Por que formar mais jovens não está aumentando nossa produtividade? por Deborah Bizarria

0

É fundamental que jovens tenham acesso a informações confiáveis e orientação adequada sobre o mercado

Deborah Bizarria, Economista pela UFPE, estudou economia comportamental na Warwick University (Reino Unido); evangélica e coordenadora de Políticas Públicas do Livres

Folha de São Paulo, 06/11/2023

Para adolescentes no fim da vida escolar, novembro costuma ser um mês tenso, afinal, é quando ocorre o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio).

Se, em um contexto de crescimento econômico, a decisão sobre o que fazer após a escola é difícil, no contexto atual o desafio é ainda maior.

Em gerações anteriores, havia o entendimento tácito que entrar no ensino superior era garantia de salários mais altos e relativa estabilidade. Essa percepção já não existe mais.

O contexto não ajuda. Apesar de o desemprego ter caído para 7,7%, a taxa de participação na força de trabalho ainda está abaixo do nível pré-pandemia.

Se todos os trabalhadores de antes da pandemia voltassem a procurar emprego, a taxa de desemprego seria de cerca de 10%, segundo Fernando de Holanda Barbosa Filho, pesquisador do Ibre/FGV (Instituto Brasileiro de Estatística da Fundação Getulio Vargas).

Essa situação pode gerar desperdício de capacidade de crescimento econômico e dificuldades na reintegração dos trabalhadores afastados.

Além disso, a maior parte dos empregos gerados após a crise de 2016 foi na informalidade, que atinge trabalhadores com baixa qualificação e baixo acesso a tecnologias, de acordo levantamento do Ibre/FGV.

Esses trabalhadores acabam produzindo menos que os formais e contribuem para a queda da produtividade média da economia. Estima-se que mais da metade da redução da produtividade desde 2014 se deve ao aumento da informalidade, principalmente em setores como construção e transportes.

Diante disso, é fundamental que os jovens tenham acesso a informações confiáveis e orientação adequada sobre as possibilidades e as exigências do mercado de trabalho, bem como sobre as características dos cursos superiores e profissionalizantes.

Nesse sentido, a educação brasileira para além de ensinar conteúdo para provas, deveria ser capaz de fornecer habilidades úteis para um mercado de trabalho em constante mudança.

Não parece que estamos indo nessa direção. Apesar de boas ideias estarem sendo discutidas no Ministério da Educação, como um programa que oferta bolsas e a criação de uma poupança educação, há mudanças pouco positivas em vista.

A proposta de retomar o modelo de uma educação conteudista, repleta de disciplinas obrigatórias para atender demandas corporativas, ignora a necessidade de reformas significativas.

O cenário atual da educação brasileira já demonstra resultados insatisfatórios, apesar dos vultosos investimentos na ordem de R$ 2,2 bilhões por dia útil. Ao analisar os gastos em contraste com desempenho, o Brasil se destaca como o país com o sistema educacional mais ineficiente do mundo.

Não há duvidas que mudanças precisam ser feitas. A mentalidade do bacharelismo, defendendo o excesso de matérias obrigatórias e diplomas vazios permeia as decisões educacionais, tanto nos governos quanto em muitas famílias.

Por exemplo, ofertar cursos em locais onde não há mercado de trabalho consolidado na região pode levar o recém-formado a migrar de região ou a buscar um emprego que não utilize nada de sua formação.

Ou ainda, encher a grade curricular de matérias obrigatórias, ao mesmo tempo que não se garante o aprendizado sólido em linguagem e matemática.

Similarmente, pressionar um adolescente a escolher uma “carreira tradicional”, sem qualquer conexão com suas aptidões ou com a realidade do mercado de trabalho, gera adultos frustrados e improdutivos para o país.

Em contraste, uma educação que leve em consideração as habilidades e preferências dos alunos é transformadora.

Os desafios são significativos, mas não podemos subestimar a capacidade da juventude em se adaptar e inovar. No entanto, é essencial fornecer-lhes as ferramentas e o apoio necessários para que possam trilhar caminhos profissionais que estejam alinhados com seus talentos

Ecos da Desglobalização

0

Vivemos momentos intensos e marcado por grandes transformações econômicas, sociais e geopolíticas, neste cenário a economia internacional tende ao baixo crescimento, com desaceleração dos grandes polos da economia global, levando chineses e norte-americanos a buscarem novas formas de movimentar seus setores produtivos, aumentando os subsídios e os gastos públicos como forma de dinamizar a atividade econômica.

