Demandas contemporâneas

0

Vivemos numa sociedade marcada por constantes turbulências em todas as áreas e setores, novos negócios são criados todos os dias, e muitos são destruídos rapidamente, novas demandas surgem cotidianamente, percebendo novos comportamentos dos consumidores, gerando desafios constantes para empresas e para os empreendimentos, obrigando as corporações a aumentarem as exigências para seus trabalhadores, novas habilidades e novas formas de compreensão dos desafios da sociedade contemporânea.

Neste cenário, o Fórum Econômico Mundial publicou, recentemente, uma pesquisa para compreender as habilidades dos trabalhadores do futuro, as suas exigências, qualificações e suas capacitações, numa sociedade em constantes transformações, com o crescimento dos negócios digitais, as preocupações da sustentabilidade, as urgentes discussões climáticas e as necessidades de reduzir os grandes desequilíbrios sociais que perpassam a sociedade global, gerando confrontos crescentes, terrorismo em todas as regiões, medos e ressentimentos que criam constrangimentos para todos os grupos sociais.

Nesta pesquisa do Fórum Econômico Mundial foram destacadas habilidades comportamentais em detrimento das habilidades técnicas como as grandes exigências do mundo do negócio, onde a pesquisa destacou a capacidade de resolução de problemas complexos, pensamento crítico, criatividade, liderança e gestão de pessoas, trabalho em equipe, além de inteligência emocional, flexibilidade cognitiva, negociação, tomada de decisão e orientação à serviços. Numa nova sociedade como a que estamos vislumbrando, percebemos que o mundo do trabalho prescinde de novos trabalhadores, novas habilidades e capacitações, um mundo marcado por disrupturas, transformações constantes, volatilidades cotidianas, pelas instabilidades crescentes e pelo crescimento de incertezas, como foi destacado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman na obra de referência “Modernidade Líquida”.

Nesta sociedade contemporânea, marcada pela busca constante pelos lucros e ganhos monetários e financeiros, as demandas sobre os profissionais crescem de forma acelerada, exigindo constantes capacitações, cursos de atualização, investimentos em novas especializações, pós-graduações e muito mais, ao mesmo tempo, as valorizações salariais crescem lentamente, os ganhos monetários, da maior parte, estão estagnados, gerando medos constantes em cortes e listas de dispensas, motivando um ambiente de insanidade, de constantes preocupações e incertezas. Sejam bem vindos num mundo marcado pela luta de todos contra todos, um verdadeiro retrocesso civilizacional.

Nesta nova sociedade, profissões estão sendo substituídas cotidianamente, investimentos estão sendo remanejados, empregos estão sendo destruídos, as experiências são deixadas de lado e substituídos por profissionais pouco capacitados e sem experiências, onde empresas estão observando apenas os valores monetários, deixando de lado a reputação e os ganhos imediatos, como se não existisse futuro. Neste cenário, percebemos o crescimento do empreendedorismo forçado, pessoas buscam se recapacitar para sobreviver, os mais experientes são deixados de lado na busca pela sobrevivência, um contrassenso numa sociedade que estimula uma vida longa para os indivíduos e, ao mesmo tempo, rechaça os mais experientes, degrada seus ganhos financeiros e não cria oportunidades para uma velhice com mais dignidade e sabedoria.

Neste momento marcado por grandes disrupturas econômicas e transformações tecnológicas, a educação vem ganhando, cada vez mais importância e centralidade para governos e famílias, levando-os a buscarem modelos educacionais eficientes, construindo novos formatos escolares para a apreensão do conhecimento e para a consolidação de valores comportamentais significativos para a satisfação das necessidades individuais e coletivas, estimulando o crescimento econômico, o desenvolvimento social e o bem-estar das sociedades.

A pesquisa desenvolvida pelo Fórum Econômico nos traz elementos valiosos para a construção de uma nova empregabilidade para os indivíduos, mas precisamos, antes de mais nada, refletirmos sobre os valores da sociedade contemporânea, que prega valores inatingíveis, espalha individualismo e imediatismo, e defende a meritocracia e o empreendedorismo como forma de melhoria social.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Neoliberalismo e criminalização da pobreza, por Marco Mondaini

0

MARCO MONDAINI – A Terra é Redonda, 12/10/2023

Prefácio ao livro recém-lançado, organizado por Terçália Suassuna Vaz Lima
O último quarto do século XX assinalou um significativo ponto de inflexão na história do modo de produção capitalista, bem como na trajetória do Estado e do conjunto de instituições criadas por este desde os processos revolucionários ocorridos na Inglaterra, Estados Unidos e França, no decorrer dos séculos XVII e XVIII.

Depois de um breve período de aproximadamente trinta anos em que, no Norte global, o capitalismo foi “organizado” em função da destruição gerada pelas Primeira e Segunda Guerras Mundiais, pela edificação do amedrontador mundo comunista criado ao redor da União Soviética, pelas lutas da classe trabalhadora dentro das suas fronteiras e pelas crises cíclicas do próprio modo de produção, chega-se, em meados da década de 1970, a um ponto de virada no qual o sistema do capital volta a apelar para o uso sistemático da barbárie que sempre o caracterizou dentro dos seus limites geopolíticos e, especialmente, nas suas relações com os países e povos do Sul global, desde o seu processo primitivo de acumulação.

A barbárie nua e crua que retorna à cena histórica de onde nunca havia se ausentado por completo foi – e permanece sendo até os dias de hoje – resultado da implementação de uma fórmula responsável por aumentar exponencialmente os níveis de exploração e opressão do capitalismo, isto é, seus índices de desigualdade, pobreza e violência.

Tal fórmula responde pelo nome de neoliberalismo e pelo sobrenome de Estado Penal. Dela resultaram fenômenos como a criminalização e controle da pobreza, o encarceramento em massa, a desproteção social à infância e adolescência, a preservação e aumento da exploração sexual comercial de crianças e adolescentes e do trabalho infantil – fenômenos estes abordados no livro que tenho a satisfação de prefaciar num momento de transição da história brasileira, resultante da derrota da extrema direita encabeçada pelo capitão da reserva do exército (de corte neoliberal e punitivista, diga-se de passagem) no último pleito presidencial para a Frente Ampla Democrática que se formou em torno da candidatura de Lula.

Organizado pela doutora em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professora da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Terçália Suassuna Vaz Lima, o livro intitulado Neoliberalismo e Criminalização da Pobreza reúne dez artigos escritos na sua maioria por assistentes sociais com pós-graduação, muitas das quais já exercendo a docência no ensino superior, em universidades públicas e privadas, entre as quais ex-alunas minhas nos cursos de graduação e pós-graduação em Serviço Social da UFPE e colegas de docência e pesquisa no magistério superior – fato que expressa outra vez mais o crescimento quantitativo e qualitativo da produção realizada no âmbito do Serviço Social.

No entanto, para além de critérios meramente acadêmicos, o livro em questão expressa o compromisso de caráter ético-político de um conjunto de profissionais que deslocam seu olhar para (e em defesa de) uma das parcelas da população brasileira que mais sentem no corpo e na alma os impactos do enxugamento dos recursos destinados à área social de um Estado que nunca foi provido de uma ossatura próxima daquela do Estado de Bem-Estar Social dos países do Norte global e que reproduz um passado escravista e patriarcal que insiste em não passar. Um passado de desigualdades sociais e étnico-raciais, entre tantas outras, que é potencializado pelas políticas macroeconômicas e sistemas de valores neoliberais.

Uma parcela da população brasileira que sofre no corpo e na alma as consequências do avanço das práticas punitivistas que, a negar o falso discurso do Brasil como país da impunidade, penalizam seletivamente crianças e adolescentes filhos de uma classe trabalhadora – negra, na sua maioria – cada vez mais precarizada e desprovida de direitos e garantias sociais e, concomitantemente, cada vez mais “administrada” pelas políticas de contenção do Estado Penal e sua cultura necrófila.

Por essas razões, Neoliberalismo e criminalização da pobreza merece ser lido por todas as pessoas interessadas em aguçar seu espírito crítico a fim de intervir nas lutas contrárias ao Estado Penal Neoliberal no Brasil.

*Marco Mondaini, historiador, é professor titular do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e coordenador e apresentador do programa Trilhas da Democracia.

Referência
Terçália Suassuna Vaz Lima (org.). Neoliberalismo e criminalização da pobreza. A (des)proteção social à infância e adolescência no Brasil. Campina Grande, EDUEPB, 2023, 392págs.

Austeridade econômica pavimenta o caminho para o fascismo, diz pesquisadora

0

Clara Mattei, autora de livro sobre o tema, foi a convidada da semana no BdF Entrevista

José Eduardo Bernardes – Brasil de Fato – 04 de julho de 2023

A professora e escritora Clara Mattei é objetiva: já no título de seu mais recente livro ela fala da conexão direta entre austeridade econômica e o fascismo. Em The Capital Order: How Economists Invented Austerity and Paved the Way to Fascism (ainda sem título em português – em tradução livre: “a ordem do capital: como os economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo”) ela destrincha essa relação. O livro será lançado no Brasil ainda este ano pela editora Boitempo.

Mattei foi a convidada do Brasil de Fato Entrevista desta semana. Ela contou sobre o processo para elaboração da obra, que é fruto de dez anos de estudo. Italiana radicada nos Estados Unidos (ela é professora de Economia na The New School for Social Research, em Nova Iorque), a pesquisadora cita personagens como Benito Mussolini, Donald Trump e a atual primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, como frutos políticos de um caminho trilhado com apoio na lógica da austeridade econômica.

“Para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve estar desempoderada, precarizada e dependente do mercado. E é isso que a austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham dinheiro através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios e rendas”, afirma ela, que destaca que a alternativa a esse sistema passa pela organização das pessoas em suas comunidades locais.

Confira abaixo a entrevista.
Brasil de Fato: A senhora passou dez anos escrevendo o livro que nasceu da sua tese de doutorado. Como e quando decidiu se aprofundar neste assunto?

Clara Mattei: Tudo começou quando estava vivendo os anos de grande austeridade de Mario Monti, na Itália. Ele chegou ao poder após a crise da dívida soberana em nosso país e estava estudando e vivendo na pele, assim como a maioria das pessoas no mundo ainda vive hoje, os efeitos da austeridade, a redução de verbas para a educação e saúde pública. Vi as pessoas na Itália ficarem cada vez mais pobres a olhos vistos. Era um país em que não tínhamos pessoas morando na rua e as ruas estavam ficando cheias de gente. Não havia moradia.

Mas você passou dez anos pesquisando e procurando material em arquivos, certo?
Sim, é um trabalho em economia histórica e política. É baseado em fontes primárias e na reconstrução do passado através de uma nova perspectiva, analisando material que ainda não havia sido publicado. O tipo de debate sobre austeridade que estava ocorrendo na mídia, na política pública e até entre movimentos de esquerda era muito insatisfatório porque era muito apolítico.

Transformaram a austeridade em uma ferramenta técnica para gerir a economia e a discussão era se a austeridade estava ou não funcionando para equilibrar o orçamento e promover crescimento. Era um debate sem solução. E não muito útil para entender por que a austeridade continuava emergindo mesmo que claramente não estivesse gerando crescimento, nem ajudando a resolver a questão da dívida.

Então o estudo histórico é muito importante porque nos dá uma análise com perspectiva de classe que estava ausente no debate econômico contemporâneo, que era muito tecnocrático. A tentativa era então olhar para o que aconteceu 100 anos atrás e mostrar como a austeridade tem uma clara lógica política que visa manter todos nós em uma situação de precariedade, de dependência do mercado, desempoderando assim a população para que o sistema se proteja e mantenha a ordem do capital, que é o título do livro: A ordem do capital, para se manter intacto.

Se olharmos para a história, isso só é visível porque aconteceu em um momento em que o capitalismo foi muito contestado depois da Primeira Guerra, e assim realmente vemos como a austeridade operava como uma contraofensiva usada pelas elites para impedir qualquer alternativa ao nosso sistema.

Na apresentação do livro, você fala sobre várias crises econômicas e políticas em países do mundo todo, já que essas crises e essa austeridade são intrínsecas à nossa sociedade moderna. Nos últimos anos, mais uma vez vimos uma crise do neoliberalismo no mundo todo, algo que já se dizia no início do século passado. Esse modelo econômico não é o mais adequado, certo?

Sim, com certeza. Estamos em outro momento em que as pessoas não acreditam no sistema, penso eu. Aliás, é por isso que a austeridade voltou com força total. Não só no Brasil. Eu moro nos Estados Unidos e o motivo pelo qual o Federal Reserve, o [equivalente ao] Banco Central, está aumentando a taxa de juros é porque a maioria das pessoas não está voltando ao trabalho.

Muitos trabalhadores estadunidenses, 46 milhões, em 2022, largaram seus empregos porque estão cansados da exploração e porque veem que o sistema não trabalha para eles e sim para uns poucos que enriquecem constantemente. Então é nessa situação que a austeridade deve voltar para nos convencer que, na verdade, estamos enganados e não existe outra saída a não ser através do sacrifício dos trabalhadores e, em última instância, do corte de salários para atrair a confiança dos investidores.

E o capital parece tentar se reestabilizar e se preservar o tempo todo. Mesmo diante de uma crise, os bancos, o sistema inteiro, e até os governos liberais, ainda tentam protegê-lo.

Com certeza. Mas acho que existe aí uma mensagem de esperança que surge quando levamos a História a sério: o capital não é fixo, não é algo dado e não é uma coisa, não é um objeto. É uma relação social e se traduz em uma maioria que aceita sua condição e aceita sua condição de vender sua capacidade por um salário.

A relação social não é de maneira alguma estática. É dinâmica e pode ser subvertida. É dinâmica e pode ser subvertida. Então a realidade é que a ordem do capital é muito frágil. E é por isso que a austeridade é tão cara a ela, porque a protege de todas essas demandas de transformação social que vão surgindo.

A mensagem aqui é que precisamos saber como a classe dominante opera para preservar um sistema injusto. Precisamos parar de idealizar o capitalismo como um sistema que pode ser reformado e que tem flexibilidade para incorporar nossas necessidades, e perceber que o capitalismo tem limites rígidos. É um sistema que só cresce e produz para gerar lucro e isso requer austeridade.

A tese central aqui é que a austeridade não é uma exceção no capitalismo, não é algo que só se vê nas etapas neoliberais, começando nos anos 80. Ela é muito mais intrínseca à longa história do capitalismo. Está no DNA do sistema exatamente porque, para o capitalismo funcionar, a maioria das pessoas deve estar desempoderada, precarizada e dependente do mercado. E é isso que a austeridade faz. Tira recursos da maioria das pessoas, que ganham dinheiro através de um salário, e entrega a uma minoria, cuja riqueza vem de patrimônios e rendas.

A pesquisa aborda os primeiros anos do século 20 até a atualidade. E a austeridade esteve sempre presente, como você acaba de dizer, desde o período entreguerras, que é onde começa a pesquisa.

Você disse que a austeridade foi uma ferramenta técnica e despolitizada para a ascensão de lideranças autoritárias. Por que unir Mussolini, Jair Bolsonaro, Viktor Orbán e Giorgia Meloni, por exemplo? A pergunta é: “o que os une?”

É muito importante aqui dar um passo para trás. No livro, faço uma reconstrução da crise do capitalismo após a Primeira Guerra, há exatos 100 anos. Em 1919 e 1920, a população em geral tinha desistido do capitalismo, pensando que haveria um futuro melhor após a reconstrução pós-guerra. E todos esses experimentos que surgem de conselhos de trabalhadores demandam democracia econômica, o que significa que as pessoas estavam se reapropriando da produção e distribuição de recursos. Isso estava acontecendo concretamente.

Meu foco é o movimento de Antonio Gramsci, em Torino, L’Ordine Nuovo, em que é possível ver um esforço real não só para pensar diferente, como também para agir diferente. E só se podia agir diferente realmente pensando diferente e só se podia pensar diferente agindo diferente. Então é a importância da prática, de uma sociedade diferente nascer de experimentos dentro das fábricas e também no campo, em que as pessoas se reapropriaram dos meios de produção e da organização do trabalho.

Nessa situação explosiva, a burguesia ficou muito assustada. Porque, é claro, ela se beneficiava do capitalismo, queriam protegê-lo e qualquer forma de distribuição e democracia econômica teria significado, de certo modo, o fim dos seus privilégios. É nesse momento em que vemos emergir a austeridade como uma contraofensiva e aqui há dois fatores relacionados à sua pergunta. O primeiro é que os economistas participaram muito ativamente na construção de modelos econômicos supostamente “neutros”, teorias “neutras”, conhecimento científico, para dizer às pessoas que elas eram ignorantes, que elas não entendiam e, em suma, que estavam vivendo por conta própria e tinham que aceitar a verdade dura, como diziam, do trabalho duro e abster-se de consumir.

Então esse lema de austeridade, “consuma menos, produza mais”, foi imposto à população italiana e inglesa. Esses dois países são o foco dos meus estudos porque meu interesse é mostrar que a austeridade surge onde a democracia econômica é mais palpável. E naquele momento na Europa as pessoas tinham ganhado o direito ao voto, por exemplo. Mas o que se vê é uma aliança entre economistas e governos. Os economistas são convocados pelos governos para ajudar a impor à população a austeridade. E a austeridade veio em uma variedade de formas. Não foram só cortes de gastos, foi, em primeiro lugar, cortes de gastos sociais, taxação regressiva. Então houve aumento em impostos sobre o consumo, como ainda vemos no mundo todo hoje, mais impostos para pessoas físicas e corte de impostos para ricos e impostos corporativos ou sobre patrimônio etc.

Também se tratava de aumentar as taxas de juros, que também vemos hoje, ou seja, austeridade monetária, e, por último, aquilo que chamo de medidas industriais, que são ataques diretos a sindicatos, privatização, desregulação do trabalho e arrocho salarial. Então essa tríade da austeridade; fiscal, monetária e industrial; foi imposta à população também graças a economistas que estavam dizendo: “Este é o caminho certo a seguir e somos especialistas e objetivos”. Nesse sentido, fica evidente que os economistas desempenharam um papel bastante classista, participaram nessa guerra de uma classe contra o resto dos cidadãos e isso poderia ter sido feito de outro jeito, como foi na Inglaterra, onde a democracia liberal usou a austeridade contra seu povo e isso aumentou o desemprego e assim disciplinou os trabalhadores.

Eles tiveram que deter as greves, voltar ao trabalho com um salário bem menor e em piores condições. Voltando à pergunta, na Itália, vemos que Benito Mussolini, o fundador do fascismo, foi o mais eficiente implementador e aprendiz da austeridade. Mussolini chegou ao poder através de uma eleição, não um golpe, assim como Giorgia Meloni e Orbán hoje. Mas com uma intenção explícita de impor austeridade, dizendo às pessoas para não se preocuparem porque iriam fazer os cidadãos italianos pararem as greves, as reclamações e voltarem ao trabalho.

Agora, eu acho que hoje vemos muitos desses políticos “autoritários parafascistas” emergirem porque as pessoas estão insatisfeitas com a austeridade. A austeridade venceu a um ponto em que não há mais a noção de classe: as pessoas pensam que são indivíduos [isolados], e é uma típica mensagem de austeridade: “Não há classes, não há antagonismo, só indivíduos. E são os empresários que lideram a máquina econômica, não os trabalhadores.”

Então, no caso da Itália, para mim, Meloni chegou ao poder porque prometeu redistribuição de renda, e é claro que não cumpriu, porque assim que assumiu o poder mais uma vez impôs austeridade, como Mussolini e outros regimes autoritários.

Sobre isso, você diz que a austeridade não teve sucesso em estabilizar a crise econômica, mas teve sucesso em estabilizar as relações de classe. Estamos vendo agora uma mudança global nas relações de trabalho. Os sindicatos estão enfraquecidos, perdendo poder em alguns países. Como poderíamos ver nascer uma nova organização de trabalhadores?

Tenho algumas ideias sobre isso. Em primeiro lugar, mesmo se existe essa ideia de que os trabalhadores estão enfraquecidos, isso se deve à ação da austeridade sobre nossa vida por mais de 100 anos. Ela foi muito bem-sucedida, como você disse. A austeridade não teve sucesso em atingir os objetivos estabelecidos de crescimento econômico e pagamento da dívida, mas teve muito sucesso em atingir seu verdadeiro maior objetivo: garantir que as pessoas não pensem que podem viver em outro tipo de sociedade, aceitem sua condição de trabalhadores assalariados. Mais uma vez, impondo a ordem do capital. E isso também é uma armadilha para a mente porque os modelos econômicos reafirmam que os trabalhadores não importam, só os empresários.

Então é justo e correto afastar os recursos dos preguiçosos e favorecer os supostamente meritórios. Eles oferecem justificativas para essas políticas de extração de todos nós. Claramente a austeridade teve sucesso e vemos que, historicamente, os trabalhadores perderam poder, o poder de barganha, o poder de imaginar um novo futuro. Dito isso, quero chamar atenção ao fato de que, no capitalismo, a luta de classes nunca para. É uma constante. Nosso sistema está em movimento, é um processo, não há nada fixo, mesmo que os economistas queiram que acreditemos que há algo fixo. Porque acreditar que algo é fixo nos desempodera e aprisiona nossa imaginação.

Então quero dizer que, é claro, existe um motivo por que a coisa não vai tão bem para os trabalhadores neste momento histórico, mas não é à toa que existem muitas mobilizações novas.

Nos Estados Unidos, por exemplo, é o setor de serviços: pessoas em restaurantes, hotéis, em áreas em que normalmente o trabalho é muito precarizado e individualizado, estão agora se sindicalizando. Starbucks, Amazon, Chipotle. E isso está assustando muito as classes dominantes.

Eu diria que estamos em um momento, na verdade, em que existe novamente certa turbulência. Claro, não é o espírito revolucionário de 100 anos atrás, mas há muita demanda por libertação.

Respondendo a sua pergunta, me sinto muito esperançosa. Há pouco estive na África do Sul, apresentando o livro, e me organizei e me encontrei com ativistas das townships [áreas urbanas comparáveis a favelas]. As townships são lugares onde o apartheid ainda existe, em termos de precarização econômica. No entanto, há muita energia no território, muita gente das novas gerações que abandonou as velhas categorias e estão pensando o novo.

Acho que o importante, para avançarmos, é abrir espaço para essas iniciativas que buscam recuperar independência e autossuficiência. Trata-se de romper a principal armadilha, que é a dependência do mercado. O que quero dizer? Que a maioria de nós, para poder viver, precisa ter dinheiro no bolso. Se quiser comer, tem que comprar algo no supermercado. Se quiser morar, tem que pagar aluguel. Se quiser ser curado, tem que pagar pelos médicos. Se quiser ir à escola, muitas vezes tem que pagar. Este é o resultado da austeridade. A mercantilização de todos os aspectos da nossa vida para nos desempoderar cada vez mais.

Acho que a primeira missão aqui é ser capaz de recuperar nosso poder através da organização, de conselhos, da vizinhança, de atividades locais, de formas de produzir e distribuir por nossa conta. Assim não dependeremos do salário dos capitalistas e não gastaremos nosso dinheiro em supermercados, para que o dinheiro não vá embora assim que entrar. Precisamos que os recursos permaneçam dentro da comunidade. E acho que esse é um primeiro passo importante para engajar as pessoas na ideia de organizar, colaborar e perceber que não é suficiente só votar nas eleições.

Votar nas eleições é um ato muito superficial. E é algo que mantém viva a servidão econômica.
Então é preciso romper e combater a servidão econômica. E esse seria um primeiro passo em um projeto muito mais ambicioso, que vai além da democracia social. É a derrubada das relações salariais em si. Repito que isso está acontecendo. Está acontecendo nas townships, eu estive lá há pouco. Está acontecendo no Chile, onde os conselhos são fortes. Acho que está acontecendo no mundo todo, mas a mídia não fala disso. Mas é suficiente para se envolver, ir para a rua, conhecer sua vizinha, ver que essas realidades existem e a austeridade está aí justamente para parar esses processos. Mas nós precisamos lutar contra isso.

Você mencionou a viagem à África do Sul. Seu livro será publicado no Brasil no segundo semestre, editado pela Boitempo. Está preparada para esse tour ao redor do mundo?

Tenho um filho de 8 meses que está viajando conosco. Seria melhor não ter que me mover tanto, mas faço isso porque acredito no poder do conhecimento, em ajudar a levar processos adiante. Novamente, a mudança tem que vir de baixo, de quem está mobilizado. Mas acho que as bolsas de estudo de militância podem ajudar a desenvolver ferramentas para afiar a mente e o conhecimento sobre as estratégias inimigas. E é por isto que a História é útil, para abrir espaço a novas maneiras de fazer as coisas, para fomentar a imaginação política porque, no passado, houve muitos esforços para mudar a nossa sociedade. E ainda existem esforços assim e acho que meu papel é fazer a discussão avançar e dar esperança às gerações mais novas.

A ideia de ter um orçamento elevado é o debate central no Brasil hoje. Esse debate eterno torna impossível avançar em direção a uma agenda positiva para o país. Por outro lado, muita gente, incluindo o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, acredita que os juros altos vão barrar o crescimento econômico e que o controle da inflação não deveria ser o foco principal. Essa ideia sobre o orçamento primário tem a mesma origem que a austeridade?

Com certeza. É exatamente isto que a austeridade faz. Passa a mensagem de que não há alternativa. Equilibrar o orçamento é uma prioridade indiscutível. É uma prioridade neutra e necessária. Agora, sabe que a mensagem do livro não é que esses economistas estão necessariamente errados. Acho que em boa parte dos casos, principalmente em países do Sul, nos quais os limites do capitalismo são reais, é realmente um problema que a inflação esteja alta, que a moeda esteja desvalorizada. Mas isso dialoga com a violência econômica que é muito estrutural no sistema. Por isso a solução não é só fazer remendos no nosso sistema, com algumas reformas. Porque o estrangulamento é forte.

E é verdade que, sob o capitalismo, dependemos da confiança dos investidores para o crescimento econômico. E como você atrai investidores? Só se mantiver baixas as taxas sobre grandes riquezas e as taxas empresariais. Só se abrir às privatizações. O que ocorre agora é que grandes gestores de ativos estão comprando infraestrutura, imóveis, para tirar o máximo de taxas e renda, para aumentar o máximo possível as nossas necessidades diárias. Mas é exatamente isto que o Estado capitalista deve fazer, em suma, abrir-se a esses investidores privados. Essa é a realidade do sistema. É por isso que é muito idealista pensar que o Estado capitalista pode se opor a essas tendências globais de austeridade. É por isso, repito, que temos que encontrar formas através de processos de libertação da propriedade privada, meios de produção e relações salariais. Porque o capitalismo realmente nos aprisiona. Não sei se isso faz sentido.

Esse debate entre economistas soa, é claro, como se não fosse uma escolha política. E podemos dizer que obviamente é uma escolha política. Mas também é uma escolha restritiva porque são decisões políticas favoráveis à manutenção da estabilidade de certa forma de mercado capitalista, certo? E isso requer nossa subordinação às leis do mercado que nos estrangulam e beneficiam uma minoria muito pequena. Essas escolhas políticas são restritivas. Mas nós podemos pensar grande, querer mais que migalhas para manter o povo controlado. Precisamos pensar grande, pensar em realmente romper com a nossa posição de subordinação ao mercado.

Aqui no Brasil, em 2016, o governo, que aliás não tinha sido eleito pelo povo, criou um marco fiscal conhecido como “teto de gastos”. A ideia era controlar o orçamento e a relação entre gasto público e PIB. Na verdade, vimos uma drástica redução em investimentos sociais, como educação, saúde pública e outros programas sociais. Essa política de austeridade, junto a outros eventos do sistema político brasileiro, pavimentaram o caminho para a eleição de Jair Bolsonaro.

Movimentos como esse poderiam dar lugar ao avanço de partidos de extrema direita?
Sim, esse é outro exemplo de que a austeridade não é um erro. Muita gente na esquerda diz que é fruto de uma economia ruim, que é um erro. Infelizmente, não é um erro. O que você descreveu mostra o sucesso da austeridade. As pessoas foram tão desempoderadas, que perderam seu senso de união de classe. Perderam a noção da luta coletiva contra o inimigo, que é a minoria que se beneficia do sistema, e terminaram votando por essa minoria que se beneficia do sistema. Porque a austeridade nos individualiza, nos convence que todos nós podemos ser empresários se nos esforçarmos e que deveríamos sentir vergonha de ser pobres. O motivo por que as pessoas votam em alguém como Trump é exatamente o sucesso da austeridade. Não acho que podemos culpá-las por

votarem em Bolsonaro ou Trump. Deveríamos culpar a elite dominante, incluindo, infelizmente, o Partido Democrata [dos Estados Unidos] e todos os partidos supostamente progressistas que, de forma hipócrita, já vinham praticando a austeridade.

A austeridade atravessa fronteiras partidárias. Infelizmente, aqueles que supostamente representam o povo, incluindo os sindicatos, apoiaram a austeridade, criaram a sensação de falta de esperança e de que deveríamos fazer o possível para nos salvar como indivíduos, sem olhar para o fato de que somos, na verdade, produtores, produtores coletivos que deveriam lutar contra a exploração e contra aqueles que nos exploram. Então é só através da recriação do senso de coesão de classe e da conscientização de classe que podemos nos libertar da armadilha de pensar que regimes autoritários vão nos salvar. Eles não vão. Mas o mesmo vale para partidos democratas, como o de Biden, que estão desfinanciando todos os setores sociais. Por toda parte.

Edição: Rodrigo Durão Coelho

Uma terra para todos, por Thomas Piketty

0

A Terra é Redonda, 20/10/2023

Ao fechar os olhos para as violações do direito internacional e ao privilegiar os interesses financeiros a curto prazo, a União Europeia contribuiu para enfraquecer a esquerda israelense

As atrocidades cometidas durante a operação terrorista do Hamas e a resposta israelense em curso na Faixa de Gaza levantam a questão das soluções políticas para o conflito israelo-palestino e do papel que outros países podem desempenhar na tentativa de promover uma evolução construtiva.

Será que ainda podemos acreditar numa solução de dois Estados, tornada obsoleta, na opinião de muitos, pela extensão da colonização, por um lado, mas também, por outro lado, por um desejo de negar a própria existência de Israel e de eliminar seus cidadãos, que acaba de assumir sua forma mais bárbara com os assassinatos e as tomadas de reféns dos últimos dias?

Será que ainda podemos sonhar com um Estado binacional, ou não é o momento de imaginar uma forma original de estrutura confederativa que permita que dois Estados soberanos possam um dia viver em harmonia? Tal solução é cada vez mais evocada por movimentos de cidadãos que reúnem israelenses e palestinos, como a coalização Uma Terra para Todos: Dois Estados, Uma Pátria, que elaborou propostas inovadoras e detalhadas. Muitas vezes ignorados no estrangeiro, estes debates merecem ser seguidos de perto.

Os territórios palestinos reúnem cerca de 5,5 milhões de habitantes, dos quais 3,3 milhões na Cisjordânia e 2,2 milhões em Gaza. Israel tem uma população de pouco mais de 9 milhões de habitantes, incluindo cerca de 7 milhões de cidadãos judeus e 2 milhões de árabes israelenses.

No total, Israel e Palestina possuem uma população de mais de 14 milhões de habitantes, dos quais cerca da metade são judeus e metade muçulmanos, bem como uma pequena minoria de cristãos (cerca de 200.000).

Este é o ponto de partida para o movimento Uma Terra para Todos: as duas comunidades têm aproximadamente a mesma dimensão e cada uma delas tem boas razões históricas, familiares e afetivas para considerar a terra Israel-Palestina como sua, a terra de suas esperanças e sonhos, para além das fronteiras arbitrárias e intricadas legadas pelas cicatrizes militares do passado.
Solução política

Idealmente, gostaríamos de imaginar um Estado verdadeiramente binacional e universalista, que um dia reunisse estes 14 milhões de habitantes e concedesse a todos os mesmos direitos políticos, sociais e econômicos, independentemente de suas origens, crenças ou práticas religiosas. Mas, antes de chegarmos lá, será necessário percorrer um longo caminho para restabelecer a confiança, na esperança de que a estratégia abjeta dos terroristas não tenha aniquilado essa possibilidade.

A coalizão Uma Terra para Todos propõe inicialmente a coexistência de dois Estados: o atual Estado judaico e um Estado palestino que sucederia a Autoridade Palestina criada em 1994. Esta última, já reconhecida como Estado com estatuto de membro observador nas Nações Unidas desde 2012, exerceria finalmente uma soberania plena sobre a Cisjordânia e Gaza.

A novidade é que os dois Estados estariam ligados por uma estrutura federal que garantiria sobretudo a liberdade de instalação entre os dois Estados, semelhante às regras aplicadas na União Europeia. Por exemplo, os atuais colonos israelenses poderiam continuar instalando-se na Cisjordânia, desde que respeitassem as leis palestinas, o que implicaria o fim das expropriações sumárias. Do mesmo modo, os palestinos poderiam trabalhar e instalar-se livremente em Israel, desde que respeitassem as regras em vigor. Em ambos os casos, as pessoas que optassem por residir no outro Estado teriam o direito de votar nas eleições locais.

Os autores da proposta não escondem as dificuldades, mas mostram como elas podem ser superadas.

Em particular, afirmam inspirar-se explicitamente na União Europeia que, desde 1945, permitiu pôr fim, por meio do direito e da democracia, a um século de guerras e derramamento de sangue entre a França e a Alemanha. Referem-se também ao caso complexo da federação bósnia criada em 1995.

A coalizão Uma Terra para Todos insiste igualmente no papel fundamental do desenvolvimento socioeconômico e na redução das desigualdades territoriais. O salário médio é inferior a 500 euros em Gaza, em comparação com mais de 3.000 euros em Israel. A entidade federal que reunirá os dois Estados deverá estabelecer regras comuns em matéria de direito do trabalho, partilha da água e financiamento da infraestrutura pública, educativa e sanitária.

Tudo isso tem alguma chance de acontecer? Depois de, no passado, ter-se apoiado frequentemente no Hamas para dividir e desacreditar os palestinos, a direita israelense parece agora determinada a destruir a organização terrorista. Mas, depois disso, não se contentará em colocar novamente a tampa e fechar as torres de observação nos territórios palestinos. Terá que encontrar interlocutores e relançar um processo político.

É aqui que o resto do mundo tem um papel a desempenhar, em particular a Europa, que absorve quase 35% das exportações israelenses (contra 30% para os Estados Unidos). É tempo da União
Europeia utilizar sua arma comercial e deixar claro que oferecerá regras mais favoráveis a um governo que se oriente por uma solução política do que a um regime que se lance no apodrecimento.

Ao garantir à direita israelense as mesmas regras comerciais, faça ela o que fizer, a União Europeia encorajou de fato a colonização. Ao fechar os olhos para as violações do direito internacional e ao privilegiar os interesses financeiros a curto prazo, a União Europeia contribuiu para enfraquecer a esquerda israelense.

Mas existe uma esquerda vívida e inovadora em Israel e na Palestina, particularmente entre os jovens. Estes jovens viram-se muitas vezes sozinhos diante da indiferença dos governos, tanto do Norte como do Sul, que pactuaram com uma direita israelense cada vez mais nacionalista e cínica.

É mais do que tempo de apoiar o lado da paz e de penalizar o lado da guerra.

Thomas Piketty é diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor na Paris School of Economics. Autor, entre outros livros, de O capital no século XXI (Intrinseca).

Tradução: Fernando Lima das Neves. Publicado originalmente no jornal Le Monde.

Planos de saúde estão num beco sem saída e a única opção é a prevenção, por Drauzio Varella

0

Operadoras economizam no valor da consulta para esbanjar com imagens produzidas em exames desnecessários

Dráuzio Varella, Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

Folha de São Paulo – 18/10/2023

Mantida a atual organização, os planos de saúde se tornarão inviáveis. Os primeiros sinais já estão à vista: demora para autorizar procedimentos, substituição de hospitais e laboratórios por similares de qualidade inferior e outras estratégias para redução de custos.

Sou leitor assíduo das colunas de Hélio Schwartsman na Folha. No último sábado, com o título de “Círculo Mórbido”, ele resumiu com precisão a encruzilhada em que se encontram os planos de
saúde.

Em primeiro lugar, durante a pandemia os gastos das operadoras diminuíram graças à suspensão de cirurgias eletivas e de outros tratamentos. Agora, a demanda reprimida explodiu e a situação é de crise.

As fraudes também aumentaram, e os legisladores e reguladores ampliaram as coberturas sem considerar os custos. Assim, as mensalidades sobem mais do que a inflação.

Além disso, os jovens arriscam ficar sem planos, enquanto os mais velhos “fazem de tudo para mantê-los”, cenário em que a sinistralidade aumenta e encarece as mensalidades.

Hoje, cerca de 50,4 milhões de brasileiros são atendidos pela saúde suplementar, que responde por 60% do total de gastos com saúde no Brasil inteiro. Os gastos do SUS correspondem a apenas 40%, para cerca de 160 milhões de brasileiros que só contam com ele.

Nos anos 1970 e 1980, as operadoras dos planos tiveram alta lucratividade. Nas listas dos brasileiros mais ricos, havia sempre um empresário do setor. Numa época de inflação galopante, em que as mensalidades eram pagas em data certa enquanto hospitais, laboratórios e demais prestadores de serviços tinham o pagamento retido por 60 a 90 dias, aplicar esse dinheiro no mercado financeiro foi uma fria.

As operadoras não se preocupavam com os custos dos serviços contratados, mas com os prazos de
pagamento. Na competição pela clientela, anunciavam na televisão o acesso aos equipamentos modernos, às tecnologias mais avançadas e ao transporte de doentes por helicóptero.

Tais extravagâncias publicitárias deram origem à cultura de que exames laboratoriais, ultrassonografias, tomografias e ressonâncias eram essenciais não só para recuperar como para manter a saúde.

Correr para o pronto-socorro ao primeiro pico febril da criança virou rotina. Perdi a conta de quantas vezes tenho ouvido essa frase: “pede todos os exames, doutor, eu tenho plano de saúde”.

Nesse contexto, os médicos tiveram papel importante. Preencher pedidos de exames com cruzinhas sem pensar nos custos é prática usual. Pouco antes da pandemia, uma paciente me trouxe 83 exames laboratoriais pedidos pela ginecologista numa consulta de rotina. O único número alterado era a dosagem de antimônio.

Solicitar exames de imagem para abreviar a consulta é uma estratégia para compensar os baixos salários que a maioria dos planos paga aos médicos. Eles economizam no valor da consulta para esbanjar com as imagens produzidas.

A realidade é que esses desmandos criaram uma situação que vai levar à insolvência. O número de operadoras tem caído desde 2016. Desde 2010, as despesas anuais com o atendimento pagas por elas aumentaram 18%, enquanto as receitas mal chegaram a 14%. Ao contrário de outras áreas da economia, na medicina a incorporação de tecnologia só aumenta drasticamente o preço do produto final.

Para agravar o quadro, há as fraudes e os desperdícios. Uma análise das contas hospitalares realizada pela Funeseg revelou que 18% correspondem a fraudes e 40% a exames desnecessários. Que atividade comercial consegue sobreviver com perdas da altura de quase 60% da receita?

Com o envelhecimento da população, as doenças crônicas se tornaram a principal demanda. Cerca de 60% dos adultos sofrem de uma delas. Quando o SUS foi criado, éramos mais jovens. Hoje, quando perdemos um familiar com 70 anos, dizemos que morreu cedo. A faixa da população que mais cresce, inclusive, é a que está acima dos 60 anos.

Os brasileiros envelhecem mal. Metade das mulheres e homens chega aos 60 anos com hipertensão arterial, o número de pessoas com diabetes anda perto dos 20 milhões e mais da metade dos adultos tem excesso de peso ou obesidade.

A saúde suplementar está neste momento em um beco sem saída. A única alternativa é a prevenção.

É preciso adotar programas semelhantes ao Estratégia Saúde da Família, do SUS, considerado um dos mais importantes do mundo, com equipes que contam com agentes de saúde para bater de porta em porta.

Inquietações globais

0

A economia internacional vem vivendo momentos de grandes inquietações, de um lado estamos saindo de uma pandemia que gerou graves constrangimentos sociais, econômicos e políticos, com mais de seis milhões de mortes e graves desequilíbrios emocionais e sentimentais, que impactaram todas as regiões do globo, deixando rastros de destruições generalizadas. Vivemos períodos de alterações geopolíticas, passando de uma sociedade unipolar e atrelada a uma nação dominante, os Estados Unidos, para uma nova configuração geopolítica, com o surgimento de um mundo multipolar, com novos focos de poder e grandes repercussões internacionais.

Depois de milhares de mortes atreladas a pandemia, percebemos momentos de inquietações econômicas e produtivas, a introdução de novos modelos de negócios, o surgimento da inteligência artificial, novas tecnologias e o crescimento dos negócios digitais, neste cenário, percebemos o incremento das incertezas crescentes da economia global, da elevação dos preços, do aumento nas taxas de juros e o crescimento do desemprego estrutural, cujos impactos variados e imprecisos são preocupantes, como será a sociedade mundial nos próximos anos?

Neste cenário, percebemos que os preços estão crescendo em algumas economias, levando seus governos a elevarem os custos do dinheiro, levando as taxas de juros a incrementos crescentes, cujos impactos sobre as respectivas economias são elevados, diminuindo as atividades produtivas e degradando empregos, desta forma, os movimentos internacionais são preocupantes e geram instabilidades que podem gerar retração dos investidores, diminuindo seus investimentos produtivos e reduzindo a geração de empregos.

Recentemente, o Banco Central dos Estados Unidos elevou sua taxa de juros como forma de reduzir
as pressões inflacionárias, com impactos generalizados sobre a economia internacional, gerando fuga de dólares, desvalorizando moedas locais e pressões inflacionários que, posteriormente, levando as Autoridades Monetárias a elevarem seus juros internos, prejudicando a recuperação da economia, postergando a geração de emprego e diminuindo a renda agregada, com graves constrangimentos para suas economias e seus setores produtivos.

A elevação das taxas de juros dos Estados Unidos nos mostra, claramente, como o sistema econômico internacional tem grande dependência da moeda norte-americana, dando a este governo um poder muito elevado sobre as outras economias mundiais e a condução da política econômica de outras nações, demonstrando a urgência da reconstrução do sistema econômico e financeiro internacional, diminuindo o poder da economia hegemônica em detrimento de um modelo mais abrangente e democrático, elevando a autonomia das economias nacionais, retomando a capacidade de gestão interna e retomando a soberania de suas economias.

Desde a pandemia, a economia internacional passou a sentir na pele os efeitos deletérios do incremento das taxas de inflação, o crescimento dos preços que fragilizam as populações mais carentes e geram novos desequilíbrios econômicos e financeiros para todos os setores da população, motivando instabilidades políticas crescentes, auxiliando na ascensão de governos autoritários, populistas e antidemocráticos. O aumento inflacionário obriga os governos a elevarem as taxas de juros, reduzindo os investimentos produtivos, aumentando os ganhos de setores parasitários da economia e contribuindo para a piora dos indicadores sociais e agravando as polarizações políticas que crescem em todas as regiões da sociedade global.

Vivemos um momento estratégico da sociedade mundial, com alterações climáticas e desequilíbrios ambientais, crescimento de confrontos militares, com guerras econômicas e comerciais, com corrupção generalizada e com a degradação do trabalho, prejudicando quase todos os indivíduos da sociedade globalizada, mas não podemos perder de vista que, dentre os grandes desafios contemporâneos, fazem-se necessários combatermos os desequilíbrios sociais, a hipocrisia, a soberba e a ambição humana que crassa no coração dos defensores do individualismo, do imediatismo e do lucro exasperado.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Periferias criaram governo de baixo para cima com facções e igrejas, diz Bruno Paes Manso

0

Para autor, onda pentecostal difunde imagem de Jesus adepto da extrema direita e leva batalha espiritual à política

Eduardo Sombini, Geógrafo e mestre pela Unicamp, é repórter da Ilustríssima

Folha de São Paulo, 16/09/2023

Um homicídio em 1993 deu origem a conflitos que resultaram em 156 mortes em cinco anos, de acordo com o Ministério Público de São Paulo.

Esse dado, incluído em “A Fé e o Fuzil” (Todavia), de Bruno Paes Manso, sintetiza o cenário de violência nas periferias de São Paulo nas décadas de 1980 e 1990: um assassinato, muitas vezes por motivos banais, levava a ciclos de vingança intermináveis, produzindo um efeito bola de neve que fazia as estatísticas crescerem a cada ano e os jovens a se preocupar, antes de mais nada, com a própria sobrevivência.

A situação, que parecia não ter saída, foi pouco a pouco se distensionando. Não de cima para baixo, a partir de uma ação das polícias ou da Justiça, mas principalmente de baixo para cima, argumenta o jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP em seu livro recém-lançado.

Convidado deste episódio, Manso chama a atenção para o novo sistema de valores difundido por igrejas pentecostais e por facções criminosas e afirma que a reprogramação de mentes por meio da conversão, promovida tanto por pastores quanto no PCC, permitiu que o Brasil popular das periferias inventasse mecanismos para se governar.

Na conversa, Manso diz que a onda pentecostal recorre à imagem do Deus vingativo do Antigo Testamento e impulsiona discursos de batalha espiritual e perseguição a infiéis, em que a pretensa guerra do bem contra o mal logo extrapola os cultos e passa a influenciar os rumos da política nacional.

“Foram sendo construídas igrejas que transformaram o vocabulário e passaram a lidar com os valores de uma sociedade em que, se você tem dinheiro, pode testemunhar a diferença entre vida e morte. Pode comer, ter casa, ter educação e condição de trabalhar. Se você não tem dinheiro, está perdido. Essa visão realista da situação acabou sendo articulada, e a solução foi promovida pelas instituições criadas no seio da miséria, de pessoas que viviam a miséria e percebiam o desafio que era participar desse mercado cada vez mais relevante. De um lado, as igrejas promoveram o autocontrole das pessoas, dos seus desejos e dos seus comportamentos. Do lado do crime, houve uma transformação da mentalidade do criminoso em São Paulo, via PCC, que tem muitos aspectos parecidos com a igreja”, de Bruno Paes Manso, jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP

Para o autor, um Jesus másculo e simpatizante da extrema direita tomou o lugar do Jesus fraterno e pacifista. Citando o teólogo Fernando Altemeyer Júnior, Manso diz que o pentecostalismo se tornou uma religião do capital, em que o sucesso financeiro individual, considerado uma benção divina, se torna a razão de existir.

Os esfarrapados viraram traders! por André Roncaglia

0

Livro de César Calejon mostra como pessoas de baixa renda sofrem influência dos mais ricos

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela
FEA-USP

Folha de São Paulo, 13/10/2023

A pandemia transformou muitas dimensões da vida social e agravou desigualdades mundo afora. A fome acompanhou o aumento no valor da riqueza acumulada pelo crescente número de bilionários.

A falta de saneamento adequado para proteger as famílias pobres da disseminação da Covid-19 revelou deficiências profundas nas infraestruturas física e social. O mundo do trabalho, o mercado imobiliário e as relações sociais foram irreversivelmente afetados.

No Brasil, em que o 1% mais rico detém metade da riqueza do país, a pandemia se chocou com a agenda neoliberal, turbinada sob Temer e Bolsonaro, responsável pela estagnação econômica e a precarização das condições de trabalho.

A interrupção do ciclo de desenvolvimento (2006-2014) e o desmonte das políticas públicas bloqueou a ascensão da classe mais pobre, tornando-a presa fácil do populismo de extrema-direita que Bolsonaro incarnou. Emergiu deste processo uma figura sociológica desafiadora: o pobre de direita.

Por ser um objeto de estudo que transcende a economia, é bem-vindo o contundente livro “Esfarrapados”, de César Calejon. O autor decifra a gramática da desigualdade brasileira explorando o conceito de “elitismo histórico-cultural”: um regime em que categorias de distinção —material, racial, de gênero etc.— estruturam hierarquias sociais rígidas. Neste arranjo, pessoas de baixa renda adotam como seus os interesses e aspirações dos mais ricos. Identificados com a elite, os esfarrapados introjetam a retórica da meritocracia e do Estado mínimo.

Paralelamente a este processo, os anos 2010 viram a digitalização de serviços bancários e de investimento acirrar a concorrência entre bancos, fintechs e corretoras. A queda no custo das operações incluiu milhões de brasileiros no mercado financeiro.

