado pelos Estados Unidos e seus aliados ao genocídio em Gaza; o financiamento do governo neonazista da Ucrânia para provocar a Rússia; as escaramuças com o Hezbollah na fronteira com o Líbano; os ataques dos Houthis do Iêmen contra navios militares americanos no Mar Vermelho; os bombardeios no enclave separatista Nagorno-Karabakh , que significou o rompimento do cessar-fogo entre a Armênia e Azerbaijão complicando o complexo jogo de interesses geopolíticos no Cáucaso, além de colocar sob risco humanitário a população civil de Karabakh, controlada pelo Azerbaijão.

No final de 2023, ficou registrado o maior número de conflitos armados desde o final da Segunda Guerra Mundial. E, inquestionavelmente, como herança, também ficou evidenciada a farsa das potências ocidentais, especialmente dos Estados Unidos e seus aliados para atender os seus interesses e não o de construir a paz.

A hipocrisia e a fraudulência desses países, frente ao cenário de beligerância mundial, atingiram níveis sem precedentes de perda de credibilidade; comprometendo gravemente os princípios do direito internacional, o respeito aos direitos humanos e à ordem mundial.

No texto 1984, George Orwell, que merece ser reproduzido, retrata bem a conjuntura dos conflitos atuais e permite refletir sobre a necessidade de resistir e alterar a herança deixada pelo ano de 2023: “O poder reside em infligir dor e humilhação. O poder está em despedaçar os cérebros humanos e tornar a juntá-los da forma que se entender. Começas a distinguir que tipo de mundo estamos criando? É exatamente o contrário das utopias hedonísticas que os antigos reformadores imaginavam. Um mundo de medo, traição e tormento, um mundo que se tornará cada vez mais impiedoso, à medida que se refina. O progresso em nosso mundo será o progresso no sentido de maior dor. As velhas civilizações proclamavam-se fundadas no amor ou na justiça. A nossa funda-se no ódio. Em nosso mundo não haverá outras emoções além do medo, fúria, triunfo e auto degradação. Destruiremos tudo mais – tudo… Não haverá amor, exceto amor ao Grande Irmão. Não haverá riso, exceto riso de vitória sobre o inimigo derrotado. Não haverá nem arte, nem literatura, nem ciência. Quando formos onipotentes, não teremos mais necessidade de ciência. Não haverá mais distinção entre beleza e feiura. Não haverá curiosidade, nem fruição do processo de vida……Se queres uma imagem do futuro, pensa numa bota pisando um rosto humano – para sempre”.3

A parcialidade da “grande mídia”, inclusive no Brasil, extrapola a veiculação da notícia, se comportando de modo parcial e tendencioso aos interesses dos Estados Unidos e de seus aliados e asseclas. Assim, temos, entre nós, “um Grande Irmão que nos vigia, que vela por nós. Dia a dia, ao ligarmos a televisão (precursora das teletelas?), ao lermos os jornais, ao nos conectarmos com a internet, percebemos a ação de um invisível Ministério da Verdade que acaba por nos convencer de que guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força.4

Samuel Huntington5, no seu instigante Choque das civilizações, apresentou uma premonitória “interpretação da evolução da política mundial depois da Guerra fria” que auxilia na compreensão da política mundial no século atual. Questionou, “se as melhorias no nível material de civilização em todo mundo, foi acompanhada da melhora das dimensões moral e cultural de civilização?”

Analisando os anos 90, do século passado, indicou existirem muitos indícios “da relevância do paradigma do ‘puro caos’ dos assuntos mundiais: uma quebra no mundo inteiro da lei e da ordem, Estados fracassados e anarquia crescente em muitas partes do mundo, uma onda global de criminalidade, máfias transnacionais e cartéis de drogas, crescente número de viciados em drogas em muitas sociedades, um debilitamento generalizado da família, um declínio na confiança e na solidariedade social em muitos países, violência étnica, religiosa e civilizacional e a lei do revolver predominam em grande parte do mundo. Numa cidade atrás da outra – Moscou, Rio de Janeiro, Bangcoc, Xangai, Londres, Roma, Varsóvia, Tóquio, Johannesburgo, Délhi, Karachi, Cairo, Bogotá, Washington –, a criminalidade parece estar subindo vertiginosamente, e os elementos básicos da Civilização estão se esvanecendo”.

E concluiu: “A ascensão das corporações transnacionais que produzem bens econômicos está cada vez mais sendo igualada pela ascensão de máfias criminosas transnacionais, cartéis de drogas e gangues terroristas que estão atacando violentamente a Civilização. A lei e a ordem são o primeiro pré-requisito da Civilização e em grande parte do mundo – na África, na América Latina, na antiga União Soviética, na Ásia Meridional, no Oriente Médio – elas parecem estar evaporando, estando sob séria ameaça na China, no Japão e no Ocidente. Numa base mundial parece, em muitos aspectos, estar cedendo diante da barbárie, gerando a imagem de um fenômeno sem precedente, uma idade das trevas mundial, que se abate sobre a humanidade”.

Os organizadores do Fórum Econômico de Davos-2024, implicitamente se alinharam às análises de Huntington, ao avaliarem que a herança de 2023 mostra a “fragilidade do estado de paz, segurança e cooperação globais”. Apontaram que “o aumento da divisão, o aumento da hostilidade e o aumento dos conflitos estão criando um cenário global desafiador. Que a humanidade está lidando com várias questões simultaneamente, incluindo como revigorar as economias, responder à ameaça das mudanças climáticas e garantir que a Inteligência Artificial seja usada como uma força para o bem. Os conflitos e a sua superação estão esgotando a energia humana, que, de outra forma, poderia ser canalizada para moldar um futuro mais otimista”.

O Fórum Econômico concordou que “a atual onda de pessimismo é sem precedentes”. E faz um alerta para a mídia global: – “o poder e a presença da mídia global e da tecnologia de comunicação hoje significam que cada desafio e retrocesso é amplificado, ampliando ainda a sensação de desgraça e melancolia.”

E conclui os organizadores do Fórum Econômico: – “é primordial reconstruir a confiança no nosso futuro. A questão é por onde começar, dadas as circunstâncias complexas de hoje…. Devemos primeiro identificar e abordar as causas profundas do nosso mal-estar. Estamos em um momento crucial da história, mas ainda apegamos a soluções ultrapassadas. Para complicar, estamos lidando com muitas questões simultaneamente, todas profundamente interconectadas e que se reforçam mutuamente. Não há solução rápida ou solução única. Trata-se de abordar todos os sintomas de forma holística.”

Resistir é preciso, para vencer a herança pessimista deixada ao final de 2023. E, Ortega y Gasset6 pode auxiliar com suas reflexões: “É natural: a vida se fez ela mesma equívoca e são tempos de inautenticidade. Recorde-se que a origem da crise é precisamente haver-se o homem perdido porque perdeu contato consigo mesmo. Daí que pulule em tais épocas uma fauna humana sumamente equívoca e abundem os farsantes, os histriões; e, o que é mais doloroso, que não se possa estar certo de se um homem é ou não sincero. São tempos turvos”.

Ao mesmo tempo assinala que: “Todo o extremismo fracassa inevitavelmente, porque consiste em excluir, em negar – menos um ponto – todo o resto da realidade vital. Mas esse resto, volta, volta sempre e impõe-se nos, queiramos ou não. A história de todo o extremismo é de uma monotonia verdadeiramente triste: consiste em ter de ir pactuando com tudo o que havia pretendido eliminar… Qual é a perspectiva em que o homem sói viver? Faz um momento, como em todos os momentos de todos os dias, inexoravelmente, encontraram-se os senhores com que tinham de fazer algo de fazer algo, porque isso é viver. Ante os senhores se abriam diversas possibilidades de fazer, portanto, de ser no futuro”.

