Argentina: O voto dos desesperados, por Gilberto Maringoni.

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Impulsionado pela crise econômica, Javier Milei ainda é um fenômeno individual. Sua eleição não mudou a composição do Congresso, nem governos das províncias. Mas ameaça Mercosul e Unasul, cria base forte do fascismo e acende luz amarela para Lula

Gilberto Maringoni – OUTRAS PALAVRAS – 21/11/2023

A onda chegou à Argentina. Um bufão, cujo programa máximo implica demolir, serrar, vender ou jogar fora pedaços do Estado nacional, é o novo fenômeno eleitoral do Sul global. Javier Milei tornou-se a válvula de escape para uma população exaurida por anos de sobressaltos econômicos sem fim.

Sua eleição representa uma derrota histórica para a democracia do país, exatos quarenta anos após o fim da ditadura militar (1976-1983). Para as camadas populares é a combinação de ilusão e tragédia. E trata-se de revés estratégico para os setores progressistas da América Latina.

O personagem eternamente descabelado e dado a rompantes de escândalo representa o desencanto transformado em poderosa força política. Uma espécie de fascismo pop, ora fantasiado de Batman, ora revelando manter conversas mediúnicas com Conan, cão de estimação morto em 2017. O duce da motosserra é apelidado de “libertário” por uma mídia complacente, numa vaga alusão aos rebeldes franceses de 1968, que à época mereciam o mesmo qualificativo. A coreografia catártica da nova extrema-direita é a da rebelião contra “as castas”, “a mentira” e “os políticos”, prometendo terra arrasada como solução de todas as crises e passaporte para a prosperidade.

Pregação ultraliberal

Quando se elegeu deputado federal pela província de Buenos Aires em 2021, Javier Milei era pouco mais que um ilustre desconhecido do grande público. A partir de uma incendiária pregação ultraliberal, irrompeu na cena nacional a partir das Paso (eleições Primárias, Abertas,

Simultâneas e Obrigatórias), realizadas em 13 de agosto último. A partir daí tomou gosto por declarações feitas sob medida para chocar o eleitorado, colocar adversários na defensiva e lacrar nas redes sociais e na mídia. À dolarização da economia, a demolição do Banco Central, a extinção da maioria dos ministérios, entre outras bizarrices, somaram-se petardos ao Papa Francisco: “imbecil que defende a justiça social”, “representante maligno” e “apoiador de ditaduras sanguinárias”.

Desde então, não faltaram comparações com o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Há pontos de contato e há diferenças notáveis entre ambos. A mais significativa, talvez, esteja no fato de Milei até aqui não comandar uma onda reacionária tão enraizada socialmente, a exemplo do ex-capitão.

Vamos lembrar. Bolsonaro conquistou uma base congressual significativa em 2018, expressão de uma virada moralista-conservadora inédita na história da República. Sólidos apoios em setores empresariais – em especial no varejo – e evangélicos (que alcançam 31% da população brasileira) garantiram legitimidade social ao governo mesmo nos piores momentos da pandemia.

Na Argentina, por sua vez, os correligionários do recém-eleito no Congresso representam menos de 15% do total. Entre os 257 assentos na Câmara, sua coligação Liberdade Avança obteve apenas 35 cadeiras. Entre os 72 senadores, a proporção se repete: são 8 os representantes da aliança, que não elegeu nenhum governador nas 23 províncias.

É claro que o jogo político cotidiano e a capacidade de atração do poder Executivo tende a alterar tais proporções. Mas é importante observar que Milei não transferiu votos ou abalou as lideranças dos partidos tradicionais em suas bases. Até aqui, ele aparenta representar mais um fenômeno individual – no segundo turno perdeu apenas em três províncias – do que uma tendência consolidada. Vale ressaltar: enquanto ainda não adentrou a Casa Rosada e não se valeu dos poderes de Estado.

Para compreender o fenômeno Milei é necessário examinar o terreno no qual cresceu e quais foram os fertilizantes de sua arrancada.

Impulsionado pela crise

Milei é produto do caos produzido pela crise inflacionária e descontrole cambial, aliado à impotência oficial para realizar intervenções em uma economia endividada em dólar e com sérias dificuldades de acesso ao mercado internacional de crédito, desde a moratória de parte de sua dívida externa, em 2005. No último 12 de outubro, o Banco Central elevou a taxa de juros de 118% para 133% ao ano. Com uma inflação anual de 138,3%, a taxa real alcança pouco mais de 5%. Na raiz das turbulências, entre outras causas, estão as condições draconianas impostas pelo FMI para conceder um empréstimo de US$ 57 bilhões, o maior da história da instituição, em 2018, penúltimo ano da gestão Macri.

A Argentina jamais obteve uma recuperação consistente após a crise de 2008. A essa situação somam-se a queda dos preços das commodities entre 2013-2016 e a forte oscilação do PIB durante a pandemia. No ano passado, o PIB cresceu 5,2% e os indicadores de emprego ficaram abaixo dos 10%. Trata-se, contudo, de um crescimento com concentração de renda. Cerca de 40% da população vive abaixo da linha de pobreza, enfrentando alta precarização laboral e perda de direitos sociais. A falta de perspectivas espalha-se entre a juventude. Em outubro de 2021, uma pesquisa realizada pela Universidade Argentina da Empresa (UADE) constatou que 75% dos argentinos entre 16 e 24 anos desejava sair do país.

O país depende quase exclusivamente das exportações para internalizar dólares necessários ao equilíbrio de suas contas. É um problema que dificilmente Milei poderá resolver no médio prazo.

Sem moeda forte disponível, a proposta de dolarização só será factível com uma megadesvalorização do peso, retirada de todos os subsídios da economia – o que pode quintuplicar os preços de energia elétrica, por exemplo –, forte arrocho salarial e aumento do desemprego.
São medidas factíveis com uso de forte repressão.

Decorrências para o Brasil

De imediato, vale a pena examinar as principais decorrências para o Brasil. O Mercosul, que enfrenta profundas divergências internas – como a perspectiva do acordo com a União Europeia capitaneado pelo Brasil e as tratativas isoladas entre o Uruguai e a China – corre o risco de ser interrompido. Outros organismos de integração regional, a exemplo da Unasul (União das Nações Sul-Americanas) e da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) devem se enfraquecer. Ainda é cedo para falar das relações comerciais. Além disso, a extrema-direita global volta a ter uma base institucional forte no continente.

O resultado das urnas do outro lado do rio da Prata deve acender uma luz amarela no governo Lula. Eleito numa jornada memorável contra a extrema-direita, a administração empossada em 1º de janeiro decidiu tocar burocraticamente a vida, como se não vivêssemos em tempos excepcionais interna e externamente. Políticas de contemporização em todas as áreas – militar, diplomática e parlamentar, em especial – e a adoção de um duro arcabouço fiscal que provocará contração do investimento público, com planos de cortes nos pisos constitucionais de saúde e educação, privatizações a granel via parcerias público-privadas e contração fiscal que possivelmente provocará uma recessão em 2024 arrisca corroer os índices de aprovação popular do governo. O país vive um interminável ajuste fiscal desde o início do primeiro mandato de Dilma Rousseff, em 2011, cuja consequência tem sido medíocres taxas de crescimento econômico.

A rota do ajuste interminável é semelhante à seguida por Alberto Fernández. Embora Brasil e Argentina vivam realidades distintas e a economia brasileira seja muito maior, uma contração nos próximos anos pode trazer resultados políticos preocupantes. Em especial se lembrarmos que a extrema-direita brasileira segue ativa nas Forças Armadas, no Congresso e nos governos dos quatro estados do Sudeste, que somam 68% do PIB nacional. Embora derrotado eleitoralmente, o neofascismo pátrio segue ativo politicamente. Um perigo para 2026.

Escolhas estratégicas

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Vivemos momentos de grandes transformações em todas as regiões do mundo, com o incremento da globalização, centrado na forte concorrência e pela competição entre os atores econômicos e produtivos, cujos impactos ainda se fazem sentir em toda a comunidade global, exigindo escolhas estratégicas sólidas e consistentes pela sociedade, pelos governos e pelo setor privado, como forma de manter o dinamismo econômico das nações, compreendendo os desafios do mundo contemporâneo e capacitando seus trabalhadores para reduzirem as desigualdades de renda, cujo crescimento pode gerar graves constrangimentos para os países, desequilíbrios sociais e polarizações políticas, como a que estamos visualizando em todas as regiões do mundo, enfraquecendo a democracia e constrangendo as nações.

Neste cenário, faz-se fundamental que todos os agentes econômicos nacionais se unam para redesenhar um futuro mais consistente para toda a comunidade, rompendo amarras que limitam o desenvolvimento econômico nacional, aproveitando as oportunidades que a economia verde pode possibilitar e deixando de lado políticas concentradoras de renda e a manutenção de privilégios de grupos sociais e econômicos que limitam a efetiva e verdadeira democracia nacional.

