STF e desinformação especializada, por Georges Abboud

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Mídia chama de ativismo toda decisão do STF que lhe desagrade

Georges Abboud, Advogado, livre-docente e professor da PUC-SP.

Folha de São Paulo, 09/01/2024

Há mais de uma década pesquiso o tema ativismo judicial, o que se materializou em um livro, e uma das principais conclusões é a transformação do STF em inimigo ficcional por um projeto político de parcela extremada da sociedade e da política brasileiras.

Infelizmente, criticar e atacar o STF tem se apresentado como técnica eficiente e popular para a obtenção de votos, leitores e cliques. E nisso reside o risco de parte da mídia se pautar por trending topics sob pretexto de realizar uma análise isenta a respeito do Supremo.

Duas são as formas pelas quais a mídia profissional, ainda que involuntariamente, dissemina desinformação com relação ao STF. A primeira é relacionada à Operação Lava Jato.

Parcela da mídia não aceita que a constatação dos abusos gere consequências concretas que lhe são naturais, como a revisão dos julgamentos ou das penas e multas abusivas que foram impostas.

Houvesse verdadeira criteriologia, a mídia teria cobrado maior celeridade e assertividade na contenção e extinção da Lava Jato e se escandalizaria com as fundações privadas bilionárias que a Lava Jato tentou criar com auxílio de organismos internacionais em vez de vivenciar essa síndrome do sofrimento sem fim.

A segunda forma de desinformação decorre de uma avaliação pseudotécnica das decisões do STF que, basicamente, sem qualquer rigor técnico, chama de ativismo toda decisão do STF que desagrade a mídia ou parcela extrema da população brasileira.

Recentemente, o STF, na pessoa do ministro Dias Toffoli, sofreu duras críticas que demonstram as formas de desinformação explicadas acima.

A primeira se deu em razão da suspensão do acordo de leniência de uma companhia brasileira que foi notoriamente vítima da Lava Jato. A decisão apenas aplicou entendimento pacificado do STF em tantos outros casos na mesma situação e não anulou multa alguma, mas tão somente suspendeu seus aspectos patrimoniais para assegurar a uma investigada o direito de acessar as provas da Operação Spoofing para que pudesse verificar a extensão dos abusos sofridos. Ou seja, para a companhia não foi feito nada que já não estivesse consolidado no STF e, por diversas vezes, sido concedido a dezenas de outros réus.

Ocorre que parcela da mídia especializada afirmou que o STF, por meio do ministro atacado da vez, teria “perdoado” a dívida. Inclusive foi o que escreveu um colunista desta Folha, cuja expertise parece ter deixado o direito para se voltar à livre e baixa agressão ao STF, em uma verborragia travestida de crítica.

Ora, houvesse algum cuidado institucional, qualquer pessoa, inclusive o ombudsman, poderia verificar que não houve anulação da multa. Anular e suspender são ações distintas, tanto no direito quanto na língua portuguesa.

A outra decisão que gerou histeria midiática se refere à suspensão da decisão do TCU que havia interrompido a reintegração do pagamento adicional por tempo de serviço à magistratura, igualmente alvo de enfurecidas colunas e editoriais, que esqueceram, contudo, de explicar o real busílis: a decisão apenas reafirma que o TCU não tem competência para controlar decisão do CNJ, apenas o STF. Ou seja, está correta.

O livro de Bernhard Fulda demonstrou como a fragmentação da mídia profissional em comunicações hostis foi um fator chave para a derrocada da República de Weimar e para a ascensão do nacional-socialismo na medida em que constantemente propagava o risco da “violência comunista”. Assim, em sua conclusão, a mídia foi crucial para tornar o nazismo uma alternativa atraente.

A responsabilidade institucional da mídia impõe a ela própria que a divulgação da atuação do STF não pode ser feita de forma irresponsável numa era de extremos, sob pena de se tornar impopular aquilo que a mídia não explica, quando ela própria não explica aquilo que lhe parece impopular.

Para que não haja espaço para um novo 8 de Janeiro, cabe à mídia finalmente compreender que o direito e as decisões judiciais são mais complexos que os trending topics, do contrário, contribuirá, de forma até pueril, para tornar atraente algum projeto fascistoide.

O liberalismo está abalado, mas ainda não quebrado, por Martin Wolf

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Liberais compartilham a confiança de que seres humanos podem decidir as coisas por si mesmos

Martin Wolf, Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics.

Folha de São Paulo, 09/01/2024

A ideia central da democracia —de que os governos são responsáveis perante os governados— ainda é valorizada em grande parte do mundo. De que outra forma explicar o fato de que mais da metade da população mundial vai votar este ano?

No entanto, o mundo também tem passado por uma “recessão democrática”, como Larry Diamond, da Universidade Stanford, chama, há quase décadas.

O poder da autocrática China tem aumentado. Vladimir Putin sufocou a democracia na Rússia. O autoritarismo está triunfando em muitos países. A reeleição de Donald Trump, após sua tentativa de derrubar o resultado da última eleição presidencial dos Estados Unidos, também seria uma mudança decisiva na democracia mais influente do mundo.

No entanto, o que está acontecendo não é principalmente uma perda de confiança nas eleições em si. Afinal, os autoritários frequentemente usam as eleições para consagrar seu poder.

Como Francis Fukuyama argumenta em seu livro recente, “”Liberalismo e seus Descontentamentos”, “as instituições liberais que estão sob ataque imediato”.

Ele está se referindo aqui às instituições centrais —tribunais, burocracias não partidárias e mídia independente. Estamos vendo uma perda de confiança no liberalismo, o conjunto de crenças que pareciam tão triunfantes após a queda da União Soviética.

Afinal, o que é o liberalismo? Escrevi sobre isso em uma coluna publicada em 2019, em resposta a uma afirmação de Putin de que “a chamada ideia liberal já cumpriu seu propósito”.

O liberalismo, argumentei, não é o que os americanos geralmente pensam que é, porque a história de seu país é única. O que os liberais compartilham é a confiança nos seres humanos para decidir as coisas por si mesmos. Isso implica o direito de fazer seus próprios planos, expressar suas próprias opiniões e participar da vida pública.

Essa capacidade de exercer agência depende da posse de direitos econômicos e políticos. São necessárias instituições para proteger esses direitos.

Mas essa agência também depende de mercados para coordenar os agentes econômicos, mídia livre para debater a verdade e partidos políticos para organizar a política.

Por trás dessas instituições estão valores e normas de comportamento —um senso de cidadania; crença na necessidade de tolerar aqueles que diferem de si mesmo; e a distinção entre ganho privado e propósito público, necessária para conter a corrupção.

O liberalismo é uma atitude, não uma filosofia completa do mundo. Ele reconhece conflitos e escolhas inevitáveis. É ao mesmo tempo universal e particular, idealista e pragmático. Ele reconhece que não pode haver respostas finais para a pergunta de como os seres humanos devem viver juntos. No entanto, ainda existem princípios centrais.

Sociedades baseadas em princípios liberais são as mais bem-sucedidas na história mundial. Mas tanto elas quanto suas ideias estão em disputa.

Como observou o Centre for the Future of Democracy [Centro para o Futuro da Democracia] em um relatório publicado no final de 2022, a invasão da Rússia galvanizou o apoio à Ucrânia entre as democracias liberais ocidentais. Mas o oposto aconteceu em grande parte do resto do mundo.

“Como resultado, China e Rússia estão agora ligeiramente à frente dos EUA em sua popularidade entre os países em desenvolvimento.” Isso certamente é preocupante. Além disso, acrescenta, com base em pesquisas que abrangem 97% da população mundial, isso “não pode ser reduzido a interesses econômicos simples ou conveniência geopolítica”.

“Pelo contrário, segue uma clara divisão política e ideológica. Em todo o mundo, os melhores preditores de como as sociedades se alinham são seus valores e instituições fundamentais —incluindo crenças na liberdade de expressão, escolha pessoal e o grau em que as instituições democráticas são praticadas e percebidas como legítimas”, afirma o relatório.

Uma maneira interessante de analisar isso é fornecida pelo “Mapa Cultural Inglehart-Welzel”, da World Values Survey. Ele mapeia valores em dois eixos: um mostra o foco na “autoexpressão” em relação à “sobrevivência”, o outro mostra o foco em valores “seculares” em relação a valores “tradicionais”.

Notavelmente, diferentes regiões do mundo estão em lugares muito diferentes. O destaque na autoexpressão (um valor liberal central) é relativamente alto na Europa Ocidental e nos países de língua inglesa, com os países africanos-islâmicos no extremo oposto.

Curiosamente, as sociedades “confucianas” têm maior ênfase em valores seculares, em oposição a valores tradicionais, do que os EUA. O ponto principal, no entanto, é que as diferenças de valores são profundas.

Alguns aspectos do Liberalismo —como mercados livres, por exemplo— viajam com bastante facilidade, mas outros —como a mudança de normas de gênero, por exemplo–, não.

No entanto, a resistência ao liberalismo é evidente não apenas no exterior. Também é doméstica. Fukuyama destaca, por exemplo, como a esquerda progressista e a direita reacionária concordam com a centralidade das identidades de grupo na política dos EUA.

Eles concordam também que suas diferenças são sobre quais grupos detêm o poder, em vez de como criar as melhores oportunidades iguais para os indivíduos. Mas os conflitos de poder são um jogo de soma zero.

Além disso, a esquerda “progressista” parece ter esquecido que, em uma guerra de identidades, as minorias quase certamente perderão. Por que esses ativistas não conseguem entender esse ponto óbvio?

Com o liberalismo em xeque não apenas em todo o mundo, mas até mesmo em seus redutos, é fácil acreditar que o futuro está nas políticas autoritárias e nos valores sociais tradicionais. Se assim for, este século pode ecoar o anterior, embora sem o fervor revolucionário daquela época.

O apelo do “grande líder” que assumirá tudo para si mesmo parece eterno. Também são eternos os confortos do tribalismo, das hierarquias tradicionais e das verdades antigas. Também é eterno o carisma do profeta revolucionário que promete transformar a sociedade para melhor. Conflitos sobre poder e modos de vida são inevitáveis.

Além disso, a liberdade sempre significará escolhas difíceis. Ela é necessariamente limitada. Significa responsabilidade, ansiedade e insegurança. No entanto, a liberdade é preciosa. Ela deve ser defendida, por mais difícil que seja essa tarefa.