Retomando 1984, de George Orwell, “é impossível fundar uma civilização sobre medo, ódio e crueldade. Nunca poderia durar… Não teria vitalidade. Desintegrar-se-ia. Suicidar-se-ia”.

Para não deixar que o cenário pessimista saia vencedor, que a resistência sobreviva e fortaleça a generosidade humana, uma provocação, a partir de uma das mais belas fábulas de Giono,7 para queo difícil caminho de “por onde começar” seja encontrado o mais breve possível: “Quando considero que um único homem, reduzido a seus meros recursos físicos e morais, foi capaz de transformar um deserto em uma terra de Canaã, penso que, apesar de tudo, a condição humana é admirável. Mas quando faço a conta de quanta constância na grandeza de alma e de persistência na generosidade foram necessárias para obter esse resultado…”.

Resistir é imprescindível.

*José Domingues de Godoi Filho é professor da Faculdade de Geociências da UFMT.

(1) Morin, E. Israel-Palestina:câncer.

(2) Thomas, M. 20 mil mortos em Gaza: o que número de vítimas revela sobre o conflito.

(3) Orwel, G. 1984. São Paulo: Ed. Nacional, 1984.

(4) More, T. Utopia, Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

(5) Huntington, S. P. O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 1997.

(¨6) Ortega y Gasset, J. Em torno a Galileu. Petrópolis: Ed. Vozes,1989.

(7) Giono, J. O homem que plantava árvores. São Paulo: Ed. 34, 2018.

Milagre asiático

0

A economia internacional passou por grandes processos de integração, de interdependência e de uma forte competição entre os atores econômicos e produtivos, gerando oportunidades crescentes, novos mercados, novos hábitos, novas culturas e novos comportamentos, todos motivados pelo incremento da globalização da economia.

Neste período de fortes transformações econômicas e produtivas em curso na sociedade mundial, com países perdendo espaço na estrutura global, onde nações que dominavam o cenário internacional estão se fragilizando e o surgimento de novas potências hegemônicas, motivando novos modelos de negócios e novas estratégias de desenvolvimento. Neste cenário, faz-se necessário, destacar o milagre asiático, cujo modelo de crescimento econômico e desenvolvimento tirou mais de 1 bilhão de pessoas da miséria em 20 anos, um verdadeiro milagre.

A Revolução Industrial impulsionou a renda per capital global, aumentou a riqueza das nações e reduziu a pobreza e a miséria, mesmo assim, uma parcela significativa da população mundial continuava a viver na miséria e na indignidade. Nos últimos 30 anos, embora muitos não perceberam, a pobreza extrema passou por uma redução extraordinária no mundo, sendo que grande parte deste resultado positivo se deve ao desempenho asiático, região que concentra 60% dos habitantes e cerca de 40% do PIB global.

Ao destacarmos a experiência asiática na redução da pobreza, as pessoas pensam rapidamente na ascensão da China, do Japão e da Índia, essas nações apresentaram grandes avanços nos últimos 30 anos, mas devemos destacar ainda os exemplos de Bangladesh, a Indonésia e Vietnã, países que reduziram fortemente a pobreza e a indigência, criando novas formas de crescimento econômico, melhorando os ambientes de negócios, aumentando os investimentos em capital humano, despejando recursos em pesquisa, ciência e tecnologia e, com isso, reduzindo a miséria que assolava grande parte destas nações.

Dados de agências especializadas nos mostram indicadores excepcionais, no período entre 1982 e 2011, a Ásia Meridional teve um crescimento econômico médio de 5,6%, ultrapassando todas as regiões do mundo, desta forma, o crescimento impulsionou a geração de riquezas, aumentando investimentos produtivos e maiores oportunidades econômicas.

A ascensão asiática pode servir como exemplo para todas as regiões, a redução da pobreza está ligada aos novos contornos econômicos e produtivos da economia chinesa, cuja expansão impulsionou outras nações, com incremento do comércio, novos modelos de negócios e novos investimentos que contribuíram para a construção de uma classe média, dotada de recursos monetários para alavancar os setores econômicos internos, reduzindo a dependência externo e angariando novos espaços no comércio internacional.

O crescimento econômico contribuiu ativamente para a melhora das condições de vida da população asiática e contribuiu para a criação de uma economia pujante e diversificada, além de gerar emprego e crescimento da renda, alavancando o desenvolvimento humano, permitindo que as pessoas cuidem melhor de sua saúde, comam melhor e possam viver mais, melhorando o bem-estar de toda a comunidade. Passou da hora de buscarmos novos modelos, novos exemplos e novos significados para o desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário,

Clara Mattei: Brasil precisa de outro rumo

0

Economista que estudou a fundo a relação entre ajustes fiscais e fascismo adverte, na edição brasileira de seu livro: “arcabouço” de Haddad é “vergonhosamente austero” e compromete o futuro, ao fazer concessões tolas ao mercado

Clara Mattei e Mariella Pittari – Outras Palavras, 30/01/2024

É uma verdadeira conquista ver A ordem do capital publicado em português. Afinal, ainda que narre algo que teve lugar na Europa de um século atrás, seguindo uma linha que revisita e revê os fundamentos da economia a fim de relacionar os efeitos das políticas econômicas de austeridade do início do século XX à ascensão do fascismo, neste livro há elementos analíticos que podem contribuir para compreender a natureza e a lógica da austeridade no Brasil atual. Não obstante se concentre nas relações de classe em contextos europeus nos quais a austeridade foi usada como instrumento político para esmagar as reivindicações de democracia econômica, transporta essa dinâmica à compreensão de como as relações de classe foram forjadas em países cujo histórico é de escravidão e colonialismo. Entender as relações de classe da Europa do século XIX serve para calibrar como o discurso da austeridade vem acompanhado de uma pauta argumentativa que cancela o aspecto de classe das políticas adotadas, como se estas atingissem a todos de maneira equânime.

Os eventos ocorridos entre Europa ocidental e Norte global no início do século passado reverberaram no eixo centro-periferia e orientaram como os subalternos pautariam a própria política. Economistas do Sul global buscaram validação nas vertentes econômicas que disseminaram a austeridade e assumiriam os contornos neoliberais que testemunhamos hoje.

Outra chave que a história nos ensina consiste na inseparabilidade da austeridade fiscal e monetária, por meio do comprometimento orçamentário com o constante aumento das taxas de juros, afetando diretamente o mundo do trabalho. A escassez de crédito em razão da política rentista de juros altos faz que o trabalhador seja impactado em duas frentes: de um lado, pela redução do emprego e, por conseguinte, pela sujeição ao trabalho precarizado; de outro, por uma política salarial baixa que comprime o poder de compra entre as inúmeras necessidades a serem satisfeitas no vácuo deixado pela ausência do serviço público. Não por outra razão, uma das primeiras medidas recentes na implementação da austeridade no Brasil consistiu em eliminar leis trabalhistas.