Estamos vivendo num momento marcado por grandes transformações na estrutura global, onde os setores econômicos buscam novas formas de organização produtiva e novos modelos econômicos, onde o Brasil se destaca como um grande ator internacional. Nossa sociedade apresenta vantagens que poucas nações do mundo apresentam, somos dotados de grande potencial energético, variadas formas de geração de energia, desta forma, muitas empresas e governos internacionais tem grande interesse no potencial brasileiro, mas para que nós consigamos sair de promessas e nos transformarmos em uma grande realidade, precisamos retomar comportamentos estratégicos, criando espaços de união, consolidando a soberania nacional, usando nosso forte potencial para compreendermos as grandes mudanças geopolíticas em curso na sociedade internacional, fortalecendo nossos espaços de desenvolvimento econômico, com melhorias sociais palpáveis, privilegiando os investimentos em educação, saúde pública e a pesquisa científica, consolidando as instituições nacionais e inserindo todos os grupos sociais na construção de uma verdadeira democracia.

Neste momento, percebemos que muitas nações desenvolvidas apresentam interesses em investimentos na economia brasileira, vislumbrando seu imenso potencial energético, seus gigantescos recursos minérios e sua vastidão espacial. Neste cenário, percebemos que está sendo aberta uma grande oportunidade para uma transformação nacional, exigindo um atuação conjunta entre todos os setores públicos e privados, deixando de lado rixas e questões ideológicas ultrapassadas, utilizando deste potencial para exigir e negociar com nossos parceiros internacionais contrapartidas que tragam melhoras substanciais para a sociedade brasileira, exigindo transferência de tecnologias, parceiros nacionais, compras internas e fortes investimentos na economia local, deixando para trás momentos anteriores que governos aceitaram os recursos externos sem cobranças, sem projetos nacionais e sem perspectivas de ganhos posteriores, melhorando as condições de uns em detrimento de outros.

Em todas as nações do mundo que conseguiram alçar o tão sonhado desenvolvimento econômico, o Estado nacional teve um papel central e importantíssimo, negociando com investidores externos e contrapartidas econômicas e produtivas, com geração de empregos e a melhoria na infraestrutura interna, capacitando a sociedade para dar um salto no desenvolvimento econômico, com forte investimento em capital humano, aumento de recursos para pesquisa, ciência e tecnologia, sem isso, o crescimento econômico seria sempre localizado e concentrado em poucos setores da sociedade.

Neste momento, estamos diante de escolhas estratégicas, somos uma nação centrada na desigualdade de renda e de oportunidades, com essa janela de oportunidade que está se abrindo para a sociedade brasileira, precisamos planejar os nossos passos, estudar nossas escolhas, negociar caminhos e compreender o que queremos ser quando crescer.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

A ideologia meritocrática, por Jean Pierre Chauvin

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Jean Pierre Chauvin – A Terra é Redonda – 26/09/2021

Considerações sobre um texto de Marilena Chaui

No dia 24 de setembro assisti à mesa de abertura do VI Salão do Livro Político – evento que nesta edição reúne 68 editoras afinadas com o mote da democracia e da bibliodiversidade. A sessão contou com a presença de Sabrina Fernandes, Manuela d’Ávila e Marilena Chaui, sob a mediação de Ivana Jinkings. Afora as belas homenagens a Jacó Guinsburg, Sérgio Mamberti, Aldir Blanc, Flávio Migliaccio e a tantos outros companheiros que nos deixaram nos últimos tempos, as falas foram muito relevantes e oportunas.

Estimulado pela discussão, e em especial pelas falas de Marilena Chaui, pretendi estender o diálogo para além da Internet. Fui até a estante onde estão os seus livros, em busca de textos que descrevem e problematizam certos comportamentos da classe média brasileira.

É de lá que extraio o que segue: “[O advogado] está convencido de que o objetivo supremo é “subir na vida” e que a “subida” depende da vontade individual; porque aceitou a impotência política em troca das migalhas do “milagre econômico” que lhe deram a ilusão do poder pela posse e o consumo de objetos ostentáveis, sinais de sua diferença em face das classes populares; porque, paradoxalmente, atribui ao Estado a responsabilidade por aquilo que considera depender exclusivamente dos indivíduos, tendo dificuldade para conciliar seu moralismo diante da corrupção dos mandantes e sua ideologia do “vencer na vida”, está hoje em pânico perante a ameaça de perda de suas posses pela incompetência do Estado e pela violência do assalto”.[i]

O diagnóstico soa atualíssimo, não? Por isso mesmo, talvez o leitor se espante ao saber que o artigo em questão foi publicado num jornal paulistano de grande circulação em 16 de janeiro de 1984, em resposta contundente a uma série de lugares comuns reiterados e manejados com cinismo por pessoas de várias camadas sociais e profissões: da “funcionária do correio” ao “dono do bar”; do “engenheiro da obra na esquina” à “psicóloga”.

Pergunto-me há algum tempo. A ideologia meritocrática pressupõe que “O sol nasce para todos” e que, para “subir na vida” basta agarrar toda e qualquer oportunidade. A questão persiste. Segundo essa lógica, as desigualdades sociais, a falta de oportunidades de estudo, emprego, saneamento, transporte, moradia e saúde seriam compensadas graças ao esforço individual e, eventualmente, ao gesto paternalista dos micro, pequenos, médios e grandes empresários.

Ora, ainda que aceitássemos essa falácia como índice da verdade, o que fazer com aqueles que não “abraçaram” as raras “oportunidades” que a vida generosamente ofereceu? Deixá-los debaixo dos viadutos, a implorar por cobertor e comida? Massacrá-los sob o pretexto da “desordem” que produzem? Atingi-los com jatos de água, durante verdadeiras operações de guerra, em que a farda armada enxerga o trapo despossuído como inimigo do estado e estorvo da sociedade “de bem” paulistana?

O artigo em questão também remete a três coisas que Marilena Chaui enfatizou durante suas intervenções na mesa de abertura do VI Salão do Livro Político: (1) O Estado brasileiro é tão autoritário quanto a sociedade que o sustenta ideologicamente; (2) Essa sociedade supõe que é um ato legítimo da classe média manter privilégios (ou seja, particularizar, privatizar os direitos), enquanto as classes populares devem se virar, por conta própria, em torno das múltiplas carências socioeconômicas, culturais, de trabalho, moradia, saúde etc.; (3) A ascensão do atual governo se explica, em grande parte, pela existência de uma sociedade estruturada de modo que uns mandem e outros obedeçam, em que sobressaem crueldade e cinismo na relação com os outros.

Eu suma, o combustível dos bolsonaristas e demais cúmplices da barbárie (anunciada desde o desgoverno de Michel Temer) não é a alegria, o amor, a esperança e a solidariedade; mas a tristeza, o ódio (pelo outro), o medo e o egoísmo. A relação ambivalente com o Estado é um dos traços que orientam essa gente de estirpe, que só vê radicalismo político onde há proposta de soluções para os problemas estruturais da falta de moradia, alimentação, estudo e trabalho.

É impressionante que uma parcela considerável dessas “pessoas de bem” tenha dado tamanho crédito ao mitô-mano e aos ministros, todos muito eficientes em negar evidências e destruir as poucas garantias sociais e sanitárias que havia. Mais estarrecedor ainda é constatar que a mentira foi (e continua sendo) adotada como princípio e método de um grupo tacanho que apostou na assunção de monstros como “alternativa” à “velha política”. Elegê-los foi um ato de cinismo. Persistir em sua defesa cega é sintoma manifesto da maior hipocrisia.

*Jean Pierre Chauvin é professor na Escola de Comunicações e Artes da USP.
Nota
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[i] Marilena Chaui. “E se a Classe Média Mudasse?”. In: SANTIAGO, Homero (org.). Conformismo e Resistência. Belo Horizonte, Autêntica, 2014, p. 283.

Neoliberalismo: a nova forma do totalitarismo, por Marilena Chauí

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Marilena Chauí – A Terra é Redonda – 06/10/2019

Tornou-se corrente nas esquerdas o uso de termos fascismo e neofascismo para descrever criticamente nosso presente.

Estamos acostumados a identificar o fascismo com a presença do líder de massas como autocrata. É verdade que, hoje, embora os governantes, não se alcem à figura do autocrata, operam com um dos instrumentos característico do líder fascista, qual seja, a relação direta com “o povo”, sem mediações institucionais e mesmo contra elas. Também, hoje, se encontram presentes outros elementos próprios do fascismo: o discurso de ódio ao outro – racismo, homofobia, misoginia; o uso das tecnologias de informação que levam a níveis impensáveis as práticas de vigilância, controle e censura; e o cinismo ou a recusa da distinção entre verdade e mentira como forma canônica da arte de governar.

