A sorte visita quem arruma a casa!, por André Roncaglia

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Com parcos recursos institucionais e políticos, o governo lidou com numerosas frentes de batalha

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 29/12/2023

Ao avaliar as “Possibilidades econômicas do governo Lula”, destaquei que Lula inaugurara um governo sitiado, enfrentando um Congress arredio e pronto para desidratar suas propostas.

O governo passou pela “ponte do rio que cai”, equilibrando-se na “pinguela para o futuro” deixada por Temer e Bolsonaro, enquanto as forças armadas —e o sindicato do rentismo na imprensa e no Bacen— torpedeavam o governo de uma posição privilegiada e segura.

Com parcos recursos institucionais e políticos, o governo lidou com numerosas frentes de batalha. A priorização da agenda econômica trouxe custos políticos e institucionais, tais como a hipertrofia das emendas parlamentares (R$ 53 bilhões).

Logo após a vitória, o governo Lula, ainda não empossado, aprovação a PEC da Transição, abrindo necessário espaço fiscal para “arrumar a casa” em 2023.

Com efeito, manutenção e reforço do Bolsa Família, elevação real do salário mínimo, dos salários do funcionalismo e do limite de isenção do Imposto de Renda, reativação da Farmácia Popular, reajuste das bolsas de estudo e pesquisa, alívio do endividamento das famílias (Desenrola), dentre outras medidas, produziram efeitos macroeconômicos benignos.

O PIB deve crescer 3%, surpreendendo as previsões —eleitoralmente ressentidas— do mercado (0,8% no início do ano). Haja sorte!

Lula concentrou sua crítica na Selic que subiu a jato até a estratosfera e, agora, cai de paraquedas, asfixiando os investimentos produtivos. Fernando Haddad teve vitórias marcantes contra a vergonhosa injustiça tributária: o fim da isenção de fundos exclusivos e offshore, regularização das importações via e-commerce e a eliminação de distorções tributárias (como o impacto das subvenções do ICMS sobre gastos em custeio nos impostos federais).

O marco fiscal sustentável substituiu o disfuncional teto de gastos, oferecendo uma trajetória dura (e previsível) de ajuste fiscal que acalmou os mercados e viabilizou a queda da Selic a partir de agosto. Com a melhora do cenário externo (e a ajuda do Fed), a bolsa de valores bateu máxima histórica (134 mil pontos e 26% de valorização no ano); os juros longos e a taxa de câmbio despencaram.

A desinflação global da energia e dos alimentos se aliou à apreciação cambial, derrubando a inflação —que deve fechar o ano em 4,7%— e aumentando o apoio a cortes maiores na taxa Selic (hoje em 11,75%).

O saldo recorde da balança comercial (cerca de US$ 90 bilhões) gerou o mais baixo déficit em conta corrente em mais de uma década (US$ 0,2 bilhão). As exportações da agropecuária e do setor extrativo-mineral foram importantes motores do crescimento, mas representam uma fatia irrisória dos quase 2 milhões de empregos criados em 2023.

Foi o setor de serviços que puxou a elevação robusta da renda real do trabalho até o terceiro trimestre deste ano (3,9% na comparação interanual). A manutenção deste ritmo é um dos grandes desafios para 2024, assim como a ampliação dos investimentos públicos.

A reforma tributária aprovada em dezembro coroou o esforço fiscal e consolidou a boa imagem do governo fora do país, aproximando-nos do grau de investimento. Resta avançar na reforma tributária da renda, do patrimônio e da folha de pagamentos.

A neoindustrialização ganha corpo com a restauração do foco industrial e na inovação do BNDES, a folga da política de preços da Petrobras e a reativação da CEITEC (estatal dos chips), medidas de suporte ao Novo PAC. Falta ainda coerência nas políticas externa e energética (ingresso na OPEP+ na COP28 e a paralisia no caso Eletrobras).

Com a melhoria do cenário externo, as reformas de longo prazo efetivadas podem ampliar o horizonte do cálculo econômico e repetir, em 2024, parte desta “sorte” que visita quem deixa a casa arrumada.

Analisarei os desafios no novo ano.

Que venha 2024!

Morre Robert Solow, pioneiro no estudo do crescimento econômico, por Bernardo Guimarães

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Ao avaliarmos políticas públicas, precisamos pensar no que pode gerar um próspero 2044

Bernardo Guimarães, Doutor em economia por Yale, foi professor da London School of Economics (2004-2010) e é professor titular da FGV EESP

Folha de São Paulo, 27/12/2023

Morreu na semana passada, aos 99 anos, Robert Solow, um grande macroeconomista e vencedor do Prêmio Nobel. Solow fez sua carreira como professor do MIT e foi um pioneiro na moderna literatura sobre crescimento econômico.

O que gera desenvolvimento econômico? O que fez com que a renda por habitante da China tenha ido do nível da Etiópia em 1980 para maior que a do Brasil 40 anos depois? E como a China era tão pobre há 50 anos? O que fez Botswana ser 8 vezes mais rica que o vizinho Zimbabwe? Como alguns países do leste asiático que eram muito mais pobres que nós em 1950 são hoje tão desenvolvidos quanto países europeus? E por que a maioria dos países não conseguiu esse feito?

Como disse Robert Lucas, outro grande economista que morreu em 2023, quando começamos a nos perguntar sobre isso, é difícil pensar em outra coisa. Especialmente para países pobres e de renda média, um bom crescimento econômico por algumas décadas faria com que muitas pessoas tivessem vidas mais longas, saudáveis, confortáveis e felizes.
Robert Solow abriu caminhos para pesquisa nesse campo. Nos anos 1950 e 1960, ele mostrou, com modelos teóricos e dados, que acumulação de capital por si só não traria crescimento econômico duradouro.

Teoricamente, essa conclusão segue da ideia de que capital tem retornos decrescentes: mantendo tudo o mais constante, quanto mais capital há numa empresa, menos importante é acrescentar mais capital. Se há muito poucos computadores, um a mais torna a empresa bem mais produtiva. Mas se os computadores são bons e abundantes, investir mais nisso não aumenta significativamente a produtividade.