Também as privatizações para atrair investidores nas famigeradas parcerias público-privadas, acompanhadas da desregulamentação do mercado, desempenham um papel fundamental na dinâmica da austeridade. Boa parte do discurso gira em torno de justificar a redução dos gastos públicos ao comprometer o orçamento com o pagamento dos juros e amortização da dívida. Tal ideia, ainda que equivocada, permitiu, como veremos, que a autoridade máxima no Banco Central se tornasse imune à política de juros sugerida pelo chefe do Executivo. Após a promulgação da Lei complementar n. 179, de 2019, as necessidades orçamentárias do presidente da República são completamente irrelevantes para o presidente do Banco Central, uma vez que seu mandato é dotado de garantias a exigir um dificultoso processo de exoneração, dependente da maioria absoluta do Senado. O aprofundamento da austeridade alcançada por diversos estratagemas durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro, sob o disfarce de conferir plena autonomia ao Banco Central, retirou do poder político as alianças, tão caras à construção de um programa orçamentário harmônico e consentâneo, com as indispensáveis políticas sociais de um país de modernidade tardia. Dado o presente cenário, vale ressaltar que o Brasil já conta com a maior taxa de juro real do mundo, superando países que agonizam com a inflação, como a Argentina. Ao mesmo tempo, o comprometimento do PIB brasileiro com a dívida pública é inferior ao de países desenvolvidos, de maneira a inviabilizar o argumento de que o país deve reduzir gastos, de que o país gasta descontroladamente.

Enquanto a Itália, objeto central de estudo desta obra, apresenta uma relação entre o PIB e a dívida pública que supera os 150%, a proporção do Brasil é inferior a 80%. Países como o Japão e a Grécia superam os 200%, e os Estados Unidos atingem 120%. Portanto, o argumento de que o Brasil não possui alternativa senão implementar políticas de austeridade não se sustenta. O ponto nodal do orçamento nacional reside no importe destinado ao pagamento dos juros da dívida pública, injustificável e propagador das mazelas sociais das quais o país padece.

O ano 2022 encerrou-se com a aprovação de uma emenda de transição do então futuro governo Lula, a Emenda constitucional n. 126, que ampliou o orçamento público para permitir que despesas correntes na ordem de R$ 145 bilhões não fossem limitadas ao teto de gastos. A emenda também balizou outro teto de gastos, que viria a se chamar “novo arcabouço fiscal”. As balizas estabelecidas pelas novas regras mostraram-se tímidas, senão covardes, sobretudo em abolir o nefasto teto de gastos estabelecido pela Emenda constitucional n. 95/2016, impedindo o país de austeridade que ignora a facção política que ocupa o poder. O regime de austeridade, apesar de não alcançar os resultados de estabilização econômica almejados, não falha em atingir seu verdadeiro intuito: assegurar que a tríade de políticas fiscais, políticas monetárias e erosão da capacidade da classe trabalhadora de reagir a elas silenciem a dissidência.

Ademais, por compor o Sul global, o Brasil é mais suscetível às pressões das elites internas e globais. Portanto, a imposição de medidas de austeridade pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) para a concessão de empréstimos internacionais não foi acaso. A ingerência do FMI a afetar diretamente assuntos ínsitos à soberania do país culminou na aprovação da lei de responsabilidade fiscal, em 2000, como parte de uma pauta de “recomendações” que asseguraria o pagamento da dívida. Contudo, para além de estabelecer garantias desse pagamento, o verdadeiro intuito era ditar como a política deveria orientar-se, a prescindir do governante no poder.

Antes de assumir seu primeiro mandato, em 2003, Lula entregou uma carta de compromissos para “tranquilizar o mercado”, prometendo manter a “estabilidade” de seu predecessor Fernando Henrique Cardoso. Em 2023, retornando à Presidência após o período de convulsão que o país atravessou, Lula comprometeu-se a “colocar o pobre no orçamento”; no entanto, até o momento, impera o continuísmo em relação a Temer e Bolsonaro. Uma maior incursão na história política do país revela que o período da ditadura militar e as mudanças de poder pouco alteraram a forma como o capital é extraído da classe trabalhadora. Em alusão ao ex-ministro da Fazenda do
“milagre econômico”, Delfim Netto, seria necessário “fazer o bolo crescer para depois dividi-lo” – só que o momento da divisão jamais alcança os desfavorecidos do sistema.

A austeridade não consiste em remédio amargo administrado para brecar a “gastança desenfreada” e “retomar o crescimento”, jargões já tão conhecidos quanto desgastados. A austeridade tampouco é um erro de percurso na política para desfazer o “agigantamento do Estado” e proporcionar “menos Estado, mais mercado”. A lente através da qual o economista enxerga as variáveis de mercado distorce o modo como a realidade opera, vislumbrando o agregado (a unidade nacional) a despeito do bem-estar social e apresentando uma acentuada miopia às distinções de classe.

Como bem evidenciado, a definição comum de austeridade enquanto corte nos gastos e aumento de impostos mascara a escolha da alocação de recursos, que são abundantes para financiar guerras, arcar com juros da dívida pública, mas ínfimos na expansão do gasto social. No Brasil, os cortes foram significativos em setores que não comportavam ulterior achatamento. O salário mínimo carece de aumento real comparado à inflação, as reformas da previdência passaram a estabelecer critérios mais rígidos para concessão de benefícios, e as privatizações encareceram o preço dos serviços públicos ao longo dos anos. A austeridade que se delineia nos países desenvolvidos continua admitindo um elevado comprometimento do PIB com a dívida pública, porém segue o preceito de eliminar prestações sociais, condicionando-as ao recrutamento de trabalho mal remunerado, ao corte de gastos em saúde, educação e moradia e à eliminação da tributação dos mais ricos, transferindo o ônus aos mais pobres por meio da taxação regressiva do consumo e dos serviços. O capital sai ainda mais privilegiado das equações de austeridade, mercantilizando as prestações sociais como barganha em detrimento da sociedade.

No caso brasileiro, os juros elevados agradam o especulador internacional, ávido por retornos substanciais em um país que não investe e, portanto, jamais se liberta da situação de dependência. Ao mesmo tempo, optando pela constituição em pessoa jurídica, o capital conta com a benesse sem precedentes – afora na Estônia e na Letônia – de não incidência de imposto de renda em lucros e dividendos.

A austeridade fiscal, inseparável da monetária, atua junto à imposição de um incremento artificial dos juros sob o argumento de conter a inflação, comprometendo, assim, o orçamento público com o pagamento de juros injustificáveis. O valor do salário – outro fator relevante –, a despeito do que se possa pensar, possui correlação direta com a política de austeridade.

Existe uma relação inversamente proporcional entre a privatização dos serviços públicos e a estabilidade da remuneração proveniente desse setor. Esse fenômeno ocorre em paralelo à revogação das proteções trabalhistas, previdenciárias e assistenciais e à supressão das prestações públicas, enfraquecendo o poder de negociação de sindicatos e trabalhadores. Quanto mais escassos são os recursos disponíveis para satisfazer as próprias necessidades de subsistência, mais suscetível estará o trabalhador a sujeitar-se a relações de trabalho opressivas. Não por coincidência, as políticas de austeridade no Brasil vêm acompanhadas de precarização das relações de trabalho e de uma disseminada incapacidade de mobilização sindical e reinvindicação política dos direitos trabalhistas e, mais amplamente, dos direitos sociais.