Vivemos momentos de conflitos militares, guerras fratricidas, confrontos culturais nas mais variadas regiões do mundo, movimentando a economia da guerra, com investimentos maciços em armas e tecnologias militares e, ao mesmo tempo, conflitos que geram milhares de mortos, destruição da infraestrutura das nações, devastações de populações, exigindo dos governos nacionais políticas públicas para dirimir as destruições que crassa as suas sociedades.

No cenário econômico, percebemos o aumento das políticas protecionistas de seus Estados Nacionais e o aumento dos subsídios para seus grupos internos como forma de proteger suas estruturas produtivas, garantindo a geração de emprego, salário e renda para seus trabalhadores, criando constrangimentos com outras nações e parceiros comerciais e gerando instabilidades no cenário internacional.

Vivemos momentos de incertezas, levando especialistas a acreditarem no crescimento de movimentos de desglobalização, com animalidades entre as nações, guerras retóricas e agressões diplomáticas que podem culminar em conflitos militares, com consequências inimagináveis para a sociedade global, ainda sabendo, que o potencial destrutivo das armas é crescente e preocupante, que podem criar rastros de devastação de todo planeta e exterminando a vida humana.

Vivemos momentos marcados com fortes ecos de desglobalização, que estão levando os governos de países desenvolvidos a adotarem medidas protecionistas, que anteriormente eram rechaçados e criticadas como forma de fraqueza econômica, desta forma, estamos vivendo momentos extraordinários, levando o pragmatismo a ganhar espaço agenda na economia destas nações. Nos Estados Unidos, arauto do liberalismo econômico, está se distanciando das medidas liberalizantes e defensores do livre comércio, passando a defender abertamente as medidas protecionistas, a injeção de trilhões de dólares para fortalecer empresas nacionais vistas como estratégicas, além de fortes subsídios fiscais e tributários para atraírem empresas transnacionais para seu território, garantindo empresas em solo norte-americano, com criação de empregos internos e incrementando o potencial exportador de sua economia e garantindo a reversão dos déficits crescentes na balança comercial.

A reversão do processo de globalização ou a chamada desglobalização está atrelada as grandes movimentações geopolíticas globais, com a ascensão da economia chinesa e a construção de um novo ambiente internacional, onde podemos definir como um mundo multipolar. Neste novo posicionamento geopolítico da sociedade internacional, percebemos espaços interessantes para algumas nações, dentre elas destacamos o Brasil, que pode aparecer como uma alternativa interessante para aos confrontos geopolíticos e econômicos das potências dominantes.

Neste cenário, podemos vislumbrar novas oportunidades para o Brasil, recentemente uma delegação norte-americana veio visitar o Brasil para que o país possa exportar chips menos sofisticados para os Estados Unidos, com grandes investimentos para a produção local e fortes recursos financeiros, desta forma, os americanos diminuem a dependência das importações dos chips chineses e criem uma cadeia global mais amigável e menos belicosa.

Essas oportunidades estão se abrindo para a sociedade brasileira em um mundo multipolar, novas possibilidades externas podem impulsionar a economia nacional, garantindo novos investimentos produtivos e a geração de empregos de qualidade, que possibilitem novos saltos tecnológicos e uma sofisticação produtiva, deixando de lado um histórico de sermos uma economia exportadora de produtos primários de baixo valor agregado. Neste momento, precisamos repensar a sociedade brasileira, reduzir as polarizações, buscando espaços de reconstrução da economia nacional e retomando os ecos do desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre. Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

2023: uma prévia do futuro? por Marcia Castro

0

Ano deixa um rastro de destruição devido a eventos climáticos extremos

Márcia Castro, Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Folha de São Paulo, 06/11/2023.

A menos de dois meses do fim do ano, 2023 já deixa um rastro de destruição devido a eventos climáticos extremos. Recordes de temperatura, seca, incêndios, enchentes. Cidades inteiras praticamente destruídas nos hemisférios norte e sul. Ainda que o El Nino contribua para esses eventos, não é a única causa.

Um estudo mostra que 20 dos 35 sinais vitais planetários usados para monitorar a crise climática alcançaram valores recorde, criando um cenário jamais observado na história da humanidade. Em setembro, outro estudo já havia mostrado que dois terços das condições favoráveis à vida humana na Terra já haviam sido comprometidas.

Ainda que a grande maioria dos países tenham assinado o Acordo de Paris em 2015, comprometendo-se a reduzir emissões para limitar o aumento da temperatura global a 1,5°C (em relação aos níveis pré-industriais), o avanço na redução de emissões tem sido lento.