O que aprendi com Clara Mattei, por Francisco Rohan de Lima

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Pensadora italiana desvenda os perigos da austeridade que, ao despolitizar a economia, isenta tecnocratas do escrutínio democrático – e abre caminhos para o fascismo. Uma pista para entender o “casamento” entre Bolsonaro e Guedes

Francisco Rohan de Lima – Outras Palavras, 23/02/2023

A liberdade é sempre a liberdade para o que pensa diferente.” Rosa Luxemburgo (1871-1919), filósofa polaco-germânica.

Como eu havia prometido no texto que escrevi para Outras Palavras e para o blog de Lúcio Flávio Pinto,1 volto ao tema da austeridade na economia para comentar o livro da professora Clara Mattei, cujo título, em tradução livre, é A ordem do capital – como economistas inventaram a austeridade e prepararam o caminho para o fascismo2. Fiquei curioso porque, como escrevi antes, sempre ouvi e li que austeridade, um princípio de ordem moral indicativo de prudência e moderação, deveria ser aplicado à gestão econômica das nações, evitando endividamento excessivo, descontrole e ineficiência de gastos do governo. Uma frase clichê encapsula esse tipo de abordagem: as contas públicas devem ser administradas com a mesma prudência de uma dona de casa na economia doméstica.

Mas nós sabemos que, com assuntos complexos, nada pode ser assim tão simples. Tive um mestre na minha juventude que, quando eu tentava transformar ideias muito complexas em formulações simplistas, que não podiam ser desenvolvidas e eram incapazes de solucionar um problema difícil, costumava dizer: “Simplificou, morreu”. De fato, na simplificação, o raciocínio paralisa por inanição e morre, incapaz de prosperar. O mestre tinha razão. Mattei sabe disso também. Seu livro foi feito para nos mostrar que seu conceito de austeridade faz sentido.

A simplificação artificial explica por que a gestão da economia doméstica, por exemplo, não pode ser comparada à gestão da economia pública. Assim, o governo pode criar dívida muito facilmente; o governo pode imprimir moeda; o governo pode criar receita. Ora, a dona de casa não pode nada disso. Por que, então, apesar dessas diferenças claras, continuamos a ouvir esse discurso?

O dilema liberal que produz a ideia de austeridade

Uma resposta possível é que a ideia de austeridade está arraigada no pensamento do homem moderno, desde os primórdios das formulações sobre economia, a partir do século XVII. O arquiteto original da austeridade é John Locke (1632-1704), o pai do liberalismo e, na sua concepção fundadora, a instituição do Estado só é admitida para proteger a propriedade. Mas, mesmo apenas com esse objetivo, custa dinheiro. Se custa dinheiro, é preciso que o governo seja moderado e prudente, afirmam os fundadores da Economia.

Eis aí a origem ancestral do dilema liberal que produz a ideia de austeridade. Keynes, com sua ironia habitual, escreveu certa vez que “as ideias de economistas e de filósofos, tanto quando têm razão quanto não a tem, são mais poderosas do que normalmente se pensa.” “Na verdade”, disse ele, “o mundo é governado por homens práticos, que se creem bastante isentos de quaisquer influências intelectuais, e que são normalmente escravos de algum economista defunto.”3

Outro motivo porque continuamos a ouvir esse discurso sobre austeridade e ele tem tanta importância, refere-se ao fato de que, desde o século XVII, o Estado se agigantou formidavelmente, demandando gastos e endividamentos colossais. Um terceiro motivo diz respeito ao sucesso das grandes economias dos países desenvolvidos, que seguiram o princípio de austeridade aplicado às políticas econômicas, ao contrário do fracasso daqueles que não adotaram tais medidas.4 Mas, quanto a essa última razão, de novo, nada pode ser tão simples, pois mesmo em cada economia desenvolvida, há os que estão à margem dos benefícios daquele desenvolvimento.

Estamos falando de quantidades maiores ou menores, cada vez maiores, de marginalizados do trabalho formal, por avanços na tecnologia, e sua face oposta, o obsoletismo tecnológico, por monumentais consolidações empresariais na produção e na circulação de bens e serviços, pela globalização e suas cadeias de produção segmentadas e complementares, pela inteligência artificial e automação, pela busca de menores custos e mais eficiência nos resultados, através de inovações e realimentação das máquinas de conhecimento, consumo e constante mutação, que produzem, além de riquezas numa ponta, excluídos em série na outra.

Estaríamos caminhando para a sociedade beneficente geral, na qual um terço das populações seria simplesmente mantido por uma mesada governamental, embutida na economia dos países mantenedores?

Estaríamos caminhando para a precificação da exclusão? E no sentido de varrer essa preocupação para debaixo do tapete? E para desistir dos desfavorecidos, com bolsas disso e daquilo? Desistir da educação de qualidade para todos, com políticas de cotas? Abandonar os abandonados? Sim, estou criticando as soluções precárias. O que quero dizer é que não podemos ficar apenas na emergência. É preciso trabalhar em soluções sustentáveis e permanentes.

O atrito corrosivo que está no ar

A marcha capitalista é uma guerra em andamento contínuo e constante. A sociedade moderna se caracteriza pela mudança permanente, uma contradição em termos. “Portanto, só os ciclos são eternos”, escreveu Pepetela, o grande escritor angolano5. Como disse outro alguém, referindo-se à sociedade capitalista: um tubarão que deve nadar para não morrer por asfixia. Assim, empresas gigantes se formam, são vendidas, se fundem, e se dissolvem num piscar de olhos. Novas tecnologias surgem para serem superadas no momento seguinte.

Por ironia da história, é o capitalismo que confirma e atualiza a pregação da extinção por atrito na frase genial de Marx & Engels, escrita para o combate: “Tudo que é sólido desmancha no ar”6. Sobre os excluídos, Yuval Noah Harari7, o célebre estudioso israelense, fala do famoso gap (disparidade). De um lado os incluídos, que detêm conhecimento, habilidades tecnológicas, dinheiro e sintonia com as mudanças culturais e científicas; de outro lado os excluídos, que estão expelidos, na bolha da segregação social, marginalizados do sistema, sem meios de sair dessa situação. Harari classifica esse problema como um dos grandes desafios da Humanidade no século XXI.

Há, porém, outro tipo de segregado, atualizado com as ferramentas tecnológicas, mas estagnado no negacionismo, incapaz de superar as rupturas da modernidade e isolado, à mercê de delírios autoritários, sem capacidade e interesse em sair dessa situação. É desse último lugar que surgem as falanges do fascismo atual.

A reação intelectual ao neoliberalismo

A partir de algum momento, pelo que li, durante e após o governo Thatcher no Reino Unido e o governo Reagan, nos EUA, e depois do fracasso do experimento comunista – estamos falando da década de noventa – começaram a ressurgir os pensadores sociais, marxistas ou neomarxistas, forjados no combate ao Consenso de Washington (final dos anos 80), marco da origem do que passou a se chamar de neoliberalismo.

Encontramos, assim, o trabalho monumental de Thomas Piketty8, com seus diversos livros sobre a teoria econômica e social. Devemos mencionar, dentre muitos outros, a combatividade intelectual de Mark Blyth9, e o pensamento original da professora Wendy Brown10. São todos persuasivos e brilhantes em sua formulação de crítica ao establishment controlado pelos economistas do mainstream, sociais-democratas, liberais, ultraliberais ligados a Universidade de Chicago, leia-se Milton Friedman (1912-2006), ou ordoliberais, estes próximos da combinação estatal com o mercado, de origem alemã.

A esse combate de ideias e na trincheira da esquerda, vem juntar-se a jovem professora Clara Mattei e seu livro, cujo título tanto me intrigou por vincular de forma tão expressiva a ideia de austeridade ao fascismo. Não nos enganemos, Clara Mattei é uma pensadora com raízes no diagnóstico marxista do capital, que traz suas ideias ancoradas na luta de classes para denunciar o uso da austeridade nos últimos cem anos e o neoliberalismo mais recente para o esmagamento da força de trabalho, não com a meta de extingui-la, mas para estiolar o seu vigor representativo. Ela resume bem nestas linhas: “As três formas de políticas de austeridade – fiscal, monetária, e industrial – trabalharam em uníssono para desarmar as classes trabalhadoras e exercer a pressão sobre os salários.” Como isso foi feito? Por que esse tema continua atual?

A ordem do capital, austeridade: fascismo

Clara Mattei começa atualizando o conceito de austeridade. Diz ela que austeridade, tal como a conhecemos agora, surgiu após a Primeira Guerra Mundial como um método para evitar o colapso do capitalismo. Ou seja, economistas em posições de poder utilizaram ferramentas políticas para tornar todas as classes da sociedade mais investidas na produção capitalista privada, mesmo quando essas mudanças atingiram profundos (e involuntários) sacrifícios pessoais.

Seu livro, A ordem do capital, é dedicado da seguinte forma: “Para Gianfranco Mattei e revolucionários em todos os lugares – passado, presente e futuro”11 (Não falei para vocês no meu artigo anterior, sobre o seu livro, que ela tinha algo de Rosa Luxemburgo no olhar?). O trabalho busca sustentar que o principal objetivo da adoção da austeridade, como princípio, seria a despolitização da economia ou a reinstalação de um divisor entre política e economia, que o cenário pós-Segunda Guerra teria borrado ou dissolvido.

Essa despolitização incluiria a retirada do Estado da consecução de objetivos econômicos, revertendo o comando para forças impessoais do mercado, permitindo, segundo ela, o sufocamento de qualquer contestação da relação proprietário vs salários ou da propriedade privada. Fique claro, aqui, que a professora se refere à Itália dos anos 1920. Visto que no pós-Segunda Guerra o mundo explodiu na rebeldia: o movimento feminista, o sindicalismo revolucionário, Cuba, o rock, a geração beat, as denúncias de Nikita Khrushcove, o Gulag, a revolta nas Universidades, Maio de 1968, o movimento negro, a revolução sexual, a conquista do coração dos jovens pela revolução cultural marxista, a marcha contra a guerra do Vietnã.

Mattei engata, em seguida, escrevendo que outra medida da despolitização da economia teria sido isentar as decisões econômicas do escrutínio democrático, estabelecendo e protegendo instituições econômicas “independentes”. Finalmente, a professora dispara que a despolitização se completaria com a promoção da teoria econômica como “objetiva” e “neutra”, portanto transcendendo as relações de classe, culminando com a austeridade encontrando seus aliados na tecnocracia e na crença no poder dos economistas como guardiões de uma ciência indisputável (todas as aspas são da autora).