O presente contexto político é bastante desfavorável à realização de direitos sociais e econômicos dos contingentes mais vulneráveis da sociedade brasileira. Desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff – sob a falsa acusação de violação das leis orçamentárias, as chamadas “pedaladas fiscais”, indispensáveis para conciliar o gasto com o não atingimento das receitas diante da crise econômica que assolou o país, providências que nada mais eram que instrumentos para a execução de despesas públicas inadiáveis –, o cenário de desfazimento do Estado social ganhou fôlego com o rompimento do pacto social por meio da forjada Emenda constitucional n. 95/2016, resultado da aprovação da “PEC da morte”. Tal reforma elevou ao status constitucional um estado de coisas que subverte os primados estabelecidos na própria Constituição.

Não bastasse, a “austeridade expansionista” do então ministro Paulo Guedes aprofundou o processo de empobrecimento social, acompanhada das reformas trabalhistas previdenciárias e de uma desenfreada busca pela privatização de setores pertencentes ao poder público. Tal programa mostrou-se, desde o princípio, um fracasso, pois, assim que a pandemia de covid-19 interrompeu o funcionamento da economia, tornou-se impossível manter a força de trabalho, refém do ambiente doméstico, sem qualquer alternativa para mitigar a crise. A pandemia expôs a fragilidade do sistema em lidar com o excepcional, e algumas das medidas de contenção de gastos essenciais precisaram ser abrandadas para fazer frente à aprovação de auxílios emergenciais, que teria vigência provisória e, portanto, transformaram um então direito em faculdade do exercente de poder. Nos capítulos a seguir, Clara Mattei nos atenta a outro pilar da austeridade: a importância dos bancos centrais como meio de usurpar a democracia da esfera econômica. Tal qual em outros países, no Brasil a deflação monetária possui efeitos devassantes nas taxas de ocupação, eliminando empregos ao oferecer qualquer contrapartida afora o discurso apolítico que tais medidas draconianas impõem.

A autonomia sem análogos, conferindo um mandato de quatro anos ao presidente do Banco Central por meio da Lei complementar n. 179/2019, mostrou-se das mais nocivas à discussão política sobre os rumos do país. Sempre sob a tônica da neutralidade econômica, vincularam-se os governos vindouros a uma política monetária-fiscal não conforme com o programa eleito para a Presidência da República. O debate político, agora permeado por um confronto nítido entre o presidente do Banco Central indicado por Bolsonaro e o presidente Lula, faz emergir a insustentável coexistência de uma elevadíssima política de juros comprometedora do crescimento do país e um orçamento carente de consecução de prestações sociais, criando um diálogo áspero.

Tal cenário desencadeou a aprovação do “novo arcabouço fiscal”, insuficiente e vergonhosamente austero, sobretudo se consideramos os mandatos anteriores do presidente Lula. O desacordo, por fim, resvala na inevitável erosão do consenso econômico e na retumbante vitória de os “politicamente” mortos governarem os vivos, dado que o ex-presidente se tornou inelegível. A partir das categorias apresentadas neste livro, em retrospecto, não se sabe dizer ao certo em qual ponto da história brasileira a austeridade teve início; o que se sabe é que o país é vítima de esquemas ensaiados ultramares e experimentados de maneira inédita em território nacional.

O Brasil foi e continua a ser cobaia de ensaios perigosos: entre golpes e ditaduras, períodos inflacionários que ultrapassaram os 2.000% (entre as décadas de 1980 e 1990), confisco da poupança dos cidadãos e um plano econômico que reiniciou a economia do zero, não há quem se ressinta em submeter o povo às estimativas que a poucos beneficiam. Tantas oscilações não surgem sem contrapartida, pois, há muito, o país é refém do mercado, de instituições financeiras internacionais ou de agências de classificação de risco, prontas a projetar o país ao abismo quando ele não atende às almejadas metas que propugna o mercado. Na retaguarda do discurso econômico asséptico, operam os mais autoritários instrumentos de exercício do poder, evidenciando, na linha de Franz Neumann1 e David Abraham2, que a ascensão do nazifascismo foi, sobretudo, um projeto político-econômico.

A austeridade é um movimento carente de realização democrática, pois asfixia as promessas constitucionais de efetivação de direitos fundamentais de segunda dimensão, esvazia o Estado social e reverte a tributação aos detentores do poder. Da contenção inflacionária dos períodos de arrocho salarial à gestão de balanços orçamentários via superávit primário, até a dramática deposição presidencial, ancorada em tecnicismos fiscais, a narrativa econômica brasileira é um Leitmotiv em que austeridade e política tecem seu sinuoso dueto. Nesse contexto, A ordem do capital não apenas critica a mentalité que degrada os países à condição de vassalos da pauta econômica, como pretende contribuir para des- montar narrativas prontas acerca do êxito do capitalismo financeiro que sequestra o futuro e mantém as classes oprimidas imobilizadas e incapazes de oferecer resistência à austeridade por design do sistema.

Se um país como o Brasil obtém reputação internacional por sua economia “sólida” e “virtuosa”, capaz de transmitir confiança aos mercados, tal êxito, longe de beneficiar as classes trabalhadoras, frequentemente opera contra as classes que se pretendeu em primeiro lugar proteger. O verdadeiro fato político, demonstrado pela história, é que a confiança dos mercados é inversamente proporcional ao bem-estar dos cidadãos e ase reflete, sobretudo, na lógica da coerção econômica.

Notas
1 Franz Leopold Neumann, Behemoth (Nova York, Oxford University Press, 1944).
2 David Abraham, Me Collapse of the Weimar Republic: Political Economy and Crisis (Nova Jersey, Princeton University Press, 1981).

O xadrez cambial, por Ana Paula Vescovi

0

Melhora nas contas externas não garante que real continuará a se valorizar neste ano, mas sugere menor volatilidade da moeda no longo prazo

Ana Paula Vescovi, Economista-chefe do Santander Brasil

Folha de São Paulo, 04/02/2024

Falar sobre taxa de câmbio e fazer projeções sobre sua trajetória é algo arriscado para os economistas. São muitos os fatores intervenientes, alguns deles imprevisíveis, e o risco de errar é alto. No ano passado, defendemos que haveria alguma depreciação do real em relação ao dólar e o que ocorreu foi uma leve apreciação. Ou seja, erramos.

Nossa estimativa de depreciação vinha de modelos econômicos que expressam os fundamentos técnicos da taxa de câmbio. Assim, como tínhamos um cenário de leve redução dos preços das commodities, de queda de juros no país, com manutenção de juros tanto nos Estados Unidos quanto nas principais economias globais e de aumento de incertezas locais em função de mudanças na política fiscal no Brasil, antevíamos a depreciação do real. O que aconteceu, contudo, foi um enfraquecimento relativo do dólar, especialmente no final do ano, e isso predominou sobre as nossas hipóteses para a economia local.

Diante do desvio, fizemos um “mergulho profundo” no universo das contas externas do país, num esforço de entender o que o saldo do comércio de bens e serviços com outros países, além dos saldos na contratação de serviços e das movimentações de rendas com o exterior, poderiam nos esclarecer sobre a relação desses fluxos e a direção para a taxa de câmbio.

Da mesma forma, procuramos entender como as necessidades de financiamento externo (déficit pouco abaixo de 2% do PIB) poderiam ser providas pelos canais financeiros, seja pela via de investimentos diretos de outros países, seja pelos fluxos de investidores de fora no mercado financeiro local.

Se a soma dos saldos destas duas principais contas (transações correntes de bens, serviços e rendas e a conta financeira) é negativa, ou seja, faltam dólares para pagar credores, o país é obrigado a utilizar parte de suas reservas internacionais para “zerar” o desequilíbrio. Caso contrário, a “sobra” de divisas faz crescer o estoque de reservas internacionais —como parece ter acontecido no ano passado, segundo os dados disponíveis até novembro de 2023.