Empiricamente, Solow mostrou, usando 50 anos de dados dos Estados Unidos, que o crescimento econômico tinha menos a ver com acumulação de capital e mais a ver com fatores tecnológicos, educacionais ou culturais.

Esses seus artigos estimularam muito trabalho na área. Como eu não conseguiria fazer um resumo decente neste espaço, fecho com algumas implicações dessa literatura acadêmica para a nossa realidade.

Como gerar condições para crescimento econômico duradouro?

É lugar-comum dizer que precisamos investir mais em educação —ao mesmo tempo em que se desprezam aulas e livros.

Contudo, o Brasil gasta cerca de 5,5% do PIB com educação, percentual similar ao de outros países. Há muita pesquisa, inclusive de economistas, sobre o que podemos fazer para melhorar o retorno desse investimento.

Nós achamos que entendemos a importância de medidas que possam forjar o crescimento econômico por décadas, mas o jogo político foca sempre na evolução do PIB e a inflação atual.

Parece que esquecemos que o PIB do Brasil em 2023 será por volta de R$ 10 trilhões, não R$ 5 trilhões, nem R$ 20 trilhões, não por causa do que o governo Lula fez em 2023 ou o governo Bolsonaro fez em 2022, mas por tudo o que foi feito no passado.

Claro, isso não quer dizer que nosso destino foi escrito há 500 anos. Em 1950, a renda por habitante da Costa Rica era parecida com a da Guatemala. Hoje é quatro vezes maior. Poucas décadas podem fazer uma baita diferença.

A literatura acadêmica moderna enfatiza a importância de instituições que estimulem o investimento, a produção e a alocação eficiente de recursos. Precisamos de mais reformas nessa direção.

Esse é o momento de nos desejarmos um feliz 2024, mas, ao avaliarmos políticas públicas, precisamos pensar no que pode gerar um próspero 2044.

Pacto pelo Emprego

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Com o avanço da tecnologia em todas as áreas e setores, a sociedade passa por momentos de grandes transformações com impactos sobre o mundo do trabalho. De um lado percebemos o crescimento das tecnologias digitais, o aumento da competição, o crescimento da inteligência artificial, novas estruturas produtivas, novos modelos de negócio e grandes exigências para todos os indivíduos, buscando constante atualização e novos conhecimentos, além de novas habilidades que demandam recursos financeiros, levando muitos trabalhadores a não conseguirem estes recursos para investimentos, privando-os desta qualificação fundamental para sua inserção no mercado contemporâneo.

Vivemos momentos de incertezas, instabilidades e, ao mesmo tempo, grandes desenvolvimentos no mundo da tecnologia, que aumentam a produtividade do trabalho, consolidando novos setores, impulsionando o surgimento de novos modelos de negócios. Como imaginaríamos duas décadas atrás o surgimento de empresas como o Uber, a Netflix, o WhatsApp, dentre outras, com novos modelos, novas dinâmicas e capacidade de transformar as formas de organização social e política.

Diante destas transformações cotidianas, que se caracterizam pela rapidez destas alterações na sociedade, um dos grandes desafios para a economia global é a criação de emprego, fundamental para que os indivíduos consigam sobreviver de forma decente e diminuindo a dependência de políticas públicas desenvolvidas por governos nacionais, garantindo maior autonomia e novas formas de inserção na sociedade contemporânea, tão marcadas por grandes desigualdades, exclusões sociais e violências urbanas que se espalham em todas as regiões do mundo.

Para estimularmos os investimentos produtivos é fundamental que os governos nacionais desenvolvam projetos que auxiliem os setores privados e públicos para incrementarem os investimentos produtivos, sem investimento é impossível aumentar a geração de emprego na sociedade. Vivemos numa comunidade marcada por educação de baixa qualidade, impostos elevados para os setores produtivos e que se acostumou com as taxas escorchantes de juros, que estimulam fortemente o rentismo e a especulação financeira, inibindo os investimentos produtivos e contribuindo maciçamente para o aumento das desigualdades sociais e a degradação econômica que crescem rapidamente, estimulando as exclusões e a violência, que afugentam os investimentos produtivos, a geração de emprego e a melhora das condições sociais.

Numa sociedade marcada por grandes desenvolvimentos tecnológicos, dos negócios digitais, da internet das coisas e com o crescimento da inteligência artificial, as nações desenvolvidas estão aumentando os investimentos das pesquisas científicas, na formação de capital humano, melhorando as condições de trabalho dos profissionais da educação, que devem ser vistos como os profissionais imprescindíveis para a nova sociedade do conhecimento, estimulando a qualificação destes profissionais e deixando de lado discursos ideológicos mesquinhos que atrasam as grandes movimentações em curso na educação mundial.

Vivemos momentos de grandes transformações energéticas na sociedade internacional, neste cenário, somos dotados de grandes ativos estratégicos que precisam ser estimulados, fortalecendo energias alternativas, preservando o meio ambiente, construindo estruturas para a preservação da Amazônia, combatendo garimpos ilegais e fortalecendo a indústria nacional, adotando políticas de reindustrialização produtiva. Todas estas políticas têm forte potencial na geração de emprego e renda, garantindo empregos melhores e qualificados, com novas regulamentações e novas formas de fiscalização.

Todos os dias percebemos o crescimento da insegurança urbana, novas formas de exploração na sociedade, além do incremento do tráfico de drogas, dos conflitos das facções e do incremento das milícias, que crescem numa sociedade que se esfacela todos os dias, marcada por polarizações políticas e a busca constante por interesses imediatos, individualistas e corporativos. Um pacto pelo emprego pode ser o início da reconstrução nacional de uma sociedade que, infelizmente, desaprendeu a capacidade de sonhar.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Dowbor: Assim o rentismo tornou-se doutrina

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Livro apresenta o homem que forjou o receituário corporativo do capitalismo improdutivo: cortar gastos obsessivamente, criar competição tóxica e buscar o lucro máximo, a qualquer custo.