Aqui soa como algo que conhecemos bem e me parece de difícil contestação. A independência de nosso Banco Central, por exemplo, está na ordem do dia. Não vou entrar no erro de seu presidente em se manifestar e tomar partido nas eleições recentes. Sabe-se lá o quanto foi “cobrado” para fazê-lo e o quanto cedeu. Mas, se cedeu, abriu mão do escudo que a independência oferece. Se o fez espontaneamente enfraqueceu a ideia de independência da instituição. De qualquer modo o Banco Central tem metas preestabelecidas em lei. Gostemos ou não, a suspeita dos contribuintes é que pretender interferir na agência só poderia ser para silenciá-la ou dobrá-la à vontade do príncipe, controlando a taxa de juros politiqueiramente para obter aprovação popular imediata e efêmera. Ademais fique claro que, para eliminar a “independência” do Banco Central, não precisa mudar a legislação. Basta fritar o seu presidente todos os dias na mídia.

A pílula goela abaixo

Depois da pausa para respirar, resta saber como, segundo Mattei, a austeridade levaria ao fascismo. Em suma, observando a história pelo ângulo adotado pela professora, o olhar austero sobre o mundo social seria reflexo do suporte dado pelo pensamento econômico liberal ao regime fascista que se originou na Itália de Benito Mussolini, um egresso do partido socialista, é bom não esquecer. Ainda segundo Mattei, o sistema (establishment) liberal internacional estaria convencido, ali no pós-guerra, inicio dos anos 20, de que a ditadura de Mussolini, que assumiu o poder em 1922, seria a única solução para empurrar a pílula da austeridade goela abaixo do “turbulento” povo italiano. Portanto, o método fascista seria tolerado graças (i) à ideia de que política e economia seriam duas coisas separadas e (ii) ao trabalho nada desprezível de economistas liberais na consolidação do governo Mussolini.

Clara Mattei afirma que pode apresentar evidências empíricas dos motivos e objetivos daqueles que conceberam a austeridade como política. Ainda que a ideia de austeridade seja anterior ao advento do fascismo em mais de 200 anos, portanto não tenha sido concebida com essa finalidade.

Segundo a professora, o que teria sido mostrado na época, isto é, nos anos 1920, como agora, seria a reabilitação da acumulação do capital como um meio de alimentar as massas – mas o seu verdadeiro motivo tem sido repetidamente revelado: facilitar a permanente e estrutural extração de recursos de muitos para poucos.

Mattei finaliza a síntese escrevendo que os cem anos cobertos por sua narrativa, rastreariam como os advogados da austeridade continuariam a moldar nossa sociedade e tem, constantemente, protegido o capitalismo de ameaças democráticas em potencial. Sim, a professora extrapola a situação ocorrida na Itália no entre guerras para os dias atuais. Mas quanto ao fascismo, sua presença não está nítida nas situações das crises na Itália, Espanha, Grécia e Portugal, ocorridas nesse início de século.

Mas, afinal, o que é o Fascismo hoje?

Antes de entrarmos na demonstração da teoria da professora Clara Mattei sobre a ligação entre
austeridade e fascismo, e para evitarmos imprecisões e ambiguidades, vale a pena fazer uma rápida digressão para abordar brevemente a definição de fascismo, esta palavra tão mencionada nos anos recentes, não apenas no Brasil, mas igualmente na Europa e nos Estados Unidos, devido – em minha muito modesta opinião – à justamente aquela massiva alienação dos ressentidos, especialmente localizados dentro do que a sociologia e a ciência política chamam de pequena-burguesia, comprimida entre a massa proletária e a alta burguesia. Os excluídos por falta de interesse devem ser mais bem entendidos como autoalienados da modernidade, por insegurança e ressentimento diante das ideias progressistas, que os empurram para fora do círculo de participação. Diante da velocidade das mudanças, não conseguem mais entender o mundo.

Essa pequena-burguesia tem duas opções: (i) foge da alienação e se engaja no trabalho intelectual realimentando os grupos progressistas; ou (ii) tem suas frustrações e ressentimentos canalizados para se tornar massa de manobra e buscar objetivos fictícios (salvar o mundo do comunismo, restaurar a inquisição religiosa ou defender a família, por exemplo) a troco de satisfações simbólicas (não à toa em 8/1, no Brasil, atacaram os símbolos das instituições).

Cito: “Na base de seu [da pequeno-burguesia] comportamento político, em quase todos os países evoluídos do Ocidente, encontram-se hoje atitudes irracionais e extremistas. Essas atitudes evidenciam sua reação diante da sociedade de massas que nada mais concede ao individuo pequeno-burguês, que consequentemente encontra sua segurança e sua maneira de se impor na subversão de direita.” 12

O Dicionário de política, de Bobbio, Matteucci e Pasquino, um trabalho clássico e de indiscutível aceitação, depois de esclarecer que há várias e complexas definições de fascismo, nos diz que este é um sistema autoritário de dominação caracterizado pela monopolização da representação política por parte de um partido único de massa; por uma ideologia fundada no culto ao chefe, na exaltação da coletividade nacional; no desprezo dos valores do individualismo liberal e no ideal da colaboração de classes; pelo aniquilamento das oposições, mediante o uso da violência e do terror; por um aparelho de propaganda baseado no controle das informações e dos meios de comunicação; pela tentativa de integrar nas estruturas de controle do partido ou do Estado a totalidade das relações econômicas, sociais, políticas e culturais.

Umberto Eco (1932-2016), o genial pensador da cultura, escreveu um ensaio com uma lista de 14 características atuais do fascismo13. Diz ele que o fascismo se baseia no apelo à frustração social, na rejeição ao modernismo, no culto a tradição, na alta expectativa quanto à força do adversário, na comparação forçada entre dissidência e traição, no culto à ação pela ação, no medo da diferença, na obsessão pelo golpismo, na consideração do pacifismo como envolvimento com o inimigo, no desprezo pelo fraco, na educação para o heroísmo, no patriarcalismo bélico, um populismo seletivo e no uso de novilíngua.14

Essas indicações do que seria o fascismo atualizado, junto às referências do referido Dicionário de Política, sustentam a opinião sobre as ocorrências eventuais do fascismo no Brasil, nos anos recentes. No mais, basta conferir os vídeos das bizarras figuras manobradas que invadiram e depredaram as sedes dos três poderes da República no dia 8 de janeiro de 2022, num triste espetáculo humano.

De volta à teoria Mattei

Devo confessar que, ao entrar nos capítulos das demonstrações da teoria Mattei, titubeei levemente diante da citação em epígrafe de um trecho do discurso de Francesco Saverio Nitti (1868-1953), que teria sido pronunciado na Conferência de Bruxelas (1920) e/ou de Gênova (1922).

Nesse discurso, Nitti recomenda à sociedade italiana “consumir menos e produzir mais”, expressões que Mattei grifou como se fossem um lema da austeridade imposto às massas trabalhadoras italianas. Eu posso estar errado, mas os adeptos do anticapitalismo em geral apreciariam esse slogan. Afinal, o consumismo é um dos esteios do capitalismo, conforme se lê no texto da própria Mattei: “O capitalismo está em crise quando o seu relacionamento crucial (a venda da produção para lucrar)… é contestada pelo público.”

A própria professora ressalta, no entanto, que a Itália encontrava-se destruída naquele pós-Primeira Guerra, sujeita às pressões da economia internacional e do capital estrangeiro. Assim, segundo ela, a adoção das políticas de austeridade, de certo modo, foi uma escolha soberana e que tais medidas funcionaram bem na acumulação de capital para os poucos virtuosos poupadores e empreendedores (o itálico é meu, mas a ironia é da jovem mestra). Até este ponto não vejo a austeridade pavimentando o caminho do fascismo, mas o contrário, ou seja, o fascismo abrindo passagem na marra para a austeridade na economia.

Afinal, depois da tragédia da Grande Guerra (1917), sabe-se hoje, com certeza, que havia poucas alternativas efetivas à austeridade fiscal. Isso se for excluída a geração de dívida, o aumento da tributação e a impressão de moeda, haja vista a colossal inflação na Europa, que sucedeu à Primeira Guerra e antecedeu a Segunda Guerra. Note-se que o advento de Mussolini no poder na Itália é de 1922. E o de Adolf Hitler, na liderança do Partido Nacional-Socialista alemão, é de 1921. O ovo da serpente está bem situado nos anos 20, portanto. Ambos ascenderam ao poder no bojo da crise inflacionária, que suponho não tenha sido causada por políticas de austeridade.

Francesco Nitti (que chegou a fazer parte do partido Esquerda Independente) e Luigi Einaudi (1864-1971), que presidiu a Itália entre 1948 e 1955 – ambos citados por Mattei – foram notórios antifascistas, que ostensivamente desprezavam tanto Mussolini quanto os bolcheviques. Posso estar enganado, mas achei um tanto equivocado misturar Nitti e Einaudi, com as figuras de Maffeo Pantaleoni (1857-1924), um adepto do fascismo, e Vilfredo Pareto (1848-1923), o famoso polímata, cujas motivações e ligações com o fascismo são bastante controversas, e, ainda Umberto Ricci (1879-1946), cujo mentor era adepto do fascismo. Ricci, todavia, exilou-se na Universidade do Egito durante os anos Mussolini, ainda que tenha produzido escritos defendendo as medidas liberais na área econômica.

Há, sim, um traço em comum entre esses intelectuais na área econômica. Eram, em maior ou menor grau, liberais e sintonizados com o pensamento tradicional do liberalismo inglês, que cultivou – e cultiva – a austeridade como princípio moral aplicável à economia, sem que isso represente necessariamente qualquer inclinação manifesta pelo fascismo, cujas características afrontam o liberalismo. Todavia, Mattei flagrou a diplomacia e a imprensa britânicas dando vivas a Mussolini por ele ter liberado o fluxo de pagamentos aos credores, aplicado a força para impor medidas de austeridade e equilíbrio fiscal, e protegido os investimentos estrangeiros, assegurando novos aportes no país. Mas, vejam, foi preciso primeiro o fascismo chegar e abrir as portas para dona austeridade passar.

Porém, essa inversão não altera os gravames sobre a austeridade segundo a ótica adotada no A ordem do capital. E quem sou eu para duvidar das conclusões da extensa pesquisa que a professora Clara Mattei realizou, entre 2015 e 2017, no Instituto de Economia da Escola Superior Sant’Anna, em Pisa, Itália, cujo título diz tudo, ou quase tudo: “Austerity and Repressive Politics: Italian Economists in the Early Years of the Fascist Government”?15

Um desses economistas liberais que certamente colaborou com Mussolini foi Alberto de Stefani (1879-1969), um neoliberal avant-la-lettre, sucedido por Giuseppe Volpi (1877-1947), um empresário, Antonio Mosconi (1866-1955), advogado, e Guido Jung, financista, de família judia; todos certamente liberais na economia, e fascistas na política, portanto. A bem da verdade, Jung fazia uma distinção marcante entre o Nazismo e o Fascismo. Presumo que com o propósito de colocar-se separado na questão judaica. Parece que estou vendo a triste figura do ministro Paulo Guedes, um suposto liberal, na mimese do seu chefe, falando palavrões e dizendo barbaridades na célebre reunião do ministério do ex-presidente Bolsonaro, em abril de 2021, que mais parecia uma célula subversiva. A minha esperança é que ele tenha vergonha e, em frente ao espelho, se arrependa daquelas cenas. Pelo menos.