No entanto, não emprego esse termo por três motivos: (a) porque o fascismo tem um cunho militarista que, apesar das ameaças de Trump à Venezuela ou ao Irã, as ações de Nathanayu sobre a faixa de Gaza, ou a exibição da valentia do homem armado pelo governo Bolsonaro e suas ligações com as milícias de extermínio, não podem ser identificados com a ideia fascista do povo armado; (b) porque o fascismo propõe um nacionalismo extremado, porém a globalização, ao enfraquecer a ideia do Estado-nação como enclave territorial do capital, retira do nacionalismo o lugar de centro mobilizador da política e da sociedade; (c) porque o fascismo pratica o imperialismo sob a forma do colonialismo, mas a economia neoliberal dispensa esse procedimento usando a estratégia de ocupação militar de um espaço delimitado por um tempo delimitado para devastação econômica desse território, que é abandonado depois de completada a espoliação.
Em vez de fascismo, denomino o neoliberalismo com o termo totalitarismo, tomando como referência as análises da Escola de Frankfurt sobre os efeitos do surgimento da ideia de sociedade administrada.

O movimento do capital transforma toda e qualquer realidade em objeto do e para o capital, convertendo tudo em mercadoria, instituindo um sistema universal de equivalências próprio de uma formação social baseada na troca pela mediação de uma mercadoria universal abstrata, o dinheiro.

A isso corresponde o surgimento de uma prática, a da administração, que se sustenta sobre dois pilares: o de que toda dimensão da realidade social é equivalente a qualquer outra e por esse motivo é administrável de fato e de direito, e o de que os princípios administrativos são os mesmos em toda parte porque todas as manifestações sociais, sendo equivalentes, são regidas pelas mesmas regras. A administração é concebida e praticada segundo um conjunto de normas gerais desprovidas de conteúdo particular e que, por seu formalismo, são aplicáveis a todas as manifestações sociais. A prática administrada transforma uma instituição social numa organização.

Uma instituição social é uma prática social fundada no reconhecimento público de sua legitimidade e de suas atribuições, num princípio de diferenciação que lhe confere autonomia perante outras instituições sociais, sendo estruturada por ordenamentos, regras, normas e valores de reconhecimento e legitimidade internos. Sua ação se realiza numa temporalidade aberta ou histórica porque sua prática a transforma segundo as circunstâncias e suas relações com outras instituições.

Em contrapartida, uma organização se define por sua instrumentalidade, fundada nos pressupostos administrativos da equivalência. Está referida ao conjunto de meios particulares para obtenção de um objetivo particular, ou seja, não está referida a ações articuladas às ideias de reconhecimento externo e interno, de legitimidade interna e externa, mas a operações, isto é, estratégias balizadas pelas ideias de eficácia e de sucesso no emprego de determinados meios para alcançar o objetivo particular que a define. É regida pelas ideias de gestão, planejamento, previsão, controle e êxito, por isso sua temporalidade é efêmera e não constitui uma história.
Por que designar o neoliberalismo como o novo totalitarismo?

Totalitarismo: por que em seu núcleo encontra-se o princípio fundamental da formação social totalitária, qual seja, a recusa da especificidade das diferentes instituições sociais e políticas que são consideradas homogêneas e indiferenciadas porque são concebidas como organizações. O totalitarismo é a afirmação da imagem de uma sociedade homogênea e, portanto, a recusa da heterogeneidade social, da existência de classes sociais, da pluralidade de modos de vida, de comportamentos, de crenças e opiniões, costumes, gostos e valores.

Novo: por que, em lugar da forma do Estado absorver a sociedade, como acontecia nas formas totalitárias anteriores, vemos ocorrer o contrário, isto é, a forma da sociedade absorve o Estado. Nos totalitarismos anteriores, o Estado era o espelho e o modelo da sociedade, isto é, instituíam a estatização da sociedade; o totalitarismo neoliberal faz o inverso: a sociedade se torna o espelho para o Estado, definindo todas as esferas sociais e políticas não apenas como organizações, mas, tendo como referência central o mercado, como um tipo determinado de organização: aempresa – a escola é uma empresa, o hospital é uma empresa, o centro cultural é uma empresa, uma igreja é uma empresa e, evidentemente, o Estado é uma empresa.

Deixando de ser considerada uma instituição pública regida pelos princípios e valores republicano-democráticos, passa a ser considerado homogêneo ao mercado. Isto explica porque a política neoliberal se define pela eliminação de direitos econômicos, sociais e políticos garantidos pelo poder público, em proveito dos interesses privados, transformando-os em serviços definidos pela lógica do mercado, isto é, a privatização dos direitos, que aumenta todas as formas de desigualdade e exclusão.

O neoliberalismo vai além: encobre o desemprego estrutural por meio da chamada uberização do trabalho e por isso define o indivíduo não como membro de uma classe social, mas como um empreendimento, uma empresa individual ou “capital humano”, ou como empresário de si mesmo, destinado à competição mortal em todas as organizações, dominado pelo princípio universal da concorrência disfarçada sob o nome de meritocracia.

O salário não é visto como tal e sim como renda individual e a educação é considerada um investimento para que a criança e o jovem aprendam a desempenhar comportamentos competitivos. O indivíduo é treinado para ser um investimento bem sucedido e para interiorizar a culpa quando não vencer a competição, desencadeando ódios, ressentimentos e violências de todo tipo, destroçando a percepção de si como membro ou parte de uma classe social e de uma comunidade, destruindo formas de solidariedade e desencadeando práticas de extermínio.

Quais são as consequências do novo totalitarismo?

– social e economicamente, ao introduzir o desemprego estrutural e a terceirização toyotista do trabalho, dá origem a uma nova classe trabalhadora denominada por alguns estudiosos com o nome de precariado para indicar um novo trabalhador sem emprego estável, sem contrato de trabalho, sem sindicalização, sem seguridade social, e que não é simplesmente o trabalhador pobre, pois sua identidade social não é dada pelo trabalho nem pela ocupação, e que, por não ser cidadão pleno, tem a mente alimentada e motivada pelo medo, pela perda da autoestima e da dignidade, pela insegurança;

– politicamente põe fim às duas formas democráticas existentes no modo de produção capitalista: (a) põe fim à socialdemocracia, com a privatização dos direitos sociais, o aumento da desigualdade e da exclusão; (b) põe fim à democracia liberal representativa, definindo a política como gestão e não mais como discussão e decisão públicas da vontade dos representados por seus representantes eleitos; os gestores criam a imagem de que são os representantes do verdadeiro povo, da maioria silenciosa com a qual se relacionam ininterruptamente e diretamente por meio do twitter, de blogs e redes sociais – isto é, por meio do digital party –, operando sem mediação institucional, pondo em dúvida a validade dos parlamentos políticos e das instituições jurídicas, promovendo manifestações contra eles; (c) introduz a judicialização da política, pois, numa empresa e entre empresas, os conflitos são resolvidos pela via jurídica e não pela via política propriamente dita. Em outras palavras, sendo o Estado uma empresa, os conflitos não são tratados como questão pública e sim como questão jurídica, no melhor dos casos, e como questão de polícia, no pior dos casos; (d) os gestores operam como gangsters mafiosos que institucionalizam a corrupção, alimentam o clientelismo e forçam lealdades. Como o fazem? Por meio do medo. A gestão mafiosa opera por ameaça e oferece “proteção” aos ameaçados em troca de lealdades para manter todos em dependência mútua. Como os chefes mafiosos, os governantes também têm os consiglieri, conselheiros, isto é, supostos intelectuais que orientam ideologicamente as decisões e os discursos dos governantes, estimulando o ódio ao outro, ao diferente, aos socialmente vulneráveis (imigrantes, migrantes, refugiados, lgbtq+, sofredores mentais, negros, pobres, mulheres, idosos) e esse estímulo ideológico torna-se justificativa para práticas de extermínio; (e)transformam todos os adversários políticos em corruptos, embora a corrupção mafiosa seja, praticamente, a única regra de governo; (f) têm controle total sobre o judiciário por meio de dossiês sobre problemas pessoais, familiares e profissionais de magistrados aos quais oferecem “proteção” em troca de lealdade completa (e quando o magistrado não aceita o trato, sabe-se o que lhe acontece);

– ideologicamente, com a expressão “marxismo cultural”, os gestores perseguem todas as formas e expressões do pensamento crítico e inventam a divisão da sociedade entre o bom povo, que os apoia, e os diabólicos, que os contestam. Por orientação dos consiglieri, pretendem fazer uma limpeza ideológica, social e política e para isso desenvolvem uma teoria da conspiração comunista, que seria liderada por intelectuais e artistas de esquerda. Os conselheiros são autodidatas que se formaram lendo manuais e odeiam cientistas, intelectuais e artistas, aproveitando-se do ressentimento que a extrema direita tem por essas figuras. Como tais conselheiros estão desprovidos de conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos, empregam a palavra “comunista” sem qualquer sentido preciso: comunista significa todo pensamento e toda ação que questionem o status quo e o senso-comum (por exemplo: que a terra é plana; que não há evolução das espécies; que a defesa do meio ambiente é mentirosa; que a teoria da relatividade não tem fundamento, etc.). São esses conselheiros que oferecem aos governantes os argumentos racistas, homofóbicos, machistas, religiosos, etc., isto é, transformam medos, ressentimentos e ódios sociais silenciosos em discurso do poder e justificativa para práticas de censura e de extermínio;