No início deste ano, a estimativa de que o limite de 1,5°C seria alcançado em 2023 era de menos de 1% . Entretanto, a última estimativa (de setembro) é que há 90% de chance de que 2023 ultrapasse esse limite. As consequências são devastadoras. Um estudo estimou que entre 2000 e 2019, cerca de 1,2 bilhão de pessoas no mundo foram afetadas por eventos climáticos extremos, gerando um custo de US$ 143 bilhões por ano, 63% devido a perda de vidas humanas.

Apesar dessas consequências, o progresso na adoção de medidas de adaptação climática está diminuindo. Um relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, publicado neste mês, mostra que o financiamento para ações de mitigação e adaptação é de apenas 5% a 10% do que é necessário. O relatório sugere formas de aumentar gastos domésticos e financiamento internacional e do setor privado. Porém, é preciso comprometimento político.

Além da redução no investimento em medidas de adaptação, o último relatório da Organização Meteorológica Mundial, publicado semana passada, mostra que o uso de alertas meteorológicos por Ministérios da Saúde para orientar ações de mitigação ainda é muito limitado.

Além disso, a recente passagem do furação Otis mostrou que nenhum modelo conseguiu prever sua intensidade. Atípico, Otis passou de tempestade tropical a furacão de categoria máxima em cerca de 12 horas. Com isso, mais de um milhão de pessoas no México tiveram pouco tempo para se preparar para a tempestade. A urgência da crise climática é uma realidade. E ainda que a velocidade das mudanças surpreenda, as mudanças em si já vêm sendo discutidas há décadas. Porém, as respostas não acompanham a velocidade da urgência.

No Brasil, as catástrofes em 2023 são incalculáveis. Enquanto a região Sul enfrenta enchentes há meses, partes do Nordeste convivem com a desertificação. Na Amazônia, rios estão com nível de água muito abaixo do normal, deixando comunidades completamente isoladas. E a fumaça das queimadas que encobre cidades da Amazônia expõe a população a sérias complicações de saúde.
2023 com 1,5°C acima da média mostra ao mundo uma prévia de um planeta aquecido. Um planeta onde as estações do ano perdem o sentido, onde catástrofes correm o risco de serem normalizadas, e onde os que menos contribuíram para as emissões mais sofrem com os efeitos da crise climática.

A próxima Conferência do Clima (COP 28) começará no dia 30 deste mês. Nela será apresentado o primeiro balanço global das metas do Acordo de Paris para que países avaliem onde estão progredindo em direção ao cumprimento das metas, onde não estão, e o que devem fazer.

Que a urgência do momento e o balanço global impulsionem a ação!

Agro foca mais no gado do que em gente, diz presidente da Cibra

0

Em livro, executivo diz que gestão de pessoas é a nova fronteira a ser rompida pelo agronegócio

Julio Wiziack – Folha de São Paulo, 05/11/2023

BRASÍLIA O colombiano Santiago Franco preside, há mais de uma década, a Cibra Fertilizantes, uma das maiores do ramo no Brasil, controlada pelo grupo americano Omimex (70%) e a mineradora britânica Anglo American. Nesse período, a companhia, antes quebrada, saltou de R$ 70 milhões para R$ 8 bilhões em vendas. Para isso, Franco teve de conhecer o agro por dentro para detectar oportunidades.

Em seu livro “Liderança e Gestão de Pessoas no Agronegócio”, ele diz que a tecnologia levará a uma revolução no campo e que, sem gestão de pessoas, não há como obter sucesso.

O agro se preocupa mais com bois do que com gente?
[Risos] Não sei se trata melhor o gado, mas os gestores focam no gado mesmo, na produtividade, na eficiência, no custo. Embora hoje existam empresas muito grandes, a maioria delas é familiar e a gestão passa de pai para filho. Quando contratam profissionais, a preocupação é sempre na parte técnica. É um setor em que predominam o comando e o controle. Quem manda, manda. Obedece quem tem juízo.

Se é assim, por que você defende peões mais preparados?
Porque a tecnologia está mudando as relações de trabalho. Já não é mais possível seguir tocando o negócio do jeito de sempre. Se você precisa pilotar um trator que fala, que é computadorizado, tem de ser escolarizado. E avançamos para uma fase em que os tratores não precisarão mais de pilotos. Haverá menos gente no campo e mais pessoas nos escritórios, com salas cheias de computadores fazendo a gestão da fazenda. A relação de trabalho é outra nesse caso. Não dá para ter uma pessoa que não goste da empresa e, no limite, peça demissão. [Essa nova fase] Exige engajamento [dos funcionários].

A troca de funcionários no campo ainda é muito grande?
Na Cibra, por exemplo, o turnover [reposição de mão-de-obra] é de mais ou menos 10%. Para mim, não é bom. No agro, é bem mais alto, mas não saberia mensurar.