Para 2024, a dinâmica das contas externas parece indicar nova acumulação de reservas e, recentemente, têm surgido narrativas de que o real poderá se valorizar consideravelmente por conta desta situação. Como as contas externas brasileiras passam por uma mudança estrutural positiva, esses catalisadores favoreceriam o fortalecimento da moeda local frente ao dólar.

De fato, dados recentes indicam tal mudança estrutural especialmente na dinâmica da balança comercial, o que é boa notícia para o real no longo prazo. Ultimamente, o Brasil tem conseguido gerar superávits comerciais vultosos, por conta da firme tendência de crescimento da produção de petróleo e das safras de grãos.

Além disso, os termos de troca (razão entre os níveis de preços de exportações e importações) também parecem seguir trajetória ascendente de longo prazo, tornando o saldo comercial de bens —e de transações correntes— mais estável e menos suscetível a choques nos preços de commodities.

Isso ajuda a reduzir a amplitude dos movimentos realizados pela taxa de câmbio (menor volatilidade, no jargão financeiro).

Vale notar que outras características deverão ajudar a reduzir a volatidade do real à frente, tais como o financiamento contracíclico (e estável) advindo dos investimentos diretos no país (IDP) e a dinâmica anticíclica da decisão de exportadores em internalizar recursos mantidos no exterior.

Assim sendo, pode-se dizer que existem fatores relevantes para que a moeda brasileira se torne mais estável do que no passado e mais blindada contra desvalorizações causadas por outros elementos domésticos ou externos (ou, até mesmo, mais inclinada a se valorizar no longo prazo).

Porém, apesar destas favoráveis mudanças estruturais, movimentos de valorização (ou desvalorização) cambial de curto prazo costumam depender do comportamento das contas na margem.

Nesse sentido, existem fatores que sugerem haver pouco espaço no curto prazo para que a balança comercial registre resultados mais robustos neste ano. Por exemplo, condições climáticas adversas deverão causar impacto negativo na safra de soja, ao mesmo tempo em que a desaceleração econômica mundial derivada de condições financeiras mais restritivas deverá provocar acomodação nos preços de commodities.

Além disso, considerando as demais contas do setor externo, seu resultado final não deverá levar a uma acumulação de reservas significativa na margem. Finalmente, cálculos mostram que o real não parece estar consideravelmente desvalorizado no momento, quando comparado a seus principais pares (pesos chileno, colombiano e mexicano, e rand sul-africano).

Em momentos assim, nos quais os riscos idiossincráticos do país, o nível de diferencial de juros e a posição relativa frente às moedas dos pares parecem estar em patamar “normal”, o catalisador mais importante para a taxa de câmbio é a tendência da moeda norte-americana frente às moedas das economias avançadas. Dada a perspectiva de que o Fed não deverá chancelar o início precose do ciclo de redução de juros implícito na curva de juros dos EUA, parece haver espaço para valorização do dólar frente às demais.

A principal conclusão desse “mergulho”, contudo, foi que a melhora estrutural que vem ocorrendo nas contas externas do país —e tende a continuar ocorrendo nos próximos anos— será uma importante defesa contra volatilidade e contra excessiva desvalorização cambial no futuro.

Entretanto, parece haver pouco espaço para melhora pontual no seu resultado em 2024. Assim, a dinâmica de curto prazo não deverá abrir espaço para valorização do real muito além do que já ocorreu em 2023.

Sendo assim, mantivemos nossa aposta para uma leve depreciação do real até o final de 2024.

Anotem aí para verificarmos os resultados no próximo ano!

Nosso capitalismo de compadres é o oposto do capitalismo comunista chinês, por Rodrigo Zeidan

0

Que pelo menos os subsídios aqui sejam dados com mais cuidado

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 03/02/2024

Capitalismo de compadres é a norma em países de renda média. No Brasil, quase sempre que uma grande empresa vai à bancarrota pode contar com a mãozinha do Estado, que é especialista em transferir renda dos mais pobres para os mais ricos.

Mas não precisa ser assim. Um exemplo vem da China, onde as autoridades ficam olhando sem fazer nada enquanto a Evergrande, empresa com US$ 300 bilhões em dívidas, está sendo liquidada na Justiça. Por incrível que pareça, a China teve seu choque de capitalismo, e sua política industrial revela isso.

Enquanto o Brasil continua a insistir na furada política de substituição de importações, a política industrial chinesa é orientada para exportações. E, mais ainda, não interessa quem vai sobreviver. O processo chinês é feito para que empresas sigam competindo até sobrarem só as mais eficientes.

A ideia é simples: se um setor é considerado estratégico, subsídios são jogados ao mar, e os tubarões avançam. Depois que a indústria começa a exportar, os subsídios são retirados. Quem sobrar sobrou. Foi assim, por exemplo, que a China se tornou o país que mais exporta painéis solares. Em 2021, qualquer subsídio ao setor foi retirado do orçamento federal.

É por isso que os investidores que foram com sede ao pote comprar títulos da empresa Evergrande, que tinha acabado de dar um calote, apostando que o governo a salvaria, deram com os burros n’água. Esses investidores compraram grande parte da dívida da empresa, que totaliza mais de US$ 300 bilhões, com grande desconto, achando que iam receber o valor completo. Agora que a empresa está para ser liquidada, podem perder tudo. Apostar que o governo chinês vai salvar grandes empresas se revelou, nesse caso, uma furada.

A diferença entre o modelo de industrialização chinês e o brasileiro é simples: a China acredita na disciplina do mercado capitalista. Se o setor não ficar eficiente, que morram todas as empresas. Os poucos setores estratégicos de verdade, separados para empresas estatais, acabam tendo o mesmo problema do Brasil: empresas ineficientes que muitas vezes perdem mercado para empresas privadas.

Por exemplo, os bancos estatais são incompetentes e, por isso, surgiu todo um setor financeiro não bancário que roubou os clientes dos bancos estatais. Alipay e Wechat processam mais de US$ 30 trilhões em pagamentos por ano, e pessoas fazem empréstimos e investem através dos apps. Os bancos estatais continuam perdendo mercado, e o governo não faz quase nada.

Essa ideia de que competição é o que importa foi o que levou ao crescimento chinês dos últimos 40 anos. Essa é a grande lição que deveríamos aprender. Mas não parece que o faremos. O governo Lula vai insistir em subsídios que fazem o contrário: limitam competição, com a ideia de que as empresas locais cresçam. Mas, sem a disciplina da competição internacional, o que as empresas fazem é tornar os produtos caros, sem incentivos para inovar.

E, quando a competição vem, as empresas vão para Brasília pedir mais proteção; capitalismo de compadres em escala nacional. O oposto dos comunistas chineses, muito mais capitalistas do que a gente imagina.

Vamos continuar insistindo em políticas que nos jogaram em crise econômica? Lula podia fazer muito melhor que insistir nos erros do passado. Que pelo menos os subsídios sejam dados com mais cuidado.

Será que um dia vamos aprender? Pelo visto não vai ser desta vez.

Política Industrial

0

Vivemos momentos de grandes alterações na estrutura econômica internacional, nações que dominavam todos os espaços do crescimento econômico e produtivo, vem perdendo espaço no cenário global, outros países estão se projetando na nova economia mundial. Estamos visualizando a ascensão de novos atores, novas empresas, novas lideranças e novas corporações, com a fragilização de algumas nações, gerando novos desafios, novas oportunidades e grandes inquietações.

