Irã e Hamas tentam frear surgimento do ‘novo Oriente Médio’, por Jaime Spitzcovsky,

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Avanço das relações de Israel com países árabes joga a favor da resolução da questão palestina

Jaime Spitzcovsky, Jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e Pequim.

Folha de São Paulo, 09/10/2023

A ofensiva terrorista do Hamas, celebrada pelo Irã, não buscou apenas promover assassinatos e produzir imagens abjetas, pois mirou, no plano geopolítico, as mudanças tectônicas em curso no Oriente Médio, responsáveis por cimentar laços há pouco impensáveis e por colocar em xeque estratégias do autointitulado “eixo da resistência”.

Dirigentes do Oriente Médio, Arábia Saudita à frente, passaram a construir uma nova fórmula de permanência no poder, desafiados por ventos turbulentos do século 21. Perceberam a crescente perda de importância da economia petrolífera e, com a queda de ditadores após os protestos da Primavera Árabe, uma década atrás, diagnosticaram a importância de gerar empregos para uma população jovem e castigada por escassez de oportunidades econômicas.

Diversificar modelo econômico despontou como imperativo para a preservação desses regimes
ditatoriais. O surgimento do mundo multipolar, com ascensão de mais centros de poder, também levou à revisão de políticas externas, por meio da aproximação com China e Índia.

O nascente cenário golpeou a “fórmula do tripé”, prevalente havia décadas em paragens médio-orientais: petróleo na economia, ditadura na política e colocar o conflito israel-palestina como tema central do mundo árabe. O ditador egípcio Gamal Abdel Nasser, por exemplo, mobilizava centenas de milhares de pessoas nas ruas do Cairo para bradar pela destruição do Estado judeu, e não para debater mazelas socioeconômicas de seu regime.

Da “fórmula do tripé”, dois pilares agora revistos, para preservar o poder de monarcas. Primeiro, um modelo baseado em serviços, como tecnologia, finanças e turismo passa a dividir espaço com a economia petrolífera.

E, segundo ponto, o pragmatismo econômico leva a rever a abordagem do conflito israelo-palestino. A narrativa diversionista de “Israel como a maior catástrofe para o mundo árabe” dá lugar a uma perspectiva de cooperação com o país cujo direito à existência se questiona pelo menos desde a Partilha da Palestina pela ONU, em 1947.

O século 21 golpeou a “fórmula do tripé”, e a necessidade de mudanças remodelou as economias dos Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Qatar. Recentemente, chegou a vez de a líder regional, Arábia Saudita, mais conservadora e mais cautelosa, seguir o caminho dos vizinhos.

A partir de 2020, sob a lógica do “novo Oriente Médio”, antigos adversários, como Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão, assinaram acordos históricos com Israel.

Existe também na aproximação o componente de rivalidades regionais. Países sunitas, como Arábia Saudita e Egito, já ensejavam cooperações com Israel devido a ações do Irã, de maioria xiita, empenhado em ampliar influência no mundo muçulmano.

Dinâmica regional em mutação, israelenses passaram a viajar a Dubai. Diálogo intergovernamental israelo-marroquino se intensificou. Cresceram as expectativas de um acordo de paz entre Arábia Saudita e Israel.

Empenhada na arquitetura de um Oriente Médio menos turbulento e mais atrativo a investimentos, a Arábia Saudita se aproximou também do rival Irã, por meio da retomada de laços diplomáticos em março, numa cerimônia realizada, sinal dos novos tempos, em Pequim.

Teerã, no entanto, demarcou seu limite ao embarque no “novo Oriente Médio”, com apoio aos ataques do Hamas. Desafiado pelos maiores protestos pró-democracia desde sua chegada ao poder, em 1979, a ditadura iraniana se esforça para manter acesa a chama do “discurso revolucionário” de rejeição a Israel e aos EUA.

O Irã e seus aliados do “eixo da resistência”, como o Hamas e o libanês Hezbola, buscam sabotar um Oriente Médio redesenhado pelo pragmatismo econômico e adequação ao mundo multipolar. Teerã, no entanto, vai fracassar na estratégia, pela impossibilidade de parar o relógio da história.

O avanço das relações de Israel com países árabes joga a favor da resolução da questão palestina, com dois Estados para dois povos, obtidos por meio de diálogo. Não é essa a proposta da ditadura iraniana e de seus aliados.

Uberização no mundo do trabalho impõe desafios à esquerda, por Angela Pinho

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Características como gamificação dos apps e dispersão dos trabalhadores favorecem ação individual

ANGELA PINHO – FOLHA DE SÃO PAULO – 09/10/2023

A disrupção no mundo do trabalho causada pela chamada uberização da economia aumenta o desafio da esquerda de ganhar adeptos e barrar o avanço da direita.

Tradicionalmente motor de partidos como o PT, a mobilização coletiva de trabalhadores esbarra nas características inerentes ao trabalho por plataformas —disperso, mediado por algoritmos e conjugado às redes sociais, terreno em que a direita leva vantagem.

A mudança também enfraquece ainda mais os sindicatos, base de legendas de esquerda tradicionais, e coloca em xeque, para parte dos trabalhadores, o apoio à distribuição de benefícios sociais.

O fenômeno tem sido alvo de pesquisas acadêmicas recentes que mapeiam as implicações políticas do tema.

Uma delas é coordenada pela antropóloga brasileira Rosana Pinheiro-Machado diretora do laboratório de economia digital e extremismo político da University College Dublin, na Irlanda.

Ela teve no ano passado financiamento aprovado pelo Conselho Europeu de Pesquisa para analisar a ligação entre autoritarismo na política e precaridade no trabalho no Brasil, na Índia e nas Filipinas.

A hipótese é que, nesses países, características inerentes às plataformas, como o isolamento e a competição, favoreçam o individualismo e a identificação com a direita.

A fase piloto da pesquisa já aponta nessa direção, diz a professora. Seu grupo analisa o perfil de pessoas que começaram a empreender online no Brasil. Segundo ela, a tendência é que, à medida que passam a seguir influenciadores, essas pessoas acabam por cair em redes bolsonaristas.

Outros trabalhos já demonstraram que os algoritmos das redes sociais, onde esses empreendedores passam horas do dia, impulsionam publicações de extrema direita.

As implicações políticas da chamada uberização da economia são um tema de pesquisa em outros países também.

Dois fatores que dificultam a identificação como classe para a mobilização coletiva de trabalhadores de aplicativos são elencados pelos pesquisadores Giedo Jansen, da Universidade de Amsterdam, na Holanda, e Paul Jonker-Hoffrén, da Universidade de Tampere, na Finlândia, no livro “Platform Economy Puzzles” (quebra-cabeças da economia de plataforma, em português), de 2021.