Fórmula inspirou personagens como Lemann

Ladislau Dowbor – Outras Palavras, 21/12/2023

A principal transformação do capitalismo nas últimas décadas é de ter migrado do lucro sobre processos produtivos como eixo central, para a maximização dos rendimentos financeiros, materializados em dividendos para acionistas. Trata-se do rentismo moderno, da maximização de dividendos por meio de sistemas especulativos, recompra de ações, cortes de empregos e de salários, evasão fiscal por meio de paraísos fiscais e outros mecanismos, no que tem sido chamado de financeirização. Há numerosos trabalhos sobre esta nova fase neoliberal do capitalismo, e de primeira linha, como de Joseph Stiglitz, que qualifica esses lucros de “unearned income”, ou seja, rendimentos não merecidos; de Thomas Piketty, que os qualifica de “rentas” (rentes em francês); de Mariana Mazzucato, que se refere ao “extractive capitalism”; de Michael Hudson, que os apresenta como bactérias que matam o hospedeiro (Killing the Host); de Gabriel Zucman (The Triumph of Unjustice), isso sem falar dos que abriram os caminhos, como François Chesnais e David Harvey. É uma visão que está se tornando dominante na economia em geral. Bom senso em construção.

Mas o aporte de David Gelles, no livro The man who broke capitalism: how Jack Welch gutted the heartland and crushed the soul of corporate America – and how to undo his legacy, é contundente, pela análise detalhada de corporações concretas, como a General Electric – como exemplo básico – mas também da Amazon, AT&T, Boeing, BlackRock, Unilever, Paypal, e também, particularmente interessante para nós, da 3G Capital. Esta última é controlada por Lemann, Sicupira e Telles, responsáveis pelas fraudes bilionárias das Lojas Americanas, e que constituem o grupo privado mais poderoso hoje no Brasil, conforme vemos na edição da Forbes sobre bilionários brasileiros.

O trabalho de Gelles alimenta sem dúvida uma visão de conjunto da financeirização, mas construída a partir do comportamento detalhado das grandes corporações, no cotidiano da tomada de decisão dos executivos. Poucas obras são tão ricas em termos de fazer compreender os mecanismos deste bicho novo que ainda chamamos de capitalismo, mas que funciona de maneira diferente e obedece a regras que nos escapam. Ainda se auto-qualificam de “mercados”, mas estão muito mais próximos de uma “aristocracia capitalista”, como as qualifica Michael Sandel.

David Gelles escreve de maneira excepcionalmente clara. Jornalista e colunista do New York Times, e pesquisador sobre o funcionamento concreto de corporações financeiras e tecnológicas, navega com conforto na área, e torna a temática muito acessível. A realidade é que escreve muito bem, o livro “se lê”. E a seriedade da pesquisa, riqueza de fontes e facilidade de consulta faz deste trabalho, a meu ver, uma das melhores ferramentas para entender a dimensão atual dos nossos desafios. Não precisa ser economista, Gelles insiste em que os mecanismos sejam entendidos. Queiramos ou não, esses gigantes corporativos, com seu alcance global, estão definindo os rumos das nossas economias, dos nossos empregos, inclusive Jack Welch é um protagonista central. Executivo da uma das maiores corporações mundiais, a General Electric, ele conseguiu, em 20 anos, entre 1981 e 2001, transformar uma empresa de ponta de produção de utilidades domésticas em um gigante financeiro que compra e revende empresas de qualquer setor da economia, seguindo à risca os conselhos de Milton Friedman, de que se trata de maximizar o retorno dos acionistas, pouco importa como e a que custo. Friedman deu a benção acadêmica para essa economia do vale-tudo corporativo: The business of business is business. Essa fratura entre a busca de lucros e dividendos, e os interesses da sociedade é central. “A lucratividade da corporação já não se traduz em ampla prosperidade econômica”, escreve Gelles, citando William Lazonick. (65).

Eu me familiarizei com Jack Welch ao ler há alguns anos o seu principal livro, Straight from the Gut, título que sugere uma escrita enraizada nos sentimentos mais profundos e sinceros, mas um dos livros de gestão mais cínicos que já tive entre as mãos. E teve impacto planetário, legitimando o vale-tudo, ao mostrar como os acionistas da GE passaram a ganhar muito mais dinheiro, e valorizando a empresa na bolsa. De certa forma, o que Friedman fez para os economistas, liberando-os de qualquer relação com ética e valores em geral, Welch o fez para uma geração de executivos pelo planeta afora, um impacto impressionante, mas que coincide com os interesses de se fazer dinheiro a qualquer custo. Basta olhar o que “os mercados” aprontam no Brasil. Não à toa hoje enfrentamos a “economia desgovernada”.

Uma das técnicas de Welch que ficou famosa e foi muito replicada consiste em organizar a empresa em unidades, cujo chefe é obrigado, a cada fim de ano, a definir quais são os 20% de trabalhadores mais produtivos, os 70% seguintes, e os 10% menos produtivos, que seriam despedidos. Isso gera uma guerra permanente em todos os departamentos, luta pela sobrevivência, em vez de sistemas colaborativos e sentimento de equipe. Acompanhado de despedimentos em massa (downsizing), de liquidação de segmentos menos lucrativos, substituindo-os por terceirizados, e compras dispersas de qualquer empresa que pudesse gerar mais lucro ao ser fragmentada e revendida, o resultado foi um dreno poderoso a favor dos acionistas, na linha, precisamente, da maximização de dividendos. Dos desastres gerados resulta a batalha atual de muitas empresas, de promover o ESG (Environment, Social, Governance), tentando recolocar no horizonte empresarial não só o lucro dos acionistas (shareholders), mas também os impactos sociais e ambientais (stakeholders).