Neste cenário, as nações estão em franca movimentação econômica e geopolítica, buscando reposicionamento na estrutura produtiva global, como forma de alavancar seus setores produtivos, buscando a redução da dependência externa, aumento da soberania nacional, vislumbrando investimentos produtivos, desenvolvimento de tecnologias e a busca crescente de novos espaços no comércio internacional.

Neste momento, as nações estão repensando suas estratégias de inserção no cenário internacional, retomando projetos esquecidos e reestruturando os canais de planejamento econômico e produtivo, reativando as chamadas políticas industriais, utilizadas por todas as nações que conseguiram alavancar suas estruturas econômicas, com fortes investimentos governamentais para fortalecer setores e atividades produtivas, levando muitas nações ao desenvolvimento econômico.

Muitas nações adotaram políticas industriais, mas a adoção destas políticas industriais não garante o tão sonhado desenvolvimento econômico, muitos países tentaram, mas poucas nações conseguiram se desenvolver, transformando suas estruturas produtivas, angariando ganhos econômicos e políticos. O desenvolvimento industrial prescinde de uma visão global de todas as potencialidades da economia, integrando setores, fortalecendo o conhecimento científico e tecnológico, aproximando as universidades e os centros de pesquisas, construindo uma visão sistêmica que abarque todos os setores da sociedade, melhorando os indicadores econômicos e sociais em benefício da comunidade nacional.

No começo do século XX, as estratégias de desenvolvimento industrial eram vistas como um caminho natural para que as nações conseguissem se desenvolver economicamente, desta forma, a indústria era uma forma de melhorar a produtividade do trabalho, incrementando a renda dos trabalhadores, movimentando o mercado de consumo e, desta forma, alavancando fortes investimentos produtivos para impulsionar a economia, diversificando os setores produtivos e melhorando os indicadores econômicos e sociais.

Nos últimos anos as políticas industriais foram criticadas pelos economistas liberais, pelas instituições multilaterais, como o FMI e Banco Mundial, e pelos representantes do setor financeiro, defendendo uma maior liberdade dos mercados e o crescente estímulo da concorrência como forma de alocar investimentos no sistema econômico e produtivo. Com estas transformações econômicas internacionais muitas nações desenvolvidas, que rechaçavam as políticas indústriais, passaram a alterar seu entendimento e estão fomentando estas políticas como forma de defender suas estruturas produtivas e receio de perder espaço das nações asiáticas, países que recorreram fortemente as políticas industriais, com fortes incentivos internos e medidas intervencionistas.

Neste cenário, as nações ocidentais estão retomando as políticas públicas e o Brasil começa esboçar uma nova política de reindustrialização, como forma de alavancar a indústria nacional e melhorar as condições de competitividade, diminuindo as importações de produtos industrializados. A nova política de reindustrialização brasileira está canalizando 300 bilhões de reais para o setor industrial e está escolhendo setores vistos como estratégicos para a economia brasileira, tais como a digitalização da indústria e das médias e pequenas empresas, fomento da cadeia agroindústrial e da bioeconomia, a mobilidade urbana, a internalização da produção de insumos da saúde e das tecnologias críticas de defesa nacional.

O retorno de discussões econômicas mais heterodoxas no cenário internacional, como as políticas industriais é salutar e quando percebemos que instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI), revistas como The Economist e a prestigiada Harvard Business Review estão defendendo fortemente estas políticas, percebemos que estamos voltando para o lado certa da história.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Carta Mensal – Novembro 2023

0

O mês de novembro de 2023 foi marcado por grandes discussões referentes ao crescimento do poder do Congresso Nacional, o crescimento do conflito entre o Hamas e o Estado Israelense, além de questões econômicas internas, as brigas entre o governo federal e a oposição, onde percebemos que o embate é mais ideológico entre grupos com visões de vida diferente.

No front econômico, percebemos que a economia nacional vem passando por grandes modificações, pela primeira vez percebemos que o governo federal se esforça pra efetivar uma reforma tributária, com o objetivo de rever medidas que impactam sobre o consumo das famílias, com o intuito de simplificar o sistema tributário, visto como um dos mais detalhista do mundo, responsável por grandes imbróglios jurídicos e graves constrangimentos para todos os grupos que tentam empreender na economia brasileira. Depois de grandes embates, os grupos econômicos e políticos conseguiram chegar a um acordo prévio, quase consensual e marcar a votação para o mês seguinte. Se isso acontecer e a reforma for aprovada, a sociedade será beneficiada, com pontos positivos para a economia nacional.

Neste embate entre o governo e a oposição, percebemos grandes confrontos no centro do poder, com ameaças de todos os lados, onde cada um deste grupo tentam mostrar seu poder e aumentar a sua capacidade de controlar o outro. Neste embate constante, percebemos que o maior prejudicado é a população, postergando medidas imprescindíveis para alavancar o crescimento econômico e produtivo, atrasando investimentos estratégicos para a economia brasileira e para a melhora dos indicadores econômicos gerais.

Mostra ainda, que o governo não possui condições de governabilidade total, sua força política no Legislativo é limitada, não conseguindo passar políticas públicas e mudanças constitucionais que acreditam ser importantes para seu governo e seu projeto político. Contrariamente, percebemos que os grupos oposicionistas são mais fortes do que acreditavam, com força política para fragilizar o governo federal e gerar graves constrangimentos na gestão política.

Atualmente, o governo federal vem perdendo espaço em detrimento do fortalecimento do Legislativo, este último está numa posição cômoda, não tem o ônus da gestão pública e fica com todos os bônus das propostas. Destacamos ainda, que o crescimento do Legislativo federal está diretamente ligado o surgimento de governos fracos, tais como os governos Temer e Bolsonaro, este último delegou ao legislativo papeis importantes que deveriam ser feitos pelo Executivo.

No front externo, percebemos variados problemas que podem levar a economia a uma retração produtiva. De um lado, o conflito entre Ucrânia e a Rússia, que muitos especialistas acreditavam que levaria os russos a graves constrangimentos internos e seria atropelado pela junção da Ucrânia e os exércitos da Otan (Organização do Tratado do Atlântica Norte), mas a realidade está se mostrando diferente, onde os ucranianos estão destruídos economicamente, com sua infraestrutura massacrada e com a morte de milhares de combatentes, gerando uma verdadeira degradação da nação.

No campo russo, os embargos que foram feitos para destruir a Rússia, mas na realidade, aconteceu o inverso. Muitas empresas ocidentais foram absorvidas por empresas russas, muitas empresas foram vendidas a preços módicos e fortaleceu o setor produtivo russo.

A guerra levou os países europeus a apoiar a Ucrânia e levou os russos a aumentarem o preço da energia, impactando fortemente os preços dos combustíveis, gerando aumento de preços internos e o incremento da inflação, obrigando os governos, como o alemão, a subsidiar a energia interna e, para isso, reduziu os repasses para as políticas públicas governamentais, gerando graves constrangimentos internos, queda da renda da população, redução dos investimentos produtivos e um maior desemprego, um verdadeiro constrangimento político que está contribuindo para p fortalecimento dos grupos políticos de extrema direita.