A referida pesquisa de Mattei é que oferece sustentação para o ataque aos economistas liberais italianos. Mas o liberalismo está sob ataque, tanto da esquerda quanto da direita, há quase 200 anos. A tolerância política, um esteio do liberalismo – especialmente a liberdade de pensamento e opinião – é usada na era digital pelos extremistas para ferir de morte, pelo abuso, justamente o direito individual. A sociedade atual se vê forçada, como autodefesa, a restringir a capacidade de influência das fake news e seu potencial de manobra e de recrutamento dos subversivos de direita, para usar a expressão do dicionário de Norberto Bobbio. A questão que se impõe, no momento, é estabelecer limites e o controle de quem controla o pensamento e a expressão alheia. Esse dilema mostra, por si só, a regressão do direito individual, quase sempre desconsiderado pelos coletivistas.

No caso da economia, parece mesmo sempre haver uma cisão dos técnicos contra os políticos; dos neutros contra os demagogos; dos sábios contra os ignorantes; dos puros contra os fisiológicos.

A virtude estaria no campo da economia, o vício no campo de política, que resiste a ser moldada, sempre vulnerável ao clientelismo, ao fisiologismo, ao patrimonialismo, e disposta a se vender no orçamento secreto, no mensalão ou nas intermináveis rachadinhas. O desprezo pela política abre as portas para o militarismo, tido como honesto, incorruptível, dedicado a servir desinteressadamente ao país etc. No círculo vicioso, se eu entendi bem a professora, depois dos militares, viriam os economistas de plantão para fazer valer as políticas de austeridade. Notem, por favor, a força sempre precede o remédio e não o contrário.

Clara Mattei, todavia, parece ter razão quando afirma que esta clivagem entre economia e política favorece o autoritarismo. Sabemos que defender a política nesses tempos de perfis tão toscos e corruptos no Congresso é tarefa difícil. Mas a democracia demanda que essa luta se imponha. Haverá de ter uma maioria – ou mesmo uma minoria mais atuante – interessada em expressar o desejo legítimo dos eleitores em receber os serviços do Estado na saúde e educação de qualidade, infraestrutura sólida, cidadania digna, trabalho, remuneração e aposentadoria justa; em fazer valer uma reforma tributária a altura desse nome, com taxação progressiva, fique claro. A economia enfraquecida destrói os empregos e a renda, e desmobiliza os sindicatos. O emprego vira mercadoria rara. Ao contrário, a economia forte aumenta a procura da mão de obra, incrementa o poder dos sindicatos para a negociação coletiva e para a participação dos trabalhadores no lucro das empresas.

Como a austeridade conduz ao fascismo?

Talvez seja óbvio, mas não encontrei a resposta a essa questão, pelo menos de modo expresso, no trabalho da professora Mattei. Seria por dedução? Seria pela mera associação entre as medidas econômicas liberais, dentre elas o princípio de austeridade aplicado à economia, e o regime de força do fascismo? A professora debruçou-se no exame do caso específico da Itália, onde o fascismo surgiu como ideologia e prática do regime Mussolini, e estenderia suas conclusões como uma regra?

Se for assim, devemos ponderar em primeiro lugar que, como já assinalei, o regime fascista é que, historicamente, abriu caminho para a introdução das práticas de austeridade na economia italiana. Segundo, o fenômeno não se repetiu, pelo menos da mesma forma, em outros países e em outras épocas. Ou seja, o regime fascista à Mussolini não foi usado para impor medidas austeras na economia em outros países no pós-Segunda Guerra, salvo registros nas ditaduras sul-americanas, ibéricas e na ditadura grega dos anos 1970.

Mas, sim, foi adotado, inclusive com a aprovação de parlamentares, por pressão de credores ou por ajustes internos e soberanos ou por consenso como solução para o endividamento das nações e recuperação de seu equilíbrio fiscal, em tempos de crise. Sim, para proteção do capital investido no país, como notaram todos os professores críticos do neoliberalismo. Faltaria, talvez, nesse aspecto, uma abordagem sobre a questão da dívida. Esse tema foi dissecado à exaustão no monumental Dívida16, de David Graeber, antropólogo norte-americano, professor na London School of Economics. No livro, Graeber examina a história da dívida e do crédito, além da história do dinheiro. E, mais uma vez, temos a dívida como uma questão – exatamente como no caso da austeridade – transitando da esfera Moral para a esfera do Direito e tornando-se jurídico-obrigacional, inicialmente apenas via contrato.

A professora também tem razão ao afirmar que Mussolini, e seus economistas – especialmente Alberto de Stefani – implantaram com êxito as regras de austeridade que o parlamento italiano recusava-se anteriormente a adotar. Esse ponto está muito bem documentado no seu livro, que inclui o jornalismo e a correspondência diplomática britânica. Podemos deduzir que, a despeito dos meios, o “sucesso” na aplicação da austeridade trouxe a recuperação econômica da Itália e, com ela, o enorme apoio das massas proletárias e da pequeno-burguesia ao regime? Essa popularidade deu impulso ao populismo fascista que, entre muitos fatores, inclusive geopolíticos, conduziu o mundo à Segunda Guerra.

Além dos atos documentados, a arte corrobora a afirmação de Mattei sobre o empenho das classes conservadoras em separar a economia da política e com isso afastar os eleitores das questões econômicas, reservando-as aos “esclarecidos”. Refiro-me àquele filme maravilhoso sobre o período entre guerras, Vestígios do Dia (1993), de James Ivory, baseado no livro do Nobel nipo-britânico Kazuo Ishiguro. Há uma cena que se passa nos meados dos anos 1930, com a elite inglesa simpática ao nazifascismo. Durante o jantar os elegantes convivas germanófilos, para demonstrar que o povo não entende nada – logo não deve ser consultado – convidam o mordomo (Antony Hopkins) que está no serviço de atendê-los, a responder a algumas perguntas sobre política externa, finanças e economia.

O serviçal prontifica-se, mas pede desculpas humildemente e não consegue sequer balbuciar respostas a nenhuma das questões. Um dos aristocratas finaliza: “Vejam cavalheiros, o homem não consegue responder a essas questões. Mas, ainda assim, o Império Britânico insiste com a noção de que as decisões da nação fiquem nas mãos do nosso bom homem e de milhões como ele.” Cai o pano.

Ademais Mattei mostrou, de forma eloquente, que economia é um tema político muito grave. E é um perigo separá-la da política para deixá-la nas mãos exclusivas dos economistas. Há advogados que redigem, na calada da noite, decretos para um golpe contra o estado de direito. Há médicos que receitam cloroquina e ivermectina e que pregam a imunidade de rebanho contra um vírus letal. E há liberais que não têm pudor em admitir e em se adaptar ao fascismo. Os últimos anos têm sido pródigos nesses exemplos.

Como leitor, faço poucas ressalvas ao trabalho de Clara Mattei, pontuais e relativas a algumas premissas que aparecem aqui e ali e que me parecem dogmáticas e, como tal, ultrapassadas. Por exemplo, referir-se à força do trabalho como motor do capitalismo17 como se estivesse no século XIV. A relação entre o capital e o trabalho adquiriu tantas modalidades complexas e variáveis sofisticadas, inclusive com a inserção de tecnologia e mercado de capitais, que a frase fica reduzida a um slogan nostálgico.

No mais, o livro de Clara Mattei tem o encanto radical das melhores produções intelectuais e é impregnado da paixão pelo estudo candente que realizou. As notas e referências tomam mais de um quarto da obra muito bem fundamentada. Isso explica, por si só, o brilho nos seus olhos quando fala do seu livro fascinante. Eu tinha razão quando me enchi de entusiasmo para devorá-lo.

Economia e Educação

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Vivemos momentos de grandes alterações em todos os setores da sociedade, o mundo contemporânea se transforma rapidamente, as tradições estão sendo destruídas, os modelos econômicos estão em movimento, as famílias passam por novas configurações, os relacionamentos estão em alterações constantes, os trabalhadores estão agitados e assustados, as doenças contemporâneas trazem patologias centradas nos desajustes emocionais existenciais, levando os seres humanos a reflexões sobre as condições da vida na sociedade contemporânea, gerando dores na alma, incertezas e instabilidades, incrementando as preocupações com a saúde mental dos indivíduos.

Nesta sociedade, a economia deixou de ser um espaço legítimo de satisfação das necessidades dos seres humanos, onde a ciência econômica foi construída como instrumento para garantir que as demandas e as necessidades dos seres humanos sejam satisfeitas, sabendo ainda, que os recursos existentes na natureza são limitadas, cabendo a economia a construção de um cenário onde todos os indivíduos tenham acesso aos bens, mercadorias e serviços necessários para sua reprodução social, uma vida digna e decente, mesmo sabendo que as incertezas e as instabilidades crescem em todas as sociedades.

Nos últimos anos, a economia se transformou em um espaço de acumulação extraordinária, onde os setores financeiros passaram a comandar a estrutura econômica e produtiva, impondo seus interesses imediatos, garantindo lucros escorchantes, contribuindo para a manutenção e, principalmente, para a perpetuação de uma estrutura social degradada, abduzindo todos os agentes da sociedade, comprando consciências, dominando as redes sociais e impondo uma agenda que consolide seu interesse, cultuando a meritocracia, estimulando o empreendedorismo, o individualismo e o imediatismo.

Nestas andanças profissionais, percebemos que os indivíduos acreditam que a educação é a chave do desenvolvimento econômico da sociedade, acreditamos piamente nesta equação que associa a educação com as grandes transformações da estrutura produtiva, garantindo uma melhora substancial no capital humano, com fortes investimentos em ciência, pesquisa e inovação, afinal estamos na chamada era do conhecimento.

Todas as nações que conseguiram alçar fortes melhorias econômicas, sociais e produtivas e saíram de condições intermediárias para se transformarem em nações desenvolvidas, só conseguiram essa proeza com um projeto de nação, com fortes investimentos educacionais, com forte valorização da educação nacional, elevados investimentos nos professores e profissionais da educação, com melhoras constantes na infraestrutura das escolas, garantindo as condições necessárias para alçar voos elevados e necessários, projetos pedagógicos inovadores, cobranças de resultados e sólidos contatos com setores econômicos e produtivos.