Como exemplo de comportamentos lucrativos mas desastrosos de grandes corporações, o autor aponta a 3G Capital, controlada por Lemann, Sicupira e Telles, os maiores bilionários brasileiros, que drenam recursos não só das Lojas Americanas, por quaisquer meios legais ou ilegais, mas de uma imensa rede de empresas controladas por participações de diversos tipos. “No caminho, escreve Gelles, os brasileiros desenvolveram uma reputação de cortadores selvagens de custos e de demitidores despiedados (merciless downsizers).” Gelles cita o próprio Lemann: “Na realidade, somos copiadores. É o que somos. A maior parte do que aprendemos foi de Jack Welch, de Jim Collins (autor de Good to Great), da GE, da Walmart. De certa maneira juntamos tudo isso” (p. 178). Centrar tudo no lucro financeiro e no curto prazo é hoje a filosofia de inúmeras corporações, e explicam em grande parte o paradoxo de tantos avanços tecnológicos, enquanto as economias estagnam, aumentam a desigualdade, o desemprego e os empregos precários. É uma deformação sistêmica, que no Brasil atingiu dimensões absurdas, inclusive com desindustrialização.

“Considerem, escreve Gelles, o caso da 3G Capital, um grupo privado de acionistas que controla marcas incluindo Budweiser, Burger King, e Kraft Heinz. Fundado por um grupo de financistas brasileiros, os homens por trás da 3G Capital são os Neutron Jacks (apelido dado a Jack Welch por sua capacidade de explodir empresas, LD) do século 21, implacavelmente adquirindo empresas, cortando custos e cabeças, e extraindo lucros para si mesmos e investidores enquanto pareciam ignorar o bem-estar da sua força de trabalho e a necessidade de pesquisa e desenvolvimento” (p. 177). É importante entender que essa maximização de apropriação de dividendos pelos acionistas leva à redução de investimentos produtivos na empresa, fragilizando-a. “As corporações, que outrora compartilhavam generosamente os lucros com os seus trabalhadores no país todo (EUA), agora canalizam a parte do leão da riqueza que criam para investidores institucionais e executivos. Enquanto nos anos 1980 menos de metade dos lucros corporativos voltavam para investidores, durante a última década, este número subiu (soared) para 93%” (p. 183).

Para claro o contraste, David Gelles, descreve a tentativa do grupo 3G Capital de controlar a Unilever, fazendo uma proposta dourada ao seu executivo Paul Polman (anteriormente da Nestlé).

Seria uma aquisição gigantesca, da ordem de US$143 bilhões, o que dá uma ideia da força financeira internacional deste grupo. Polman resistiu, e orientou a Unilever para uma linha que prioriza o desenvolvimento produtivo, com equilíbrio entre dividendos, remuneração dos trabalhadores e reinvestimento na empresa. “Temos de sair desta corrida de ratos” disse Polman.

“Era uma transação puramente financeira que era atraente no papel, mas constituía na realidade dois sistemas econômicos conflitantes” (p. 206). Segundo Gelles, “os brasileiros tinham mal avaliado a sua presa.”

Eu queria muito recomendar a leitura desse livro. Sem frescuras, academicismos ou gráficos complexos, mas com muita documentação de apoio e pesquisa, é a melhor radiografia que li sobre como se deformou o que conhecíamos antigamente como capitalismo industrial, e que hoje conhecemos como “mercados”, aos quais temos de obedecer, se não “ficam nervosos”, e temos pagar obedientemente os juros extorsivos, e acreditar que se eles ficam ricos – sem gerar produtos, pagando mal os poucos empregos que geram, e evitando os impostos – a economia irá prosperar.

Bem, é o que os consultores na mídia comercial nos repetem todo dia.

Não estamos equipados para tanta complexidade, por Suzana Herculano-Houzel

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Precisamos do presente mais valioso de todos: tempo livre

Suzana Herculano-Houzel, Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

Folha de São Paulo, 26/12/2023

O mundo está indo para o ralo. Democracias quebradas, liberalismo econômico que só atende aos mais ricos, extremos de temperatura e clima, cada vez mais desinformação e desigualdade inclusive em como se faz ciência (eu volto a isto na próxima coluna, prometo). Por quê? Eu me atrevo a arriscar uma resposta bastante simples: a complexidade galopante do mundo que estamos criando hoje excede em muito o tempo que temos disponível para aprender a lidar com ela.

Vejo o problema nas portas que deixamos se fecharem a torto e a direito exatamente porque perdemos o controle da velocidade em que geramos aquilo que um dia trouxe novas oportunidades àquela que, olhando para trás, chamamos de nossa espécie: tecnologia. Falo da tecnologia de maneira geral, que colocou em movimento a bola de neve do nosso destino ao transformar em polpa alimentos até então duros e difíceis de comer e nos dar o presente mais valioso de todos: tempo livre.

Por definição, tecnologia é tudo aquilo que gera tempo livre para fazer outras coisas e usar nossos neurônios criativamente. No caso da história humana, a tecnologia tem sido triplamente transformadora porque mamíferos com mais neurônios (cortesia número um da tecnologia) têm cada vez mais capacidade de resolver problemas aqui e enxergar novos ali (cortesia número dois) e vidas cada vez mais longas para continuar enxergando e resolvendo problemas (cortesia número três).

Elefantes têm um monte de neurônios, mas comem grama, então sua realidade é não ter tempo para nada além de comer o dia todo. Humanos, ao contrário, são aqueles primatas que inventaram truques para comer a energia de que precisam mais rápido, e assim foram ficando ao mesmo tempo mais capazes tanto de facilitar sua própria vida quanto de… complicá-la.

A razão é exatamente a mesma que explica nenhum adulto ainda gostar de jogo da velha ou damas: o que era dificuldade, mas a gente aprendeu a resolver rápido, não tem mais graça nenhuma, porque o esforço não vale mais a pena quando não há nada de novo ali para ser aprendido. Por isso, o que todo animal quer é sarna para se coçar.

O problema é que, para o animal humano, a sarna que a gente quer coçar é a própria tecnologia.

Como aprender a usar a da vez é necessário e divertido, usamos o tempo livre de que dispomos graças à tecnologia para criar e usar… ainda mais tecnologia. Nossa história moderna é a bola de neve resultante dessas conquistas que se retroalimentam —e que agora está virando uma avalanche que cada vez menos gente dispõe das habilidades para entender.

Interromper a avalanche, ou ao menos mitigar seu estrago, exige cidadãos que aprendam a fazer bom uso do tempo livre que a tecnologia lhes dá: cidadãos que usem esse tempo para olhar para trás, olhar ao redor e um ao outro, para aprender a lidar com a complexidade de várias verdades contraditórias do mundo moderno e, sobretudo, para se manterem inteligentes. Pois inteligência é a capacidade de agir para manter portas abertas, e nossa incapacidade crescente de lidar com um mundo cada vez mais complexo torna a humanidade burra, tomando decisões que fecham portas para o seu próprio futuro —exatamente como o mau uso da tecnologia que um dia nos tornou humanos hoje apenas nos torna gordos.

A incompetência da extrema direita em segurança, por Thiago Amparo

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A voz grossa do extremismo busca, sem sucesso, esconder sua inépcia

Thiago Amparo, Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Folha de São Paulo, 21/12/2023

Precisamos falar sobre o quão incompetente é a extrema direita em segurança pública. Digo isso apesar da eficiência de sua retórica linha-dura no tema: mais armas nas mãos de cidadãos e mais polícia sem controle nas ruas equivaleriam a menos crimes. Nada mais falso. Quando olhamos por baixo do tapete da retórica, o que vemos é descontrole da polícia, o amadorismo em segurança e a precarização do trabalho das polícias.

Isto é o que se percebe em São Paulo e no Rio no momento. Vejamos exemplos apenas deste mês. Cenas de arrastão em carros na rodovia no Guarujá, litoral paulista. Dois ataques a carros-fortes, no interior e no ABC paulista, em apenas 48 horas entre os dias 11 e 13 deste mês. Crescimento de ações de “justiceiros” (eles mesmos criminosos) nas ruas de Copacabana, no Rio. Governo sob Castro e prefeitura sob Paes, juntos, buscando na Justiça apreender adolescentes (sabemos a cor deles), sem flagrante e em violação à lei.

Não são apenas casos isolados. Os oito primeiros meses de 2023 foram os que tiveram mais roubos no centro paulistano em toda a série histórica dos últimos 22 anos. Permitir que policiais adulteram as câmeras corporais em São Paulo, colocar secretário de Segurança condecorado por deputado ligado a miliciano no Rio, aprovar com a bancada da bala o desmonte das ouvidorias, eis a solução da extrema direita que revela sua incompetência no tema.

A verdade é que as melhores políticas de segurança pública no país foram adotadas por governos não extremistas de direita. Estudo do Instituto Sou da Paz, de abril de 2023, faz um balanço de algumas dessas políticas. Iniciativas sérias como Mesa de Situação em Alagoas em 2015, Em Defesa da Vida no Ceará em 2014 e Estado Presente em 2011 no Espírito Santo são alguns exemplos de políticas de segurança baseadas em evidências e com resultado.

A voz grossa da extrema direita em segurança é estridente porque busca, sem sucesso, esconder sua incompetência.

Desigualdade aumenta o gasto social em segurança patrimonial, por André Roncaglia

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Democratização das oportunidades diminui a oferta de mão de obra ao crime e cria ambiente mais seguro

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 22/12/2023

A América Latina é uma região violenta. Responsável por quase metade das vítimas de homicídio no mundo, ela detém pouco mais de 8% da população global. É também uma das regiões mais desiguais do planeta.
Estudo recente do Fundo Monetário Internacional (FMI) mostra que, além das dolorosas perdas familiares, a criminalidade inibe a acumulação de capital. Ao afugentar investidores temerosos de roubo e violência e elevar os custos de vida e de operação das empresas, a insegurança diminui a produtividade ao desviar recursos para investimentos menos produtivos, como a segurança residencial.

O combate ao crime melhora a alocação de recursos, mas é importante atacar as suas causas mais profundas. Estudo de Daniel Hicks e Joan Hicks (2014) trouxe evidências de correlação entre criminalidade e desigualdade: regiões dos EUA em que havia maior consumo conspícuo (carros, joias, restaurantes caros etc.) também sofriam com maior criminalidade.

O Brasil é um dos países com maior desigualdade econômica no mundo. Aqui, R$ 20 de cada R$ 100 gerados correm para o 0,5% mais rico da população. A privação econômica, a concentração de riqueza e a sensação de insegurança impulsionam a necessidade de proteção patrimonial.

Pesquisa do Instituto Datafolha mostrou que a insegurança cresce com o nível de renda. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública justificam o med o: crimes contra o patrimônio, como roubos e furtos, têm aumentado nos últimos anos no Brasil.

A concentração espacial de riqueza também se relaciona a taxas mais altas de crimes contra o patrimônio. Propriedades de alto valor se tornam alvos atrativos para criminosos, o que leva proprietários a investir em sistemas de segurança mais sofisticados. Isso inclui a contratação de seguranças particulares, a instalação de câmeras de vigilância e de sistemas de alarme, com segurança particular, blindagem de automóveis, camadas de segurança cibernética contra golpes e crimes financeiros e, a partir de 2019, com armas, muitas armas.

Um trágico evento recente exemplifica este padrão. Estimulado pela política de violência pública de Bolsonaro, o empresário paranoico com sua segurança residencial disparou suas duas pistolas contra uma policial civil e estimulou seu segurança privado a fazer o mesmo. Os três acabaram mortos.

A plataforma DataViva mostra que, entre 2003 e 2021, a renda mensal neste setor cresceu de R$ 400 milhões para R$ 2 bilhões, tendo o gasto mensal direto em atividades de segurança e vigilância variado de R$ 193 milhões para mais de R$ 1 bilhão, enquanto o número de empregos cresceu de 266 mil para 500 mil.

Para a maioria da população, contudo, esta proteção não é acessível. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua mostrou que, em 2021, cerca de 1,8 milhão de brasileiros foram vítimas de roubo (1,1% da população), dos quais 63,2% eram pretas ou pardas e 38,6% das vítimas tinham até o ensino médio incompleto. A riqueza concentrada no topo gera insegurança generalizada no andar de baixo.