No outro front externo, é fundamental destacar que o conflito entre Hamas e Israel vem gerando constrangimentos para a sociedade internacional, motivando variados grupos políticos a confrontos generalizados, uns defendendo as políticas de Israel, destacando que como o país judeu foi atacado por Hamas com mais de 1,2 mil mortes sangrentas, tem o direito de se defender e partir para cima do Hamas como forma de retaliar os ataques recebidos. De outro lado, destacamos que a retaliação de Israel foi muito agressiva e desproporcional, atacando toda a região, matando milhares de civis, principalmente mulheres e crianças, destruindo a região da Faixa de Gaza e levando a morte de mais de 20 mil palestinos, uma desproporção pouco vista na história militar da humanidade.

Esse conflito vem gerando graves constrangimentos para toda a comunidade, motivando todos os setores, todas as nações a se posicionarem de um lado ou outro, levando a África do Sul representar contra o governo de Israel, onde o país africano defende que o Tratado Penal Internacional puna Israel pelo genocídio dos palestinos. O Brasil adotou uma posição a favor da representação da África do Sul, motivando críticas imensas entre os judeus e a posição do governo brasileiro.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

‘Quem não sabe controlar dinheiro precisa de terapeuta, não de consultor financeiro’, diz autor

0

Morgan Housel, autor especializado em economia comportamental, foca o que nunca muda em nova obra

JÚLIA MOURA, FOLHA DE SÃO PAULO, 27/01/2024

SÃO PAULO Se alguém pudesse prever o futuro, essa pessoa certamente seria rica. Apesar de ser impossível, tentar antecipar o que está por vir está por trás de muitas decisões cotidianas, especialmente as relacionadas a investimentos.

Mas, e se, em vez de tentar prever as mudanças do futuro, identificássemos o que nunca muda? Essa é a premissa do novo livro de Morgan Housel, 37.

Por meio de diversas anedotas, o autor americano introduz conceitos-chave da economia comportamental em “O Mesmo de Sempre – Um Guia para o que Não Muda Nunca”, lançado pela editora Objetiva no Brasil, no fim de 2023.

Com essas lições, que envolvem histórias sobre Martin Luther King e Bill Gates e evocam reflexões pessoais, Housel espera melhorar a capacidade de tomar decisões dos leitores.

“O Mesmo de Sempre” funciona como uma continuidade do seu best-seller, “A Psicologia Financeira: Lições Atemporais sobre Fortuna, Ganância e Felicidade”, que vendeu mais de 3 milhões de cópias e foi traduzido para 53 idiomas.

Segundo Housel, o propósito do seu novo livro é instilar um pouco de humildade em todos. “Reconhecer que não sabemos o que vai mudar no futuro e focar o que sabemos que não vai mudar”, disse em entrevista à Folha.

Como obter independência financeira? Como controlar melhor as finanças?

Não há regras que sirvam para todos. Há pessoas que vão viver sua melhor e mais feliz vida se estiverem gastando a maior parte do seu dinheiro e também há as pessoas que só vão viver felizes se estiverem economizando muito dinheiro.

Eu acho que nasci com a mentalidade de ser poupador. [Guardar dinheiro] nunca foi um desafio para mim, mesmo quando eu ganhava pouco, sempre foi algo muito natural para mim. Nunca exigiu muito esforço. Mas acho que isso acontece porque é assim que meu cérebro é programado. Há pessoas que, se tentassem fazer isso, ficariam infelizes.

Então, acho que uma das primeiras regras [para ter independência financeira] é se descobrir. Se você sempre teve dificuldade para economizar, talvez isso faça parte de sua personalidade.

Também há as pessoas que genuinamente querem economizar e têm dificuldade para fazer isso. A partir daí, eu olharia internamente e perguntaria: “Qual é a causa de todos os gastos que você está fazendo?”. É porque está apenas tentando acompanhar as necessidades básicas de aluguel e comida? Ou porque está tentando mostrar às pessoas que tem roupas muito boas, um carro legal, um bom apartamento?

Isso pode ser o reflexo de algo mais profundo, que é o fato de você estar tentando ganhar respeito e admiração das outras pessoas por meio dos seus gastos, não por meio da sua amizade ou capacidade de amar, ser empático ou seu senso de humor.

Que dica você daria para alguém que não tem controle sobre o dinheiro?

Nessa situação, você não precisa de um consultor financeiro. Você precisa de um terapeuta que vá
um pouco mais fundo.

Se você é o tipo de pessoa controlada pelo dinheiro, isso é um indicativo de uma ferida mais profunda que você está tentando preencher. Em nove de cada dez vezes essa ferida o leva a tentar fazer com que outras pessoas o admirem e o respeitem, e você pensa que ter mais dinheiro é a única maneira de fazer isso. Reconhecer isso é algo muito importante.

O dinheiro é apenas uma ferramenta para, esperançosamente, dar a si mesmo uma vida melhor. Mas, para muitas pessoas, é mais como uma droga, que você pensa ser a solução para seus problemas, a chave para sua felicidade. Mas, se você é viciado nisso, não é. Na verdade, pode ser a fonte de seus problemas, a fonte de sua dor. E você precisa cavar um pouco mais fundo para descobrir de onde vem essa dor.

No que você investe?

Invisto quase exclusivamente em ETFs (fundos de índice) muito amplos, que contam com ações do mercado dos EUA e internacionais.

Em vez de tentar escolher uma determinada ação ou setor, eu quero possuir toda a economia. Essa é a aposta que estou fazendo porque, se eu mantiver as coisas simples assim, aumenta a probabilidade de eu poder seguir nessa estratégia pelos próximos 50 anos, e deixar que se acumule.

Historicamente, é aí que a maior riqueza foi encontrada.

Na sua visão, o debate em torno do dinheiro e educação financeira melhorou ao longo dos anos?

Melhorou por causa da internet. Antes, na década de 1990, a menos que você fosse rico, não poderia falar com um consultor financeiro. Eles eram restritos a pessoas ricas. Ninguém mais tinha informações, educação, visão do que estava acontecendo.

Hoje, qualquer pessoa com um telefone, não importa quanto dinheiro você ganhe, quanto dinheiro você tenha, tem acesso à informação. Essa democratização da informação tem sido enorme.

Agora, isso também abriu a porta para ver como pessoas ricas vivem, o que pode causar um sentimento de inveja e angústia social que alimenta preocupações com dinheiro. Antes disso, as pessoas de baixa renda socializavam principalmente com outras pessoas de baixa renda e não se sentiam tão pobres.

Qual o seu conselho para que as pessoas não caiam em golpes ou façam investimentos inadequados?

Qualquer pessoa que esteja prometendo a capacidade de ficar rico rapidamente, é certo que estão te enganando. A única maneira de ficar rico é empreender a sua própria ideia, ou acumular capital lentamente ao longo do tempo. Essas são as únicas maneiras de fazer isso.

Qualquer coisa intermediária, como “posso ficar rico com bitcoin rapidamente”, simplesmente não funciona. O mundo não é tão generoso com as pessoas a ponto de permitir que você fique rico da noite para o dia sem esforço.

Todo mundo tem que abrir mão de algo por sua riqueza, seja paciência, sejam os riscos que você assume como empreendedor. Não há caminhos fáceis para fazer isso.

Você se considera rico?

Eu me considero satisfeito, o que significa que tenho o suficiente para cuidar da minha família e dar a eles tudo o que precisam e muito do que querem.

Não usaria a palavra riqueza. Não acho que algo bom venha dessa palavra. Estar satisfeito com o que você tem é o melhor que você pode fazer.