Neste cenário, precisamos recolocar a educação no centro das discussões econômicas, deixando de lado discussões secundárias de indicadores macroeconômicos que servem apenas para perpetuar os ganhos dos rentistas e dos financistas, que adoram discutir seus ganhos imediatos, seus lucros estratosféricos, resultados vistos como a sua capacidade de investir, farejar lucros e compreender os códigos do mundo das finanças, se esquecendo que seus grandes retornos se dão através de taxas de juros elevadas, fraudes empresariais e sua capacidade de controlar seus prepostos na gestão pública e perpetuando suas riquezas em detrimento de uma massa de empobrecidos e marginalizados.

A educação é imprescindível para o desenvolvimento econômico de uma nação, garantindo uma maior complexidade na estrutura econômica e produtiva, incentivando empregos de qualidade, reduzindo as desigualdades sociais e garantindo novos recursos para impulsionar os setores produtivos, com políticas públicas que ataquem as causas das desigualdades que degradam e limitam o crescimento econômico brasileiro, que reduzem as potencialidades da nação e garantindo ganhos vultuosos para poucos. Mas o que me assusta, parafraseando Darcy Ribeiro “a crise da educação no Brasil não é uma crise, mas um projeto”.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Brasileira Contemporânea, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Pacto pelo Crescimento

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A economia brasileira vem passando por grandes alterações que tem impactos sobre todos os setores, destacando as potencialidades da nação e os grandes desafios que se abrem para o século XXI. Neste momento, precisamos construir laços efetivos, reduzir as polarizações que atravancam o desenvolvimento brasileiro, impulsando a construção de novas riquezas em um mundo em constante transformação, além de pensar um futuro promissor e inclusivo para todos os indivíduos, criando cidadãos e não se contentando com a construção apenas de consumidores.

Depois de décadas de forte crescimento econômico e fortalecimento produtivo, que colocou o Brasil na liderança do crescimento econômico internacional, depois dos anos 1980 perdemos a vocação para o crescimento econômico e passamos a nos acostumar com taxas pífias de crescimento, perdemos espaço no comércio internacional, mergulhamos num processo de desindustrialização, com perdas crescentes de renda e perdemos o dinamismo produtivo, reduzindo nossa complexidade econômica e, novamente, voltamos a nos destacar apenas como uma nação exportadora de produtos primários de baixo valor agregado e dependentes da importação de produtos industrializados e manufaturados.

Precisamos impulsionar o crescimento da economia, retomando as discussões do nosso potencial econômico e produtivo, precisamos impulsionar as ideias de planejamento econômico sistêmico, usando as estratégicas geopolíticas e geoeconômicas para que o Brasil retome seu papel na sociedade internacional, mostrando nosso potencial de economia verde, construindo energias alternativas e capacitando o meio ambiente para garantir a sustentabilidade, transformando essas potencialidades naturais, desta forma levantaremos poupanças externas para financiar as melhorias sociais, garantindo emprego de qualidade e espaço privilegiado nos círculos políticos globais.

No Brasil contemporâneo, precisamos construir variados pactos para a melhoria econômica, política e social, dentre estes pactos, precisamos pactuar produção, emprego e crescimento econômico, utilizando toda a infraestrutura para angariar melhoras das condições sociais, rechaçando políticas que priorizam os interesses corporativos, que aumentam os subsídios e as desonerações que garantem ganhos imediatos e contribuem ativamente para a perpetuação das desigualdades que perpassam a sociedade nacional.

Embora saibamos que os recursos públicos são limitados e as condições orçamentárias são precárias, precisamos analisar, estrategicamente, os investimentos públicos e seus retornos, impulsionando as melhores formas de gastos privados, criando espaços de confiabilidade e vislumbrando retornos sólidos e consistentes no longo prazo, garantindo melhorias para toda a comunidade. Nestes últimos quarenta anos, a comunidade internacional percebeu que a agenda para os países em desenvolvimento era de austeridade fiscal e restrição econômica e financeira, marcadas por taxas de juros elevadas e gastos públicos reduzidos, diante disso, os resultados destas políticas são claras e conclusivas, empobrecimento da população, aumento de violência urbana, incremento dos conflitos sociais, aumento da xenofobia, incremento da polarização política e o aumento da desigualdade social, guerras generalizadas, poucos indivíduos muito ricos e milionários e uma grande quantidade de pobres, miseráveis e desfavorecidos, gerando um capitalismo instável e cada vez mais desigual, com perspectivas negativas para a maior parte da comunidade internacional.

Vivemos numa sociedade marcada por grandes potencialidades, pouco vistas em outras nações, somos dotados de recursos naturais que nos colocam no centro da produção global de alimentos, somos dotados de variadas energias alternativas, somos possuidores de uma população criativa e com forte potencial empreendedora e de grande capacidade inovadora, mas precisamos perceber que o desenvolvimento prescinde de políticas integradas e duradouras, instituições sólidas e consistentes, uma democracia pujante e fortemente arraigada para transformar toda a potencialidade brasileira, precisamos nos desvencilhar de uma visão imediatista, individualista e precisamos vislumbrar melhoras para todos os cidadãos, não apenas seus descendentes e seus apaniguados.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Circular, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Ouro brasileiro foi a maior catástrofe econômica e política de Portugal, por João Pereira Coutinho

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Saberá Flávio Dino que a descoberta das minas na antiga colônia foi motivo de atraso para o desenvolvimento do país

João Pereira Coutinho, Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Folha de São Paulo, 02/01/2024

Amigos brasileiros, meio a sério, meio a brincar, costumam pedir de volta “o ouro do Brasil”. De início, ficava pasmo. Ouro? Qual ouro? Não uso joias. Sempre achei que um homem com joias é um erro de casting.

Não, não são joias, Little Couto. Eles querem de volta o ouro que os portugueses levaram do país a partir de finais do século 17.

Tempos atrás, por causa de um lamentável episódio xenófobo com uma brasileira em Portugal, o ministro Flávio Dino até deu cobertura oficial à exigência. Se os portugueses não gostam de brasileiros, podem devolver também o ouro de Minas Gerais!

Calma, ministro. A estupidez de um patrício não define um povo inteiro. E, sobre o ouro, saberá o senhor que a descoberta das minas foi, provavelmente, a maior catástrofe econômica e política de Portugal? E que o atraso do país na era contemporânea se explica, precisamente, pelo ouro que o senhor reclama?

A tese está contida num dos melhores livros de 2023, que merecia uma edição brasileira, até para acalmar os ânimos. O autor é Nuno Palma, historiador português e professor da Universidade de Manchester, que analisa com rigor “As Causas do Atraso Português” (D. Quixote/Leya, 408 págs.).

No século 19, esse atraso consumiu os melhores espíritos e ficou célebre a conferência de Antero de Quental sobre as “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos”.

O atraso dos ibéricos, segundo o filósofo e poeta, era explicado, entre outros fatores, pelo catolicismo obscurantista que impediu o progresso material, institucional e mental.

Nuno Palma não compra essa versão: países católicos, como a Bélgica ou a França, foram casos de sucesso na Europa oitocentista. Se queremos encontrar as raízes do atraso temos de viajar até ao século 18, quando o ouro começou a chegar em quantidades apreciáveis.

Sim, no curto prazo, Portugal enriqueceu. Mas a “maldição” desse recurso distorceu a economia de forma profunda, levando ao abandono das fábricas (a industrialização do país que era promissora no último quartel do século 17), ao favorecimento das importações e ao colapso da competitividade pátria.

Em meados do século 18, quando o ouro ainda chegava, a economia portuguesa estagnou e Portugal perdia o trem da Revolução Industrial. Estavam abertas as portas para o medonho século 19, feito de guerras civis e bancarrotas.

Mas o ouro do Brasil não teve apenas um impacto econômico nocivo. Argumenta Nuno Palma que, politicamente falando, o atraso institucional foi comparável. Quem pensa que o absolutismo régio português emergiu na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, desconhece o papel das cortes na limitação do poder do rei para lá desse período.

Esse elemento “protoliberal”, que em Inglaterra só se afirmou verdadeiramente com a Revolução Gloriosa de 1688-1689, sempre fez parte da cultura institucional portuguesa desde a fundação.

Se o rei queria cobrar impostos, por exemplo, tinha de ouvir os representantes municipais, eleitos pelos seus pares. Para usar um célebre bordão americano, “no taxation without representation”. A convocação das cortes era a expressão institucional desse princípio.

No século 18, com o ouro brasileiro, as cortes não se reuniram uma única vez. Para quê? A liquidez de que a Coroa dispunha permitia-lhe atuar sem prestar contas a ninguém.

No fundo, permitia-lhe atuar sem freios e contrapesos, cultivando antes as suas clientelas parasitárias e venais. O Marquês de Pombal e seus sucessores representaram bem essa nova cultura despótica e “iluminada”.

Moral da história?

O iliberalismo português, que obviamente contagiou o Brasil, não começa com Salazar e a ditadura do Estado Novo no século 20. Começa antes, muito antes, na experiência absolutista de 700, que se espraiou até aos nossos dias.

Devolver o ouro?

Ó, meus amigos, ó meus irmãos: pudesse eu viajar no tempo para influenciar as cabeças dos meus antepassados e o ouro ficaria escondido nas entranhas de Minas Gerais.

Pelo menos, até que portugueses ou brasileiros tivessem atingido um patamar de desenvolvimento político e econômico a partir do qual o ouro seria uma benesse, e não uma ruína.

Jovens da periferia são potenciais desperdiçados, por Nayara Bazzeli

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Empresas precisam despertar para esse potencial negligenciado

Nayara Bazzoli, Gerente do Juventudes Potentes, organização liderada pelo Instituto Aspen e articulado pela United Way Brasil

Folha de São Paulo, 02/01/2024

Certa vez, um jovem que atendemos na organização teve a oportunidade de participar de processo seletivo em uma grande empresa. Para ele, essa representava a chance de finalmente ter um emprego formal, digno, que poderia mudar sua vida, marcada por uma série de vulnerabilidades sociais.

Ele morava no extremo leste da cidade de São Paulo, se arrumou para a ocasião, fez todo o longo
trajeto até a empresa e, ao chegar ao edifício, deparou com um obstáculo até então inimaginável: acessar o elevador.

Sem nunca ter visto um modelo tão sofisticado, em que a tecnologia te direciona para qual caminho seguir, ele não soube pegar o elevador e, envergonhado, decidiu voltar para casa, sem realizar aquela que poderia ter sido sua porta de entrada para um mundo de perspectivas profissionais.

Essa é uma história verdadeira que, infelizmente, faz um pequeno recorte da série de dificuldades que milhares de jovens das periferias brasileiras enfrentam no mundo do trabalho e que está fora do radar das empresas.

São lacunas de vivências pessoais, como essa, que impedem muitas vezes as potências de ocuparem espaços e se desenvolver. Na situação relatada, teria sido suficiente esse jovem ser recepcionado por uma liderança da empresa em que ele se reconhecesse, que lhe desse segurança para seguir naquele momento inicial. A grande maioria das empresas não sabe quem são esses jovens, quais suas inseguranças, dificuldades e anseios, o que poderia ajudá-los a se inserirem no mundo corporativo.

Temos na cidade de São Paulo 765 mil jovens entre 15 e 29 anos que têm suas vidas atravessadas por uma série de injustiças estruturais, as quais os impedem de permanecer na escola, conseguir empregos formais e se desenvolver. São os chamados jovens-potência, que, com políticas públicas direcionadas, ações intersetoriais e engajamento empresarial poderiam mudar suas vidas e gerar um retorno médio de R$ 2 bilhões para o Produto Interno Bruto (PIB) da capital paulista, segundo cálculo do Juventudes Potentes e da Accenture, em 2020.

A pesquisa recente “Injustiças estruturais entre jovens na cidade de São Paulo” ouviu 600 desses jovens e trouxe um retrato de suas vidas e obstáculos. Quase 40% já têm filhos, 71% são negros, 21% interromperam os estudos e 68% já ficaram sem dinheiro para pegar transporte público. São vidas atravessadas por múltiplas adversidades e imposições sociais, agravadas por outros fatores que dificultam uma inserção adequada no mundo do trabalho. Eles dizem, por exemplo, que se veem em desvantagem por haver poucas vagas de emprego formal perto de onde moram, por terem baixa qualificação profissional e devido à concorrência injusta e discriminação das empresas. O preconceito é outro fator: eles se sentem subestimados por conta do lugar onde vivem e estudaram. São questões que ainda passam à margem da preocupação de muitas empresas.

Os próprios jovens-potência têm clareza do que poderia ajudá-los: formação para o trabalho, políticas públicas de incentivo à inclusão produtiva, mudança de cultura das empresas para que acolham o jovem trabalhador desde o processo seletivo e garantam, posteriormente, condições favoráveis ao seu desenvolvimento, novas dinâmicas de trabalho pensadas em jovens periféricos, entre outras ações que contemplem a diversidade de vivências sociais dessa população.

O caminho está dado. Falta ainda às empresas despertarem para esse potencial negligenciado, revendo suas práticas e políticas para abrir portas e sustentar a permanência desse jovem no mundo do trabalho. Não podemos continuar normalizando as injustiças estruturais que afastam tantos jovens de um futuro promissor.

Cada jovem é responsabilidade de toda a sociedade. Precisamos elevar toda essa potência hoje desperdiçada.

Por que a população em situação de rua cresce apesar da redução da pobreza? Laura Machado

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Êxodo para as ruas é maior em territórios mais ricos, provável consequência do rompimento de vínculos

Laura Muller Machado, Mestre em Economia Aplicada pela USP, é professora do Insper e foi secretária de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo

Folha de São Paulo, 30/12/2023

A população em situação de rua cresceu 12% ao ano nos últimos 10 anos, triplicou de tamanho, enquanto a pobreza oscilou, mas caiu e voltou ao mesmo patamar de uma década.

A população em situação de rua está onde há riqueza, e não nos territórios mais pobres. Essa evidência quebra alguns paradigmas e pode dar luz ao que precisamos construir, para além das políticas de transferência de renda tradicionais.

Nossa política de proteção social baseada em renda coincidentemente ascendeu muito no mesmo período em que a população em situação de rua triplicou. Algo está faltando.

A Europa, por meio da sua Rede de Política Social Europeia (ESPN), lançou uma série de relatórios com evidências sobre o tema. Os dados mostram que ao longo dos últimos anos, a depender da disponibilidade do dado para cada país, a população em situação de rua na Alemanha aumentou 15% ao ano e, na Inglaterra, 14%. Em outros 12 países passíveis de análise, apenas a Finlândia não registrou alta.

Estamos tratando de um problema mundial. No Brasil, a elevação é de 12% ao ano, um crescimento constante ao longo dos últimos 10 anos, cenário muito diferente da percepção de que o agravo foi exclusivamente devido à pandemia. Antes da crise de Covid-19, tal população já havia crescido 140% em relação a 2012, de acordo com o Cadúnico (Cadastro Único) do governo federal.

Os estados brasileiros com maior número de pessoas em situação de rua por habitantes são também os mais ricos: Mato Grosso, São Paulo, Mato Grosso do Sul, além do Distrito Federal. Os mais pobres, como Alagoas, Amazonas, Maranhão e Pernambuco, estão entre os locais com menor incidência.

Por que em um retrato comum da pobreza, como do interior do Nordeste, com escassez de água e alta vulnerabilidade, não temos índices tão elevados de pessoas em situação de rua?

A cidade de São Paulo fez um censo com essa população e alguns dados chamam a atenção: quando perguntados sobre o motivo de estarem na rua, menos de 5% atribuíram a causa à migração. Na pesquisa, 74% declararam viver sozinhos antes de irem para a rua e 69% declararam viver com familiares. Quando questionados sobre motivações, 50,2% responderam que experimentaram algum tipo de rompimento de vínculo.

Uma das explicações para esse fenômeno, de maior índice de sem-teto em territórios mais ricos, pode ser a força da rede de apoio e de convivência que as regiões mais pobres constroem, até por necessidade.

O entendimento de que precisamos ser solidários e acolhedores (mesmo porque amanhã pode ser você em apuros) é o que mantém muitas comunidades vinculadas, apesar da violação dos direitos que vivenciam. Em uma sociedade com laços e comunidades fortalecidas, há acolhimento e socorro.

Sem rede de apoio, na hipótese de um cotidiano vulnerável a eventos extremos como fome, violência familiar e abusos, a reação humana também pode ser extrema. Com laços comunitários cada vez mais enfraquecidos, a falta de vínculo aguça essa resposta dramática a eventos adversos. Nesse caso, a drogadição é mais consequência do que causa.

A transferência de renda e o combate à pobreza são direitos essenciais, mas não substituem a necessidade de proteção social que só o pertencimento e o vínculo comunitário geram. Se como sociedade, em especial nos locais mais ricos, enfraquecermos o acolhimento, podemos ter um agravamento das reações extremas que a transferência de renda pura não será capaz de reverter.

Não responsabilizo especificamente a população em situação de rua ou envolvidos com esses episódios, mas toda a sociedade. Se parte da nossa pobreza provém da falta de pertencimento, é preciso aprender uma nova forma de abordar os desafios da adversidade à que todos estamos suscetíveis.

Segurança pública: prioridade para 2024, por Oscar Vilhena Vieira

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Reduzir a violência é não apenas um imperativo moral, mas também uma condição para a prosperidade econômica

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023)

Folha de São Paulo, 30/12/2023

Em 2023 a democracia foi salva e a economia parece estar entrando nos eixos. A agenda climática foi retomada, assim como as principais políticas sociais. Feitos nada triviais para um governo minoritário e recebido com grande desconfiança pelo mercado.

O centrão, como era de se esperar, demonstrou-se mais leal aos seus interesses pragmáticos que à agenda obscurantista dos antigos habitantes da Esplanada (com exceções). O governo soube alinhar suas prioridades às ambições da maioria parlamentar. Tudo isso, evidentemente, ao régio custo de emendas. O fato, porém, é que a coisa andou. O governo governou.

O grande desafio para 2024 é estabelecer alguma ordem e racionalidade no campo da segurança pública. A redução da violência e da criminalidade, que brutalizam a vida de milhões de brasileiros todos os dias, constitui não apenas um imperativo moral, mas também uma precondição para a prosperidade econômica e para a sobrevivência do próprio Estado democrático de direito.

Desde a transição para a democracia os diversos governos federais têm se evadido da responsabilidade de coordenar as políticas e modernizar as agências de justiça e segurança, alegando que essa é uma responsabilidade dos estados. Essa omissão levou ao crescimento do crime organizado, à deterioração do sistema de segurança, assim como abriu um enorme mercado eleitoral para a extrema direita, com suas receitas simples, diretas e, sobretudo, erradas no campo da segurança pública. Armar a população, aliviar os controles sobre a atividade policial, promover o encarceramento indiscriminado e fechar os olhos para as milícias pode gerar votos, mas, no final do dia, apenas contribui para o aprofundamento da crise de segurança, levando a mais mortes e degradação do tecido social.

Nas últimas décadas houve um avanço muito grande no campo da segurança pública, com forte impacto sobre a redução da violência em diversas partes do mundo e também no Brasil. Como não se cansava de salientar Paul Chevigny, professor emérito da Universidade de Nova York e autor de dois clássicos estudos sobre polícia, falecido no último mês, múltiplos são os fatores que promovem a criminalidade e a violência. Múltiplas, portanto, devem ser as políticas e instituições envolvidas na contenção da criminalidade. Logo, não é uma tarefa apenas das polícias estaduais, no caso brasileiro.

Isso impõe ao governo federal assumir um protagonismo, ainda que partilhado, na construção de política nacional de segurança pública, com foco na redução dos homicídios e na retomada dos territórios hoje dominados pelo crime e pelas milícias. Perdoem o truísmo, mas estados são constituídos e governos são eleitos para enfrentar os problemas centrais de uma sociedade. E assegurar a paz é o problema primordial de qualquer sociedade.

Se o governo federal não entende ser conveniente criar um Ministério da Segurança Pública para executar políticas de segurança, deveria ao menos criar uma Secretaria de Estado, com mandato e autoridade para articular junto ao parlamento, aos governadores e mesmo às polícias uma ampla reforma das políticas criminais, bem como a modernização das agências de aplicação da lei, além de promover a integração de outras políticas sociais com as políticas de segurança. A indisposição para enfrentar racionalmente os desafios da segurança pública será inevitavelmente punida pelo eleitor. Desnecessário lembrar que as principais vítimas continuarão a ser pretos e pobres.

Desejo às leitoras e aos leitores um bom ano! Lembrando, apenas, que o ano não será melhor se cochilarmos no ponto.