Problemas comuns requerem atuação do Estado. Como na saúde e na educação, a política de segurança pública não pode ser terceirizada ao cidadão comum, sob pena de gerar mais insegurança às forças policiais, tragédias familiares e má alocação de recursos na economia.

O caminho mais efetivo para combater a criminalidade é reduzir a desigualdade de riqueza e ampliar a oferta de bens públicos, via tributação progressiva e crescimento econômico inclusivo.

A democratização das oportunidades diminui a oferta de mão de obra ao crime e cria um ambiente mais seguro e equitativo para todos, não apenas para quem pode pagar.

Pacto pela Produção

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A comunidade econômica internacional está percebendo grandes transformações nas discussões teóricas nos governos, nas universidades e nos construtores das políticas públicas, onde destacamos o retorno das discussões referentes as políticas de intervenção dos governos nacionais retomando momentos de maior intervencionismo. Neste momento, as políticas protecionistas estão sendo adotadas, sempre destacando que estas políticas foram utilizadas por todos os governos nacionais como forma de estimular seus setores produtivos, uns deixando mais claras e efetivas, enquanto outras nações se escondiam em discursos surreais de uma defesa incondicional do livre mercado e da livre competição.

Neste momento, percebemos que estamos vivendo um momento interessante na economia nacional, com indicadores positivos, com melhoras sensíveis nos empregos, com queda das taxas de juros, redução da inflação, melhora nas contas externas, aumento das exportações e perspectivas positivas. Estas melhoras no campo econômico são sempre necessárias e imprescindíveis, mas precisamos entender, que os desafios são imensos e exigem esforços de todos os grupos sociais e políticos para que a sociedade enterre décadas de estagnação e baixo crescimento econômico, que trouxeram um incremento da degradação social, aumento da pobreza e da indignidade, além de facilitar o crescimento das polarizações políticas, aumentando os conflitos sociais, as violências e a desagregação.

Nos últimos quarenta anos, a economia nacional deixou de lado os grandes geradores de emprego em detrimento dos financistas e dos donos do capital financeiro, que passaram a controlar a agenda econômica, os meios de comunicação, impedindo as discussões democráticas e passaram a adotar uma pauta que garantem e perpetuassem de seu poder econômico e financeiro em detrimento da geração de riqueza real para a comunidade, controlando as autoridades monetárias, com taxas de juros escorchantes que garantem lucros e dividendos estratosféricos, com isso, percebemos uma situação surreal, uma economia estagnada, uma população endividada, desemprego nas alturas, empresas em dificuldades e bancos e sistema financeiro garantindo lucros e dividendos elevados.

Precisamos reconstruir um pacto pela produção, pela defesa da dignidade, em defesa do potencial produtivo da sociedade brasileira, estimulando os grupos que impulsionam a economia nacional, os pequenos, médios e grandes empresários, os trabalhadores das cooperativas, dos grupos econômicos vinculados as associações, os grandes produtores do campo, do agronegócio, todos aqueles que estão vinculados com a construção de riquezas nacionais, desta forma, precisamos alavancar investimentos produtivos, gerando empregos de qualidade, fortalecendo a formação e a instrução nas universidades, fomentando a ciência, a pesquisa e o conhecimento, canalizando recursos para a economia real, gerando emprego, taxas de juros condizentes e uma perspectiva de dignidade da população, impedindo um colapso social em curso na sociedade brasileira, um país imensamente rico, dotado de grandes vantagens comparativas, energias alternativas, economia verde e dotado de grande potencial de inclusão social e, infelizmente, convivendo com o crescimento exponencial dos moradores de ruas, das violências urbanas e no crescimento do mercado das drogas, das milícias e dos entorpecentes.

O predomínio da agenda dos grupos financistas e dos setores vinculados ao mercado financeiro fragilizaram uma visão de sociedade, criando uma análise imediatista, reduzindo os investimentos de longo prazo e levando os gestores privados a estimularem os ganhos imediatos e os pagamentos de dividendos elevados em detrimentos de investimentos produtivos, rechaçando o planejamento estratégico, garantindo lucros imediatos para os acionistas e fragilizando os negócios no longo prazo.

Vivemos numa sociedade paradoxal que privilegia setores que pouco contribuem para a geração de riqueza social e nos esquecemos dos verdadeiros geradores de progresso econômico e produtivo, sem estes não conseguiremos construir uma nação de cidadãos, apenas construindo consumidores.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

A lógica do capital, por Alysson Mascaro

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Alysson Leandro Mascaro – A Terra é Redonda -24/12/2023

Ao capitalismo, o Brasil já é o que deve ser. O desenvolvimento será socialista

As posições relativas dos países no desenvolvimento capitalista mundial não são devidas a incapacidades ou omissões ou ausência de vontades e de acordos suficientes para o progresso. São, fundamentalmente, posições materialmente bastantes de exploração, dominação e acumulação. Por isso, não cabe a imagem de um topo geopolítico mundial ao qual alguns países subiram por esforço e mérito, cabendo aos demais chegarem também.

A divisão de classes e as diferenças entre países e formações sociais no plano externo e interno são exatamente o modelo de reprodução social capitalista. O Brasil, mesmo sendo periférico no quadro mundial, é grande o suficiente para não poder se resolver de modo autônomo sem impactar os interesses do capital internacional, que se interpenetra de modo indissolúvel com o capital brasileiro. Nessa dialética de potência e limite, não faltaram meios econômicos, quadros nem ideias que ensejassem um pleno desenvolvimentismo capitalista brasileiro: faltam estruturas de sociabilidade.

A contradição do Brasil é exatamente a mesma contradição do capitalismo no plano mundial. Não será por melhor astúcia, acordo, suavidade, concórdia, boa razão, republicanismo, legalidade e cumprimento dos princípios constitucionais, ou por exaustão das mesmas tentativas, que o desenvolvimento estável e inclusivo então chegará ao Brasil: o erro é na forma da luta, não na arte do empreendimento. Pelo século XX, formações sociais de grande peso no mundo, como é o peso da brasileira, só cambiaram com êxito mediante revoluções socialistas.