Segundo relatório de junho de 2023 da B3 (antiga Bovespa), em 2017, eram 500 mil investidores pessoa física; em 2023, há 5,3 milhões de CPFs. O crescimento de CPFs na B3 entre 2020 e 2023 foi mais rápido nas regiões Norte (188%) e Nordeste (135%). No recorte etário, os jovens (de 0 a 24) representavam 10% em 2018; hoje, são 22% dos CPFs da B3.

Nas categorias de renda variável, o saldo mediano caiu de R$ 20 mil por investidor (em 2017) para R$ 1,1 mil (em 2023). O fenômeno se repete em Fundos Imobiliários (de R$ 29 mil para R$ 3 mil), em ETFs (de R$ 18 mil para R$ 1,6 mil) e no Tesouro Direto (de R$ 15 mil para R$ 3 mil).

Dos 86 mil novos CPFs na B3 em junho de 2023 cerca de metade (55%) fez aplicações até R$ 200; 27% deles, até R$ 40.

A análise dos dados sugere, portanto, que os “esfarrapados” foram para a bolsa de valores. O mercado de assessoria financeira cresceu e se descentralizou, expondo os pobres digitalizados à proliferação de gurus das finanças —que rotulei de econocoaches— vendendo cursos sobre a “viver de renda” por meio de estratégias ousadas na Bolsa de Valores e em criptoativos.

E aqui mora um risco enorme: tratar a bolsa como um jogo de loteria. Neste sentido, o livro “Trader ou investidor”, de Bruno Giovannetti e Fernando Chague, é um antídoto à sedução dos econocoaches.

Os autores mostram de forma leve e cativante como orientar as finanças para a aposentadoria (investidor), em vez da adrenalina com enriquecimento fácil que motiva o trader —que compra e vende ações rapidamente buscando retornos rápidos. Renomados pesquisadores em finanças, eles revelam como os agentes de mercado lucram com a oferta de produtos financeiros que mascaram o risco e exageram os retornos (como os COEs) —e mostram os vieses comportamentais (comprar ações de empresas em crise, por exemplo) que geram perdas sistemáticas aos traders.

O acesso à bolsa de valores é uma boa notícia, desde que não se torne uma loteria viciada contra os pobres.

Naturalizamos a convivência com a violência, por Maria Hermínia Tavares

0

No ano passado, 47.398 pessoas tiveram morte violenta intencional

Maria Hermínia Tavares, Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

Folha de São Paulo, 12/10/2023

Diz tudo da naturalidade com que o país encara a barbárie nossa de cada dia o fato de convivermos, ano após ano, com níveis elevados de violência e descalabro na segurança pública. O assassinato dos médicos de São Paulo, no Rio, a chacina de sete membros de uma família de ciganos, na Bahia, as mais de duas dezenas de mortos durante a Operação Escudo, no Guarujá, são apenas os exemplos mais recentes dessa hecatombe.

No ano passado, informa o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 47.398 pessoas —o equivalente aproximado da população da estância paulista de Campos de Jordão— tiveram morte violenta intencional, uma taxa de pouco mais de 23 mortos por 100 mil habitantes. As forças policiais, civis e militares, foram responsáveis por 13,6% do total, em todo o país. Por suas taxas muito superiores à média nacional, Amapá, Goiás, Rio de Janeiro e Bahia destacaram-se nessa lúgubre estatística.

De Fernando Henrique a Lula, a segurança pública foi o grande fracasso dos governos progressistas, os mesmos que lograram mudanças importantes em muitas frentes: do controle da inflação à montagem de um moderno arcabouço institucional para a gestão econômica; da reforma do sistema de proteção social às políticas para reduzir a pobreza —sem esquecer da área ambiental.

Por outro lado, no período em que PSDB e PT comandaram o governo, o Brasil deixou de ser rota do tráfico para se transformar em grande mercado consumidor de drogas; as facções criminosas se multiplicaram e passaram a controlar territórios urbanos pobres; o banditismo organizado se impôs nos presídios abarrotados e se embrenhou Amazônia adentro; setores das forças da ordem foram corrompidos pelos criminosos; a circulação ilegal de armas só fez crescer, assim com as bancadas da bala, com parlamentares egressos das corporações policiais, eleitos com promessas fáceis de enfrentar o crime com desmedida violência.

Tão grave quanto isso foi a popularização do discurso público que justifica a brutalidade policial em nome do combate à insuportável violência dos criminosos. Hegemônico e eleitoralmente eficaz, já não distingue políticos opostos em tudo mais, como os governadores de São Paulo e da Bahia.

O Executivo federal acaba de atualizar o PNPS (Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social) 2021-2030. Com excesso de prioridades e escassez de recursos, o projeto é uma carta de (boas) intenções que pode, ou não, se transformar em políticas efetivas. Mas ainda está por ser travada —quanto antes, melhor— a dura batalha de ideias e valores que permita ancorar uma política de lei e ordem no respeito à dignidade humana.

Hamas, Israel e os não humanos, por Thiago Amparo

0

Devemos ir além do espanto falsamente humanista, muitas vezes insincero

Thiago Amparo, Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Folha de São Paulo, 12/10/2023

“É horrível, desumano e inaceitável. Os palestinos são humanos e têm que ser tratados como tal.

Não importa a razão. Estão bombardeando civis. Isso não seria aceitável em nenhum outro lugar —
apenas na Palestina”, afirmou de forma certeira à Folha Mariana Said.

Em tempos obtusos quando a autodeclarada complexidade ofusca o horror, é cada vez mais difícil ter a clareza moral contra as atrocidades da guerra. Solidarizar-se com vítimas civis, de ambos os lados, não é uma posição inocente, é a mais digna; fazê-lo nos permite criticar tanto o regime de apartheid imposto por Israel aos palestinos quanto o regime de terror imposto pelo Hamas.

Clareza nos permite, inclusive, separar o todo da parte. Criticar o Estado de Israel é possível sem cair no antissemitismo; bem como criticar a estratégia militar do Hamas é possível sem cair no desprezo a vidas palestinas. Salem Nasser, meu colega na FGV, está correto ao perguntar por que costumamos praticar o ultraje seletivo. Devemos, igualmente, ir além do espanto falsamente humanista, muitas vezes insincero: não esqueçamos os fundamentos racistas, coloniais, capitalistas e orientalistas que impulsionam o divisionismo, inclusive no crescente abandono da causa palestina por países árabes.

Desumanização como arma política está no centro da guerra e não começou no último sábado (7): o braço militar do Hamas desumaniza civis israelenses atacando-os de maneira indiscriminada, e o premiê de extrema direita Netanyahu, “ao estabelecer um governo de anexação e desapropriação”, como definiu o jornal israelense Haaretz, priva palestinos de qualquer possibilidade de sair da prisão a céu aberto a que foram jogados, dá munição para a expansão territorial ilegal de Israel e fortalece ao invés de minar os mais radicais.

Evidências de crimes de guerra abundam, seja no rapto de civis pelo Hamas, seja na fome como arma de guerra por Israel. Se algum dia sairemos deste horror, talvez o caminho comece por encontrar uma linguagem que nos permita descrevê-lo.