O primeiro é a competição induzida pela lógica de jogo, ou gamificação, de parte das plataformas. Seria a disputa pelas estrelinhas dadas pelos passageiros ou o privilégio a quem aceita mais corridas, por exemplo.

O segundo seria a dispersão espacial dos trabalhadores, o que dificultaria um laço de solidariedade e o apoio a políticas coletivistas de esquerda.

Eles apontam ainda a dificuldade de partidos social-democratas, identificados com a esquerda em boa parte da Europa, para lidarem com esses trabalhadores precarizados sem abandonarem sua base de trabalhadores formais que almejam a proteção do emprego e dos direitos trabalhistas já existentes.

A questão está posta no Brasil, onde o registro formal não é uma demanda consensual entre os trabalhadores dos aplicativos. “Não é que eles não querem a CLT, eles não querem empregos ruins”, diz a antropóloga.

Integrante do movimento Entregadores Unidos pela Base, Renato Assad, 31, vai na mesma linha. Os entregadores que defendem autonomia, diz, não querem é ganhar um salário mínimo baixo para ficar oito horas à disposição do patrão.

Se o mínimo fosse mais alto, não haveria esse dilema, diz. Sem isso, “o trabalhador prefere se autoexplorar para ganhar mais”.

Formado pela USP em geografia, ele alterna as entregas em motocicleta com aulas na rede particular. Há quatro anos rodando pela cidade, ele afirma que o único político que já se aproximou da categoria foi Guilherme Boulos (PSOL), durante a campanha à prefeitura em 2020.

Mas se diz decepcionado com a decisão do psolista de contratar como marqueteiro o publicitário de agência que trabalhou para desmobilizar paralisações dos trabalhadores de aplicativos durante a pandemia da Covid-19, segundo reportagem da Agência Pública.

A plataformização do trabalho também é foco do PT. A Fundação Perseu Abramo, ligada ao partido, conduz pesquisa quantitativa e qualitativa sobre o trabalho em aplicativos e o impacto na cultura política.

REGULAÇÃO

Compromisso de campanha do presidente Lula (PT), a regulamentação do segmento é objeto de um grupo no Ministério do Trabalho e Emprego.

Uma alternativa à regulamentação é um acordo entre empresas e a categoria, mediado pela pasta, em torno de pontos como remuneração mínima, jornada de trabalho e proteção em caso de doença.

É muito menos do que seria necessário, diz Nicolas Souza Santos, 35, integrante da Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativo, que reúne entidades representativas da categoria pelo país. Ele defende a inclusão de outros pontos na regulação, como a transparência dos algoritmos e carga horária.

Filiado ao PDT, ele diz lamentar que seu partido tenha abandonado a discussão sobre o vínculo trabalhista da categoria. “A gente não é contra os autônomos, mas as plataformas são. Elas cronometram o tempo que a gente tem para chegar, dizem quem é o cliente e qual é o preço que podemos cobrar.”

Ele reconhece, porém, que a demanda por vínculo causa divisões na categoria, o que atribui à desinformação —já que seria possível, por exemplo, uma vinculação como horistas.

Mobilizar os colegas, aliás, é um desafio diário, segundo Nicolas. Dispersos pelas cidades, eles se comunicam muitas vezes por grupos de WhatsApp e Telegram, nos quais a regra número 1 é não falar de política para não gerar controvérsia.

Sob sua perspectiva, fazer parte dessa chamada nova economia não é uma vantagem para quem precisa da mobilização coletiva. “Não somos os metalúrgicos”, diz. “Nascemos praticamente anteontem.”

Feirão tributário, por Marcos Mendes

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Distorções tributárias não criam empregos, nem ajudam os pobres

Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper, é organizador do livro ‘Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil’

Folha de São Paulo, 07/10/2023

No dia 19 de setembro participei de audiência pública do Senado sobre a Reforma Tributária. Onze setores econômicos ou profissões estavam representados. As apresentações pareciam um feirão tributário: todos tentando ampliar os já largos privilégios criados na Câmara. As apresentações começavam com afirmações do tipo: “a reforma é muito boa. Mas veja bem, no caso do meu setor…”.

O representante da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) mostrou-se inconformado com o fato de que os advogados terão que pagar impostos como qualquer um. Afinal, “sempre houve um cuidado do legislador no sentido de oferecer uma tributação reduzida desde 1968. (…) Então esses serviços têm que ter um olhar diferenciado, não deveriam se submeter a uma tributação, como vários outros”. Por que mesmo? Não estamos fazendo uma reforma para que a tributação seja mais igualitária e justa?

O representante do setor de educação privada, não satisfeito por já ter conseguido uma alíquota 60% mais baixa, pleiteou alíquota zero. Aplicou o princípio básico das relações institucionais, segundo o qual o setor dele é tão importante que, se lhe for concedido um privilégio, quem ganha é a sociedade.

Assim, argumentou que tributar a educação privada vai aumentar o custo das mensalidades e empurrar alunos para a escola pública, além de fechar escolas e eliminar empregos, resultando em menor arrecadação tributária e mais gasto público: uma perda fiscal de R$ 24 bilhões. A alíquota zero para o setor produziria o milagre de evitar essa perda, gerando recursos suficientes para financiar o Programa Escola em Tempo Integral!

O representante do setor de serviços trouxe números igualmente mágicos: uma desoneração total da folha de pagamentos, financiada pela criação de uma CPMF, faria o PIB (Produto Interno Bruto) bombar. Propôs ignorar o princípio central da reforma, que é a introdução de um imposto sobre valor agregado, que funciona em mais de 170 países, para falar de CPMF, que já se mostrou um péssimo tributo.

Vários defenderam que se mantenha a prática atual, em que as empresas do Simples pagam imposto com alíquota menor, mas geram crédito como se pagassem o imposto com a alíquota padrão. Isso porque o Simples é um regime cumulativo, que não permite abater todos os impostos embutidos nos custos. Daí a necessidade de um subsídio tributário para equalizar. Mas a PEC aprovada na Câmara já prevê que empresas do Simples podem optar por recolher o IBS e a CBS pelo regime normal, eliminando o risco de serem oneradas por incidência cumulativa.

O representante dos supermercados, já beneficiado pela questionável desoneração da cesta básica, quer estender a alíquota diferenciada para produtos de higiene, para os sistemas de gestão do comércio e para toda a cadeia produtiva de bens da cesta básica.

Além disso, propõe abater do imposto a pagar as despesas com folha de pagamento. Isso é um contrassenso, pois o cerne da reforma é tributar valor agregado. Salários pagos são parte relevante do valor agregado.