– a dimensão planetária da forma econômica neoliberal faz com que não exista um “fora” do capitalismo, uma alteridade possível, levando à ideia de “fim da história”, portanto à perda da ideia de transformação histórica e de um horizonte utópico. A crença na inexistência da alteridade é fortalecida pelas tecnologias de informação, que reduzem o espaço ao aqui, sem geografia e sem topologia (tudo se passa na tela plana como se fosse o mundo) e ao agora, sem passado e sem futuro, portanto sem história (tudo se reduz a um presente sem profundidade). Volátil e efêmera, nossa experiência desconhece qualquer sentido de continuidade e se esgota num presente vivido como instante fugaz;

– a fugacidade do presente, a ausência de laços com o passado objetivo e de esperança em um futuro emancipado, suscitam o reaparecimento de um imaginário da transcendência. Assim, a figura do empresário de si mesmo é sustentada e reforçada pela chamada teologia da prosperidade, desenvolvida pelo neopentecostalismo. Mais do que isso. Os fundamentalismos religiosos e a busca da autoridade decisionista na política são os casos que melhor ilustram o mergulho na contingência bruta e a construção de um imaginário que não a enfrenta nem a compreende, mas simplesmente se esforça por contorná-la apelando para duas formas inseparáveis de transcendência: a divina (à qual apela o fundamentalismo religioso) e a do governante (à qual apela o elogio da autoridade forte).

Diante dessa realidade, muitos afirmam que vivemos num mundo distópico, no qual as distopias são concebidas sob a forma da catástrofe planetária e do medo. Vale a pena, entretanto, mencionar brevemente a diferença entre utopia e distopia.

A utopia é a busca de uma sociedade totalmente outra que negue todos os aspectos da sociedade existente. É a visão do presente sob o modo da angústia, da crise, da injustiça, do mal, da corrupção e da rapina, do pauperismo e da fome, da força dos privilégios e das carências, ou seja, o presente como violência nua. Por isso mesmo é radical, buscando a liberdade, a fraternidade, a igualdade, a justiça e a felicidade individual e coletiva graças à reconciliação entre homem e natureza, indivíduo e sociedade, sociedade e poder, cultura e humanidade. Uma utopia não é um programa de ação, mas um projeto de futuro que pode inspirar ações que assumem o risco da história, fundando-se na ação humana como potência para transformar a realidade, tornando-se imanentes à história, graças à ideia de revolução social.

A distopia tem um significado crítico inegável ao descrever o presente como um mundo intolerável, porém corre o risco de transformá-lo em fantasma e rumar para o fatalismo, a imobilidade e o desalento do fim da história. A utopia também parte da constatação de um mundo intolerável, mas em lugar de curvar-se a ele, trabalha para colocá-lo em tensão consigo mesmo para que dessa tensão surjam contradições que possam ser trabalhadas pela práxis humana. A imobilidade distópica decorre de sua estrutura fantasmática: nela, o intolerável não é o ponto de partida e sim o ponto de chegada. Ao contrário, a mobilidade utópica provém de sua energia como projeto e práxis, como trabalho do pensamento, da imaginação e da vontade para destruir o intolerável: o intolerável é seu ponto de partida e não o de chegada.

Se a utopia nasce da percepção do intolerável, da visão do presente sob o modo da angústia, da crise, da injustiça, do mal, da corrupção e da rapina, do pauperismo e da fome, da força dos privilégios e das carências, do presente como violência inaceitável, então não podemos abrir mão da perspectiva utópica nas condições de nosso presente.

*Marilena Chaui é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

Mercantilização do mundo

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Vivemos momentos de grandes inquietações econômicas e sociais, com impactos generalizados sobre todos os indivíduos, em todas as regiões do mundo, gerando ansiedades e expectativas de melhorias sociais, com grandes transformações no mundo do trabalho, com o surgimento de novas tecnologias que estão moldando os indivíduos, modificando comportamentos humanos e impactando sobre as famílias, os indivíduos e os relacionamentos, criando incertezas, instabilidades crescentes e medos cotidianos.

Nesta sociedade, o mundo contemporâneo estimula um ambiente constante de competição e performance constantes, a concorrência cresce de forma acelerada, o individualismo cresce na comunidade e estamos sempre valorizando os ganhos materiais e os lucros estratosféricos como forma de definirmos o sucesso e a posição social, depois nos assustamos ao percebermos que vivemos numa sociedade apodrecida e fortemente degradada, onde a solidariedade e os valores humanos e civilizacionais estão sendo deixados de lado. Estimulamos uma guerra cotidiana de todos contra todos, vivemos nos matando cotidianamente e acreditando que estamos sobrevivendo num mundo marcado pelo caos e pela ignorância, ledo engano, estamos desaparecendo todos os dias e todos os momentos, perdendo o poder de imaginar, de sonhar e de construir uma sociedade mais igualitária.

Vivemos numa sociedade em que os valores foram alterados rapidamente, os relacionamentos humanos foram transformados, a escolha da profissão nos traz grandes possibilidades, as escolas e as universidades perderam o monopólio do conhecimento, os professores perderam a centralidade, as formas de riqueza foram modificadas e o conceito de uma vida bem sucedida passou por mudanças estruturais. A classe média, sempre vista como um grupo social dotado de conhecimento, de uma civilidade e de cultura geral passou por mudanças perigosas e começou a flertar com um mundo paralelo, rechaçando a ciência e acreditando na meritocracia e se esquecendo da justiça social como cimento de organização social e de bem-estar dos indivíduos. Na sociedade contemporânea, os novos valores cultivados pela comunidade estão centrados no poder do capital, do dinheiro, da acumulação, do imediatismo e do individualismo, estamos valorizando informações desnecessárias e sem consistência, além de estarmos esperando um salvador da pátria, um mártir iluminado para nos retirar de um local que historicamente que nós nos colocamos pelas escolhas equivocadas, esdrúxulas e imediatistas.

Nesta sociedade, percebemos que a ciência está sendo deixada de lado quando as verdades constrangem os donos do poder, neste cenário, as alterações climáticas estão sendo colocadas em xeque por interesses mesquinhos e fundamentalistas daqueles que ganham com esta estrutura econômica e financeira, que patrocinam pesquisas enviesadas para comprovar questões relacionadas ao aquecimento global e as alterações climáticas, mesmo sabendo que, todos os dias, a natureza está mostrando que este modelo econômico e produtivo vai levar o planeta a uma destruição sem precedente.

O poder do imediatismo em detrimento do planejamento de longo prazo está levando os gestores, os agentes políticos e privados, os financistas e os empresários a apoiarem medidas de austeridade, acreditando que estas trarão o ambiente propício para os investimentos produtivos, se esquecendo de que as nações mais desenvolvidas estão mudando suas agendas econômicas e percebendo que esse modelo produtivo é insustentável, gerando degradação do meio ambiente, mais desigualdade social, concentração de renda, polarização política e conflitos sociais, internos e externos, além de guerras fratricidas, conflitos militares e embates comerciais degradantes.

A mercantilização do mundo está gerando conflitos constantes, deixando de lado a construção de uma sociedade mais igualitária, os embates crescem, os preconceitos se escancaram, as violências aumentam, os medos se incrementam e os rancores crescem. Estamos precisando refazer escolhas para aprendermos a convivência saudável .

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

A ideologia da privatização, por José Ricardo Figueiredo.

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José Ricardo Figueiredo – A Terra é Redonda – 13/11/2023

Quando a empresa é privatizada, um novo tipo de custo é introduzido, que é o lucro, a remuneração aos acionistas. Como reequilibrar o orçamento com a nova despesa?

O orçamento de uma empresa estatal, como a SABESP, precisa equilibrar as receitas com o conjunto das despesas: custos de remuneração do trabalho e de pagamento a fornecedores e de impostos. Se possível, convém ainda a formação de poupança para novos investimentos, para diminuir a dependência de empréstimos.

Quando a empresa é privatizada, um novo tipo de custo é introduzido, que é o lucro, a remuneração aos acionistas. Como reequilibrar o orçamento com a nova despesa? As alternativas, não excludentes entre si, são aumentar as receitas, aumentando o preço de seus serviços ou produtos, ou diminuir os custos trabalhistas, operacionais, fiscais e de investimento.

No caso de um setor monopolístico, como é o serviço de água e esgoto da grande São Paulo, o aumento de preços é solução simples, se houver apoio político. Não é o caso de uma empresa como a antiga Vale do Rio Doce, hoje Vale, que vende ao mercado mundial e, portanto, não pode controlar os preços de seus produtos. Em todas as situações, é relevante considerar as alternativas de corte de despesas.