Até que ponto o turnover não reflete o dinamismo do agronegócio, que oferece salários melhores para tomar funcionários de concorrentes?
Um gestor tem um tripé: a estratégia, as pessoas e a operação. Os gestores ainda olham muito para a operação. No meu caso, eu dedico pelo menos 50% do meu tempo às pessoas e a outra metade, aos processos. É preciso conectar a estratégia às pessoas e deixar as pessoas tocando a operação. É daí que sairá a próxima revolução do agro.

RAIO-X
Formação: Engenharia agronômica (Universidad de Caldas), pós-graduação em Administração (Inalde Business School)

Carreira: Presidente da Cibra (desde 2012); Diretor da divisão de agro da Abocol (1997-2011); Diretor comercial da Insucampo (1995-1997); diretor comercial da Hoechst (1991-1995)

Educação em apuros, por Muniz Sodré

0

EAD é experimento de automação do positivismo educacional

Muniz Sodré, Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

Folha de São Paulo, 05/11/2023

O Brasil ocupa a terceira pior posição em investimento público na educação básica. Fato gravíssimo: um terço dos jovens abandona a escola antes de concluir o ensino médio. Não é só questão de verba, e sim de falência do verbo educar, ou seja, má qualidade de ensino. Inexiste programa sério de capacitação de professores, enquanto avança a proliferação do ensino a distância (EAD). Um grupelho de universidades privadas domina o setor, com número de inscritos superior ao de todas as instituições públicas. Mas estas, na avaliação do Enade de 2022, tiveram melhor desempenho que as privadas.

Sistematicamente, os estudantes de EAD têm conceitos mais baixos que os presenciais. Sabe-se que disciplinas relativas a cálculos e mecanismos se prestam bem à instrução online, porém não se sabe como, em certos casos, um único tutor possa acompanhar centenas, senão milhares de inscritos. Outra questão é a evasão técnica: alunos se ausentam, deixando seus avatares nas telas. A pior de todas é a rasteira perspectiva pedagógica de que “bastam português e matemática”.

Essas duas disciplinas, em que estudantes brasileiros revelam baixa proficiência, são vitais à tecnologia, embora não sob um positivismo culturalmente excludente. De fato, no domínio da criatividade, as big techs não pautam sua prática pela camisa de força, hostil à criação, com que o positivismo vestiu o conhecimento. Para Emmanuel Carneiro Leão, filósofo e educador falecido em outubro, pensar tem mais a ver com criação do que com cálculo.

A pedagogia positivista serve para passar no Enem, consolidar os rendosos monopólios de ensino e reproduzir elites de poder. Nesses termos, a universalização do acesso à escola é também apequenamento de qualidade, secundado pela pauta retrógrada da ultradireita, que agora avança sobre conselhos tutelares. Corporeidade infantil é matéria-prima para a hipocrisia moralista.

Só que existem corpos sociais e corpos raciais. Os primeiros integram-se na comunidade étnica hegemônica. Corpos de raça são aqueles que, no tráfico negreiro, “podiam ser comprados e vendidos, postos no trabalho como fontes privilegiadas de energia” (Achilel Mbembe em “Corpos-Fronteiras”). Desses foram sucedâneos os escravos da máquina, operários, ou qualquer corpo de segunda classe.

A EAD destina-se a corpos raciais como experimento de automação do positivismo educacional, uma forma acelerada de adestramento que ignora a diferença entre produtividade e criatividade, entre instrução técnica e formação humana. De modo geral, excesso de informação é recesso de compreensão. Já a velocidade circulatória suprime pausa, ambivalência, reflexão e, no limite, a própria educação, estruturalmente mais lenta. Junto aos jovens, vence o TikTok. É o epitáfio do professor.

Desumanidade cotidiana

0

Vivemos num momento marcado por grandes desenvolvimentos tecnológicos que estão transformando a sociedade global, criando relações novas entre o espaço e o tempo, como disse, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Um momento marcado pelo crescimento das redes sociais, das alterações produtivas e da comunicação instantânea, onde os seres humanos se sentem, cada vez mais, solitários, amedrontados e marcados pela desesperança, pela incerteza e pela instabilidade.

Neste cenário de fortes transformações tecnológicas, os trabalhadores estão passando por grande reinvenção, a busca de capacitação e requalificação profissional crescem todos os dias, exigindo investimentos crescentes e dedicações cotidianas como forma de acompanhar a aceleração das novas tecnologias, que criam novas formas de geração de riqueza, além de uma cobrança mais intensiva, numa busca insana que impacta todos os seres humanos, uns empregados e outros desempregados, num ritmo frenético que estão motivando desequilíbrios emocionais e desajustes afetivos e psicológicos.

Neste ambiente de fortes alterações econômicas, políticas, culturais e sociais, encontramos uma sociedade mundial cindida e que se compraz com a destruição dos inimigos, muitos deles verdadeiros e outros imaginários, estimulando guerras fratricidas, destruições militares e violências crescentes, nos levando a indagar, diante deste cenário, se somos seres humanos racionais, como defendiam os arautos da economia neoclássica.

No ambiente internacional, percebemos o crescimento dos conflitos bélicos, embarques crescentes de armas, remanejamento de tropas e armamentos militares, levando nações a canalizarem bilhões de dólares para impulsionar os mercados da guerra, desviando recursos imprescindíveis para a melhora das condições de vida de seus povos, criando confrontos internos, violências extremas, exclusões sociais, desempregos elevados e desesperanças inimagináveis, e muitos indivíduos, que vivem numa outra sociedade, estão se perguntando como a violência está crescendo de forma acelerada, afinal, muitos acreditam, erroneamente, que somos um povo pacífico, acolhedor e cordial, como destacou o grande intelectual brasileiro Sérgio Buarque de Holanda.

Internamente, somos uma nação criada e constituída na pilhagem, na exploração e na corrupção cotidiana, mantivemos durante séculos um modelo econômico centrado na explorando dos negros e dos indígenas, convivendo com uma concentração de renda obscena, vivemos numa sociedade centrada em privilégios de poucos, com fortes benefícios, isenções e privilégios tributários, além de recursos monetários e condições sociais de prestígios sociais e de respeitabilidade, seres que vivem em uma verdadeira casta. Em detrimento de uma grande maioria da sociedade, pessoas espoliadas, endividadas, desempregadas, com salários ultrajantes, transporte público degradante, educação de péssima qualidade, sem políticas públicas, sem segurança pública e sem dignidade humana.

Nesta sociedade encontramos imagens assustadoras, guerras nas mais variadas regiões do globo, conflitos sangrentos e violências crescentes, ônibus e trens queimados, bombas sendo disparadas, crianças sendo mortas e uma desumanidade ascendente, onde os seres humanos perdem a capacidade de indignação, com isso, percebemos que a sociedade caminha a passos largos a uma degradação sem precedente, com guerras, agressões e destruições, onde as instituições multilaterais não conseguem garantir melhores condições de convivência pacífica, exigindo uma reestruturação de todos os canais de negociação internacional, como forma de retomar as políticas de desenvolvimento social, fundamentais para a melhora das condições de vida da sociedade internacional.

Neste ambiente de grandes transformações, percebemos que as lideranças estão aquém dos desafios contemporâneos, como as questões relacionadas ao meio ambiente, o incremento da pobreza em todas as regiões, o aumento do crime organizado, as alterações no mundo do emprego e dos modelos de negócios. Todos esses desafios exigem uma visão sistêmica, multidisciplinar e uma visão coletiva, deixando de lado uma visão que domina a sociedade contemporânea marcadas pelo individualismo, pelo imediatismo e centrada no lucro.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Desigualdade é coisa de rico, mas afeta oportunidades dos pobres, por André Roncáglia

0

É a falta de renda, não de educação financeira, que mantém pobres os pobres

André Roncáglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Riqueza é poder. Os super-ricos não desejam apenas viver de forma nababesca; querem influenciar as leis, bem como o que as pessoas podem saber e estudar.

A coalizão agrofinanceira gasta muito para formar bancadas no Legislativo e para influenciar a opinião pública. Recente reportagem da revista Piauí revelou como o mercado financeiro tenta influenciar o debate sobre economia e negócios. Desigualdade sem limites ameaça a democracia.

Na contramão das investidas plutocráticas, uma série de livros e estudos vem destrinchando a desigualdade no Brasil. O livro de Pedro Souza, “Uma História da Desigualdade”, a concentração de renda entre os ricos no Brasil” (2018), revela a desigualdade vista do topo; e o compêndio “Desigualdades: visões do Brasil e do mundo” (2022) —organizado por Fernando Mattos, João Hallak Neto e Fernando Gaiger— analisa os impactos multidimensionais da desigualdade sobre o mercado de trabalho, o acesso à saúde e à educação etc.

Engrossando o caldo, a Companhia das Letras lançou em 18/10 ” Os Ricos e os Pobres: o Brasil e a desigualdade”, de Marcelo Medeiros. Com erudição despretensiosa e capítulos curtos, o livro responde a inúmeras falácias veiculadas nas redes antissociais nos últimos anos. Traduz para o público os resultados de pesquisas sobre variados temas, como salário mínimo, disparidade salarial entre gêneros e raças, bem como taxação de riqueza e a miragem da educação como solução de nossos problemas.

Medeiros mostra didaticamente como desigualdade é coisa de rico: há “muito mais renda nas mãos do 1% mais rico do que na metade mais pobre da população adulta”; e o 0,5% mais rico apropria 20% da renda nacional. Já a imensa massa de pobres e homogênea do ponto de visto socioeconômico. Pobreza e desigualdade são fenômenos interligados, mas diferentes entre si.

O livro desmonta a falsa dicotomia entre política e técnica. Por exemplo: programas de combate à pobreza refletem o jogo de poder no conflito distributivo ao definirem uma “linha de pobreza” e ao adotar uma noção de insuficiência de renda. Afinal, “quanto mais rica for uma sociedade, mais alta tende a ser a linha que define o que é pobreza”.

Um capítulo chocante ilustra, com números, o que significa poupar para os pobres no Brasil. Se uma família poupar 5% da sua renda diária de R$ 14,50 todos os dias, teria anualmente R$ 264. Esperaria 30 anos para comprar uma motocicleta usada para prestar serviço de motoboy; seis anos para uma geladeira ou para uma máquina de lavar roupas.

Não é a falta de educação financeira que mantém os pobres nesta condição. É a falta de renda.

Por isso, o combate à pobreza deve ir além do Bolsa Família e da defesa da educação básica. É preciso atacar as causas da desigualdade. Como estas operam no topo da distribuição, são necessárias políticas específicas, como tributação progressiva da renda e da riqueza e acesso ao ensino superior, entre outras.

O livro rebate também a ameaça de fuga de capitais em caso de tributação da riqueza. Além de “metade da riqueza ser imóvel e cerca de dois terços não conseguirem migrar internacionalmente”, as frentes parlamentares bloqueiam ou desidratam a tributação justa da riqueza. O projeto de lei prevê a taxação de fundos exclusivos de alta renda e offshores reduziu de 15% para 8% a alíquota sobre ganhos financeiros destes fundos e excluiu os ganhos decorrentes de variação cambial da base de cálculo.

Por isso, Medeiros defende que a tributação integrada de renda e riqueza constitua um “imposto mínimo” sobre os mais ricos, não apenas por melhorar alocação de capital (ao tributar a fatia ociosa do patrimônio) mas por financiar a expansão das políticas de combate à pobreza.

Reduzir a desigualdade é vital para eliminar a pobreza e promover a democracia efetiva. A liberdade econômica deve valer para todos.

O cinismo dos EUA e o direito ao vale-tudo de Israel e Hamas, por Marcos A. Gonçalves

0

Quando discutimos quem matou mais crianças e civis é que já estamos no inferno

Marcos Augusto Gonçalves, Editor da Ilustríssima e autor de ‘1922 – A Semana que Não Terminou’ (Companhia das Letras, 2012).

Folha de São Paulo, 27/10/2023

Um ato de barbárie não transforma uma revanche bárbara em resposta moralmente defensável. O terrorismo não se define pela precedência da iniciativa, como se um primeiro gesto de horror merecesse condenação e absolvesse os que porventura viessem a ocorrer em sentido contrário.

Sendo assim, não são sustentáveis os argumentos que procuram justificar o inominável ataque do Hamas sob a alegação de que Israel promove hostilidades que poderiam ser caracterizadas como terrorismo de Estado.

Do mesmo modo, são uma afronta à ética humanitária os bombardeios indiscriminados contra civis em Gaza e a supressão de alimentos, energia e água da população confinada. A ideia de que os palestinos devem ser tratados como animais é fundamentalmente terrorista.

Quando nos entregamos a uma contabilidade para apurar quem mata mais crianças e civis, quem começou e quem tem mais motivos para continuar a fazê-lo, é que já descemos ao inferno. Israel não é um Hamas às avessas, mas é preciso que o país e seus apoiadores demonstrem que ainda não desistiram dessa diferença.

Considerações éticas e princípios humanitários, no final das contas, são incompatíveis com a lógica das guerras, ainda que se estabeleçam normas e acordos internacionais para tentar torná-las menos inaceitáveis. A guerra já é uma derrota por si. A tendência em confrontos bélicos é que prevaleça a espiral de ódio, ressentimentos e vinganças —como mais uma vez se observa no atual conflito.

Mesmo numa guerra justa e convencional, como a que se moveu contra o nazismo, a barbárie marcou presença dos dois lados.

A explosão de duas bombas atômicas sobre duas cidades japonesas pelos Estados Unidos, em 1945, sem nenhuma distinção entre crianças, civis e alvos militares, talvez tenha sido o mais bárbaro dos crimes de guerra que se tem notícia. Foi praticado e continua a ser justificado por alguns, mal e porcamente, em nome da paz e da democracia ocidental. Haveria outras maneiras de demonstrar o poderio da rosa estúpida e inválida que não explodi-la sobre Hiroshima e Nagasaki.

É sintomático que o governo norte-americano tenha vetado o texto que o Brasil apresentou ao Conselho de Segurança da ONU com aprovação expressiva, inclusive de membros permanentes. O cinismo americano, com suas políticas de conveniência embrulhadas em retórica de defesa do “mundo livre”, é conhecido e encampado de bom grado por americanófilos em diversos fóruns.

Os EUA financiam a ditadura egípcia, curvam-se ao déspota saudita e mantêm uma prisão fora do alcance de todas as leis, num pedaço do território de Cuba, país que acusam de ser do “eixo do mal” e sufocam com um embargo em tudo nocivo.

O argumento de que a proposta de resolução apresentada pelo Brasil não contemplava o direito de defesa do Estado de Israel seria risível se não fosse trágico. Pedir um cessar-fogo para estabelecer corredores humanitários não é negar direito de defesa. E direito de defesa não é direito ao vale-tudo, não é direito ao olho por olho, dente por dente. Espanta que até mesmo alguns brasileiros alfabetizados tenham apoiado o veto.

Os terroristas do Hamas não reconhecem o direito de Israel existir. Israel dá sinais há anos de que já desistiu do direito dos palestinos a constituir um Estado. Nessas bases nada se resolverá. Por culpa de muitos, a proposta internacional de criar um país para os judeus como solução pacífica para uma tragédia secular e reparação ao Holocausto parece se aproximar perigosamente de uma decepção histórica. É triste, mas é o que os fatos estão aí a nos dizer.

Estado criminal, por Luís Francisco Carvalho Filho

0

É possível investigar os sinais exteriores de riqueza

Luís Francisco Carvalho Filho, Advogado criminal, é autor de “Newton” e “Nada mais foi dito nem perguntado”

Folha de São Paulo, 28/10/2023

Um ser que se habitua a tudo: a melhor definição que se pode dar ao homem, escreveu Dostoiévski.

Os desentendimentos históricos dos dois povos, judeus e palestinos, a guerra medonha. O fundamentalismo religioso, a semear ódio, intolerância, misoginia e genocídio. A espantosa e ininterrupta sequência de atiradores solitários nos Estados Unidos acertando a esmo pessoas comuns. A indústria de armas de fogo livre, leve e solta. As misérias da África.

O Brasil é o oitavo país mais letal do planeta. O número de homicídios de jovens negros é três
vezes maior que o de jovens brancos.

Habitua-se a tudo, ainda que aos sobressaltos.

O terror se espalhou na segunda-feira (25), instantaneamente, para retaliar a morte do proeminente miliciano Fustão pela Polícia Civil carioca. Caos, medo e prejuízo –35 ônibus incendiados. Surpreendidos, governantes radicalizam o discurso e pedem o endurecimento das leis penais, mesmo sabendo que não adianta nada.

Assim como não há solução milagrosa, previsível, imediata e viável para o conflito do Oriente Médio, não há solução milagrosa, previsível, imediata e viável para a violência brasileira.

As cidades estão habituadas. Algum dia, alguma coisa acontece. É um desafio gigantesco administrar o problema que não é apenas do Tio de Janeiro, muito embora, por alguma razão, o Rio esteja sempre na vanguarda.

A expansão do ciclo econômico das milícias e do crime organizado, que afeta o meio ambiente, a qualidade da água, o turismo e o cotidiano das populações, tem como insumo a corrupção policial.

Sufocá-la, não por moralismo, mas por interesse público, não é suficiente, porém é essencial.

As milícias namoram as igrejas e a política. Milícias e igrejas exercem poder eleitoral decisivo.

O país está habituado, mas as chamadas do noticiário são alarmantes. O novo chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro (“a polícia mata sim” e “vai continuar matando”) é condecorado com a medalha Tiradentes por iniciativa de parlamentar funcionalmente relacionado a miliciano. Filha de miliciano condenado ganha cargo de confiança no governo de Claudio Castro. Filho do ex-presidente Bolsonaro mantém vínculo com milicianos, assim como a ex-ministra do Turismo nomeada pelo presidente Lula. Milicianos ocupam gabinetes de senadores, deputados e vereadores, que transitam entre facções rivais e interesses antagônicos.

O cardápio oferecido pelas milícias é amplo e isento de impostos. De grupos de extermínio a sinais pirata de TV a cabo, construção civil, transporte alternativo, botijões de gás. Armas de guerra são desviados do Exército e municiam ação de traficantes e do “novo cangaço”.

Para enfrentar a violência desmedida, o governo federal projeta atos de repressão ostensiva e pretende compartilhar informações com autoridades locais e corporações habituadas a dividir espaço e gentileza com milicianos. Corre o risco de nomear vampiros para gerir bancos de sangue.

É possível investigar os sinais exteriores de riqueza que policiais ostentam sem cerimônia. Que carro usa, onde mora, de quem é a casa, negócios, bicos, o relógio de ouro, o dinheiro vivo, o cartão de crédito e as contas bancárias, está tudo de acordo com o holerite?

O homem se habitua a tudo e a vida criminosa deixa rastros. Investigar quem é quem nas polícias talvez seja a primeira e a mais singela das providências necessárias para retomar o controle do Estado.

Brics, pra que te quero? por Rodrigo Zeidan

0

Grupo era fantasia que virou realidade; não dá para esperar grandes coisas

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo, 28/10/2023

O Brics não existe. Brasil, Rússia, Índia e China (e depois África do Sul) foram colocados no mesmo saco por um executivo do Goldman Sachs, em 2001, por serem os países do futuro, que combinariam grandes populações e potencial econômico.

Bem, o futuro chegou e a realidade é dura. China e Índia não pararam de crescer durante os últimos 20 anos, enquanto Brasil, Rússia e África do Sul se estabeleceram como bastiões da armadilha da renda média; economias estagnadas sem chance de saltar estágios de desenvolvimento. China e Índia podem sonhar em galgar degraus.

Os chineses saíram da baixa renda média (onde a renda per capita é de menos de US$ 4.000) para a alta renda média (ganhos por habitante entre US$ 8.000 e US$ 13 mil). A China se tornará um país rico? Possivelmente, embora não seja certo. A Índia, por sua vez, saiu da classificação de país pobre (com renda abaixo de US$ 1.100 por pessoa) para renda média baixa e, provavelmente, chegará à renda média nos próximos dez anos.

Em 2000, o Brics representava 20% do PIB mundial. Hoje, o bloco é um terço da renda mundial. Só que a participação dos outros países que não China e Índia encolheu sobremaneira, com a parcela do PIB mundial representado pela economia brasileira caindo quase um quarto, para 2,4%, enquanto os gigantes asiáticos aumentaram seu peso na economia mundial para 20% (China) e 9% (Índia).

O mais interessante é que a China, que é o país com menos razão econômica para fazer parte do Brics, é o governo que de longe mais lidera iniciativas para manter a existência de um clube que, não fosse um relatório de um banco de investimentos, não existiria. Na China existem inúmeros centros de estudos do Brics, o país sedia o Banco do Brics (agora chamado de Novo Banco de Desenvolvimento) e são várias as conferências sobre o assunto.

Vamos ser sinceros: o Brics hoje é uma construção geopolítica liderada pelos chineses. Para o Brasil, vale a pena ser parte do bloco? Claro que sim. Afinal, a China é o maior parceiro comercial do país e diversificar interesses econômicos é algo que faz sentido geopolítico. Mas o que não dá é para o governo brasileiro achar que os eventos do Brics refletem uma visão de consenso entre os países do bloco. Quem dá a energia para a existência das iniciativas é o governo chinês, e não há qualquer possibilidade de outros países terem uma voz ativa que se distancie demais dos interesses da China. De novo, isso não é um grande problema, pois afinal o Brics é a centésima prioridade geopolítica chinesa (e também têm baixa prioridade nos outros países).

Para a China, o grupo também serve como diversificação geopolítica. Custa muito pouco manter um grupo de países aliados em um momento no qual o ocidente espreme o país. Para os outros países membros, como a maior parte dos custos é bancada pelos chineses, participação custa muito pouco.

Mas não há sonho global comum. O Brics não é parte de um projeto de fortalecimento do Sul Global (outra construção ideológica de dúbio valor). É um investimento geopolítico pragmático, com poucos custos para os países envolvidos, mas também sem prometer grandes retornos.

É legal dizer que fazemos parte de um clube que concentra um terço do PIB mundial? Talvez, mas o Brics era uma fantasia de um banco de investimentos que se tornou realidade; não dá para esperar grandes coisas de algo assim.