Foi recorrente o argumento de que “meu setor gera empregos”. Chegou-se a propor a “emenda do emprego”: alíquota menor para empresas em que é grande o custo da folha de pagamento. Isso desestimula a inovação, subsidia setores menos produtivos e derruba o crescimento. Será a “emenda do desemprego”.

Para contrapor estes e outros argumentos tortuosos, recomendo a leitura do relatório de Grupo de Trabalho do TCU sobre a Reforma Tributária. Ele sintetiza a literatura teórica e empírica, com evidências de que isenções e alíquotas reduzidas aumentam a complexidade, o custo de cobrança e as fraudes. A perda de arrecadação pode superar 20%.

A ideia de que alíquotas mais baixas levarão a preços menores para os consumidores e maior emprego esbarram em estudos que mostram muitos casos em que o maior ganho se concentra no lucro das empresas, com pequeno impacto no emprego e nos preços finais.

Alíquota favorecida também não é bom instrumento de redução da pobreza, pois beneficia igualmente os consumidores ricos.

Por isso, política social e de emprego devem ser feitas do lado do gasto, com alocações transparentes de recursos no orçamento. Ou na tributação da renda. Não devem ser embutidas na tributação do consumo, dando roupagem de preocupação social ao lobby setorial.

Ilusões econômicas

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Vivemos momentos de grandes discussões patrocinadas por indivíduos especialistas em tudo, as redes sociais estão inaugurando conhecimentos desconhecidos, anteriormente as discussões coletivas estavam relacionadas com a escalação da seleção brasileira, agora as coisas estão cada vez mais sofisticadas, encontramos discussões sobre as questões jurídicas, as questões políticas , questões relacionadas a doenças e tratamentos médicos e as questões econômicas, todos somos especialistas em tudo, emitindo pareceres, relatórios e somos catedráticos de todas as coisas.

Destas discussões cotidianas, encontramos discussões sobre as receitas econômicas para resolvermos problemas que convivemos desde os tempos imemoráveis, desequilíbrios estruturais que estão nas raízes de nosso nascimento como país, emitimos opiniões, cancelamos aqueles que pensam diferentes e acreditamos que somos democráticos e prezamos pela liberdade de expressão, nos esquecemos que numa sociedade marcada por desequilíbrios variados, marcados por pobrezas generalizadas, riquezas centradas em espoliações e explorações cotidianas, falar sobre democracia é algo imprudente, precisamos compreender as nossas raízes, nossos atrasos e, principalmente aquilo que queremos ser num futuro imediato, o tempo urge e as decisões estratégicas estão sendo pouca discutidas, infelizmente.

Neste cenário, vivenciamos um momento de grandes transformações no meio ambiente, o clima está em polvorosa, estamos numa transformação estrutural climática que tende afetar todas as regiões do planeta, podendo levar regiões prósperas e dotadas de grandes riquezas materiais a um cenário de devastações constantes, desertos, enchentes, terremotos e devastações ambientais, todas essas consequências estão atreladas a escolhas anteriores, políticas patrocinadas por toda a comunidade internacional visando o crescimento econômico e o desenvolvimento das nações, com impactos sobre todos os indivíduos e para a comunidade. Se esse foi o intuito dos responsáveis por essas políticas anteriores, os resultados na sociedade contemporânea são outros, vivemos uma sociedade marcada pelo individualismo, o imediatismo e a busca crescente dos prazeres materiais como se estes fossem os grandes objetivos do homem racional, definidos pelos chamados economistas ortodoxos.

Vivemos momentos de ilusões econômicas, acreditamos na meritocracia como forma de alavancar o crescimento econômico e produtivo e nos esquecemos de que vivemos numa sociedade centrada na desigualdade crescente dos indivíduos, onde uma pequena casta de privilegiados e bem-nascidos conseguem ascender no panteão no conforto, nos luxos e das influências políticas e econômicas.

Vivemos numa sociedade centrada nas ilusões econômicas, acreditando que a austeridade deve levar o equilíbrio das contas públicas e a reconstruir das finanças governamentais, reduzindo os repasses públicos para os mais humildes e deixando de lado os vultosos subsídios dos grandes donos do poder político e econômico, se esquecendo que os grandes ganhadores destas políticas são os privilegiados dos banquetes da miséria da classe trabalhadora, que se rastejam para garantir recursos mínimos e se acreditam empreendedores e inovadores…

Vivemos em momentos de grandes ilusões econômicas acreditando no discurso empreendedor dos donos do poder, esperando uma ideia revolucionária e inovadora como forma de se transformar em patrão de si mesmo, se esquecendo que esse modelo econômico foi cunhado para reproduzir privilégios, garantindo taxas de juros estratosféricas, taxação inexistente e subsídios elevados para os grandes donos do poder e para seus prepostos ganhadores desta sociedade marcada por exclusão social e subdesenvolvimento, perpetuando uma exploração estrutural.

Vivemos numa sociedade que nos acostumamos todos os dias com a degradação, com as expropriações constantes, da educação degradada, das violências cotidianas e das discussões equivocadas e nos acreditamos como seres cordiais, solidários, caridosos e empreendedores, mas na verdade, somos uma sociedade sem alma, estamos nos desumanizando cotidianamente, vivendo sem horizontes claros e quando nos olharmos no espelho, nós nos assustaremos com a nossa imagem refletida.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.

Paes Manso: A fé na ponta do fuzil

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Da transformação espiritual à mão invisível do mercado, novo livro investiga a reorganização do crime e da política em torno da “teologia da prosperidade”. Obra traz relatos de ex-matadores e debate o uso de símbolos religiosos na guerra contra o Estado

Outras Mídias – 03/10/2023

Silvana Salles, Publicado no Jornal da USP –

Marcelinho vendia crack antes de virar evangélico. Sobreviveu a um atentado, largou o crime e as drogas e mudou completamente seu comportamento. Pereira, ex-policial militar condenado por executar suspeitos, teve seu momento de conversão na prisão. Era véspera de Natal, ele se sentia solitário, sem esperanças de progredir de pena para o regime semiaberto. A pastora Viviane passou a questionar suas práticas de trabalho missionário ao ver uma facção criminosa usar o discurso religioso para justificar a violência e o controle do território. O jornalista Bruno Paes Manso conta essas e outras histórias em seu novo livro, A fé e o fuzil: Crime e religião no Brasil do século XXI, lançado em setembro pela editora Todavia.

Bruno, que é pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP e colunista do Jornal da USP, há mais de 20 anos investiga as cenas do crime e do tráfico de drogas no Brasil. Dessas investigações nasceram seus livros anteriores, A guerra (em coautoria com Camila Nunes Dias) e A República das milícias. Em A fé e o fuzil, ele discute como a visão de mundo dos evangélicos têm organizado novos propósitos de vida e novas ordens de comportamento nas periferias das cidades brasileiras, tanto a partir das igrejas quanto a partir de facções criminosas com bases prisionais.

O jornalista conta que começou a observar que a violência do cotidiano das cidades brasileiras frequentemente se encontrava com experiências relacionadas à fé de seus entrevistados a partir dos testemunhos de pessoas que abandonaram o crime após se tornarem evangélicas. Nesses testemunhos, elas contam que não se trata meramente de frequentar a igreja, mas de passar por um profundo processo de transformação pessoal. Esse processo é conhecido como metanoia.

“Eu pesquisava matadores e entrevistava matadores para saber por que eles matavam. Como o assunto é muito delicado, eu passei a entrevistar ex-matadores, ex-bandidos, ex-traficantes que haviam se convertido e não tinham problema em falar sobre o passado, porque até [isso] dimensionava o tamanho do milagre da transformação na vida deles a partir de Deus e desse processo de metanoia. E aí, a partir dessas conversas, eu comecei a colecionar uma série de histórias pessoais de transformação”, conta.

Nem comunista, nem capitalista: “sou dinheirista”

Os relatos de conversão são amostras de um fenômeno de acelerada mudança na religiosidade do povo brasileiro. Nos anos 1980, os evangélicos eram 5,6% dos brasileiros. Em 2019, já eram 31%.

Conforme o pentecostalismo foi ganhando mais adeptos, o discurso evangélico foi se tornando mais influente – culminando, em 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro, que, embora se declare católico, adotou publicamente muitas referências evangélicas, a exemplo do slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Bruno explica que isso aconteceu tanto na política institucional quanto fora dela.

“Principalmente quando eu vou investigar as milícias, eu começo a perceber que esse discurso religioso, que estava restrito ao universo privado de transformações pessoais, passou a ser usado com uma dimensão política a partir de lideranças criminosas no Rio de Janeiro, que passavam a se dizer ungidas ou terem sonhado com Deus, que teria dito que ele representavam o bem na terra, para justificar seu poder”, diz o autor, mencionando o caso do Complexo de Israel, território na zona norte do Rio de Janeiro dominado pela facção criminosa Terceiro Comando Puro.

Mas, afinal, o que o discurso das lideranças de facções criminosas tem a ver com o cotidiano dos fiéis e a eleição de Bolsonaro em 2018? Na avaliação do autor, nos três casos há uma visão da prosperidade como benção divina, que não deve sofrer a interferência do Estado. Por um lado, essa visão ganhou força no Brasil com a influência das igrejas neopentecostais, altamente midiáticas e promotoras da teologia da prosperidade. Por outro, a utopia do estado de bem-estar brasileiro ruiu de 1988 para cá, devido à dificuldade do Estado em garantir direitos sociais.

“O Brasil não vira uma Suécia, né? O Brasil não vira uma Dinamarca. O mercado continua sendo muito importante para garantir o sustento. Quem não tem dinheiro, dança aqui. Não adianta você esperar que vai ter escola pública ou posto de saúde e que isso vai te dar tranquilidade para você ter uma vida digna. Não! Você tem que ter dinheiro. E a partir dessa visão, o pentecostalismo começa a promover justamente essa crença e essa disposição de empreender, de lutar pelas próprias pernas, de acreditar em si mesmo, de ver o progresso material como uma benção divina, de construir redes de apoio entre pessoas que têm os mesmos valores que os seus e a enxergar o Estado como, no máximo, um agente promovedor desses negócios”, explica.

Essa visão de mundo mais neoliberal, de um Estado que não deve atrapalhar as pessoas que ganham dinheiro, é compartilhada pelas milícias e as facções criminosas envolvidas no bilionário negócio da venda de drogas. “É uma visão mais realista e cínica. É uma grande selva em que o mais capacitado para empreender, para ganhar dinheiro, sobrevive”, explica Bruno. “Como um criminoso, uma pessoa que entrevistei, já me falou: ‘olha, eu não sou nem comunista, nem capitalista. Eu sou dinheirista, eu quero ganhar dinheiro’”, completa.

Os mundos do crime e dos evangélicos começaram a se cruzar em termos mais concretos a partir da profissionalização do crime, empreendida pelo PCC. Isso porque o dinheiro da venda de drogas no atacado, que antigamente já era lavado por meio de doleiros e empresas, passou a entrar até mesmo em igrejas. No início deste ano, uma investigação do Ministério Público do Rio de Janeiro revelou que um dos líderes do PCC – Valdeci Alves dos Santos, o “Colorido” – investiu em sete igrejas evangélicas para lavar o dinheiro do tráfico.

Guerra espiritual?

A noção de guerra é outro aspecto no qual o mundo evangélico se cruza com os mundos do crime e também da política. No contexto evangélico, a guerra é espiritual. Trata-se da ideia de uma batalha do bem contra o mal, com críticas à religiosidade de matriz africana e forte ênfase na luta pela expulsão do demônio. As igrejas neopentecostais que falam dessa batalha compartilham da visão de que o fim do mundo está próximo e, por isso, é importante ter a maior quantidade de “soldados do bem” em diversos postos da sociedade quando Jesus Cristo chegar pela segunda vez.

Bruno Paes Manso afirma que essa ideia de guerra espiritual foi apropriada pelo bolsonarismo sob o argumento de que a esquerda seria um grande bloqueio ao desenvolvimento, identificando todo este campo político como “aqueles que querem nos impedir de ganhar dinheiro”. Se a prosperidade é uma benção, então a defesa do estado de bem-estar social seria identificada como um inimigo.

“O pentecostalismo na política, essa visão da guerra que surge com o bolsonarismo, nas redes sociais, guerra contra o comunismo, guerra contra o esquerdismo, guerra contra o feminismo, é uma visão quase de um anarcocapitalista. Como é o próprio [Javier] Milei na Argentina, [que] se diz anarcocapitalista e tem muitas semelhanças com o bolsonarismo”, diz o jornalista.

Por sua vez, a milícia e o crime compartilham de uma visão da guerra que tem contornos tão darwinistas quanto a competição defendida pelos anarcocapitalistas. “O que importa para esses grupos não é um Estado que organize coletivamente a sociedade, que reduza desigualdades, que promova a justiça, que apoie os mais fracos, inclusive os que não estão com capacidade de participar dessa disputa darwinista. Eles não enxergam o Estado dessa forma. Eles enxergam o Estado como alguém que deve permitir que essa guerra do mais forte aconteça, que os mais capacitados para ganhar dinheiro, os mais abençoados, sobrevivam”, afirma Bruno.