O movimento das marés, por Oscar Vilhena Vieira

0

Tudo indica que nos EUA a onda de populismo autoritário voltará com mais força e fúria

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023).

Folha de São Paulo, 27/01/2024

É um equívoco achar que as marés simplesmente passam. Elas vêm e voltam. E tudo indica que nos Estados Unidos a onda de populismo autoritário, encabeçada por Donald Trump, retornará com mais força e fúria. Ressentido, Trump não poupará esforços para romper as amarras estabelecidas pela Constituição para que possa exercer o poder sem embaraços.

Se há uma característica comum às diversas vertentes do populismo autoritário é o seu anti-institucionalismo. As instituições liberais, criadas para estabilizar relações e conter o exercício arbitrário do poder, devem ser subjugadas ou capturadas, para atender os desígnios do líder populista.

O emprego da Abin para investigar opositores e autoridades vistas como inimigas por Bolsonaro, além de proteger familiares, se comprovado, é uma amostra de como populistas autoritários instrumentalizam as instituições para atender seus objetivos.

Distintamente dos Estados Unidos, as instituições constitucionais brasileiras se demonstraram mais habilitadas a enfrentar este último ciclo de ascensão de um populista autoritário. Certamente nossa acidentada história política, marcada por golpes, regime autoritários e também por marés populistas, levaram o constituinte de 1988 a ser mais cuidadoso ao dispersar o poder e fortalecer as instituições de controle, especialmente os tribunais, de maneira que a captura e subordinação dessas instituições por um aventureiro de plantão se tornasse mais difícil.

Somado a isso, estabelecemos regras duras para aqueles que são desleais à democracia. No campo eleitoral, o abuso de poder político e o ataque às regras e instituições eleitorais pode levar a inelegibilidade, como aconteceu com Bolsonaro. Da mesma forma, o direito penal foi mobilizado para a defesa do Estado democrático de Direito, com a sanção da lei 14.197, em setembro de 2021, que substituiu a velha Lei de Segurança Nacional.

Necessário anotar que a aplicação da lei penal contra aqueles que conspiraram contra a democracia em 8 de janeiro ainda tem se demonstrado muito seletiva. Mandantes, financiadores, incitadores e aqueles que criaram uma cerca de proteção ao baixo clero golpista continuam impunes.

O sistema de defesa da democracia montado a partir de 1988 demonstrou, no entanto, outras fissuras. O exercício monocrático do poder conferido ao presidente da Câmara dos Deputados, para dar início ao processo de impeachment, e ao procurador-geral da República, para investigar e processar crimes comuns eventualmente praticados pelo presidente da República, aponta para problemas a serem corrigidos. Numa República não deve haver poder pessoal incontrastável.

Mais do que isso, essa falha no sistema, levou à necessidade de um engrandecimento do poder do Supremo, para suprir a omissão de outras esferas de proteção da democracia. Passada a crise aguda, que justificou uma conduta mais ativa da corte na contenção dos ataques autoritários, é fundamental que se busque desescalar o emprego dos mecanismos da “democracia defensiva”. Especial atenção deve ser conferida à questão da imparcialidade do Supremo. É da imparcialidade que deriva a principal fonte de autoridade de qualquer tribunal. Ministros que se tornaram alvos preferenciais das investidas antidemocráticas não podem permanecer responsáveis pela apuração de condutas de que foram vítimas.

Como alertava Benjamin Cardozo, histórico juiz da Suprema Corte norte americana, os juízes não estão a salvo das grande marés e correntes que engolfam as demais pessoas. E elas vêm e voltam.

Futuro e Confiança

0

Todos os indivíduos no mundo contemporâneo estão percebendo que a sociedade vem passado por grandes transformações nas últimas décadas, com impactos generalizados para todos os cidadãos e comunidades, mexendo nos comportamentos, alterando valores e exigindo investimentos crescentes na qualificação e na capacitação individual, como forma de encontrar empregos e recursos para a sobrevivência.

Nesta sociedade, marcada por grandes incertezas e instabilidades, estamos vislumbrando novas formas de organizações social, política e produtiva, alterando todas as bases constituídas na sociedade industrial e, destas modificações, percebemos o nascimento de uma nova comunidade, centrada nas tecnologias, no mundo digital, no imediatismo, no individualismo e na busca crescente pelo lucro e pela acumulação.

A velocidade destas transformações é assustadora, novas tecnologias surgem todos os dias, novos modelos de negócios nascem diariamente motivados pela intensa competição entre os agentes econômicos e produtivos, levando os seres humanos a buscarem qualificações diárias, numa constante concorrência que não é mais local, nem nacional, mas estamos presenciando uma competição global. Nesta nova sociedade, todas as bases que sustentavam as relações sociais da sociedade industrial, tais como a família, a escola, os relacionamentos e a religião vêm sentindo na pele as grandes modificações, gerando medos, ansiedades e depressões, desta forma, percebemos o incremento das preocupações com a saúde mental dos indivíduos, onde o desequilíbrio emocional cresce de forma acelerada, exigindo políticas públicas e intervenções governamentais direcionadas para amainar estes desajustes.

Neste mundo centrado nas incertezas e nas instabilidades, o medo ganha relevância, as certezas estão cada vez mais reduzidas e os ressentimentos ganharam espaço na comunidade, motivando extremismos, violências, polarizações e desagregações, que levam as nações a conflitos sangrentos, confrontos bélicos, gastos estrondosos em equipamentos militares e repressões seletivas. Neste cenário, grupos que difundem o caos generalizado, notícias negativas, degradações, cancelamentos e as violências crescentes se transformaram num grande negócio, garantindo lucros estratosféricos e negócios rentosos, fazendo a alegria dos acionistas destas corporações.

A confiança, historicamente, deveria ser vista como o cimento da consolidação da convivência social na comunidade, onde os agentes econômicos, políticos e sociais deveriam acreditar nas instituições, fortalecendo as decisões democráticas e estimulando a cooperação social como forma de aprofundar as instituições, melhorando as condições sociais, reduzindo as desigualdades e garantindo oportunidades para todos os seus cidadãos.

O sonho democrático vem perdendo espaço na civilização ocidental e, neste cenário, os extremismos crescem, políticos autoritários ganham relevância e fragilizam os ideais de convivência social democrática e, desta forma, o futuro da sociedade contemporânea está sempre em suspeição, os medos aumentam, as ansiedades crescem e os lucros disparam para uma pequena parcela da comunidade, setores que ganham com os extremismos, a balbúrdia, a degradação humana e a violência urbana.

As pesquisas recentes demonstram que a concentração da renda cresceu fortemente nos últimos anos, garantindo privilégios para poucos grupos sociais e condições degradantes e abjetas para uma grande parte da população. Muitas pessoas acreditam que essa desigualdade crescente se apresenta apenas na sociedade brasileira, ledo engano, o crescimento da desigualdade é um fenômeno global, impacta sobre todas as nações, gerando incertezas e instabilidades, contribuindo para a degradação da vida em comunidade, com o incremento da violência e um medo generalizado do futuro.

A confiança no futuro é fundamental para consolidarmos os ideais democráticos, deixando de lado medidas imediatistas, individualistas e centradas nos ganhos monetários e crucial para reconstruir a convivência social, garantindo educação de qualidade para todos, novas oportunidades, acabando com privilégios de poucos, combatendo injustiças cotidianas, reduzindo violência e vislumbrando horizontes melhores e mais consistentes.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário