Desenvolvimento e estagnação, por Luiz Carlos Bresser Pereira

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Luiz Carlos Bresser Pereira – A Terra é Redonda – 19/07/2023

Apresentação do livro recém-lançado de André Nassif

O livro que você está começando a ler é uma notável análise e discussão da teoria do desenvolvimento econômico e das causas da estagnação econômica. É um livro teórico que nos auxilia a compreender por que os países tendem a se desenvolver e por que países como o Brasil, que cresceram de maneira extraordinária após a Segunda Guerra Mundial e estavam alcançando o nível de padrão de vida dos países ricos, nos anos 1980 entraram em um interminável período de estagnação econômica. Passaram então a crescer lentamente e ficaram para trás dos países ricos.
Este não é um livro sobre a economia brasileira, nem um livro com uma única teoria do desenvolvimento, mas um livro no qual vemos como evoluíram as teorias heterodoxas, keynesiano-desenvolvimentistas, e como essas teorias se comparam com a teoria neoliberal neoclássica – a teoria dominante ensinada nas universidades dos países centrais, que desde os anos 1980 as adotam e praticamente as impõem aos países da periferia do capitalismo.

Ao invés de complicar a teoria econômica, este livro a simplifica. Mostra que, no fundo, há duas
estratégias, ou duas formas de organização econômica do capitalismo – a forma desenvolvimentista, que supõe uma intervenção moderada do Estado na economia e o nacionalismo econômico, e uma forma liberal, que limita a ação do Estado à garantia da propriedade e dos contratos e à responsabilidade pelo equilíbrio fiscal, enquanto rejeita o nacionalismo econômico quando este é praticado pelos países periféricos.

Tanto para os economistas desenvolvimentistas como para os liberais, o desenvolvimento econômico depende do investimento e este, da taxa de lucro esperada. A diferença está no fato de que os liberais acreditam que, havendo liberdade de mercado, a taxa de lucro será satisfatória, a taxa de investimento será elevada e a alocação dos fatores será eficiente, de forma que “viveremos no melhor dos mundos possíveis”. Os desenvolvimentistas pensam de forma diferente. Defendem a liberdade de mercado, mas não esperam dele mais do que ele pode dar.

A teoria econômica é a ciência que estuda a coordenação das economias pelo mercado e pelo Estado. Portanto, estuda o capitalismo de um ponto de vista econômico. Nessa forma de organização social é importante distinguir o centro da periferia do capitalismo. No capitalismo, não são apenas as empresas, mas também os estados-nação que competem entre si. Por isso, é necessário que cada país, sem negar a importância da cooperação internacional, defenda seus interesses, seja nacionalista econômico.

Em segundo lugar, é preciso compreender que, ao contrário do que pensam os liberais, os setores econômicos não são equivalentes. O desenvolvimento econômico está associado ao aumento da produtividade que, por sua vez, aumenta não apenas conforme aumenta a capacidade produtiva de cada trabalhador, mas também com a transformação de mão de obra de setores com baixo valor adicionado por pessoa, que são pouco sofisticados e pagam salários baixos, para setores com alto valor adicionado por pessoa, que são mais sofisticados e pagam salários mais altos. Por isso, os desenvolvimentistas dizem que desenvolvimento econômico é industrialização, ou, mais amplamente, é sofisticação produtiva.

Para os países centrais, não interessa que os países da periferia do capitalismo se industrializem. Não querem ter mais competição do que já têm. Por isso, procuram impedir sua industrialização, e usam como instrumento de dominação o liberalismo econômico – mais especificamente, a lei das vantagens comparativas do comércio internacional. Essa é uma lei absurda, que ignora que os países podem aprender e, assim, as vantagens se modificam.

No século XIX, os ingleses diziam aos alemães que seu país era “essencialmente agrícola”, mas a Alemanha se tornou uma potência industrial. Essa lei supõe ainda o pleno emprego – o que permite aos economistas liberais afirmarem que, para se industrializar, os países da periferia precisam diminuir sua produção agrícola ou mineral – não obstante, o pleno emprego seja a exceção, não a regra.

Para discutir as teorias desenvolvimentistas, André Nassif dividiu seu livro em duas partes. Na primeira, discute as teorias desenvolvimentistas estruturalistas; na segunda, trata da teoria liberal neoclássica. E dedicou sete capítulos às teorias desenvolvimentistas, com as quais se identifica, incluindo um capítulo sobre as raízes conceituais e outro sobre as implicações de políticas públicas.

No Capítulo I estão as ideias básicas sobre o desenvolvimento econômico – as ideias de Adam Smith, Karl Marx, Joseph Schumpeter e, em algumas passagens, John Maynard Keynes. Smith explicou a riqueza das nações pelo investimento e a divisão do trabalho; Marx deu ênfase à taxa de lucro esperada, à taxa de juros, e à acumulação de capital. Schumpeter mostrou que, na competição perfeita suposta pelos liberais, a taxa de lucro é muito baixa; só a inovação pode criar uma vantagem competitiva que cria demanda para a empresa, aumenta sua taxa de lucro esperada, e a leva a investir; Keynes, finalmente, criticou a liberal teoria neoclássica ao mostrar que a oferta não cria automaticamente a demanda, mostrou que nas economias capitalistas os capitalistas podem entesourar dinheiro, em vez de investir, e argumentou que só a administração da demanda agregada pode assegurar às empresas competentes taxas de juros baixas e taxas de lucro satisfatórias que as levem a investir.

No Capítulo II, André Nassif discute a corrente estruturalista-desenvolvimentista, ou teoria desenvolvimentista clássica, que surge conjuntamente com os primeiros economistas desenvolvimentistas. É uma teoria crítica do liberalismo neoclássico, uma teoria abstrata e a-histórica. Com os desenvolvimentistas clássicos, o desenvolvimento econômico passa a ser visto como um fenômeno histórico que se identifica com a industrialização.

E surgem os primeiros modelos críticos da teoria liberal neoclássica: o modelo do big-push de Rosenstein-Rodan, o modelo centro-periferia e o modelo da restrição externa de Raúl Prebisch, o modelo do deslocamento de mão de obra para a indústria de Arthur Lewis e o modelo dos rendimentos crescentes de Nicholas Kaldor. Todos foram economistas keynesianos, que salientaram o papel da demanda. André salienta que, nos anos 1960, Kaldor formulou as “leis do crescimento”, entre as quais a mais importante, ou original, foi a defesa da industrialização, devido ao fato de que na economia existem rendimentos crescentes de escala.

No Capítulo III, temos as ideias cepalinas, a versão latino-americana, estruturalista, do desenvolvimentismo clássico. Raúl Prebisch foi o principal economista dessa corrente, que ele construiu no âmbito da Cepal – a Comissão Econômica para a América Latina das Nações Unidas – com a ajuda de muitos economistas, particularmente, de Celso Furtado. Como dirigia uma agência internacional, Raúl Prebisch não falou em imperialismo, mas em centro e periferia. Mostrou que desenvolvimento econômico era mudança estrutural ou industrialização e criticou o centro por defender uma troca desigual – uma troca de bens sofisticados por bens simples.

Mostrou, por outro lado, como os países em desenvolvimento estão sujeitos a uma restrição externa – a permanente “falta” de dólares: enquanto nos países ricos a elasticidades-renda das importações é menor do que um, nos países periféricos a elasticidade-renda das importações de bens manufaturados é maior do que um. Um problema para o qual só há uma solução: a industrialização.

No Capítulo IV, o foco é a contribuição de Celso Furtado, que pensou o desenvolvimento e o subdesenvolvimento como expressões do centro e da periferia. O subdesenvolvimento não é um estágio anterior à industrialização e ao desenvolvimento, mas é uma configuração histórica criada pelo centro ao se impor à periferia, é uma forma que assume a divisão internacional do trabalho, na qual o centro se industrializa enquanto cabe à periferia produzir bens agrícolas e minerais. Furtado usou sempre o método histórico-estrutural ou histórico-dedutivo para construir sua teoria do desenvolvimento e a localizou sempre no quadro da interdependência entre as nações. No capítulo sobre Celso Furtado, André Nassif lembra que, ainda nos anos 1950, o grande economista brasileiro praticamente identificou a doença holandesa ao analisar a economia da Venezuela. Pena que depois não tenha levado adiante essa ideia.

André Nassif define o Capítulo V como “um prólogo ao novo desenvolvimentismo: notas sobre o regime de metas de inflação e austeridade fiscal”. Nesse capítulo, ele comenta que o desenvolvimentismo clássico deu relativamente pouca importância à teoria macroeconômica e afirma que Bresser-Pereira, com sua teoria novo-desenvolvimentista, procurou preencher essa lacuna.

Observa também que eu me dei conta de que as políticas industriais e tecnológicas, necessárias para o desenvolvimento, tornavam-se inefetivas se não fossem acompanhadas por políticas macroeconômicas, principalmente política cambial e política monetária que criem o ambiente para que aquelas políticas microeconômicas tenham efeito.

André Nassif discute então a política de metas de inflação, que os bancos centrais adotaram quando, ainda nos anos 1980, viram que as políticas monetaristas propostas por Milton Friedman, que foram por um breve momento dominantes, não os ajudavam a controlar a inflação. E nesse capítulo ele ressalta a importância da teoria da inflação inercial, que, em São Paulo, Yoshiaki Nakano e eu, e no Rio de Janeiro, os economistas da PUC (Pontifícia Universidade Católica) desenvolveram.

Acho interessante André Nassif ter visto a teoria da inflação como um prólogo para o novo desenvolvimentismo, porque, para mim, essa teoria, e particularmente o “paper” “Fatores aceleradores, mantenedores e sancionadores da inflação”, teve tal papel.

Depois desse prólogo, André Nassif dedica o Capítulo VI à teoria novo-desenvolvimentista – que um grupo de economistas brasileiros e eu vêm construindo desde os anos 2000. Naturalmente, me senti muito lisonjeado e feliz ao ser colocado ao lado dos pioneiros do desenvolvimento. Até o final dos anos 1990, eu era um macroeconomista pós-keynesiano e um desenvolvimentista clássico.

Entretanto, no final dessa década, depois de 20 anos de quase-estagnação dos países latino-americanos, me dei conta de que eram necessários modelos teóricos adicionais para compreender o problema do desenvolvimento e da estagnação.

Começamos pela crítica da taxa de juros alta e da taxa de câmbio apreciada no longo prazo. Embora os economistas liberais nos governos afirmassem que os preços eram determinados pelo mercado, vimos que a taxa de juros era muito mais alta do que a taxa de juros internacional mais o risco Brasil, e que a taxa de câmbio se mantinha tendencialmente apreciada no longo prazo. Em consequência, as empresas capazes deixavam de ser competitivas e não investiam, enquanto o poder aquisitivo e o consumo de trabalhadores e de rentistas eram artificialmente elevados. Vimos também que, ao contrário do que afirma a teoria convencional, a taxa de câmbio é uma variável determinante do investimento.

Podíamos afirmar isto porque também afirmávamos que a taxa de câmbio não é meramente volátil em torno do equilíbrio corrente, mas tende a permanecer apreciada no longo prazo. Por duas razões: porque a política de crescimento com endividamento externo aprecia a moeda nacional no longo prazo e porque uma doença holandesa não neutralizada mantém a taxa de câmbio apreciada para a indústria, não para as “commodities”.

Finalmente, afirmamos que a macroeconomia que interessa é uma macroeconomia e uma política macroeconômica do desenvolvimento na qual o Estado deve ser responsável por cerca de 20 por cento do investimento total e o governo deve garantir as condições gerais da acumulação de capital, ou seja, investir em educação, ciência e tecnologia, investir na infraestrutura, manter instituições que garantam o bom funcionamento do mercado, garantir a existência de um sistema financeiro local capaz de financiar os investimentos e manter os cinco preços macroeconômicos no lugar certo: a taxa de juros real deve ser relativamente baixa; a taxa de câmbio real, competitiva; a taxa de lucro, satisfatória para as empresas industriais investirem; a taxa de salários crescendo com o aumento da produtividade, e a taxa de inflação em um nível baixo.

André Nassif discute o novo desenvolvimentismo com grande competência, porque ele é um dos mais notáveis economistas desenvolvimentistas brasileiros. Quando, porém, eu o conheci, em 2008, ele acabara de publicar na revista que edito, Brazilian Journal of Political Economy, um artigo em que negava a tese que eu então estava começando a defender, a partir da teoria que estava desenvolvendo, de que o Brasil estava sofrendo um grave processo de desindustrialização.

André Nassif, porém, é um economista que pensa com autonomia e clareza. Com o passar do tempo, ele mudou sua opinião sobre a desindustrialização e se tornou um dos economistas que mais têm feito contribuições para o novo-desenvolvimentismo.

O Capítulo VII é uma conclusão da análise realizada. Nela, André Nassif enfatiza que o desenvolvimento econômico só é bem-sucedido quando resulta de um projeto nacional. E aproveita para falar de contribuições recentes para a teoria do desenvolvimento. Cita, então, autores como Ha-Joon Chang, Erik Reinert e Mariana Mazzucato, que mostraram que todos os países exitosos no processo de catching up se guiaram pelos princípios desenvolvimentistas, e não pelos preceitos neoclássicos (herdados de David Ricardo) de adesão incondicional a práticas de laissez–faire e livre comércio; Alice Amsden e Robert Wade, desenvolvimentistas voltados para os países do Leste da Ásia; autores neoschumpeterianos, como Mario Cimoli, Giovanni Dosi e Gabriel Porcile; e autores neoclássicos, mas desenvolvimentistas, como Dani Rodrik.

A segunda parte do livro é dedicada à teoria liberal neoclássica do desenvolvimento. No Capítulo VIII, André discute as teorias liberais de comércio internacional; no Capítulo IX, a teoria neoclássica do crescimento; e no Capítulo X, o Consenso de Washington e a ideologia neoliberal.

São capítulos muito interessantes, mas confesso não ter paciência com o que os liberais neoclássicos chamam de teoria do desenvolvimento. Como dizia Celso Furtado, não passa de ideologia. Ideologia que aparece não disfarçada de teoria no Capítulo X. O Capítulo XI é a crítica de André Nassif a essas teorias.

Temos, assim, um belo livro. Uma brilhante análise das teorias do desenvolvimento de um economista desenvolvimentista engajado na luta pelo desenvolvimento – uma luta difícil, que só será vencida quando o desenvolvimentismo voltar a ser a forma de organização econômica do capitalismo dominante no Brasil e na América Latina e soubermos rejeitar a política de crescimento com endividamento externo, decidirmos neutralizar a doença holandesa e devolvermos ao Estado o papel de investir em setores estratégicos da economia.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor Emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). Autor, entre outros livros, de Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil (Ed. FGV).
Referência
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André Nassif. Desenvolvimento e estagnação: O debate entre desenvolvimentistas e liberais neoclássicos. São Paulo, Contracorrente, 2023, 560 págs.

Carta Mensal – Outubro 2023

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O mês de outubro foi marcado pela recuperação do presidente do Luís Inácio Lula da Silva, depois de uma operação no final de setembro, neste período o Executivo ficou acéfalo, um momento, onde as grandes decisões foram postergadas para o retorno do presidente da República.

No campo econômico, percebemos que o Ministério da Fazendo teve que usar todo seu repertório para defender suas bandeiras, onde podemos destacar o programa Desenrola, medida pensada desde o período eleitoral como uma forma de aliviar uma parcela da população brasileira, já que mais de 70 milhões de consumidores estavam negativados e, desta forma, perderam a condição de consumir normalmente, impossibilitando de acessar crediário e menor cidadania.

Destacamos ainda, neste setembro de 2023, o Ministro da Fazenda Fernando Haddad mandou para o Congresso Nacional as propostas de tributação dos Fundos Exclusivos, que pagavam pouco tributo, gerando fortes deformações no sistema tributário brasileiro, garantindo grandes atrativos para poucos cidadãos em detrimento de toda a comunidade nacional, perpetuando um sistema altamente degradado e gerador de fortes privilégios.
No front econômico, o governo federal vem fazendo uma verdadeira cruzada para encontrar mais recursos para cumprir as promessas de déficit zero para o próximo ano, sabendo que o mercado não acredita e já precificou um déficit na casa dos 0,75% do produto interno bruto, mesmo assim, o Ministério da Fazendo acredita que consegue alcançar seu intuito, desde que consiga aumentar os recursos oriundos das alterações no sistema tributário, com taxação dos fundos e medidas em estudo.

No campo político devemos destacar o fortalecimento do poder do Congresso Nacional em detrimento do poder Executivo. Na última eleição seus resultados foram interessantes, a população elegeu um governo federal progressista e elegeu um Legislativo conservador, na verdade, um Congresso Nacional fortemente conservador, levando o presidente da República a ser obrigado a negociar todos os projetos de interesse do Executivo, tolhendo muitas propostas presidenciais e levando-o a ceder nacos de poder, com grandes recursos e partes substanciais do orçamento como forma de manter a governabilidade.

O crescimento do legislativo está diretamente ligado a ascensão dos governos de direita e de extrema direita, os governos Temer e Bolsonaro, que foram responsáveis pelo fortalecimento deste poder como forma de manter sua governabilidade, muitas vezes terceirizando seu poder para conseguir governar, garantindo bilhões de recursos para manter uma estrutura fortemente degradada, como podemos destacar os recursos do fundo partidário que foram responsável pela perpetuação de grupos políticos e a manutenção de seus privilégios espúrios, garantindo várias reeleições de seus grupos políticos.

O mês de outubro nos trouxe grandes constrangimentos para a sociedade internacional, o ataque do Hamas aos civis israelenses deflagrou um guerra que culminou na morte mais de milhares de pessoas, um conflito que teve repercussões globais, motivando grupos e personalidades a apoiarem um dos lados, gerando constrangimentos diplomáticos, acusações generalizadas em todos os lados, invasões e interesses imediatos, muitos deles são motivados por questões econômicas, além de conflitos religiosos e políticos. A guerra é sempre uma forma degradante de resolver divergências em todas as épocas da humanidade, os resultados são sempre os mesmos, uma forte destruição de variadas regiões, mortes, perseguição de grupos sociais, incremento de xenofobias e graves distorções nos direitos humanos, no limite aumentam os constrangimentos na sociedade internacional.

Esse conflito levou as nações a adotarem posições, ao lado dos judeus encontramos os europeus e os Estados Unidos, com o envio de bilhões de dólares para Israel, além de equipamentos militares, porta aviões, tropas especiais e variados instrumentos militares. De outro lado, percebemos uma defesa com menor ímpeto, embora os discursos dos governos defendam um cessar de fogos e a construção de corredores humanitários para socorrer feridos e enterrar mortos, percebemos que as populações das nações árabes apresentam uma visão mais assertiva em defesa dos palestinos, desta forma, percebemos o crescimento das rivalidades, das agressões e dos discursos acalorados, que podem culminar em movimentos estratégicos e militares que podem escalar o conflito.

Neste cenário, percebemos os constrangimentos de instituições multilaterais como a Organização das Nações Unidas (ONU), que perderam a capacidade de mediar o conflito, perdendo relevância na sociedade global, deixando de auxiliar os momentos de incertezas mundiais e, desta forma, essa instituição precisa de uma reforma para que a chama do pós-guerra mundial possa reacender, dando-a novamente, centralidade no cenário internacional.

Depois de um período de conflito entre Israel e Hamas os resultados do combate são assustadores, milhares de mortos, principalmente crianças e mulheres, milhares de pessoas sem residências e sem condições dignas de sobrevivência, devastação da infraestrutura da Faixa de Gaza, destruição de hospitais e postos de saúde, dentre outras destruições, criando um rastro de devastação na região.

Vivemos momentos de instabilidades e incertezas todos os dias, muitos acreditavam que o controle da pandemia que vitimou mais de 6 milhões de pessoas, apenas no Brasil foram responsáveis por mais de 700 mil mortes, traria uma sociedade mais prudente e mais solidária, mais empática e mais responsável, nada disso aconteceu, estamos numa selva marcado pelo individualismo e o imediatismo, os resultados não serão positivos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Alta temperatura

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Estamos vivendo momentos de altas temperaturas em todas as regiões do mundo, com impactos generalizados para toda a sociedade global, com repercussões em todas as áreas e gerando fortes constrangimentos para a economia, com aumento de custos, incertezas crescentes e a necessidade de discutirmos sobre os rumos da estrutura produtivo e a forte dependência de combustíveis fósseis.

Desde a primeira revolução industrial, iniciada na Inglaterra no século XVIII, que trouxeram ganhos substanciais para a estrutura produtiva mundial, incremento da produtividade, com novos modelos de negócio, com a geração de novas formas de organização social e política, com fortes mudanças comportamentais dos indivíduos, com o surgimento de novas ocupações e uma forte dependência dos combustíveis fósseis, que estimularam conflitos militares, guerras e revoluções sangrentas ao longo da história nas mais variadas regiões e como forma de controlar e dominar o chamado “ouro negro”.

Neste cenário, percebemos que a ciência internacional vem buscando novas formas de energia para satisfazer os anseios da estrutura produtiva, sabendo que os combustíveis fósseis são finitos e a sociedade precisa construir urgentemente outras alternativas energéticas como forma diminuirmos a dependência do petróleo e gás natural.

Depois de mais de duzentos anos de crescimento econômico produtivo global, os impactos sobre o meio ambiente estão, cada vez maiores, com incremento da temperatura, degradação de regiões inteiras, prejuízos elevados e crescentes na agricultura, alterações no solo, degradação de rios, mares e lagos, com isso, percebemos o aumento da imigração de povos inteiros, com variados conflitos culturais, o aumento de movimentos xenofóbicos, a violência e a exclusão social.

Diante disso, percebemos a grande dificuldade dos agentes econômicos e dos gestores públicos de criarem novas formas de energias alternativas para movimentar o sistema econômico e produtivo fortemente dependente dos combustíveis fósseis. Toda a estrutura produtiva internacional sempre foi dependente destes combustíveis e, neste instante, faz-se urgente o desenvolvimento de novas alternativas energéticas. Os recursos necessários para essa transformação são gigantescos para a comunidade internacional, estamos falando em algo de trilhões de dólares, num cenário marcado por economias endividadas e questões fiscais preocupantes para a maioria das nações. Ou seja, estamos vivenciando um dos maiores desafios da sociedade mundial, que exige lideranças capazes de compreenderem o desafio e propor soluções imediatas e disruptivas

Depois de mais de 200 anos de forte exploração e dependência dos combustíveis fósseis, os custos deste modelo econômico dominante estão aparecendo com mais evidente, todos os indivíduos estão comentando as alterações climáticas, o aumento da temperatura e os custos financeiros e monetários para toda a comunidade. Neste momento, o Brasil apresenta grandes oportunidades, somos uma nação detentora das mais variadas formas energéticas, uma grande vantagem comparativa quando observamos as outras nações, que precisam fortemente de formas energéticas externas que reduzem sua soberania e sua autonomia.

Os grandes conglomerados produtivos internacionais perceberam o forte potencial brasileiro, as empresas automobilísticas globais estão se posicionando no cenário nacional e outros setores estão estudando projetos de investimentos para os próximos anos, com forte geração de emprego, com melhorias nos indicadores econômicos e sociais, além da melhora no incremento da produtividade da economia brasileira.

Para que consigamos atrair esses investimentos internacionais precisamos de maturidade institucional, fortes investimentos em capital humano, com grandes dispêndios em educação e saúde, criando fortes estímulos financeiros para as pesquisas científica, atraindo pesquisadores brasileiros e internacionais motivados por um projeto maior e consistente. O sucesso econômico, nos mostram as nações desenvolvidas, está centrado nos fortes investimentos na população, nas políticas públicas e enfocando o ser humano, antes de tudo.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Muitos pais desconhecem o sentido de uma educação de qualidade, Vera Iaconelli

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Para muitas famílias, a questão central é colocar a criança para fazer networking

Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP.

Folha de São Paulo, 28/11/2023

Professores de escolas ditas de elite têm enfrentado um dilema exemplar da situação brasileira. São eles que, diante da tarefa hercúlea de ensinar, recebem uma molecada cujos pais não os deixam esquecer que estão pagando pelo serviço e querem ver resultados. Na escola tida como empresa, é o produto final que está em disputa.
Não que nas demais escolas corpo docente e pais não enfrentem desencontros, longe disso. Temos o belíssimo trabalho do psicanalista Rinaldo Voltolini para nos mostrar o que o autor chama de “divórcio entre a família e a escola” (em “Laço”, Autêntica, 2020).

Mas na escola dita de elite, para muitas famílias a questão central é colocar a criança para fazer networking, introduzindo-a no mundo dos bem-nascidos. Nesses casos, é mais importante que a instituição funcione como passaporte para o contato com outros integrantes da elite do que como educação propriamente dita. Para essa última, resta a expectativa de que a criança fale outras línguas como se fosse nativo e conheça os macetes para se dar bem no vestibular —ou o que for preciso para ser aceito em universidades estrangeiras. O ensino mesmo, aquele que se pauta no exercício da reflexão e da crítica, pode se tornar um estorvo diante desse projeto.

Num mundo no qual a ingerência dos pais no espaço escolar se torna uma constante e no qual o cliente tem sempre razão, a criança acaba servindo de cabo de guerra entre aquilo que merece ser chamado de educação e aspirações cínicas que veem nela um mero trampolim social.

O professor, por sua vez, longe de sofrer as agruras do docente de escola pública, como salários irrisórios, carga horária insana, condições insalubres e descredibilidade social, tem que se haver com a paixão pela ignorância, como dizia Lacan. Quanto mais ele se qualifica para preparar a criança para um mundo que perde sua capacidade reflexiva e crítica, mais ele se vê boicotado pela família dessa mesma criança. Como trazer o mundo para o aluno, sua realidade e contradições quando os pais que sustentam a escola exigem que não se saiba nada sobre isso?

Sexualidade, política, racismo, misoginia, pobreza têm sido temas tabu em todas as escolas de todas as classes sociais, que pais supostamente zelosos juram que pretendem discutir em casa, dispensando a opinião dos de fora.

Dessa forma, solapam o caráter público da escola, que é sua razão de existir. É porque os diferentes se encontram para assimilar os conteúdos no mesmo espaço, de forma democrática, reflexiva e respeitosa que a escola sempre será pública por excelência, seja paga ou não.

Mas o pavor dos pais de escolas daqueles que têm acesso a tudo é que as crianças tenham contato com aqueles que nada têm. São pais que aspiram a que a escola funcione como o carro que circula pela cidade e só vê a pobreza e a injustiça social pelo vidro blindado. Para que diante da pergunta sobre o porquê de uma criança estar no farol pedindo eles possam vomitar seus delírios meritocráticos, sem que o filho tenha acesso ao contraditório. Alguns chegam a fazer motins via grupo de WhatsApp fingindo ignorar que se comprometeram com o conteúdo programático no ato da matrícula.

Exigir que o professor seja calado diante do debate das questões que nos humanizam é fazer da escola esse mesmo carro blindado dirigido pela paranoia. Mas é no lugar de onde saem “os donos do mundo” que essas questões precisam ser incessantemente recolocadas. Os professores mais atualizados, qualificados e ciosos de seu trabalho são um inferno na vida das famílias que só querem que a próxima geração reproduza o pior.

Eles são também nossa esperança e consolo.

A globalização chinesa, por Elias Jabbour

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Elias Jabbour – A Terra é Redonda – 25/11/2023

Aos chineses não interessa o ônus de ser um hegemon. Mas interessa polarizar o debate sobre a governança global

“Nosso círculo de amigos estará sempre no Terceiro mundo. Lembre-se: os países desenvolvidos do Ocidente não nos chamarão para jogar e, aos olhos deles, sempre terão um ‘complexo de superioridade’. O Ocidente sempre desprezará nossos valores e considerará a China como ‘atrasada’. Aos olhos dos ocidentais, sempre haverá ‘diferenças entre o Oriente e o Ocidente’. Não pense que você pode se integrar ao mundo ocidental, nem pense ingenuamente que pode (Wang Yi, Chanceler da República Popular da China).

No dia 18 de outubro último foi iniciado um grande encontro cujo pano de fundo fora a comemoração dos dez anos da Iniciativa Cinturão e Rota. A grande maioria dos chefes de Estado e governo do Sul Global esteve presentes no evento, com destaque à presença permanente de Vladimir Putin ao lado de Xi Jinping nos mais variados momentos do encontro. Existe uma série de questões que os intelectuais interessados na mudança de dinâmica que marca o nosso momento histórico devem responder. Uma delas envolve a chamada “globalização”, o seu ocaso ou o surgimento de outra espécie de globalização, esta já sob os auspícios da Eurásia e da China, em particular.
Vejamos.

Outra espécie de globalização

Em setembro de 2013 o presidente chinês Xi Jinping lançou as linhas gerais do que fora chamado à época de “Cinturão Econômico da Rota da Seda”, atualmente “Iniciativa Cinturão e Rota” (BRI). Desde então, 154 países aderiram formalmente ao projeto com cerca de US$ 1 trilhão já foram investidos em quase todos os continentes do mundo. Dez anos após o lançamento da Iniciativa Cinturão e Rota, o mundo encontra-se diante de uma série de discussões, dentre elas a de uma chamada “desglobalização” – acelerada pelo escancaramento do histórico protecionismo estadunidense e de uma tentativa de cancelamento da China do mercado global de suprimentos para as infraestruturas de semicondutores. Esse processo trouxe, realmente, fissuras ao padrão de globalização preexistente, mas será que significa o início de uma “desglobalização”?

O padrão de globalização inaugurado pelos Estados Unidos desde o final da Segunda Guerra Mundial e que ganha outros contornos, chamados “financeirizados”, desde o final da década de 1970, arrastando o mundo – e a China em particular – para novos marcos institucionais de todo tipo e por novos arranjos territoriais baseados tanto na velocidade com que os capitais saem e entram nos países quanto na reorganização da geografia industrial mundial. Inflação baixa nos EUA passou a ser sinônimo de Made in China. O que os policymakers estadunidenses nunca imaginaram é que o homem que incluiu a China na economia capitalista mundial antes fora um herói da Longa Marcha (1934-1935) e não um indicado seu na Coreia do Sul ou no Japão. Referimo-nos a Deng Xiaoping.
Multipolaridade

Em cerca de 40 anos a financeirização foi erodindo a capacidade dos EUA de se reinventarem periodicamente. Sua quase imbatível máquina militar sendo testada mais vezes em uma década do que em toda Guerra Fria contrastava com uma sociedade cada vez mais fraturada pela desigualdade social. Por outro lado, a cada nova crise financeira, menor a distância entre a China e os Estados Unidos.

Nas últimas quatro décadas o país construiu “três imensas máquinas”: a máquina de construção de valores de troca (a transformando em máquina do mundo), uma máquina financeira (a transformando no maior credor líquido do mundo) e em máquina de construção de valores de uso (em 20 anos o país construiu 42 mil km de trens de alta velocidade e se constituindo no maior exportador de bens públicos em infraestruturas da história humana).

É nesse ponto que devemos questionar a chamada “desglobalização”. Não estaria ocorrendo uma globalização tendo a China como promotora baseada tanto no movimento de incorporação da Rússia como parte soberana de seu território econômico quanto na integração física do mundo com infraestruturas baseadas em grande capacidade produtiva e estatal instalada e em bancos públicos (criadoras de moeda fiduciária), colocando em terceiro e quarto planos o endividamento dos receptores desses investimentos em detrimento de maior protagonismo chinês e mesmo de potências regionais como a África do Sul, o Egito, a Etiópia e quem sabe o Brasil?

Por outro lado, se existe uma globalização com características chinesas e se qualquer processo de globalização pode ser definido, também, pelos valores compartilhados pelo polo gravitacional, o que podemos esperar de uma globalização à chinesa? As ciências sociais e humanas não contam com laboratórios de teste como as hard sciences. Portanto, muitas respostas estão colocadas no campo da história. Nesse sentido, dado o peso exercido pela economia produtiva (não financeirizada) chinesa no mundo, que essa “globalização” venha a redesenhar uma nova divisão internacional do trabalho, na medida em que a China comece a exportar sua prosperidade. Essa exportação já ocorre em certa medida na mesma proporção em que determinado país consiga planejar sua economia partindo das tendências criadas pela China. Esse é um ponto.

Outro ponto é a multipolaridade. Aos chineses não interessa o ônus de ser um hegemon. Mas interessa polarizar o debate sobre a governança global. Por exemplo, para a China a tendência da unipolaridade viria a substituir à relacionada aos vários polos de poder. Os valores deste processo estão em disputa. Os EUA falam em “nova ordem mundial” (sic). A China lança três grandes “Iniciativas Globais”, sendo elas: (i) desenvolvimento global; (ii) segurança global; e (iii) civilização global.

Podemos afirmar que a governança chinesa repagina os princípios da famosa Conferência de Bandung (1955), com o acréscimo da “internacionalização de fatores” ao colocar no campo do Sul Global quase que a responsabilidade pela salvaguarda de um mundo marcado por tensões de múltiplas ordens.

É uma relação dialética entre futuro e Sul Global, pois conforme anuncia a própria epígrafe escrita pelo chefe da chancelaria chinesa, os amigos da China encontram-se no Terceiro Mundo.

*Elias Jabbour é professor licenciado da Faculdade de Ciências Econômicas daUERJ e diretor de pesquisas do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) dos BRICS+. É autor, entre outros livros, junto com Alberto Gabriele, de China: o socialismo do século XXI (Boitempo).

O que é um genocídio? Vladimir Safatle

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Vladimir Safatle – A Terra é Redonda – 24/11/2023

Genocídio não é algo ligado a algum número absoluto de mortes, mas sim a uma forma específica de política de apagamento dos corpos

No dia 13 de novembro, nomes fundamentais da teoria crítica contemporânea, como Jürgen Habermas, Rainer Forst, Nicole Deitelhof e Klaus Günther, entenderam por bem publicar um texto, a respeito do conflito palestino e suas consequências, intitulado “Princípios de solidariedade. Uma afirmação”.

Começando por atribuir toda a responsabilidade da situação atual aos ataques do Hamas, defendendo o “direito de retaliação” do governo israelense e fazendo considerações protocolares sobre o caráter controverso e polêmico da “proporcionalidade” de sua ação militar, o texto termina por afirmar o absurdo de pressupor “intenções genocidárias” ao governo de extrema direita de Israel, conclamando todos ao mais profundo cuidado contra “sentimentos e convicções antissemitas por trás de toda forma de pretextos”.

O que inicialmente impressiona em um texto escrito por quem seria legatário da força crítica da Escola de Frankfurt e seu comprometimento antiautoritário é aquilo que não tem direito de aparecer quando certos europeus estão a clamar por “princípios de solidariedade”. Pois seria o caso de lembrar que, quando o texto de Jürgen Habermas e companhia foi publicado, o mundo contava mais de 10 mil palestinos massacrados e o governo israelense continuava a afirmar que nem sequer permitiria um cessar-fogo para a abertura de corredores humanitários.

Poderíamos esperar que isso tivesse a dignidade de nos indignar, que um texto sobre solidariedade, neste momento, começaria dizendo que colocar uma população de 2,5 milhões de pessoas em um estado cotidiano de terror no interior de uma lógica inaceitável de punição coletiva não é maneira alguma de combater o Hamas, mas sim de fortalecê-lo.

No entanto, chama a atenção como defensores de princípios universalistas de justiça parecem, na verdade, prontos a usá-los estrategicamente quando é o caso de expiar seus fantasmas locais de responsabilidade perante catástrofes passadas. A não ser que a racionalidade comunicativa tenha, afinal, fronteiras geográficas e esqueceram de nos avisar. Mas uma teoria que nunca pensou estruturas coloniais e seus modos de permanência e desdobramento não está preparada para os desafios do presente.

Pois militantes de direitos humanos, funcionários da ONU, diplomatas dos mais variados países, que insistem nas intenções genocidárias do governo israelense, têm todo o direito de serem ouvidos e levados a sério. Elas e eles estão a defender que “genocídio” ocorre todas as vezes em que o vínculo orgânico de populações ao “genos“, ao que nos é comum, é negado.

Quando o comandante das Forças Armadas israelense diz que do outro lado há “animais humanos”, ele expressa, de forma pedagógica, intenções genocidárias. Quando ministros do governo de Israel afirmam ser plausível o uso de bombas nucleares contra Gaza e não tem outra punição que o simples afastamento de reuniões ministeriais futuras, quando descobrimos planos de deslocamento em massa dos palestinos para o Egito, estamos sim diante de expressões de intenção genocidária. Tais intenções devem ser nomeadas.

Genocídio não é algo ligado a algum número absoluto de mortes, mas sim a uma forma específica de política de apagamento dos corpos, de desumanização da dor de populações, de silenciamento do luto público que retiram populações de sua humanidade e expressam processos historicamente reiterados de sujeição. Quando falamos dos palestinos, estamos a falar de um povo apátrida, sem terra – e, por isso, como bem lembrou Itamar Vieira Júnior na Folha de S. Paulo, sem liberdade alguma.

Povo que não pode contar com a solidariedade internacional porque espera há 50 anos que a lei internacional que define a posse de seu próprio território seja respeitada e que, quando se vê vítima de uma punição coletiva em pleno século XXI, encontra textos que nem sequer têm a capacidade de lembrar que nada disso começou com os ataques do Hamas.

O Hamas é efeito terrível de uma causa que merece ser pensada em seu horizonte histórico correto. Tomar o efeito pela causa é a melhor maneira de não resolver problema algum. Alguém deveria lembrar aos signatários do texto em questão que a teoria crítica exige escutar a história dos desterrados e dos vencidos.

*Vladimir Safatle é professor titular de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação (Autêntica).

O avanço do ensino a distância nas universidades exige maior regulação por parte do MEC? Sérgio Haddad

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EAD virou forma barata e de baixa qualidade para expandir o ensino superior

Sérgio Haddad, Doutor em filosofia da educação, é coordenador de projetos especiais da Ação Educativa, professor aposentado da PUC-SP e pesquisador sênior do CNPq

Folha de São Paulo, 25/11/2023

Doutor em filosofia da educação, é coordenador de projetos especiais da Ação Educativa, professor aposentado da PUC-SP e pesquisador sênior do CNPq

Iván Izquierdo, neurocientista argentino naturalizado brasileiro (1937-2021), publicou artigo nesta Folha, em fevereiro de 1996, no qual recordava do tempo largo em encontros nos bares com amigos e garçons enquanto estudava medicina em Buenos Aires: “Naquelas longas horas de café, entre metafísica, futebol e outros papos, estudávamos muito, bem e depressa”, afirmou.

A leitura do texto à época da sua publicação me fez recordar das mobilizações como estudante na USP, em 1968, que acabaram por marcar profundamente a minha existência. Também dos seminários, debates, acesso às disciplinas de outros cursos, atividades de extensão, de pesquisa, uso de laboratórios; enfim, de tudo aquilo que a vida universitária oferecia e ainda oferece.

Aprendi na prática, antes de me tornar educador, que a educação tem essa dimensão ampla e que apenas o ensino de disciplinas, de maneira presencial ou a distância, é uma pequena e limitada parte do processo educativo. Ensinar não é transmitir conhecimentos, nos ensinou Paulo Freire: “Não há docência sem discência”, pois não há educação sem a participação ativa do educando.

Tendo como foco na transmissão de conhecimentos, o crescimento da oferta de cursos superiores privados pela modalidade de ensino a distância (EAD) nos últimos anos veio acompanhado pelos baixos resultados dos seus alunos no último Enade (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes). Mais oferta, com baixa qualidade.

O avanço da EAD foi impulsionado por uma legislação favorável, pelo afunilamento das vagas nos cursos superiores públicos e pela diminuição do apoio por Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) e Prouni (Programa Universidade para Todos), além do fator pandemia.

No entanto, o maior responsável pela expansão da oferta foi o modelo de negócio da iniciativa privada para expandir os seus serviços e aumentar os lucros: o valor das mensalidades caiu —algumas custam o preço de uma refeição— e o número de alunos por professor subiu para 171, em média, conforme dados do último Censo do Ensino Superior. Com investimentos muito mais baixos do que a oferta presencial, multiplicaram-se de forma padronizada, independentemente de quem seja o aluno, da sua diversidade e do local onde vive.

Conglomerados do ensino privado anunciam que o sonho de um diploma do curso superior pode estar nas mãos de qualquer pessoa, em qualquer localidade. Basta pagar e se matricular para ter acesso aos conteúdos, quantas vezes desejar, dentro do próprio ritmo e horário, além de ser alternativa conveniente para adaptar os estudos aos compromissos familiares e de trabalho.

Mas este sonho se distancia da realidade quando consideramos que a EAD exige autonomia, disciplina, local adequado e motivação para aprender a aprender. Ora, uma parcela grande da população, a mais pobre, termina o ensino médio com muitas limitações de aprendizagem e com pouca autonomia para buscar o conhecimento. É aquela com mais dificuldade para criar um ambiente favorável para os estudos, com baixa qualidade das conexões pela internet e ausência de espaços coletivos de aprendizagem e de interação presencial.

A EAD vem se tornando uma forma barata e de baixa qualidade de expansão do ensino superado, diferentemente do que ocorre em outros países com tradição nessa modalidade de ensino, onde é utilizada de forma complementar à formação presencial, como educação continuada para quem quiser se atualizar ou aprender novos conteúdos.

O Ministério da Educação não só tem a responsabilidade de controlar o crescimento e a qualidade do EaD como também o dever de aumentar a oferta pública de vagas no ensino superior, garantindo o acesso e a permanência dos alunos mais pobres com políticas afirmativas.

Reforma do Ensino Médio: um crime a ser barrado, por Rogério de Souza

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Acelerada em São Paulo, ela fez da vida de 330 mil jovens um experimento cruel. Deixou de prepará-los para a universidade, sem oferecer formação técnica real. Um engodo – com cor e classe social. Só a revogação pode ser um começo de saída

Rogério de Souza – Outras Palavras – 22/11/2023

O antropólogo, educador e político Darcy Ribeiro costumava dizer que, no Brasil, a educação básica pública de qualidade duvidosa não é propriamente um desvio de rota, uma disfunção, mas um projeto da elite nacional. Em diferentes momentos da nossa história, esse intento das camadas abastadas desvela-se sem filtro, revelando uma verdadeira arquitetura da destruição, boicote à nação.

A Reforma do Ensino Médio, apresentada como Medida Provisória 746/16 e aprovada como projeto de lei n.º 13.415/17, foi, já em seu nascedouro, apontada como um instrumento oficial de Estado que resultaria, necessariamente, no aumento das desigualdades educacionais, pois priva, em sua concepção, milhões de estudantes de acessarem os conhecimentos historicamente sistematizados pela humanidade e exigidos nos vestibulares das universidades brasileiras, públicas e privadas.

Escondidos atrás de estandartes que estampavam: flexibilização curricular, protagonismo estudantil com a possibilidade de escolher o que gostaria de cursar, aproximação entre o conhecimento e a realidade dos estudantes, modernização curricular, expansão do ensino técnico-profissional, etc., os adeptos da reforma saíram vencedores. Decidiu-se que o Novo Ensino Médio, denominado de NEM, entraria em vigor a partir de 2022; com a adequação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) – principal porta de entrada para as universidades públicas – às novas determinações trazidas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – parte da engrenagem que movimentou a Reforma do Ensino Médio – a partir de 2024.

Alheios às manifestações de rua de profissionais da educação e estudantes, além de centenas de pesquisas frisando que o NEM resultaria, inevitavelmente, num aumento das desigualdades educacionais, colocando em risco o direito à aprendizagem de mais de 7 milhões de estudantes da rede pública, secretários estaduais de educação, capsulados no Conselho Nacional de Secretários de Educação, o CONSED, “indumentaram-se” da vestidura de que “lei não se discute, lei se cumpre”, e programaram-se para a implantação do NEM a partir de 2022.

Para deleite da elite bandeirante, o então governador de São Paulo, João Dória Jr., anunciou, em 2020, que o Estado, protagonista em diferentes momentos da história do país, assumiria a vanguarda do atraso e se adiantaria na implementação do NEM, com a aprovação do Currículo Paulista e a indicação de 11 itinerários formativos de aprofundamento.

Experimentações curriculares questionáveis adotadas em 2019 e 2020, como o Programa Novotec, anunciavam o desastre da arquitetura do NEM. O Novotec ventilou a tese de que o estudante do Ensino Médio sairia com dupla formação, curso regular e técnico-profissional, o último com a grife das Escolas Técnicas Estaduais, as Etecs. Na prática, verificou-se que as diminutas horas destinadas à formação técnica eram insuficientes para habilitar um estudante a desenvolver atividade profissional em qualquer área. Cilada pedagógica anunciada por diferentes críticos. Consequência: frustração de milhares de estudantes.

Desarrumado desde a concepção, o NEM iniciou nas escolas paulistas em fevereiro de 2021. Com incertezas múltiplas, justificava-se “que todo período de transição é complicado”, “que a comunidade escolar deveria estar aberta ao novo, e não ser resistente à mudança”. Rapidamente, as críticas difundidas no contexto da aprovação da Reforma voltaram a fazer eco: as escolas não conseguiram ofertar os itinerários indicados pelos estudantes; houve quantidade interminável de disciplinas; impossibilidade de docentes prepararem material para tantas disciplinas; falta de material didático para os componentes curriculares da formação geral e dos itinerários formativos; disciplinas eletivas sem sustentação acadêmica; falta de professores para as diferentes disciplinas; docentes sem formação específica sendo obrigados a assumir determinados componentes curriculares; etc.

No final do primeiro semestre de 2022, o movimento estudantil organizado evidenciou as inúmeras incongruências do NEM na prática e passou a reivindicar a revogação da Reforma do Ensino Médio. Pipocaram pela imprensa convencional denúncias sobre disciplinas sem lastro acadêmico e a quantidade inadministrável de componentes curriculares, atingindo o surpreende número de 1.526 disciplinas diferentes país afora, colocando em risco o direito da educação básica para todos os estudantes, institucionalizando a fragmentação curricular na última etapa de ensino obrigatório.

Pesquisas na Rede Estadual de Ensino de São Paulo demonstram, já no final de 2022, grande desânimo por parte dos estudantes no que diz respeito à continuação dos estudos. Segundo o artigo 35º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/EN n.º 9.394/96), uma das finalidades do Ensino Médio é “a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos” (grifos nossos). O NEM, com a determinação de que a Formação Geral Básica compreende, no máximo, 1.800 horas das 3.000 dessa etapa de ensino, arquitetou que os secundaristas teriam contato com os conhecimentos historicamente consolidados pela humanidade e exigidos nos principais vestibulares, com destaque para o Enem, somente na 1ª série e primeiro semestre da 2ª série. Ou seja, durante o restante do curso, compreendendo 18 meses, discentes acessarão os conteúdos diversos por meio dos Itinerários Formativos, esses sem, até o momento, referências nítidas e material didático de apoio, resultando, quase sempre, num esforço homérico de docentes para que os seus estudantes não fiquem sem os conteúdos essenciais para a vida em sociedade e continuação dos estudos.

A lei que versa sobre improbidade administrativa indica, no seu artigo 11º, que “constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade…” (grifo nosso). Entende-se que o governador e a Secretaria Estadual da Educação (SEDUC) estavam cientes que os estudantes concluintes do Ensino Médio neste final de 2023 no Estado de São Paulo não estudariam, neste novo modelo adotado, os conhecimentos básicos aplicados no Enem. Sabiam, certamente, que é praticamente impossível cumprir conhecimentos desenvolvidos em 2.400 horas durante 3 anos em 1.800 horas dentro de 1 ano e meio. Por conseguinte, verifica-se em diferentes escolas que muitos estudantes do 3º ano do Ensino Médio paulista, um universo de mais ou menos 330 mil, abdicaram de fazer a principal prova que permite acesso ao ensino superior brasileiro por intuir que não adiantava fazer o exame, pois estavam há mais de um ano sem ver Biologia, Física ou Química; ou Filosofia, Geografia, História e Sociologia. E que o estudante do terceiro ano do ensino particular continuava a estudar todas essas disciplinas. Que a universidade não era para ele. Que estava se organizando para trabalhar.

No rigor técnico-jurídico, apesar de ter punição, a improbidade não é um crime, é um ilícito administrativo com sanção. Portanto, ímprobo e não criminoso. Recorre-se aqui, entretanto, ao conceito social de crime, que não é o mesmo do conceito jurídico, transcende a simples violação de norma legal. Associa-se muito mais ao reflexo de expectativas, valores e ética de determinada sociedade em um período histórico específico. Diferentes estudos revelaram um aumento significativo dos estudantes egressos da rede pública da Educação Básica nas principais universidades brasileiras, todas públicas. Quase 70% da totalidade e mais de 50% de negros. O estudante pobre brasileiro, que tem cor, é preto, é preta, é pardo, é parda, estava entrando na universidade pública. Os sistemas de políticas de ações afirmativas contribuíram para esta mudança. Estabeleceu-se, mesmo eivados de contradições, horizontes diferentes para esses estudantes secundários: cursar o ensino superior. Agora estão frustrados, enganados e humilhados no Estado de São Paulo. Assim, pode-se afirmar que a ação dos responsáveis pela educação paulista da época é possivelmente criminosa, na medida em que frustrou centenas de milhares de estudantes à viabilidade de acesso ao ensino superior. No mínimo, caracteriza-se como desonestidade com um contingente de 330 mil concluintes do Ensino Médio.

O atual governo, na contramão daquilo que já se concluiu no restante do mundo, que a tecnologia é um importante instrumento de apoio pedagógico, mas não substitui a interação presencial e o livro impresso, disponibilizou, agora no segundo semestre, uma plataforma denominada “Prepara São Paulo”, espécie de cursinho pré-vestibular on-line, com assiduidade semelhante à aula em emenda de feriado. Servindo mais para atacar um problema do ensino superior brasileiro do que atender a demanda e o dolo cometido contra os sonhos de 330 mil jovens, o governo do Estado tirou da cartola, feito mágico da Caravana Rolidei do filme “Bye bye Brasil”, 15 mil vagas para o chamado “Enem Paulista” ou Provão Paulista – antigo SARESP (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo), que ganha agora status de selecionar para as grandes universidades paulistas. Serão ofertadas 1.500 vagas para a USP, 934 para a Unesp, 325 para a Unicamp, 2.620 para a Univesp (on-line) e 10 mil para as Fatecs. Não é objeto do presente texto, mas as instituições de ensino superior brasileiras vivem crise estrutural de falta de estudantes, especialmente nos cursos presenciais. Há tempos registramos o mesmo número de alunos nesse nível de ensino: cerca de 8 milhões. Não conseguimos aumentar, apesar do quase imensurável universo de brasileiros sem um diploma de graduação. Ao mesmo tempo, nota-se que aqueles que decidem cursar uma faculdade escolhem o EaD, hoje com mais de 50% dos matriculados nesse nível de ensino. Cursos superiores presenciais correm, velozmente, o risco de desaparecerem. O “Enem Paulista”, além de ser uma afronta à política pública bem-sucedida do Enem, é um suspiro às universidades e às faculdades paulistas.

Pretendesse de fato corrigir o dolo cometido pelos gestores anteriores, o atual governo paulista deveria garantir vagas nas melhores universidades do Brasil (“com casa, comida e roupa lavada”) a todos os 330 mil estudantes da Rede Estadual de Ensino que se viram confundidos, frustrados, enganados, humilhados e excluídos pela decisão dos antigos administradores do Ensino Médio do Estado de São Paulo. Não se pode caracterizar essa arquitetura de destruição como desvio de rota ou mera disfunção. Soa como intencional. Darcy Ribeiro já nos ensinou isso. Projeto da elite para precarizar a Educação Básica, frustrando a perspectiva de vida, de futuro, de país. Um crime!

Rogério de Souza: Doutor em Sociologia pela Unicamp, escritor e professor no IFSP. Coordena o Grupo de Pesquisa em Educação Profissional (GPEP) do IFSP, Campus São Roque.

Combate à desigualdade social, por Fernando Nogueira da Costa

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Fernando Nogueira da Costa – A Terra é Redonda – 21/11/2023

A direita considera as desigualdades naturais, enquanto a esquerda se define pela busca da igualdade social por não a considerar natural

As ideias de esquerda e direita são termos referentes a posições no espectro político. Ideias de esquerda se definem pela busca da igualdade social por não a considerar natural. A “sorte do berço”, para alguns, com qualidade de vida e herança parruda, impõe política compensatória para os demais.

Sua preocupação principal, então, é a promoção da igualdade social e econômica. A esquerda busca reduzir as disparidades de renda e proporcionar igualdade de oportunidades. Para tanto, acredita em uma intervenção mais ativa do Estado na economia para corrigir desigualdades e garantir serviços sociais, como saúde e educação, para todos.

Seu foco está na proteção dos direitos sociais: defende os direitos civis, igualdade de gênero, direitos LGBTQ+, e outros direitos sociais como parte fundamental da justiça social. Para a mudança social, apoia políticas progressistas, como o casamento igualitário, políticas ambientais, e medidas de inclusão social. Busca criar uma sociedade mais justa, onde os benefícios e ônus sejam compartilhados de maneira mais equitativa.

Em oposição, as ideias de direita se pautam por considerar as desigualdades individuais serem naturais. O individualismo enfatiza a responsabilidade individual e a autonomia, argumentando os indivíduos necessitarem de liberdade para buscar seus interesses sem interferência excessiva do Estado.

Daí sua preocupação principal é defender o livre-mercado ao impor um papel limitado do Estado na economia. Pressupõe as livres iniciativas serem os meios eficientes de alocação social de recursos escassos, ou seja, “os competentes se estabelecem”. Isso preservaria a liberdade individual dos empreendedores. O liberalismo econômico acredita na eficácia do mercado livre para o crescimento econômico e a inovação.

Para controlar revoltas e proteger a propriedade privada de poucos, a direita se pauta na manutenção da ordem social e a segurança. Enfatiza a importância da lei dura e do autoritarismo político para manter a estabilidade social. Seu conservadorismo social leva à manutenção de valores tradicionais. Está associada à preservação de valores morais antigos, incluindo questões como família e religião.

Quando a esquerda no governo analisa as principais políticas para diminuir a desigualdade social, percebe ser um desafio muito complexo, requerendo uma abordagem multifacetada dos seus múltiplos componentes interativos. Para promover maior equidade e justiça social costuma pregar a redistribuição dos fluxos de renda, quando desconhece a desigualdade dos estoques de riqueza (financeira e imobiliária) ser muito maior – e mais difícil e arriscado de serem ameaçados.

Para se ter uma ideia da distribuição de renda no Brasil: metade dos trabalhadores tem rendimentos abaixo da mediana em torno de um salário-mínimo, a renda média de todos está em R$ 2.921, um graduado em Ensino Superior em boa Universidade pública recebe inicialmente cerca de 5 salários-mínimos (R$ 6.600) e entra no decil dos 10% mais ricos. Com mestrado ganha em torno de R$ 9 mil e com doutorado R$ 13.200 (10 salários-mínimos), entrando no grupo dos 5% mais ricos. No fim da carreira (já idoso), atinge 30 salários-mínimos (R$ 39.600) e se situa no centésimo do 1% mais rico.

Vale observar, 70% dos servidores públicos recebem menos de R$ 5 mil, 20% daí até R$ 10 mil, 5% daí até R$ 15 mil, 4% daí até R$ 27 mil e o 1% restante chega até R$ 41.650. Os CEOs de empresas, por sua vez, recebem uma remuneração média anual de R$ 15,3 milhões, incluindo, além dos “salários”, os bônus. Esse valor é 2,9 vezes o montante recebido pelos demais membros da Diretoria, os quais alcançam em média R$ 334 mil mensais, ou seja, um salário anual de R$ 4 milhões, sem considerar os bônus.

Os dados do Global Wealth Report 2022 apontam, no ano anterior, o Brasil tinha 266 mil milionários. O estoque de riqueza médio dos brasileiros mais ricos era o seguinte: 1% tinha R$ 4,6 milhões, 0,1% em torno de R$ 26,3 milhões – e 0,01% só R$ 151,5 milhões!

A ANBIMA, em meados de 2023, registrou 157 mil contas do Private Banking com média R$ 12,8 milhões; no segmento do Varejo Tradicional, eram 133 milhões contas com estoque médio de R$ 13.272 (um salário-mínimo). O Varejo de Alta Renda eram 15 milhões de contas com média R$ 100 mil.

Evidentemente, essa média per capita é enganadora, pois muitos idosos da Classe Média Alta se tornam milionários em reais sem atingir a faixa do Private Banking de milionários em dólares.

Embora a influência dos movimentos sociais possam se expandir com a democracia, isso raramente acontece em detrimento de grupos de interesses poderosos. Na verdade, esses grupos organizados em lobbies se beneficiam mais com a democracia em comparação a grupos maiores sem organização política para ações coletivas.

Governos democratas gastam em programas sociais destinados aos necessitados da população. Ao mesmo tempo, mantém os interesses de grupos numericamente pequenos, mas com grande poder político. Essa contradição se aguça em Frente Ampla.

A esquerda luta pela implantação de políticas fiscais progressivas para tributar mais os indivíduos de maior renda e fornecer benefícios fiscais para os de renda mais baixa. Mas o Congresso Nacional barra ou não a implementa com celeridade, por exemplo, a tributação de lucros e dividendos e a mudança da estrutura tributária regressiva.