Austeridade econômica pavimenta o caminho para o fascismo. Entrevista por Clara Mattei

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Precisamos saber como a classe dominante opera para preservar um sistema injusto” – Clara Mattei

A professora e escritora Clara Mattei é objetiva: já no título de seu mais recente livro ela fala da conexão direta entre austeridade econômica e o fascismo. Em The Capital Order: How Economists Invented Austerity and Paved the Way to Fascism (ainda sem título em português – em tradução livre: “A ordem do capital: como os economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo”) ela destrincha essa relação. O livro será lançado no Brasil ainda este ano pela editora Boitempo.

Clara Mattei, autora de livro sobre o tema [austeridade fiscal], foi a convidada da semana no BdF Entrevista.

A entrevista é de José Eduardo Bernardes, publicada por Brasil de Fato, 04-07-2023.

Mattei foi a convidada do Brasil de Fato Entrevista desta semana.

Ela contou sobre o processo para elaboração da obra, que é fruto de dez anos de estudo. Italiana radicada nos Estados Unidos (ela é professora de Economia na The New School for Social Research, em Nova Iorque), a pesquisadora cita personagens como Benito Mussolini, Donald Trump e a atual primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, como frutos políticos de um caminho trilhado com apoio na lógica da austeridade econômica.

“Para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve estar desempoderada, precarizada e dependente do mercado. E é isso que a austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham dinheiro através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios e rendas”, afirma ela, que destaca que a alternativa a esse sistema passa pela organização das pessoas em suas comunidades locais.

Eis a entrevista.

A senhora passou dez anos escrevendo o livro que nasceu da sua tese de doutorado. Como e quando decidiu se aprofundar neste assunto?

Tudo começou quando estava vivendo os anos de grande austeridade de Mario Monti, na Itália. Ele chegou ao poder após a crise da dívida soberana em nosso país e estava estudando e vivendo na pele, assim como a maioria das pessoas no mundo ainda vive hoje, os efeitos da austeridade, a redução de verbas para a educação e saúde pública. Vi as pessoas na Itália ficarem cada vez mais pobres a olhos vistos. Era um país em que não tínhamos pessoas morando na rua e as ruas estavam ficando cheias de gente. Não havia moradia.

Mas você passou dez anos pesquisando e procurando material em arquivos, certo?

Sim, é um trabalho em economia histórica e política. É baseado em fontes primárias e na reconstrução do passado através de uma nova perspectiva, analisando material que ainda não havia sido publicado. O tipo de debate sobre austeridade que estava ocorrendo na mídia, na política pública e até entre movimentos de esquerda era muito insatisfatório porque era muito apolítico.

Transformaram a austeridade em uma ferramenta técnica para gerir a economia e a discussão era se a austeridade estava ou não funcionando para equilibrar o orçamento e promover crescimento. Era um debate sem solução. E não muito útil para entender por que a austeridade continuava emergindo mesmo que claramente não estivesse gerando crescimento, nem ajudando a resolver a questão da dívida.

Então o estudo histórico é muito importante porque nos dá uma análise com perspectiva de classe que estava ausente no debate econômico contemporâneo, que era muito tecnocrático. A tentativa era então olhar para o que aconteceu 100 anos atrás e mostrar como a austeridade tem uma clara lógica política que visa manter todos nós em uma situação de precariedade, de dependência do mercado, desempoderando assim a população para que o sistema se proteja e mantenha a ordem do capital, que é o título do livro: A ordem do capital, para se manter intacto.

Se olharmos para a história, isso só é visível porque aconteceu em um momento em que o capitalismo foi muito contestado depois da Primeira Guerra, e assim realmente vemos como a austeridade operava como uma contraofensiva usada pelas elites para impedir qualquer alternativa ao nosso sistema.

Na apresentação do livro, você fala sobre várias crises econômicas e políticas em países do mundo todo, já que essas crises e essa austeridade são intrínsecas à nossa sociedade moderna.
Nos últimos anos, mais uma vez vimos uma crise do neoliberalismo no mundo todo, algo que já se dizia no início do século passado. Esse modelo econômico não é o mais adequado, certo?

Sim, com certeza. Estamos em outro momento em que as pessoas não acreditam no sistema, penso eu. Aliás, é por isso que a austeridade voltou com força total. Não só no Brasil. Eu moro nos Estados Unidos e o motivo pelo qual o Federal Reserve, o [equivalente ao] Banco Central, está aumentando a taxa de juros é porque a maioria das pessoas não está voltando ao trabalho.

Muitos trabalhadores estadunidenses, 46 milhões, em 2022, largaram seus empregos porque estão cansados da exploração e porque veem que o sistema não trabalha para eles e sim para uns poucos que enriquecem constantemente. Então é nessa situação que a austeridade deve voltar para nos convencer que, na verdade, estamos enganados e não existe outra saída a não ser através do sacrifício dos trabalhadores e, em última instância, do corte de salários para atrair a confiança dos investidores.

E o capital parece tentar se reestabilizar e se preservar o tempo todo.
Mesmo diante de uma crise, os bancos, o sistema inteiro, e até os governos liberais, ainda tentam protegê-lo.

Com certeza. Mas acho que existe aí uma mensagem de esperança que surge quando levamos a História a sério: o capital não é fixo, não é algo dado e não é uma coisa, não é um objeto. É uma relação social e se traduz em uma maioria que aceita sua condição e aceita sua condição de vender sua capacidade por um salário.

A relação social não é de maneira alguma estática. É dinâmica e pode ser subvertida. É dinâmica e pode ser subvertida. Então a realidade é que a ordem do capital é muito frágil. E é por isso que a austeridade é tão cara a ela, porque a protege de todas essas demandas de transformação social que vão surgindo.

A mensagem aqui é que precisamos saber como a classe dominante opera para preservar um sistema injusto. Precisamos parar de idealizar o capitalismo como um sistema que pode ser reformado e que tem flexibilidade para incorporar nossas necessidades, e perceber que o capitalismo tem limites rígidos. É um sistema que só cresce e produz para gerar lucro e isso requer austeridade.

A tese central aqui é que a austeridade não é uma exceção no capitalismo, não é algo que só se vê nas etapas neoliberais, começando nos anos 80. Ela é muito mais intrínseca à longa história do capitalismo. Está no DNA do sistema exatamente porque, para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve estar desempoderada, precarizada e dependente do mercado. E é isso que a austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham dinheiro através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios e rendas.

A pesquisa aborda os primeiros anos do século 20 até a atualidade. E a austeridade esteve sempre presente, como você acaba de dizer, desde o período entreguerras, que é onde começa a pesquisa.

Você disse que a austeridade foi uma ferramenta técnica e despolitizada para a ascensão de lideranças autoritárias. Por que unir Mussolini, Jair Bolsonaro, Viktor Orbán e Giorgia Meloni, por exemplo? A pergunta é: “o que os une?”

É muito importante aqui dar um passo para trás. No livro, faço uma reconstrução da crise do capitalismo após a Primeira Guerra, há exatos 100 anos. Em 1919 e 1920, a população em geral tinha desistido do capitalismo, pensando que haveria um futuro melhor após a reconstrução pós-guerra. E todos esses experimentos que surgem de conselhos de trabalhadores demandam democracia econômica, o que significa que as pessoas estavam se reapropriando da produção e distribuição de recursos. Isso estava acontecendo concretamente.

Meu foco é o movimento de Antonio Gramsci, em Torino, L’Ordine Nuovo, em que é possível ver um esforço real não só para pensar diferente, como também para agir diferente. E só se podia agir diferente realmente pensando diferente e só se podia pensar diferente agindo diferente. Então é a importância da prática, de uma sociedade diferente nascer de experimentos dentro das fábricas e também no campo, em que as pessoas se reapropriaram dos meios de produção e da organização do trabalho.

Nessa situação explosiva, a burguesia ficou muito assustada. Porque, é claro, ela se beneficiava do capitalismo, queriam protegê-lo e qualquer forma de distribuição e democracia econômica teria significado, de certo modo, o fim dos seus privilégios. É nesse momento em que vemos emergir a austeridade como uma contraofensiva e aqui há dois fatores relacionados à sua pergunta. O primeiro é que os economistas participaram muito ativamente na construção de modelos econômicos supostamente “neutros”, teorias “neutras”, conhecimento científico, para dizer às pessoas que elas eram ignorantes, que elas não entendiam e, em suma, que estavam vivendo por conta própria e tinham que aceitar a verdade dura, como diziam, do trabalho duro e abster-se de consumir.

Então esse lema de austeridade, “consuma menos, produza mais”, foi imposto à população italiana e inglesa. Esses dois países são o foco dos meus estudos porque meu interesse é mostrar que a austeridade surge onde a democracia econômica é mais palpável. E naquele momento na
Europa as pessoas tinham ganhado o direito ao voto, por exemplo. Mas o que se vê é uma aliança entre economistas e governos. Os economistas são convocados pelos governos para ajudar a impor à população a austeridade. E a austeridade veio em uma variedade de formas. Não foram só cortes de gastos, foi, em primeiro lugar, cortes de gastos sociais, taxação regressiva. Então houve aumento em impostos sobre o consumo, como ainda vemos no mundo todo hoje, mais impostos para pessoas físicas e corte de impostos para ricos e impostos corporativos ou sobre patrimônio etc.

Também se tratava de aumentar as taxas de juros, que também vemos hoje, ou seja, austeridade monetária, e, por último, aquilo que chamo de medidas industriais, que são ataques diretos a sindicatos, privatização, desregulação do trabalho e arrocho salarial. Então essa tríade da austeridade; fiscal, monetária e industrial; foi imposta à população também graças a economistas que estavam dizendo: “Este é o caminho certo a seguir e somos especialistas e objetivos”. Nesse sentido, fica evidente que os economistas desempenharam um papel bastante classista, participaram nessa guerra de uma classe contra o resto dos cidadãos e isso poderia ter sido feito de outro jeito, como foi na Inglaterra, onde a democracia liberal usou a austeridade contra seu povo e isso aumentou o desemprego e assim disciplinou os trabalhadores.

Eles tiveram que deter as greves, voltar ao trabalho com um salário bem menor e em piores condições. Voltando à pergunta, na Itália, vemos que Benito Mussolini, o fundador do fascismo, foi o mais eficiente implementador e aprendiz da austeridade. Mussolini chegou ao poder através de uma eleição, não um golpe, assim como Giorgio Meloni e Orbán hoje. Mas com uma intenção explícita de impor austeridade, dizendo às pessoas para não se preocuparem porque iriam fazer os cidadãos italianos pararem as greves, as reclamações e voltarem ao trabalho.

Agora, eu acho que hoje vemos muitos desses políticos “autoritários parafascistas” emergirem porque as pessoas estão insatisfeitas com a austeridade. A austeridade venceu a um ponto em que não há mais a noção de classe: as pessoas pensam que são indivíduos [isolados], e é uma típica mensagem de austeridade: “Não há classes, não há antagonismo, só indivíduos. E são os empresários que lideram a máquina econômica, não os trabalhadores.”