É preciso reinventar o capitalismo, diz economista Mariana Mazzucato

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Para italiana, papel do Estado no século 21 é exigir que setores da economia inovem para alcançar sustentabilidade

FOLHA DE SÃO PAULO, 02/10/2023

DOUGLAS GAVRAS

Mariana Mazzucato, 55, não se surpreende ao ver o retorno de políticas de austeridade após a pandemia de Covid ou o aumento da popularidade de novos líderes ao redor do mundo que classificam o Estado como fonte de todos os problemas.

Para a economista italiana, antes de criticar os eleitores que escolhem políticos engajados em destruir o Estado, é preciso que as instituições públicas assumam um novo papel no século 21, fornecendo uma direção e exigindo que todos os setores da economia inovem.

Para se adequar às demandas atuais, é preciso reinventar o capitalismo, diz a professora, que esteve no Brasil na quarta-feira (27), para participar do 10º Congresso Internacional de Inovação da Indústria, realizado pela CNI (Confederação Nacional da Indústria) e o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio as Micro e Pequenas Empresas).
Mazzucato tem se aproximado do Brasil. Uma das referências para os economistas do PT, em especial de gestores do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) —como Aloizio Mercadante e Nelson Barbosa—, ela participou de seminário da instituição em março.

Em julho, o Ministério da Gestão e a Enap (Escola Nacional de Administração Pública) assinaram acordo com o Instituto da Inovação e Propósito Público da University College London (IIPP/UCL), fundado por ela. O objetivo é a capacitação de servidores, além da inovação na administração pública.

Essa proximidade tem reforçado sua visão de que o país pode ser um ator de destaque.
O presidente Lula tem defendido no exterior o papel do Brasil como protagonista de um futuro de desenvolvimento sustentável. Como colocar suas palavras em ação?

A razão pela qual as pessoas estão ouvindo o que Lula tem a dizer é que não há líderes suficientes no mundo hoje que
levem a sustentabilidade a sério —fala-se muito, mas muito pouco é feito.

Desde o primeiro dia, quando ele começou o novo governo, a questão da sustentabilidade e a Amazônia têm estado no centro, e o fato de o plano de transição ecológica brasileiro incluir o Ministério da Fazenda é algo radical.

Geralmente, o que acontece é a velha maneira de pensar, em que o Ministério do Meio Ambiente faz a política de sustentabilidade e o Ministério da Saúde se preocupa com o bem-estar.

Todo o governo deve estar voltado para um grande plano de economia verde?
A chave é como as diferentes áreas trabalham juntas, porque cada ministério tem suas próprias metas ambientais.
Ter um banco público, como o BNDES, também é muito importante para o financiamento, mas é preciso impor condicionalidades de inovação para o financiamento.

O grande gargalo em países como o Brasil é que as empresas são fortes, mas muitas delas não estão inovando, há uma inércia.

Mesmo um setor consolidado, como a siderurgia, precisa inovar e transformar-se. A Alemanha hoje tem o aço mais verde do mundo, não por ter decidido que seria assim, mas por precisar ser verde para conseguir dinheiro do governo, é uma parceria simbiótica em vez de uma parceria parasitária.

O Brasil poderia, de fato, liderar um processo de inovação?
Imagine pegar o orçamento de compras de cada ministério —Saúde, Transporte, Defesa, Energia— e transformá-lo em um orçamento de inovação, orientado para programas de mobilidade sustentável, que tentem resolver os congestionamentos nas grandes cidades. Acho que o Brasil pode realmente liderar um movimento nesse sentido, especialmente porque o Ministério da Fazenda é parte disso.

Trata-se de reinventar o capitalismo, fazer tudo de uma forma diferente, estruturando as organizações públicas e deixando que as organizações privadas também sejam instadas a trabalhar em conjunto.

Para chegar à lua, lá atrás, foram mobilizadas pessoas de diferentes setores —de profissionais de nutrição ao setor de eletrônicos e aeronáutica— e esse trabalho em conjunto solucionou muitos outros desafios pelo caminho.

Hoje temos câmeras, celulares, comida para bebê e softwares que são resultado dessas grandes mobilizações de recursos. O mesmo deveria acontecer com a agenda de sustentabilidade do Brasil, você a divide em diferentes frentes e as soluções para os problemas que surgirem ao longo do caminho podem fomentar muita inovação, é daí que vem o crescimento.

Deixar de ser um exportador principalmente de commodities é uma ambição ainda distante?
No caso da América do Sul, é preciso ter muito cuidado, porque os novos recursos são muito atraentes, como o lítio para baterias elétricas.

Ele também traz muitos problemas, um deles é que a extração de lítio cria enormes quantidades de água poluída, por exemplo, então é preciso ter certeza de que a solução para um lugar não cause um problema em outro.

Tenho aprendido muito com a Dinamarca, que hoje é um grande fornecedor de serviços verdes digitais de alta tecnologia, tendo criado um ecossistema de inovação. Não cabe a mim dizer ao Brasil o que fazer, mas a questão é que você não quer cair na armadilha das commodities novamente.

A falta de recursos é sempre um problema, sobretudo em países com problemas em diferentes áreas. Como contornar a limitação cada vez maior do Orçamento?
Todos os países reclamam de falta de recursos. O erro é pensar que a restrição se dá pelo déficit, a restrição real é a dívida em relação ao PIB [Produto Interno Bruto]. Sem investir de forma inteligente, no setor privado e no setor público, a produtividade não aumenta e ela é o principal impulsionador.

Sou italiana, e depois da crise financeira, todos os países do sul da Europa [Portugal, Itália, Grécia e Espanha] foram forçados a reduzir os seus déficits, o que aconteceu foi que a dívida em relação ao PIB aumentou.

O que realmente importa não é ter um Estado grande ou pequeno, o que faz diferença é um investimento público inteligente, estratégico e orientado, que catalisa o investimento privado, mas para isso é preciso saber qual é a direção que está sendo tomada em relação ao bem-estar e à sustentabilidade, para depois redesenhar empréstimos, concessões e subsídios. Não basta distribuir dinheiro para as empresas.

E é claro que o dinheiro público só deve ser usado por aqueles que não conseguem obter o dinheiro privado, é preciso ajudar a promover um ecossistema competitivo inovador, em que pequenas e médias empresas estão dispostas a trabalhar em torno de temas, como saúde, clima, digitalização e a preservação da Amazônia.

Encontrar uma forma de construir um ecossistema simbiótico de público e privado é muito importante para qualquer governo progressista, como o brasileiro.

A popularidade de políticos extremistas ao redor do mundo, como no caso da Argentina, em que Javier Milei prega a destruição das instituições, não aponta que parte da população deixou de acreditar no Estado?
Com certeza e, infelizmente, a onda de populismo está acontecendo por toda parte.