Os casos russo e chinês dão demonstrações de refundações da sociabilidade e de suas instituições que se provaram suficientes para uma reescrita pujante de suas próprias histórias. Muito disso se deve à aglutinação social das classes trabalhadoras – via de regra forjada mediante guerras – e, em especial, pela tomada de poder autonomista e progressista que altera estruturalmente instituições como as forças armadas (no caso russo e chinês, reformuladas a partir de novo padrão, de exércitos populares) ou mesmo as funções institucionais executivas, legislativas e judiciárias (também reescritas em tais países mediante o centralismo de partidos comunistas).

Os casos de câmbio progressista dentro do sistema capitalista só se deram sob subordinação aos Estados Unidos e mediante estrito interesse geopolítico deste – Europa sob plano Marshall, Coreia do Sul e Japão como cunhas no oriente soviético-chinês. Mas o Brasil representa aos interesses dos EUA, exatamente, aquilo que já é. Tudo o que caminhar a ser distinto altera posições e sofre imediato bloqueio. E, no que tange às relações sociais internas, as classes capitalistas e os grupos dominantes do Brasil não esperam outro tipo de pujança nem se orientam pela igualdade e pelo progresso de pobres e trabalhadores, igual a qualquer outra classe capitalista e dominante de qualquer outro país capitalista do mundo.

A lógica do capital é a manutenção suficiente e ótima dos próprios padrões de acumulação já dados, ou a modulação apenas para sua ampliação. Por isso, uma transformação social progressista só pode se dar mediante as classes trabalhadoras. Sob condições capitalistas, o capital e suas instituições destroem as lutas inclusivas logo que tal processo comece a se concretizar. Somente a ruptura das formas, com novas coesões e forjas de poder, ação e interesses, conduzindo ao término da dinâmica de acumulação do capital, é capaz de reestruturar a sociedade brasileira, bem como qualquer outra sociedade.

Todas as outras tentativas, operando dentro das formas do capital, são tragadas e bloqueadas pelas próprias formas e instituições já dadas. Avista-se, para as contradições estruturais das lutas sob o capitalismo, apenas uma fresta estreita na história, a revolução que altere o modo de produção. Os câmbios socialistas são difíceis como o foram e têm sido já há quase dois séculos por muitas plagas do mundo, mas, peculiarmente, são ainda assim mais fáceis do que mudar uma sociedade da exploração para a inclusão mantendo o quadro geral das formas e instituições que só operam a acumulação e que bloqueiam o câmbio progressista. A história é aberta. A utopia é concreta. O desenvolvimento é possível. Se existir de modo vitorioso e perene, ele será socialista.

*Alysson Leandro Mascaro é professor da Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Estado e forma política (Boitempo).
“Teses sobre desenvolvimento e capitalismo”, publicado originalmente no livro Utopias para Reconstruir o Brasil, organizado por Gilberto Bercovici, João Sicsú e Renan Aguiar. Rio de Janeiro, Editora Quartier Latin do Brasil, 202

A era da distopia, por Samuel Kilsztajn

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Samuel Kilsztajn – A Terra é Redonda – 11/12/2023

Estamos todos mergulhados no sistema orquestrado pelo despotismo da mercadoria

A população mundial, praticamente estável em 300 milhões de pessoas durante todo o primeiro milênio da Era Cristã, cresceu paulatinamente para atingir um bilhão em 1750, início da Revolução Industrial. Antes da Revolução Industrial, o que se passou a chamar de renda per capita era relativamente constante desde a Antiguidade e também diferia muito pouco entre as diversas sociedades ao redor do mundo, tanto as consideradas pobres como as abastadas.

Adam Smith, que viveu na Inglaterra no bojo da Revolução Industrial, publicou em tempo real, já em 1776, na crista da onda, a obra que marcou o nascimento da economia política, Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações (abreviada para A riqueza das nações).

A Revolução Industrial alavancou a produção de alimentos, bens de consumo e instrumentos de trabalho a patamares nunca antes imaginados. Podia-se antever então uma nova era de fartura, o paraíso terrestre, a utopia realizada, em que a carestia seria completamente eliminada da face da terra.

O ano da publicação de A riqueza das nações, 1776, também marca a independência dos Estados Unidos da América do domínio inglês, a Revolução Americana. Em 1789 caiu a Bastilha e, no início do século XIX, a Revolução Francesa ganhou a Europa Continental (a Inglaterra, já em 1688, havia se livrado da monarquia absolutista, que foi submetida ao parlamento; o Império Russo, por outro lado, tendo derrotado Napoleão, manteve-se refratário às conquistas liberais e aos plenos direitos civis).

No início do século XX a Europa vivia a Belle Époque, oh là là! que não durou muito, porque estourou a Grande Guerra que poria fim à Era dos Impérios. Em meio à guerra, o absolutista Império Russo, com atraso de um século, enfim ruiu; e os impérios centrais Alemão, Austro-Húngaro e Otomano foram dissolvidos. A Inglaterra não cumpriu o ideário marxista e coube à retrógrada Rússia a instauração do socialismo, como uma forma de desenvolver a sua economia arcaica. A Revolução Industrial cunhou A riqueza das nações e a ideologia do progresso e do desenvolvimento das forças produtivas.

Durante a guerra, o exército alemão foi destroçado pela gripe espanhola, o que levou a Alemanha a aceitar o humilhante armistício, mesmo com o seu exército estacionado em território inimigo, sem que o exército dos aliados tivesse adentrado o território alemão (o que deu margem ao mito da “punhalada pelas costas”).

No pós-guerra, enquanto os Estados Unidos viviam os anos dourados da Era do Jazz, a Alemanha, submetida a pagar pesadas reparações de guerra, mergulhou em severa crise, com alto nível de desemprego, pobreza, hiperinflação e desarticulação social. Em 1924, a Alemanha conseguiu se restabelecer e seguiram-se cinco anos de relativa prosperidade, que terminou por força da grande depressão mundial de 1929.