Então, no caso da Itália, para mim, Meloni chegou ao poder porque prometeu redistribuição de renda, e é claro que não cumpriu, porque assim que assumiu o poder mais uma vez impôs austeridade, como Mussolini e outros regimes autoritários.

Sobre isso, você diz que a austeridade não teve sucesso em estabilizar a crise econômica, mas teve sucesso em estabilizar as relações de classe. Estamos vendo agora uma mudança global nas relações de trabalho. Os sindicatos estão enfraquecidos, perdendo poder em alguns países. Como poderíamos ver nascer uma nova organização de trabalhadores?

Tenho algumas ideias sobre isso. Em primeiro lugar, mesmo se existe essa ideia de que os trabalhadores estão enfraquecidos, isso se deve à ação da austeridade sobre nossa vida por mais de 100 anos. Ela foi muito bem-sucedida, como você disse. A austeridade não teve sucesso em atingir os objetivos estabelecidos de crescimento econômico e pagamento da dívida, mas teve muito sucesso em atingir seu verdadeiro maior objetivo: garantir que as pessoas não pensem que podem viver em outro tipo de sociedade, aceitem sua condição de trabalhadores assalariados. Mais uma vez, impondo a ordem do capital. E isso também é uma armadilha para a mente porque os modelos econômicos reafirmam que os trabalhadores não importam, só os empresários.

Então é justo e correto afastar os recursos dos preguiçosos e favorecer os supostamente meritórios. Eles oferecem justificativas para essas políticas de extração de todos nós.

Claramente a austeridade teve sucesso e vemos que, historicamente, os trabalhadores perderam poder, o poder de barganha, o poder de imaginar um novo futuro. Dito isso, quero chamar atenção ao fato de que, no capitalismo, a luta de classes nunca para. É uma constante. Nosso sistema está em movimento, é um processo, não há nada fixo, mesmo que os economistas queiram que acreditemos que há algo fixo. Porque acreditar que algo é fixo nos desempodera e aprisiona nossa imaginação.

Então quero dizer que, é claro, existe um motivo por que a coisa não vai tão bem para os trabalhadores neste momento histórico, mas não é à toa que existem muitas mobilizações novas.
Nos Estados Unidos, por exemplo, é o setor de serviços: pessoas em restaurantes, hotéis, em áreas em que normalmente o trabalho é muito precarizado e individualizado, estão agora se sindicalizando. Starbucks, Amazon, Chipotle. E isso está assustando muito as classes dominantes.

Eu diria que estamos em um momento, na verdade, em que existe novamente certa turbulência. Claro, não é o espírito revolucionário de 100 anos atrás, mas há muita demanda por libertação.

Respondendo a sua pergunta, me sinto muito esperançosa. Há pouco estive na África do Sul, apresentando o livro, e me organizei e me encontrei com ativistas das townships [áreas urbanas comparáveis a favelas].

As townships são lugares onde o apartheid ainda existe, em termos de precarização econômica. No entanto, há muita energia no território, muita gente das novas gerações que abandonou as velhas categorias e estão pensando o novo.

Acho que o importante, para avançarmos, é abrir espaço para essas iniciativas que buscam recuperar independência e autossuficiência.

Trata-se de romper a principal armadilha, que é a dependência do mercado. O que quero dizer? Que a maioria de nós, para poder viver, precisa ter dinheiro no bolso. Se quiser comer, tem que comprar algo no supermercado. Se quiser morar, tem que pagar aluguel. Se quiser ser curado, tem que pagar pelos médicos. Se quiser ir à escola, muitas vezes tem que pagar. Este é o resultado da austeridade.

A mercantilização de todos os aspectos da nossa vida para nos desempoderar cada vez mais.

Acho que a primeira missão aqui é ser capaz de recuperar nosso poder através da organização, de conselhos, da vizinhança, de atividades locais, de formas de produzir e distribuir por nossa conta. Assim não dependeremos do salário dos capitalistas e não gastaremos nosso dinheiro em supermercados, para que o dinheiro não vá embora assim que entrar. Precisamos que os recursos permaneçam dentro da comunidade. E acho que esse é um primeiro passo importante para engajar as pessoas na ideia de organizar, colaborar e perceber que não é suficiente só votar nas eleições.

Votar nas eleições é um ato muito superficial. E é algo que mantém viva a servidão econômica.

Então é preciso romper e combater a servidão econômica. E esse seria um primeiro passo em um projeto muito mais ambicioso, que vai além da democracia social. É a derrubada das relações salariais em si. Repito que isso está acontecendo. Está acontecendo nas townships, eu estive lá há pouco. Está acontecendo no Chile, onde os conselhos são fortes.

Acho que está acontecendo no mundo todo, mas a mídia não fala disso.

Mas é suficiente para se envolver, ir para a rua, conhecer sua vizinha, ver que essas realidades existem e a austeridade está aí justamente para parar esses processos. Mas nós precisamos lutar contra isso.

Você mencionou a viagem à África do Sul. Seu livro será publicado no Brasil no segundo semestre, editado pela Boitempo. Está preparada para esse tour ao redor do mundo?

Tenho um filho de 8 meses que está viajando conosco. Seria melhor não ter que me mover tanto, mas faço isso porque acredito no poder do conhecimento, em ajudar a levar processos adiante.

Novamente, a mudança tem que vir de baixo, de quem está mobilizado. Mas acho que as bolsas de estudo de militância podem ajudar a desenvolver ferramentas para afiar a mente e o conhecimento sobre as estratégias inimigas. E é por isto que a História é útil, para abrir espaço a novas maneiras de fazer as coisas, para fomentar a imaginação política porque, no passado, houve muitos esforços para mudar a nossa sociedade. E ainda existem esforços assim e acho que meu papel é fazer a discussão avançar e dar esperança às gerações mais novas.

A ideia de ter um orçamento elevado é o debate central no Brasil hoje.

Esse debate eterno torna impossível avançar em direção a uma agenda positiva para o país. Por outro lado, muita gente, incluindo o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, acredita que os juros altos vão barrar o crescimento econômico e que o controle da inflação não deveria ser o foco principal. Essa ideia sobre o orçamento primário tem a mesma origem que a austeridade?

Com certeza. É exatamente isto que a austeridade faz. Passa a mensagem de que não há alternativa. Equilibrar o orçamento é uma prioridade indiscutível. É uma prioridade neutra e necessária. Agora, sabe que a mensagem do livro não é que esses economistas estão necessariamente errados. Acho que em boa parte dos casos, principalmente em países do Sul, nos quais os limites do capitalismo são reais, é realmente um problema que a inflação esteja alta, que a moeda esteja desvalorizada. Mas isso dialoga com a violência econômica que é muito estrutural no sistema.

Por isso a solução não é só fazer remendos no nosso sistema, com algumas reformas. Porque o estrangulamento é forte.

E é verdade que, sob o capitalismo, dependemos da confiança dos investidores para o crescimento econômico. E como você atrai investidores? Só se mantiver baixas as taxas sobre grandes riquezas e as taxas empresariais. Só se abrir às privatizações. O que ocorre agora é que grandes gestores de ativos estão comprando infraestrutura, imóveis, para tirar o máximo de taxas e renda, para aumentar o máximo possível as nossas necessidades diárias. Mas é exatamente isto que o Estado capitalista deve fazer, em suma, abrir-se a esses investidores privados. Essa é a realidade do sistema. É por isso que é muito idealista pensar que o Estado capitalista pode se opor a essas tendências globais de austeridade. É por isso, repito, que temos que encontrar formas através de processos de libertação da propriedade privada, meios de produção e relações salariais. Porque o capitalismo realmente nos aprisiona. Não sei se isso faz sentido.

Esse debate entre economistas soa, é claro, como se não fosse uma escolha política. E podemos dizer que obviamente é uma escolha política. Mas também é uma escolha restritiva porque são decisões políticas favoráveis à manutenção da estabilidade de certa forma de mercado capitalista, certo? E isso requer nossa subordinação às leis do mercado que nos estrangulam e beneficiam uma minoria muito pequena. Essas escolhas políticas são restritivas. Mas nós podemos pensar grande, querer mais que migalhas para manter o povo controlado. Precisamos pensar grande, pensar em realmente romper com a nossa posição de subordinação ao mercado.

Aqui no Brasil, em 2016, o governo, que aliás não tinha sido eleito pelo povo, criou um marco fiscal conhecido como “teto de gastos”. A ideia era controlar o orçamento e a relação entre gasto público e PIB. Na verdade, vimos uma drástica redução em investimentos sociais, como educação, saúde pública e outros programas sociais. Essa política de austeridade, junto a outros eventos do sistema político brasileiro, pavimentaram o caminho para a eleição de Jair Bolsonaro.

Movimentos como esse poderiam dar lugar ao avanço de partidos de extrema direita?

Sim, esse é outro exemplo de que a austeridade não é um erro. Muita gente na esquerda diz que é fruto de uma economia ruim, que é um erro. Infelizmente, não é um erro. O que você descreveu mostra o sucesso da austeridade. As pessoas foram tão desempoderadas, que perderam seu senso de união de classe. Perderam a noção da luta coletiva contra o inimigo, que é a minoria que se beneficia do sistema, e terminaram votando por essa minoria que se beneficia do sistema. Porque a austeridade nos individualiza, nos convence que todos nós podemos ser empresários se nos esforçarmos e que deveríamos sentir vergonha de ser pobres. O motivo por que as pessoas votam em alguém como Trump é exatamente o sucesso da austeridade. Não acho que podemos culpá-las por votarem em Bolsonaro ou Trump. Deveríamos culpar a elite dominante, incluindo, infelizmente, o Partido Democrata [dos Estados Unidos] e todos os partidos supostamente progressistas que, de forma hipócrita, já vinham praticando a austeridade.

A austeridade atravessa fronteiras partidárias. Infelizmente, aqueles que supostamente representam o povo, incluindo os sindicatos, apoiaram a austeridade, criaram a sensação de falta de esperança e de que deveríamos fazer o possível para nos salvar como indivíduos, sem olhar para o fato de que somos, na verdade, produtores, produtores coletivos que deveriam lutar contra a exploração e contra aqueles que nos exploram. Então é só através da recriação do senso de coesão de classe e da conscientização de classe que podemos nos libertar da armadilha de pensar que regimes autoritários vão nos salvar. Eles não vão. Mas o mesmo vale para partidos democratas, como o de Biden, que estão desfinanciando todos os setores sociais. Por toda parte.