A Espanha pode ter escapado por pouco dela, mas vemos fenômenos assim na Itália e com o Brexit no Reino Unido.

Não deveríamos ser condescendentes e dizer que as pessoas são estúpidas por estarem votando nessas pessoas com ideologias malucas. Elas perderam a confiança no governo e nas empresas, por isso não é coincidência que muitos desses partidos populistas se apresentem como anarquistas.

Mas a realidade é que as ideias deles são muito antigas, é uma ideologia velha e, em alguns casos, até feudal, por isso é muito importante retirar a máscara de novidade que esses políticos “outsiders” usam.

Eles apresentam soluções simplistas e que olham para o sintoma, dizem que é preciso colocar mais pessoas na prisão ou que os imigrantes são a fonte dos problemas.

A teoria liberal, com menos Estado, também ganhou força nos últimos anos. Tivemos um exemplo disso no Brasil, durante o governo anterior, em que o ministro da Economia se orgulhava de defender as ideias da Escola de Chicago.

Por se tratar de um centro acadêmico, era de se esperar que a Escola de Chicago se importaria com as evidências, e as evidências nos dizem que a austeridade não funciona nem para o planeta nem para as pessoas, por aumentar a pobreza.

A ideologia dos ‘chicago boys’ é uma economia estúpida e eles sabem disso, então, para ser honesta, cheguei à conclusão de que eles apenas não se importam. Por que mais alguém cortaria as refeições escolares ou a verba para centros juvenis e bibliotecas públicas?
A pandemia alterou a relação das pessoas com o Estado, mas essa mudança foi passageira?
De repente, o Estado foi lembrado como o agente que proporcionou a vacinação, mas essa fase durou bem pouco, muitos países já estão passando por novas ondas de austeridade e dizem que gastou-se muito [durante a pandemia].

Os governos deram recursos para as famílias que não estavam trabalhando durante a quarentena e agora dizem “precisamos cortar programas sociais”, só que as consequências desses cortes acabam custando mais.

A disputa dos países na aquisição das vacinas nos deveria ensinar que todos temos interesses diferentes e conflitantes.

Estou escrevendo um novo livro sobre esse tema —por exemplo, a água é um grande problema mundial e o ciclo global nos une a todos, o desmatamento na Amazônia causa uma seca do outro lado do mundo, então, em teoria, poderíamos pensar que o mundo todo está preocupado com a água de forma conjunta, mas isso não está acontecendo.

Salvar o planeta é o grande desafio para o Estado no século 21?
O Estado tem de fornecer uma direção e exigir que todos os setores da economia inovem, pensando que o maior objetivo, claro, é a sustentabilidade, mas também a saúde e o bem-estar. É preciso estar preparado para a próxima pandemia.

O meu livro mais recente [“The Big Con”] é sobre como os governos precisam investir na capacidade de implementação de ações, sem investir no serviço público, você não saberá como agir e então ficará refém de consultorias, como ocorreu na crise de Covid.

O livro reforça como a indústria de consultorias infantilizou os governos.

RAIO-X
Mariana Mazzucato, 55
É professora de economia da inovação na UCL (University College London), onde é diretora fundadora do UCL Institute for Innovation and Public Purpose. É autora de quatro livros, incluindo “O Estado Empreendedor” e “Missão Economia”

Dentro do aquecimento global, por Leonardo Boff

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A Terra é Redonda, 30/09/2023

Neste ano já se fizeram notar as consequências funestas da mudança de regime climático.

Não estamos mais indo ao encontro do aquecimento global. Estamos já dentro dele, possivelmente de forma irreversível. Na COP 15 de Paris de 2015 se firmou o acordo de inversão de um bilhão de dólares anuais para reter o aquecimento e ajudar os países que não possuem meios suficientes para isso. A perspectiva era de evitar que o clima crescesse 1,5oC até 2030, tendo como referência o começo da era industrial.

O fato é que quase ninguém cumpriu o prometido. Como o aquecimento cresce dia a dia, chegamos ao ponto de o último relatório do IPCC de ano de 2023 e de outras fontes oficiais nos revelam que este aquecimento nos chegará antecipado entre 2025 e 2027.Ele poderá alcançar dois graus Celsius.

Temos verificado neste ano de 2023 um aumento assustador do aquecimento atingindo praticamente todo o mundo, chegando e muitos lugares acima de 40oC ou mais. Já não podemos falar simplesmente de aquecimento global, mas de mudança de regime climático da Terra. Inauguramos uma nova era, com níveis climáticos variáveis conforme as regiões, mas possivelmente se estabilizando planetariamente por volta de 38-40oC.

Neste ano já se fizeram notar as consequências funestas desta mudança de regime climático: o grande degelo das calotas polares, incêndios devastadores em muitas regiões do mundo, como no Canadá e nas Filipinas que incinerou uma inteira ilha com casas e carros e tudo o que perfaz uma cidade. No Sul do Brasil ocorreram um ciclone devastador e enchentes em muitas cidades, algumas delas praticamente destruídas.

Andando por aqueles lugares no final de setembro e refletindo em vários centros com numerosos grupos sobre esse fenômeno, sempre de novo surgia a pergunta: por que está ocorrendo esta devastação, com mortes e milhares de desabrigados? Esforcei-me, o mais que pude, para lhes conscientizar de que estes fenômenos não são naturais, mesmo com a confluência de dois fatores: o el Niño e o aquecimento global. Estes fenômenos são inaturais. Eles obedecem à nova lógica das mudanças do regime climático. Devemos todos nos preparar porque tais devastações serão cada vez mais frequentes e mais danosas.

Muitos dos mais notáveis climatólogos atestam que chegamos atrasados com nossa ciência e técnica. Elas, nas condições atuais da pesquisa, pouco podem fazer, apenas advertirmos da chegada dos ciclones, dos tufões e das tempestades e minorar os efeitos danosos. Mas eles virão fatalmente. Quer queiram ou não os negacionistas, os dirigentes de grandes corporações planetárias e de inteiros governos, o fato inegável é que entramos num estágio novo da história da Terra.

Muitos, especialmente crianças e idosos terão dificuldades de adaptação e morrerão. Igual devastação ocorrerá na própria natureza com a fauna a flora.

No que se refere às enchentes tenho explicado que cada rio possui dois leitos: o normal pelo qual ele normalmente corre e o segundo ampliado que é aquele espaço que lhe pertence e que acolhe as águas das enchentes. Neste espaço do leito ampliado não podemos fazer construções e elevar inteiros bairros. Temos que respeitar o que lhe pertence e reforçar a mata ciliar que margeia seu leito principal. Caso contrário, enfrentaremos destruições momentosas com muitas vítimas de pessoas e de animais que pertencem à nossa comunidade de vida.