Em 1928 o partido nazista de Hitler contava com 2,6% dos votos na Alemanha; cinco anos depois, em meio à grande depressão, ao alcançar 43,9% dos votos, os nazistas tomaram o poder, inaugurando o Terceiro Reich e se preparando para o novo embate que elevaria Deutschland, Deutschland über alles, über alles in der welt, a Alemanha, Alemanha acima de tudo, acima de tudo no mundo.

Os alemães, que primam pela eficiência, instituíram na prática as teorias racistas que dominaram a ciência e a civilização ocidental na primeira metade do século XX. O Terceiro Reich, que aterrorizou a Alemanha, a Europa e a humanidade, programado para viver por um milênio, sobreviveu por intermináveis doze longos anos, suficientes para mergulhar o planeta na barbárie.

No pós-Segunda Guerra Mundial, o Império Russo, sob a insígnia de União Soviética, reabilitado sobre uma economia planificada e um sistema político extremamente autoritário, ao lado de seus estados satélites do Leste Europeu, dividiu a hegemonia internacional com o liberal império americano e seus aliados do Atlântico Norte (OTAN), período denominado Guerra Fria.

Após o colapso da União Soviética em 1991, o império chinês, sob a insígnia de República Popular da China, igualmente reabilitado sobre uma economia planificada e um sistema político extremamente autoritário, entrou em cena para se vingar da humilhação sofrida nas Guerras do Ópio na metade do século XIX, quando a Inglaterra submeteu o longínquo e milenar império, que foi levado à desarticulação. A OTAN e o império chinês dividem hoje a hegemonia internacional.

Além da OTAN, do império chinês e do império russo, participa do cenário internacional a Organização de Cooperação Islâmica, que representa os dois bilhões de muçulmanos que vivem em países do norte da África, África Ocidental, Oriente Médio, Ásia Central e Sudeste Asiático, países que não necessariamente atuam em bloco.

Apesar da Revolução Industrial, a fantástica riqueza das nações não erradicou a miséria da maior parte da população mundial, nem os bolsões de pobreza no interior das nações mais desenvolvidas do planeta. As faculdades de “ciências econômicas” ensinam que o aumento na produtividade é acompanhado pelo crescimento e diversificação das necessidades humanas. Novos produtos e novas necessidades vão sendo criados, muito além dos básicos produtos alimentícios, vestuário e habitação necessários para a vida.

Em 2023, na Cidade de São Paulo, quando saio às ruas, fico amargurado ao ver os transeuntes passando impassíveis por inúmeras pessoas dormindo ao longo das calçadas, algumas na diagonal, enroladas nos cobertores cinzas de resíduos de fibras sintéticas que a prefeitura anda distribuindo. Plagiando Hobsbawm, penso, essa é a era da distopia.

A Revolução Industrial, que nos levaria à era da utopia, o fim da carestia para a humanidade, engendrou, ao contrário, a atual era da distopia, em que uma parafernália de novos produtos supérfluos é produzida, consumida e descartada, por uma sociedade do espetáculo, do consumo, do desperdício e da produção de lixo que convive com uma população que revira o lixo das grandes cidades em busca de alimentos e de materiais recicláveis para revenda.

Como é que os laboratórios farmacêuticos poderiam sobreviver sem fornecer pastilhas de fibras para as pessoas que enriquecem o lixo doméstico com os bagaços descartados de seu saudável suco matinal de laranja? Como é que alguém pode sobreviver sem acesso a alimentos dietéticos altamente processados e prontos para o consumo, um tênis de marca e um celular de última geração? Como é que a desigualdade no interior das sociedades e entre as nações, que foi acirrada pela Revolução Industrial, pode dispensar a produção de engenhos de segurança e armamentos para proteger os esnobes ricaços dos marginalizados amigos do alheio?

Estamos todos mergulhados no sistema orquestrado pelo despotismo da mercadoria. Quem hoje ousaria se contrapor à mercadoria, ao progresso e ao desenvolvimento econômico? Só não são afetados pela mercadoria os povos que vivem fora do sistema, a exemplo das populações indígenas do Brasil. Mesmo assim, vários indígenas abandonam suas comunidades, fisgados pelas “maravilhas” da sociedade do consumo.

O consumo supérfluo enfeitiça as pessoas com a promessa da felicidade neste lado do paraíso. Não é nem propriamente o consumo que importa, mas a perda da sociabilidade e o consequente impessoal espírito de competição. O que vale mesmo é deixar o seu vizinho de queixo caído ao ver você sair da garagem com o carrão do ano.

Não acho que a questão atinja apenas os pobres. Os ricos também são presas do sistema que faz com que sejam apêndices da mercadoria e de seu consumo; e se percam em valores mundanos em que a solidariedade humana não encontra mais lugar. Apesar da filantropia e das aparências, a artificialidade da vida dos ricos não permite que eles vivam plenamente em lugar algum, nem na estratosfera.

Além disso, não é o consumo das camadas privilegiadas da sociedade que justifica o sistema capitalista, mas sim os investimentos, o progresso e o desenvolvimento econômico. Por que será que a fantástica produção mundial nunca é suficiente para abastecer a humanidade? O destino dos pobres é passar necessidades básicas de forma a justificar os investimentos (que, contudo, ratificam a estratificação social), o progresso e o desenvolvimento econômico orquestrado pelo mundo da mercadoria.

A China, ao que tudo indica, é a herdeira do projeto civilizatório orquestrado pelo mundo da mercadoria. O império chinês, que provê e alimenta seus trabalhadores autômatos despersonalizados a serviço da mercadoria, tem tudo para ser a última fase do capitalismo, que vai arrastar consigo o império americano. O Partido Comunista Chinês, por linhas tortas, vai conseguir cumprir o seu ideal, desestruturar o sistema capitalista e enfim implodir o reino da mercadoria.

Imponentes impérios se sucederam às margens do Mediterrâneo durante a Antiguidade. Após a queda de Roma, seguiu-se a chamada Idade das Trevas, que se estendeu por todo um milênio. O capitalismo industrial, que criou “maravilhas maiores que as pirâmides do Egito”, que vem devastando o planeta e enfim açambarcou o longínquo império chinês, ainda não completou três séculos de vida.

* Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de Do socialismo científico ao socialismo utópico.