Em qualquer área da economia, a primeira providência dos novos acionistas costuma ser o lançamento de um plano de demissão voluntária. No longo prazo virão as demissões involuntárias e a redução dos salários reais.

Em geral, reduzir a mão de obra, mantendo a produção, exige acumulação de funções pelo trabalhador e intensificação do processo de trabalho, de efeitos limitados. Mas a mão de obra e outros gastos podem ser drasticamente reduzidos, sem conseqüências imediatas, nos setores de manutenção e de prevenção de acidentes.

Existem, é claro, as conseqüências de longo prazo. O exemplo mais recente é o apagão da ENEL na grande São Paulo, que afetou quatro milhões de residências, durando até quatro ou cinco dias em algumas localidades. Antes, o apagão do Amapá durara todo um mês. Mais recentemente, os cariocas tiveram a surpresa e o desgosto de ver as torneiras de suas casas verterem um líquido marrom e mal cheiroso.

Com o rompimento da barragem de Mariana, a Vale, que retirara o Rio Doce do nome, retirou toda vida do Rio Doce até a foz, adentrando o oceano, depois de enterrar moradores no caminho da lama. Mas o rompimento da barragem de Brumadinho matou muito mais operários, mais que duas centenas.

Não são muito divulgados os números de acidentes de trabalho no Brasil; sabe-se que o número total de mortos é cerca de 3000 por ano. Ainda menos divulgada é a tendência de aumento de acidentes de trabalho após as privatizações, desde as primeiras, como a COSIPA em São Paulo.

A redução de pagamentos a fornecedores, mantendo a produção, demanda aquisição de insumos e serviços mais baratos, podendo comprometer a qualidade do produto ou serviço que oferece e, eventualmente, sua aceitação no mercado. Mas, no caso de empresa detentora de monopólio, é uma alternativa sedutora para os acionistas.

Redução de impostos é sempre buscada por empresários capitalistas, indo desde sonegação até sofisticada advocacia tributária e eficiente lobby político. Uma prática corrente é atrasar o pagamento de impostos e barganhar descontos no pagamento dos atrasados, que o Executivo acata pela urgência em obter recursos.

Novos investimentos seriam a única forma de aumentar a produtividade física do trabalho, pela incorporação de tecnologia. Afinal, o discurso privatista exalta a eficiência como virtude da economia privada. Mas novos investimentos são as despesas mais fáceis de serem cortadas, pois sua eliminação não encontra resistências. E são as despesas cujo retorno financeiro é o mais distante.

Portanto, uma análise lógica do orçamento, corroborada por fatos bem conhecidos, torna evidente que as privatizações costumam ser desfavoráveis para os consumidores, os trabalhadores, o meio ambiente e a arrecadação fiscal. A rigor, só são favoráveis para os novos acionistas.

Mas a ideologia da privatização abranja muito mais pessoas do que o número dos diretamente interessados, por causas conhecidas. Bancos e outras empresas do mercado financeiro, que têm profundo interesse nas privatizações, no desmonte do poder estatal, no esvaziamento do poder trabalhista, etc., são anunciantes importantes em toda imprensa comercial, além de serem acionistas, isto é, donos de alguns importantes órgãos. Esta imprensa transforma os interesses do mercado financeiro nos dogmas que tenta inculcar a seu público, e com eles pressionar os políticos.

Entretanto, alguns políticos se comportam com demasiada volúpia privatista. Um governante chega a comprometer seu próprio futuro político, insistindo na privatização mesmo quando o povo já se apercebeu do dano. Esforçam-se pela venda como dedicados corretores das riquezas da Pátria, mas não se comportam como tal.

Os corretores comerciais cobram percentagem do preço de venda, e se esforçam por valorizar seu produto. Os corretores da pátria comportam-se ao contrário. Acatam o discurso difamatório do que pretendem vender, de que as estatais seriam ineficientes por definição. E vendem por baixo.

Aceitam em pagamento moedas podres, títulos desvalorizados, pelo valor nominal. Aceitam preços de venda tão baixo quanto foi a Vale do Rio Doce, vendida pelo preço correspondente ao faturamento da empresa em três meses, ou a Telebrás, pelo preço correspondente ao investimento do governo na empresa nos três anos anteriores, ou, mais recentemente, a Refinaria Landulpho Alves, vendida por metade do valor de mercado.

Que explicação haveria para tamanha volúpia privatista? Uma hipótese é que tais corretores de Pátria esperariam receber alguma taxa de corretagem, informal, um percentual do quanto a empresa foi desvalorizada. Neste sentido, o livro A Privataria Tucana, do jornalista Amaury Ribeiro Jr, pesquisa a circulação financeira entre empresas off-shore de montantes com indícios de terem relação com as privatizações da Vale do Rio Doce e da Telebras. Já no caso da Landulpho Alves, a taxa de corretagem, tudo indica, foram as jóias das Arábias.

*José Ricardo Figueiredo é professor aposentado da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Modos de ver a produção do Brasil

Privatizar a Sabesp? por Rodrigo Zeidan

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Os consumidores estarão mais bem servidos por uma empresa pública ou privada?

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Privatização é meio, não fim. No Brasil, a discussão sobre privatização é quase toda focada na “venda do patrimônio do Estado”. Ainda temos viúvas da Vale reclamando que vendemos a empresa por um valor muito baixo (mesmo que tenha sido um leilão aberto a qualquer grupo de investidores do mundo). Estado não tem como função ter patrimônio. A única coisa que deveria importar é: os consumidores estarão mais bem servidos por uma empresa pública ou privada? Nada mais.

Serviços públicos como água e esgoto, luz e telefonia são normalmente monopólios naturais. Em tais mercados, o ideal para a sociedade é que a entrada de novas empresas seja limitada ou impedida.

Por exemplo, não faz muito sentido que várias empresas possam oferecer redes de eletricidade em uma mesma área: teríamos sobreposição de redes de distribuição nas áreas mais ricas e falta de cabos nas regiões mais carentes. É por isso que tais serviços são regulados: o Estado leiloa o direito de explorar uma região com exclusividade desde que a empresa cumpra com algumas condições, como universalidade ou tetos de preços (ou metas de enterramento de fios).

Nada exemplifica melhor isso que a discussão sobre a privatização da Sabesp. Parte da oposição é sobre se os serviços de saneamento básico devem ser prestados por empresa concessionária sob controle acionário do Estado ou de terceiros. Mas isso é irrelevante. O que importa mesmo são os desenhos dos contratos e as formas de fiscalização das contrapartidas das empresas concessionárias.

Monopólios naturais são tão melhores para a sociedade quanto maior a qualidade da regulação. E esse foi nosso erro, como sociedade, nas últimas décadas. Criamos um arcabouço institucional decente com agências reguladores independentes, mas, ao longo do tempo, a qualidade destas foi caindo. Umas foram aparelhadas, outras capturadas pelas empresas reguladas, e só poucas continuam firme e forte trabalhando para que as empresas concessionárias cumpram seus deveres com a sociedade.

É possível que uma empresa puramente estatal entregue serviços de qualidade com preços baixos?

Sim. É também possível que o mesmo aconteça com empresas privadas, bem reguladas? Também. Mas, grosso modo, há também outras situações possíveis: empresas estatais ineficientes, que também investem menos que deveriam; e empresas privadas mal reguladas, resultando em serviços ineficientes, e, também, subinvestimento. No Brasil, muitas vezes escolhemos os dois piores modelos. Todavia, outra realidade é possível. Nós já privatizamos bem: as empresas de telefonia, em um primeiro momento, investiram sem parar na universalização de serviços, acabando com as filas por linhas de telefone, que eram patrimônio a ser lançado no Imposto de Renda.

No caso da Sabesp, a discussão não pode ser se seus controladores devem ser públicos ou privados.

Se a empresa investe pouco e entrega serviços ruins, o modelo deve ser modificado. Privatizar não é a única saída, mas pode funcionar (ganha um doce quem apresentar um plano de investimentos para a empresa com dinheiro público que tenha chance de ser eficiente dada a realidade da empresa hoje). A discussão deve ser: no processo de privatização, a regulação está sendo planejada de forma eficiente? É mais fácil fazer isso que colocar dinheiro público na empresa. Mas não é garantia de dar certo.

Mais uma vez, detalhes importam. Sempre.

GLO, péssima ideia, por Manuel Domingos Neto e Luiz Eduardo Soares

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Marinha e Aeronáutica já agem em portos e aeroportos. É teatro caro, para fingir segurança pública sem nada mudar. Os governantes estão perdidos. Até quando negarão a necessidade de uma reforma militar e uma profunda transformação das polícias?

Manuel Domingos Neto e Luiz Eduardo Soares

OUTRAS PALAVRAS – 08/11/2023

Mais uma vez, o Estado brasileiro faz o militar agir como policial. Alimenta a permanente crise de identidade das Forças Armadas e das corporações policiais.