Aprendemos pela ecologia não meramente verde e ambiental, mas pela ecologia integral (urbana, social, política, cultural e espiritual) aquilo que é a tese fundamental da física quântica e de todo discurso ecológico: todos os seres estão interligados. Tudo é relação e nada existe fora da relação. Isso nos leva a incorporar uma compreensão que identifica as conexões de todos os fenômenos. O terremoto do Marrocos, a enchente na Líbia, os incêndios no Canadá e a onda quase insuportável de calor que tomou conta da Europa e em quase todo o nosso país, tem a ver com as enchentes no Sul do país. Pois o problema é sistêmico, afeta todo o planeta.

A maioria das audiências públicas organizadas pelos organismos do governo federal e estadual geralmente é hegemonizada pelo discurso dos cientistas. Eles não são os melhores conselheiros pois trabalham os meios técnicos, sugerem medidas dentro do sistema no qual estamos encerrados, mas não se colocam a questão dos fins.

O discurso é dos fins e não dos meios: que tipo de Terra queremos? Que mudanças devemos fazer no modo de produção e consumo? Como diminuir a vergonhosa desigualdade social mundial? A maioria cai na ilusão de que dentro do atual sistema produtivista seja capitalista seja socialista, notoriamente devastador dos bens e recursos da natureza, pode-se chegar a soluções que resultam da diminuição de gazes de efeito estufa. Ledo engano. Dentro desta bolha que ocupou todo o planeta não há solução contra a mudança de regime climático. Pois são exatamente eles que sugam os recursos escassos da natureza que consequentemente produzem milhões de toneladas anuais de CO2 e de metano (28 vezes mais danoso que o CO2) lançadas na atmosfera.

É urgente, se queremos ainda permanecer neste planeta, fazer uma “conversão ecológica fundamental” como o diz a encíclica do Papa Como cuidar da Casa Comum.

Os grandes conglomerados e aquela pequeníssima porção de pessoas que controla o sistema de produção e os fluxos financeiros de onde tiram seus fabulosos lucros, jamais aceitam tal mudança. Perderiam seus ganhos, privilégios, poder econômico e político. No entanto, seguir por este caminho tornaremos a Terra cada vez mais inabitável, com milhões se refugiados climáticos e emigrantes que já não podem mais viver em seus lugares queridos. Engrossaremos o cortejo daquele que rumam na direção de sua própria sepultura. Se quisermos evitar este destino, devemos mudar.

Qual a alternativa necessária? Não é aqui o espaço para detalhar esta complexa resposta. Mas refiro apenas duas palavras-chaves: passar do ser humano, hoje dominante, como “dominus”, senhor e dono da natureza e não se sentindo parte dela, explorando-a sem limites para o ser humano como “frater” irmão e irmã entre todos os humanos e também com os demais seres da natureza da qual é a parte consciente, porque possuímos com eles e mesma base biológica e cuidamos dela.

Somos de fato irmãos e irmão, por um dado de ciência mais do que pela mística cósmica de São Francisco. O fato é que não nos tratamos como irmãos e irmãs. Somos antes insensíveis e até cruéis. Sobre tal tema remeto aos meus próprios escritos que tentam detalhar este novo rumo.

*Leonardo Boff é eco-teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de O doloroso parto da Mãe Terra: uma sociedade de fraternidade sem fronteiras e de amizade social (Vozes).

Na ONU, o Brasil volta a si, por Maria Hermínia Tavares.

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Lula reiterou posições clássicas da nossa diplomacia e elencou prioridades novas.

Maria Hermínia Tavares, Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

Folha de São Paulo, 28/09/2023

Quem se der ao trabalho de comparar o discurso de presidente Lula na abertura da Assembleia-Geral da ONU, na terça-feira (19), com o pronunciamento de Jair Bolsonaro na mesma tribuna quatro anos atrás, será recompensado com uma tripla dose de alívio. Pela voz do seu chefe de governo, o Brasil voltou à antiga forma: falou bem, foi digno e ambicioso na justa medida.

Aquela reunião anual não é foro para decisões. É um ritual em que, por se fazer representar à altura do evento, os seus 193 estados-membros reafirmam a adesão ao multilateralismo; compartilham a sua visão do estado do mundo; explicam as suas escolhas em política externa e marcam posição diante das decisões coletivas a tomar.

Nos 21 minutos em que se fez ouvir, o líder brasileiro falou dos princípios que orientam a ação internacional do país; das prioridades que deveriam nortear as nações ali reunidas; das urgentes reformas institucionais para ressuscitar as organizações do sistema ONU à beira da irrelevância.

Lula reiterou posições clássicas da diplomacia brasileira –mas também elencou prioridades novas. De um lado, tratou de temas que de há muito configuram a identidade internacional do país: defesa da democracia; busca de soluções pacíficas para os conflitos; demanda por reforma das organizações multilaterais a fim de dar mais voz aos países intermediários –em especial por meio da ampliação de seu espaço no Conselho de Segurança e nos órgãos de governança econômica do FMI e do Banco Mundial.

De outro lado, deu promissora importância à agenda ambiental e à maneira como ela deveria se entrelaçar com a meta maior de redução das desigualdades. Assim, reafirmou a disposição de cumprir, no prazo estipulado (2030), os 17 ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) definidos pela ONU e que dão corpo à convergência daqueles dois objetivos. Sem esquecer da reativação do Tratado de Cooperação Amazônica e da interlocução entre os países com extenso patrimônio florestal.

Para atestar os compromissos do seu governo com a agenda ambiental, falou do Plano de Transformação Ecológica, fruto da cooperação entre os Ministérios da Fazenda e do Meio Ambiente –e destinado a mudar o rumo das políticas de desenvolvimento. Invocou o princípio das responsabilidades comuns e diferenciadas na proteção do planeta, cobrando das nações ricas o financiamento das políticas ambientais das mais pobres.

O ambicioso pronunciamento é uma carta de princípios que ultrapassa o que o país pode fazer de fato.

Trunfo para valer só na agenda ambiental. É aí que se poderá ancorar um protagonismo que vá além da oratória.

A geração Z e as ameaças do álcool, por Laura Cury

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Taxação mais rígida e restrições publicitárias devem ser observadas

Laura Cury, Coordenadora do projeto álcool da ACT Promoção da Saúde

Folha de São Paulo, 01/10/2023

As mudanças sociais e demográficas recentes promoveram um prolongamento da adolescência que, segundo especialistas, duraria até os 24 anos. São justamente os indivíduos que vivem a transição entre a adolescência e a vida adulta que apresentaram dados alarmantes sobre saúde e comportamento na última edição do Covitel, o Inquérito Telefônico de Fatores de Risco para Doenças Crônicas não Transmissíveis em Tempos de Pandemia.