Programas de transferência de renda direcionados a grupos mais vulneráveis também desempenham um papel importante para diminuição da pobreza, bem como de acesso à educação de qualidade com investimento em sistemas educacionais abrangentes e acessíveis. Isso inclui garantir educação pré-escolar de qualidade, acesso a escolas bem equipadas em todas as comunidades e programas de bolsas de estudo para estudantes de baixa renda. A política de cotas em Universidades públicas é um excelente exemplo.

A implantação de sistemas de saúde universalmente acessíveis (como o SUS) deve ser acompanhada de qualidade igual para todos. O acesso universal a cuidados de saúde, medicamentos e serviços preventivos contribui para reduzir as disparidades de saúde e, por extensão, obter as condições físicas para ter oportunidades de trabalho.

O mercado de trabalho deve ser inclusivo, com promoção de políticas em combate à discriminação no local de trabalho e garantidoras da igualdade de oportunidades. Iniciativas para reduzir as disparidades salariais de gênero e minorias são exemplos.

Quanto ao trabalhismo, o fortalecimento dos sindicatos para a negociação coletiva busca garantir condições de trabalho justas, benéficas e benefícios adequados. Isso contribui para equilibrar o poder entre executivos da cúpula e trabalhadores da base.

O desenvolvimento de políticas habitacionais, para garantir moradia acessível para todos, talvez seja o meio mais eficaz para aumento da riqueza (“casa própria”) das famílias de baixa renda. Isso inclui programas de habitação social, regulamentações para evitar a especulação imobiliária e de incentivos para a construção de moradias a preços acessíveis.

Deve ser acompanhado da facilitação do acesso a crédito e capital para empreendedores de comunidades de baixa renda. Iniciativas para promover o empreendedorismo e o desenvolvimento de pequenos negócios podem contribuir para a criação de riqueza em comunidades desfavorecidas. Não soluciona, socialmente, mas ajuda a muitos. A implementação de programas de inclusão social, abordando questões específicas enfrentadas por grupos marginalizados, como pessoas com deficiência, minorias étnicas e LGBTQ+, a direita não aprecia. Mas é uma questão civilizatória!

Os programas de combate à pobreza fornecem assistência direta a indivíduos e famílias em situação de vulnerabilidade. Isso pode incluir programas de assistência alimentar, habitação subsidiada e serviços de cuidados infantis.

Por fim, a garantia de equidade ambiental, para comunidades de baixa renda, evita a poluição ambiental e promove o acesso a ambientes saudáveis com saneamento. Geralmente, a combinação de todas essas abordagens é necessária para alcançar resultados significativos na redução da pobreza e/ou da desigualdade social.

Posso ainda citar a empregabilidade e o treinamento profissional para atender às demandas do mercado de trabalho; o salário mínimo adequado; segurança social e redes de proteção para famílias de baixa renda; seguro-desemprego e pensões para um suporte financeiro essencial; promoção da inclusão financeira por meio do acesso a serviços bancários e microcrédito; apoio ao desenvolvimento de pequenos negócios e empreendedorismo por meio de programas de treinamento, acesso a crédito e incentivos fiscais; implantação de políticas para o desenvolvimento rural sustentável, incluindo investimentos em infraestrutura e diversificação da economia local; garantia de acesso à tecnologia e conectividade com a promoção da inclusão digital.

Embora tenha inviabilidade política de ser aprovada no Congresso Nacional uma explícita política da desconcentração de renda e riqueza, essas políticas públicas do Poder Executivo eleito estão adaptadas às especificidades do atual contexto. Implicitamente, afetando diversos componentes, levam a alcançar a meta estratégica.

*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP).

Carta Mensal – Setembro 2023

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O mês de setembro se caracterizou por grandes incertezas e instabilidades, de um lado, percebemos que o comportamento da economia brasileira apresentou alguma melhora, criando grandes esperanças e expectativas positivas, levando o governo federal a espasmos de euforia. Neste período foram enviados ao Congresso Nacional, medidas econômicas importantes e imprescindíveis para o comportamento da economia nacional, partindo do pressuposto de que o novo governo está tentando alterar ou reverter o modelo econômico criado pelo governo anterior, deixando de lado as privatizações, desestimulando medidas liberais ou ultraliberais centradas da diminuição do governo nacional, que foram adotadas em períodos recentes.

Vivemos um momento importante para a economia nacional, com modelos econômicos se digladiando, um mais entreguista, mais internacionalista, mais privatizante, centrado em redução do Estado na economia, com menos políticas públicas e baseado em um discurso fortemente moral e religioso. De outro lado, encontramos uma discussão mais intervencionista, mais centrado em políticas públicas, com mais Estado Nacional e mais atuação no contexto internacional.

Na verdade, os dois modelos econômicos e políticos são diferentes, com trajetórias opostas e podem ser definidos, um mais de centro esquerda e o outro mais de direita, embora sabemos que essas definições são pouco precisas, pois ambas adotam políticas que perpassam vários campos políticos e ideológicos, essa discussão gera grandes constrangimentos para a economia nacional.

Destacamos as mais repercussões políticas das descobertas da CPMI do 08 de janeiro, que levaram várias personagens ao crivo de depoimentos e constrangimentos variadas, com ex-Ministros de Estado, representantes militares, policiais, políticos e variados pessoas importantes pelos governos anteriores, acionando conflitos constantes nos mais variados campos políticos, aumentando os confrontos entre grupos sociais e políticos e contribuíram para a piora do ambiente institucional.

Destacamos as discussões no campo político, de um lado encontramos um governo com frágil força política no Congresso Nacional, sabendo que o Executivo possui apenas algo em torno de 140 deputados, que exigem uma constante negociação política, que na verdade não seria um grande problema se as discussões fossem mais qualificadas, infelizmente, percebemos uma discussão pobre e centrado em ganhos imediatos, sem uma visão mais consistente para a sociedade nacional, apenas interesses mesquinhos e individualistas.

Percebemos no front externo que o Brasil vem fazendo bonito nas foros internacionais, discursos exaltados, abordando temas de grande relevância para a comunidade internacional, levando assuntos importantes que a própria sociedade global não tem interesse de abordar com profundidade, destacamos as questões energéticas, a economia verde, os recursos globais que deveriam ser canalizados para as economias em desenvolvimento em prol da sustentabilidade, além da miséria global, o crescimento da exclusão mundial, as questões relacionadas aos conflitos militares que crescem no mundo contemporâneo, gerando incertezas adicionais, não esquecendo que vivemos numa sociedade centrada em grandes destruições e incertezas elevadas.

Na economia nacional, percebemos que o governo federal vem fazendo variados esforços para recuperar a economia nacional, mas muitos indicadores apresentam dificuldades de melhorarem no curto prazo, mesmo percebendo a queda nas taxas de juros, que caíram para 12,75% no mês de setembro, percebemos que a queda é insuficiente para incrementar o crescimento da economia brasileira. Muitos analistas liberais e profissionais de mercado acreditam que a questão fiscal é o grande nó da economia nacional, embora nosso endividamento não esteja nas estrelas como acontecem em economias mais desenvolvidas, essa discussão é rechaçada por esses economistas.

Outro assunto que movimentou as discussões nacionais no mês de setembro foi as questões relacionadas ao Novo Ensino Médio, que mobilizou os especialistas na área da educação, com pareceres variados e relatórios de instituições ligadas ao tema, como forma de influenciar a discussão. Desta discussão, o governo federal encaminhou ao Congresso Nacional uma proposta que podem gerar grandes debates, movimentando interesses variados e conversas acaloradas. Neste cenário, surgiram novas informações referentes a educação superior, onde foram divulgados dados preocupantes, onde mais de 66% dos graduandos nas faculdades estão nos cursos a distância, além de percebermos que cinco instituições privadas abrigam mais de 27% das matrículas, um dado assustador com grandes repercussões para a educação nacional, onde essas cinco instituições possuem mais matriculados do que todos os graduandos nas universidades federais.

Depois de nove meses do terceiro governo Lula, percebemos que o governo federal apresenta grandes dificuldades de impor sua agenda para a nação, os grupos oposicionistas se juntam para atrapalhar o governo, com acusações maldosas e inconsistentes, convocando Ministros para gerar constrangimentos, são pessoas pouco qualificadas pelo cargo que assumiram, sem propostas e, na imensa maioria, conseguiram ser eleitos com uma agenda de ultradireita, defendendo confrontos constantes, posse de armas para a população e discussões infrutíferas como as da escola de partido, um verdadeiro atraso institucional que tende a gerar grandes retrocesso para a sociedade brasileira.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.