Agora, o Exército não está nos espaços reservados aos sobreviventes da escravidão, da matança dos povos originários e da “vadiagem”. Mas a Marinha e a Aeronáutica atuam em portos e aeroportos, desperdiçando recursos públicos em atividades distantes de sua destinação precípua.

Em um mundo assombrado pela possibilidade de guerra generalizada, os governantes parecem despreocupados com a proteção do Brasil ante eventuais ameaças de forças estrangeiras hostis.

Essas duas obrigações do Estado, Defesa e Segurança Pública, são rigorosamente distintas: exigem equipamentos, organização, preparo e culturas diferentes. Enfrentar agressor estrangeiro nada tem a ver com tarefas envolvidas no controle das violações às leis.

Confundindo funções diferentes, o governo fragiliza a Defesa do Brasil e desprotege a cidadania. Alimenta a dependência externa e faz do cidadão que transgrida a lei um inimigo a ser abatido. Reafirma o conceito de “inimigo interno” propalado pelo Pentágono e assimilado pelas elites dirigentes brasileiras. Com “inimigo” não se conversa, se anula de qualquer forma.

Já o cidadão transgressor continua a ser cidadão e precisa ser levado ao tribunal. A ideia de que deva ser abatido é traduzida pela consigna “bandido bom é bandido morto”. A permanência dessa concepção (presente no recurso às Forças Armadas para lidar com segurança pública) mostra que a direita raivosa foi derrotada eleitoralmente, não politicamente. Sobrevive entranhada na sociedade, na representação política e, sobretudo, nas engrenagens do Estado.

Operações de GLO são de grande utilidade simbólica e política. São peças teatrais dispendiosas que servem para fingir que os problemas de ordem e segurança pública estão sendo encarados. Passam a falsa noção de que o governo reprime a criminalidade. Permitem ao militar “exibir serviço”, quando, na realidade, diante do anúncio de conflagração mundial, descuidam da proteção do Brasil. Camuflam o fato de as Forças Armadas estarem despreparadas para negar a terra, o mar, o ar e os espaços cibernético e sideral ao estrangeiro ganancioso. Iludem a sociedade, disseminando a ideia de que o militar é o derradeiro recurso diante de problema doméstico crônico. Dissimulam o fato de as corporações não encerrarem as atividades de seus dispendiosos escritórios em Washington. Reafirmam a crença de que o militar é salvador da pátria e credenciado condutor da sociedade.

O Constituinte escreveu os artigos 142 e 144 da Carta com o sabre na garganta. Obedeceu a corporações estruturadas para combater “inimigos internos”. Governos eleitos democraticamente, mostrando subserviência aos comandantes, endossam essas aberrações constitucionais.

Ao autorizar operações de garantia da lei e da ordem, executivos públicos, em um só lance, mostram descaso diante da necessidade de garantir voz altiva no cenário internacional e, internamente, desleixo com a cidadania. Dobram-se às corporações armadas para perpetuar a subordinação ao estrangeiro poderoso e às estruturas sociais que contrariam aspirações democráticas e de soberania.

A bandidagem ganha com a GLO, na medida em que, mais uma vez, as dinâmicas perversas que a fortalecem são mantidas. As facções criminosas se alimentam do encarceramento em massa de jovens varejistas do comércio de drogas, absurdo endossado pelo MP e abençoado pela Justiça.

Dos 832 mil presos brasileiros, os acusados ou condenados por tráfico já são mais de 30% (62% entre as mulheres). A maioria tem sido presa em flagrante, porque a corporação que mais prende (a PM) está constitucionalmente proibida de investigar. Resta-lhe responder à pressão da sociedade encarcerando a arraia-miúda, que atua ostensivamente, não interage com os grandes protagonistas das redes criminosas nem se beneficia dos negócios bilionários.

Uma vez no cárcere, ao jovem pobre, em geral negro, morador de territórios vulneráveis, resta comprar sua sobrevivência de quem a pode garantir: a facção que manda no presídio, posto que o Estado não cumpre a Lei de Execuções Penais, não exerce autoridade nem afirma a legalidade no interior das prisões.

O preço da sobrevivência do preso será o envolvimento futuro com a facção. Em outras palavras: encarcerando em massa e abandonando o sistema penitenciário às facções, o Estado contrata violência futura, reproduzindo geometricamente a criminalidade organizada e destruindo a vida de gerações e suas famílias. Além disso, aprofunda o racismo estrutural e as iniquidades sociais. Não há exagero retórico quando se diz que a guerra às drogas é a guerra aos pobres, uma guerra racista e destinada ao fracasso.

Há um ponto decisivo, que nos remete aos artigos 142 e 144 da Constituição e ao fato de que, na prática, por imposição dos militares, não houve transição democrática na Defesa e na Segurança Pública: qualquer avanço consistente e sustentável exigirá o enfrentamento do crime no interior das polícias, o qual será impossível enquanto essas instituições permanecerem refratárias ao comando da autoridade política civil. Sem a afirmação dessa autoridade sobre as instituições que mobilizam a força do Estado, a democracia, a vontade popular e a soberania nacional permanecerão chantageadas.

Ao postergar reformas na Defesa Nacional e na Segurança Pública, os governos federal e estaduais prosseguem em marcha batida para o desastre, alimentando as fogueiras do medo, do ódio e do ressentimento, que preparam os espíritos para o fascismo.

Os governantes estão perdidos, temerosos de uma opinião pública envenenada pela confusão entre justiça e vingança, ludibriada pela ideia de que a única solução é fazer mais do mesmo, com mais intensidade (mais prisões, mais proibicionismo, mais violência policial, penas mais longas, cárceres mais cruéis).

É preciso coragem para trocar os jogos de cena pelo diálogo franco com a sociedade. Até quando será negada a necessidade de uma reforma militar e de uma profunda revisão do sistema de segurança pública?

Quando Lula começará a “cuidar do povo”, como prometeu? O povo não precisa apenas de comida, diversão e arte. Sem segurança pública, persistirá no inferno, que é como vive quem mora nas periferias das cidades brasileiras. Sem Defesa Nacional, persistirá submetido à vontade emanada do estrangeiro poderoso.

De exceção em exceção, por Hélio Schwartsman.

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Brasil tende a adiar reformas e a perenizar privilégios

Hélio Schwartsman, Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de “Pensando Bem…”.

Folha de São Paulo, 10/11/2023

A aprovação da Reforma Tributária pelo Senado deve ser celebrada, mas não dá para deixar de observar o padrão, que é inequívoco. Depois que especialistas chegam a um razoável consenso técnico sobre a necessidade de uma reforma estrutural, o Parlamento passa uma ou mais décadas só flertando com ela. Quando os legisladores finalmente se decidem a aprová-la, sarapintam-na com tantas salvaguardas e exceções que, se não a desfiguram, reduzem muito de sua potência. Foi assim com as várias reformas da Previdência; está sendo assim com a Tributária.

Em algum grau, isso é inevitável em democracias, que se valem de negociações políticas e soluções de compromisso para aplainar resistências. Só ditaduras conseguem impor reformas como saem das pranchetas dos técnicos. O problema do Brasil é que sempre deixamos os ajustes dolorosos para a última hora e temos uma preocupante tendência de perenizar os privilégios que lobbies conseguem inscrever nos ordenamentos jurídicos.

A Zona Franca de Manaus, originalmente concebida para durar 30 anos, até 1997, já foi prorrogada sucessivas vezes. Existirá pelo menos até 2073. Militares gozam de benesses previdenciárias com as quais trabalhadores celetistas nem podem sonhar. Igrejas têm imunidade tributária fixada na Constituição e que não cessa de ser ampliada por leis e decisões judiciais.

Há uma explicação matemática para isso. O pequeno grupo beneficiado por uma regalia recebe vantagem tão formidável que move mundos e fundos para obtê-la. A esmagadora maioria que é prejudicada pela medida sofre uma perda tão marginal que não se mobiliza para obstá-la. O problema é que as perdas se somam. Para compensar as várias exceções tributárias, o Brasil terá uma das maiores alíquotas de IVA do mundo.

E o diabo é que o órgão que deveria empenhar-se na defesa dos interesses difusos dos cidadãos, o Parlamento, é também o mais sensível aos lobbies.

Luiz E. Soares: GLO, falsa solução de Segurança

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Antropólogo avalia: a cada nova intervenção militar, é como se o passado nos capturasse. Sem tocar na questão da ilegal autonomia policial, governo arrisca-se a legitimar o sistema de vingança vigente – o fracassado truque da demonstração de força
Luiz Eduardo Soares em entrevista a Kátia Mello, no Geledés. Disponível em OUTRAS MÍDIAS – 06/11/2023

Luiz Eduardo Soares, ex-Secretário Nacional de Segurança Pública na primeira gestão do governo Lula, é um dos mais respeitados profissionais e estudiosos da área. Antropólogo, cientista político e escritor, ele se debruça nesta entrevista a Geledés a fazer extensa análise sobre os motivos da recente onda de violência que assolou o País e as recém anunciadas medidas pelo Ministério da Justiça para combatê-la.