Os jovens brasileiros dormem pouco (45,8%), praticam menos de 150 minutos de atividade física por semana (63,1%), não consomem frutas (33,5%) e verduras e legumes (39,2%) de forma regular e fazem uso excessivo de telas (76,1%). Todos esses fatores contribuem para o aumento de 90% da obesidade entre 2022 e 2023, quando o índice saltou de 9% para 17,1%, e para que 1,4 milhão tenha hipertensão, e 750 mil, diabetes. Vêm também dessa faixa etária os maiores percentuais de consumo de dispositivos eletrônicos de fumar, de 6,6%.

Se esses dados já acendem um sinal vermelho acerca da saúde da juventude e das consequências futuras dos hábitos ruins, como maior índice de mortalidade por doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs), sobrecarga dos sistemas de saúde no futuro e envelhecimento nada saudável dessa população, as informações sobre consumo de álcool são ainda mais preocupantes.

Jovens são os que mais consomem bebidas alcoólicas de forma abusiva: 32,6%. Também são os que mais relataram não lembrar do que fizeram enquanto embriagados. O álcool ocupa um lugar privilegiado na sociedade: está nas comemorações, nas festas, nas confraternizações de família. Começar a beber é visto como um rito da vida adulta. A consequência é que 4,8% de jovens já relatam dependência ou risco de desenvolvê-la.

As bebidas alcoólicas fazem mal à saúde física e mental, tão prejudicadas pela pandemia. O álcool é um depressor do sistema nervoso central e pode agravar sintomas de ansiedade e depressão —diagnósticos em crescimento entre pessoas de 18 a 24 anos. Há também evidências do aumento de ocorrências de violência, seja no trânsito, doméstica ou suicídios. O álcool também responde por DCNTs como câncer, cardiovasculares e diabetes.

O senso comum diz que não há necessidade de pensar em ações para esse grupo, mas é fundamental garantir o acesso à saúde —física e mental— e desmistificar o tema entre jovens, além de incentivar a prática de esportes, o contato social e a redução do uso de telas.

A Reforma Tributária é uma oportunidade para garantir incentivos fiscais para produtos saudáveis e endurecer impostos para cigarros, alimentos e bebidas ultraprocessados e alcoólicas. É, também, essencial criar restrições à publicidade e ao marketing de álcool.

Enquanto a propaganda for indiscriminada, o imaginário em torno das bebidas não vai mudar. Não há glamour no álcool: a Organização Mundial da Saúde já declarou que qualquer dose é prejudicial. Apoiar pessoas jovens é investir em um futuro mais saudável para toda a população.

Brics

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As constantes transformações na sociedade internacional exigem uma visão estratégica, centrada na consciência de suas potencialidades, suas dificuldades estruturais e os anseios sobre o futuro imediato, desta forma, precisamos reconstruir novos espaços de comércio mundial, retomando acordos estratégicos e uma ação mais efetiva no novo cenário geopolítico, marcado por atores ascendentes e desafios incomensuráveis para todas as nações.

Neste momento, percebemos que o eixo de poder global está em constante alteração, as nações que regiam o concerto internacional, os países ocidentais desenvolvidos, estão perdendo espaço na comunidade mundial, suas estruturas industriais vem perdendo espaço, muitas nações estão se desindustrializando, com isso, percebemos a criação de novas oportunidades e grandes desafios, exigindo uma visão mais articulada, mais audaciosa e grande ousadia, desenvolvendo projetos econômicos consistentes, fortalecimento a unidade política, desenvolvendo uma visão estratégica, compreendendo as instabilidades e incertezas do mundo, as nações precisam correr riscos, afinal estamos numa sociedade em constante transformação.

Neste cenário, percebemos os espaços abertos com o crescimento e o fortalecimento do bloco dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que nasceu como um acrônimo criado por um economista de um grande banco de investimento, Goldman Sachs, John O’ Neil, que criou a expressão se referindo aos chamados países baleias, que tinham em comum grandes extensões territoriais, alto contingente populacional e que, segundo esse teórico, seriam as economias que dominariam a economia no século XXI. Deste acrônimo, os países criaram o Bloco dos Brics, com sede na China e ganhou relevância da economia internacional, força política e importância estratégica e geoestratégica, lembrando-os que neste grupo, estão os chineses, vistos como a maior economia do mundo em paridade de poder de compra, ultrapassando a economia norte-americana.

Neste encontro, foram aceitos novos membros no bloco dos Brics, passando a ser vistos como o Brics Plus, onde foram incorporados Argentina, Egito, Arábia Saudita, Emirados Árabes, Etiópia e Irã, desta forma, o bloco ganhou musculatura e se espalhou para outras regiões do mundo, lembrando que além destes países que ganharam assento nos Brics mais de trinta outras nações demonstraram interesses em participar deste bloco renovado, angariando poder no cenário global e aumentando a maior influência política em questões internacionais e demonstrando que estamos vivendo uma sociedade multipolar, se distanciando de uma visão unilateral e centradas nos interesses das nações ocidentais desenvolvidas, que dominaram a sociedade internacional desde a Revolução Industrial, impondo seus valores, seus interesses financeiros, sua visão cultural e destacando o poder de sua moeda e de sua estrutura bélica, como forma de dominação e hegemonia.

A ascensão dos Brics no cenário internacional nos mostra novos horizontes de investimentos produtivos, novos valores e novas culturais nacionais, exigindo, ao mesmo tempo, uma visão geoestratégica mais consistente, grande capacidade de negociação política, incrementando novas agendas e menos atreladas as potências ocidentais.

Neste momento da sociedade internacional, marcada por grandes transformações e desafios, é imprescindível e urgente, que cada nação construa um projeto coerente para compreendermos os desafios do mundo contemporâneo, deixando de lado conflitos degradantes e discussões intermináveis sem sentido e que prejudicam o futuro da sociedade brasileira, precisamos de lideranças competentes e grande potencial de vislumbrar as reais necessidades da população. É fundamental construirmos uma sociedade mais igualitária, com novos horizontes de ascensão social, com uma educação de qualidade para todos os cidadãos, com uma tributação justa e rejeitando um sentimento que foi muito bem destacado por Nelson Rodrigues quando descreveu o viralatismo da elite nacional que contribuem para a manutenção da estagnação econômica e dos nossos ultrajantes indicadores sociais.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Mestre, Doutor em Sociologia e Professor Universitário.