Sobre o Rio de Janeiro, o antropólogo diz que neste Estado não impera a criminalidade dos pobres, mas formas de criminalidade protagonizadas por membros das camadas médias e das elites, que participam da formação de pactos político-econômicos à margem da legalidade e da democracia.

Ao comentar o aumento da violência na Bahia, ele indaga: “Como é que a juventude aviltada se defenderá, se as instituições estão sendo capturadas pelos inimigos da vida?”

Luiz Eduardo também faz uma ponte entre os assassinatos de quatro líderes quilombolas ao histórico de conflitos no campo em nosso País. “É como se o passado tivesse capturado o precário experimento democrático nacional, desvelando sua debilidade, levando-o a render-se às raízes ferozes do aviltamento humano”, diz ele. Leia a entrevista inteira a seguir.
Leia a entrevista a seguir

Em menos de um mês, as disputas envolvendo milícias e facções criminosas fluminenses causaram a execução de médicos no Rio, a explosão de uma bomba num ônibus público, e o incêndio de cerca de 35 ônibus e um trem. Como explica esse fenômeno?

São vários fenômenos que se cruzam, se combinam e se potencializam, mutuamente. Vou nomeá-los para encaminhar uma análise sistêmica, enfatizando, desde já, que as dinâmicas referidas transcorrem em uma sociedade patriarcal profundamente marcada pelo racismo estrutural, pela exploração de classe, por iniquidades ostensivas e desigualdades abjetas, que contrastam com os marcos legais do que seria, supostamente, um Estado democrático de direito: (A) Autonomização ilegal das polícias, que terminam por formar enclaves institucionais, refratários à autoridade política, civil, e à Constituição. Essa autonomização se relaciona com o modelo policial legado pela ditadura, que nossa Constituição assimilou, acriticamente (fazendo com que não houvesse transição democrática na segurança), e à violência policial racista e classista no Brasil, que atravessa toda nossa história, desde a escravidão. (B) As forças centrípetas – maximizadas pela extinção da Secretaria de Segurança – que alimentam a autonomização também agem no interior das instituições policiais: envolvimento com segurança privada informal e ilegal; autorização para execuções extrajudiciais; geração metastática de grupos milicianos; cumplicidade e corporativismo, blindando a corrupção e as violações; acordos, conflitos e tensões entre grupos policiais, no interior de cada corporação e entre elas, disputando poder interno e influência externa. (C) Ministério Público hegemonizado por postura avessa ao pleno exercício do controle externo da atividade policial, seu dever constitucional. (D) Justiça criminal, na prática, aliada à posição tolerante do MP com violações policiais. (E) Unidades prisionais dominadas por facções criminosas, uma vez que o Estado descumpre a Lei de Execuções Penais. (F) Proibicionismo, expresso na perversa lei de drogas, que induz, combinada ao modelo policial herdado da ditadura, ao encarceramento em massa, em flagrante delito (sem investigação), de varejistas do comércio de substâncias ilícitas. (E) Degradação da institucionalidade política, atravessada por alianças com grupos criminosos. (F) Abandono da juventude pobre, acossada por falta de perspectivas econômicas, evasão escolar em grande escala e a percepção generalizada de que as instituições e o Estado são reféns da corrosão de seus compromissos e valores -os quais assim se revelam mera hipocrisia. (G) À generalização do ceticismo imobilista, que conspurca a imagem do que seja política e do que poderiam ser projetos coletivos, se somam: o hiperindividualismo do mercado, impulsionado pelos algoritmos e a linguagem das redes sociais; o discurso cruel da meritocracia (que justifica desigualdades e dissemina a culpa pelo próprio fracasso); a persistência do racismo, contrariando o falso discurso da cidadania e da equidade; a expansão de crenças, cultos, templos e comunidades que, predominantemente, abraçam visões de mundo ultraconservadoras, não raro demonizando tanto a oposição ao patriarcalismo misógino e à fobia ao universo LGBTQIA+, quanto as tradições afro-brasileiras, referências culturais que simbolizam e afirmam a resistência a tudo o que, ainda hoje, preserva elementos da escravidão. De meu ponto de vista, a evasão da paternidade é um componente significativo do modo pelo qual o patriarcalismo e a cultura machista se desdobram e reproduzem, mas desenvolver este ponto nos levaria muito longe. Por outro lado, há movimentos sociais e comunitários, culturais e políticos, na contramão desse verdadeiro tsunami regressivo e obscurantista -não houvesse, talvez disséssemos que tudo está perdido, que não restam motivos para esperança. Aliás, devo acrescentar que o novelo negativo que descrevi cumpre, além de tudo que já foi mencionado, outro papel destrutivo, pouco observado: aliena a opinião pública e as energias da resistência do tema-chave, que é a emergência climática, indissociável da problemática fundamental relativa à injustiça climática. H) Por último, vale destacar que, no Rio, não impera a criminalidade dos pobres, embora contingentes egressos da pobreza sejam com frequência recrutados para práticas criminosas. O que predomina são formas de criminalidade protagonizadas por membros das camadas médias e das elites, que participam da formação de pactos político-econômicos à margem da legalidade e da democracia, como a história violenta da Baixada fluminense mostrou ao país e a capital tem, crescentemente, evidenciado. Esses pactos instrumentalizam a degradação policial e a economia semiclandestina das drogas e das armas. A ponta desse amálgama é mais visível e sangrenta, mas menos poderosa. Todas as questões referidas na pergunta relacionam-se aos oito itens listados acima e a suas subdivisões.

A matança policial na Bahia jogou ainda maior pressão sobre a administração federal. O que acontece na Bahia e qual a dificuldade em combater a criminalidade neste Estado?

Não conheço de perto a situação da Bahia e seria leviano especular com base em informações gerais ou indiretas. O que posso dizer é que a Bahia não teve, ao longo das décadas, uma política de segurança efetivamente comprometida com o controle da violência policial. Os dados são eloquentes nesse sentido e os discursos oficiais dos dirigentes da área revelam que há uma autorização tácita quando não explícita para a perpetuação dessas práticas. Sei que há esforços respeitáveis sendo feitos por ativistas dos Direitos Humanos e por segmentos do próprio governo do Estado para frear e reverter essa história infame. Sugiro com toda ênfase que nossos leitores e nossas leitoras ouçam o episódio “Fincar o Pé, uma noite em Tucano” (interior da Bahia), do podcast Rádio Novelo

Apresenta, dirigido por Branca Viana, que foi ao ar semana passada. Trata-se de um relato emocionante, revoltante, que sintetiza melhor do que qualquer tratado sociológico ou filosófico o que é e como funciona a brutalidade policial letal, em toda a sua covardia perversa, em toda a sua crueldade, e como ela só existe e perdura por conta de uma rede sinistra de cumplicidades institucionalizadas. Passei a vida ouvindo relatos como esse, escrevendo a respeito. Mesmo assim, terminei de ouvir este episódio profundamente abalado. Como é possível que essa aberração continue acontecendo tantos anos depois da ditadura, em um estado sob uma sequência de governos progressistas. O realismo pragmático e o oportunismo eleitoreiro dos políticos têm de ter um limite. Ou a própria política perde o sentido e vamos mergulhar na barbárie. Como é que a juventude aviltada se defenderá, se as instituições estão sendo capturadas pelos inimigos da vida?
Como vê o plano do ministro Flávio Dino para combater a onda de violência, inclusive o envio de tropas ao Rio?

O ministro divulgou uma vaga e genérica carta de intenções, e prometeu apresentar um plano em 60 dias. Veremos, então, o que será. Quanto ao envio de tropas ao Rio, espero que não se concretize.

Sabemos o que isso representa e quais suas consequências. O Rio está farto de GLOs, ocupações e intervenções militares. Custa bilhões ao erário público e muitas vidas às comunidades. Correspondeu, no passado, a retrocessos, cancelando agendas construídas em diálogo com as comunidades e devolvendo o debate público à idade da pedra. Não por acaso, abriu-se caminho para a emergência do bolsonarismo. O discurso hegemônico voltou a ser: “É pau, é pedra, é o fim da picada”. Quando terminam as intervenções, a realidade anterior retorna sem modificações. E elas deixam atrás de si um rastro de indignação, cenas de violações e desrespeito. Com que argumentos se poderia considerar plausível sustentar que fazer mais do mesmo conduziria a resultado diferente? Eu ousaria dizer que, hoje, sequer faz sentido insistir na crítica à via militarizada de enfrentamento do crime no Rio. Não faz sentido porque o fracasso desse caminho já foi amplamente comprovado. Comprovado no laboratório chamado Rio de Janeiro, onde, por décadas, a direita pôs em prática todo o seu arsenal de métodos e concepções, táticas e estratégias, brutalizando comunidades, violando direitos elementares, intensificando o racismo estrutural, cevando o patriarcalismo violador e seus valores. O resultado está aí, diante de nós: banhos de sangue e uma atmosfera envenenada por ressentimento, ódio e medo. E mais insegurança, muito mais.

A cada nova intervenção militar, estreitam-se a capacidade e a credibilidade do Estado de direito, e se expandem ocupações de territórios por grupos criminosos, tiranizando as populações locais. De um ator com um mínimo de compromisso com a razão e a democracia se espera, em primeiro lugar, a recusa do negacionismo e o reconhecimento dessa realidade dramática, construída pela política de segurança em vigor. Em segundo lugar, se espera disposição e coragem para mudar a rota. E para que não pairem dúvidas, sejamos diretos: a política de segurança em vigor (a qual, aliás, não merece este título) compõe-se dos seguintes ingredientes explosivos: tolerância sistemática com a corrupção policial e a brutalidade policial letal; encarceramento em massa de varejistas do comércio de substâncias ilícitas; incursões bélicas a favelas; cessão do sistema penitenciário ao domínio de facções, por renúncia ao cumprimento da Lei de Execuções Penais; negligência com a situação social e econômica da juventude dos territórios vulneráveis; negligência do tráfico de armas que se articula fora das favelas; tolerância com a interpenetração entre crime, polícia e política.

É preciso ainda dizer que, quando o governo do estado do Rio pede ao governo federal que o ajude e apoie na área da segurança, o que verdadeiramente deseja é parceria política para dividir os ônus da ruína e os custos de seus desatinos. O governo federal não deveria aceitar o abraço do afogado e arriscar-se a submergir, levando consigo tantas histórias, tantos compromissos democráticos e tanta esperança. Os dirigentes do Rio querem dividir com quem tem credibilidade sua própria incompetência e a rede de relações perigosas em que se meteram. Portanto, nesse contexto, cabe a pergunta: faz sentido que o governo federal concorde em “ajudar”, sem exigir pelo menos que o governo do Estado do Rio cumpra as determinações do STF, no âmbito da ADPF-635 ? As últimas notícias informam que a GLO se restringirá a portos e aeroportos. Menos mal. Entretanto, ainda assim é lamentável. Trata-se de uma declaração velada de impotência da Polícia Federal e dos meios civis de prover segurança. O caráter político da decisão mal se oculta. O governo federal quer assumir protagonismo, respondendo à demanda da sociedade, mas lhe falta uma política de segurança. Então, retira da prateleira o velho truque da demonstração de força, convocando as Forças Armadas. Sabemos aonde isso nos levou.

O senhor sempre foi um defensor das reformas nas polícias. Ainda aponta esta medida como uma solução? Neste sentido, um ministério apenas direcionado à Segurança ajuda ou atrapalha?
Nenhuma medida isolada pode ser a solução de problemas que envolvem inúmeros fatores e dimensões.

Por isso, nunca tratei reformas policiais como solução. Entretanto, qualquer avanço no rumo da redução dos problemas terá de passar por reformas profundas nas instituições policiais. Quanto a
um ministério da segurança, mantenho a opinião que tenho externado ao longo dos últimos 20 anos: será um desastre caso seja apenas mais uma burocracia para disputas políticas, mais um foco de ambição da bancada da bala, mais uma entidade institucional dedicada a reforçar o status quo, a chancelar o que já existe, a legitimar o sistema de segurança vigente. Entretanto, se for o “ministério da reforma da segurança pública”, agente de mudança, orientado para a efetiva democratização da área, comprometido com os direitos humanos e a luta antirracista, poderá cumprir um papel muito positivo, até mesmo histórico.

O secretário Ricardo Cappelli promete implementar o Sistema Único de Segurança Pública (Susp). Como vê essa proposta?

Faria todo sentido se existisse mesmo algo parecido com o SUSP, tal como concebido no âmbito do primeiro mandato do presidente Lula. Acontece que, quando o governo Temer negociou com o Congresso a aprovação de projeto com o mesmo nome, SUSP, em 2018, sabia perfeitamente, assim como sabiam os
legisladores, que se tratava da encenação de uma farsa, para gáudio da distinta plateia. No Brasil, quando não se quer enfrentar uma disputa importante e difícil, com potencial para disparar conflitos graves, recua-se para pseudo-soluções, os puxadinhos normativos. Ninguém (claro que há sempre as exceções honrosas) teve coragem de propor a alteração do artigo 144, que estabelece a arquitetura institucional da segurança pública, o modelo policial e a distribuição de autoridade e responsabilidade.

Então, uma proposta ousada passou pelo liquidificador e terminou aprovada como legislação infraconstitucional, entretanto em evidente choque com disposições constitucionais. O choque não se revela no papel, ao menos a quem não conhece a área e não tem experiência suficiente. Mas assim que autoridades bem intencionadas ousarem colocar em prática o trabalho integrado, articulando entes federados diversos, agências independentes e instituições autônomas, assim que divergências naturais exigirem a definição de critérios e métodos de decisão, assim que surgir na ordem do dia a questão “quem manda?”, vários atores não hesitarão em judicializar sua recusa a seguir as orientações, oriundas dos gabinetes integrados. Espero que o errado seja eu, que o iludido seja eu. Estou ansioso por assistir à colocação em marcha do SUSP.

Como analisa a atuação do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que entre as atuações se coloca contrário às câmeras nas fardas policiais?

Acho profundamente lamentável, porque o governador mostra que está mais preocupado em agradar sua claque ideológico-política, credenciando-se a substituir Bolsonaro na liderança da extrema-direita, do que em preservar vidas humanas.
Quatro líderes quilombolas já foram assassinados em 2023. Como explicar o aumento deste tipo de violência e qual a melhor forma de combatê-la?

Meu primeiro trabalho de fôlego, na segunda metade dos anos 1970, foi sobre a luta no campo, a resistência camponesa contra a grilagem e a expropriação. Pesquisei um grupo descendente de escravizados, cujo sucesso na resistência se devia principalmente à capacidade de ação coletiva, até certo ponto derivada da comunhão ancestral, da identidade étnica. A negritude, a história comum, a memória comunitária mantinham a unidade na diversidade e na divergência, e sustentavam a extraordinária liderança de um senhor notável, testemunha viva da trajetória do grupo, que tive a honra de conhecer. Naquela época, quem se preocupava e ocupava da temática da violência, olhava para o campo, não para as cidades. Discutíamos a questão agrária, o lugar do campesinato na luta de classes, mesmo sabendo que o desenvolvimento do capitalismo autoritário e dependente brasileiro expulsaria massas de trabalhadores para o meio urbano. Naquele momento, a linguagem marxista das classes ofuscava a atenção para as estruturas especificamente racistas e para a resistência das comunidades afro-brasileiras. Por isso, o caso que estudei me abriu os olhos: havia outras dimensões em causa. Naquele momento, não circulava entre pesquisadores e trabalhadores rurais negros a categoria quilombola, que se tornaria uma construção ao mesmo tempo política e cultural, originária das populações e de suas lutas concretas, além de ocupar lugar central no próprio léxico sociológico e antropológico. Fiz este preâmbulo à resposta com a intenção de afirmar que a violência contra quilombolas tem sido uma constante na história do Brasil. A brutalidade de classe e étnica, no campo, além das violações do patriarcalismo, era dramática antes do golpe de 1964, seguiu sendo terrível, durante a ditadura, e não cessou, depois da promulgação da Constituição, em 1988.

Nesse processo, se articulam a expansão do capitalismo espoliador, na ausência da reforma agrária, a pregnância do racismo estrutural e a acintosa cumplicidade dos poderes locais, inclusive da Justiça criminal. Nesse aspecto, apesar de tantas transformações nas estruturas da sociedade, parece que permanecemos estacionados na mesma cena originária colonial e escravista. É como se o passado tivesse capturado o precário experimento democrático nacional, desvelando sua debilidade, levando-o a render-se às raízes ferozes do aviltamento humano. Prova disso é a tentativa reiterada de criminalizar o MST. Tristes, trágicas provas desse atavismo perverso são os assassinatos continuados de lideranças quilombolas. Ainda mais chocante é saber que a violência não apenas perdura, cresce.

Considerando-se tudo isso, para combater a violência contra quilombolas, compreendendo suas origens e sua inscrição na permanente luta pela terra -uma das faces mais iníquas e cruéis do capitalismo agroexportador, turbinado pela especulação financeira-, é necessário politizar a questão e mobilizar o conjunto dos movimentos sociais. É urgente exigir do governo federal o compromisso de atribuir prioridade à defesa da vida e dos direitos dos quilombolas, assim como dos demais pequenos produtores e trabalhadores do campo -o mesmo vale para as sociedades originárias.