Extermínio yanomami é resultado de séculos de impunidade, por Itamar Vieira Jr.

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Vivemos em um país sem memória; é preciso romper com a anistia indiscriminada para que nos reste algum futuro

Itamar Vieira Júnior, Geógrafo e escritor, autor de “Torto Arado”

Folha de São Paulo, 05/02/2023

Toda sociedade possui seus códigos de justiça. A palavra é derivada do latim “iustitia”, que por sua vez vem de “iustos” —justo—, que por fim deriva de “ius” —direito, correto, lei.

Uma sociedade sem os pressupostos da justiça está predestinada ao colapso, à completa anarquia, em que os interesses individuais se sobrepõem aos coletivos. No 8 de janeiro, vimos por algumas horas a violência devastar as sedes dos três Poderes da República, entre as quais a da Justiça.

Em “Ensaio sobre a Cegueira”, José Saramago cria uma alegoria sobre um mundo onde valores éticos e coletivos desmoronam, usando a metáfora de uma epidemia de cegueira. Sem os olhos para ver, o mal aflora, o horror se instaura e o pacto civilizatório se dissolve. Resta a barbárie como a lei da sobrevivência.

A bestialidade que tomou conta de Brasília no primeiro domingo pós-posse do presidente e de governadores é a mesma que devasta o território yanomami e os de outras sociedades indígenas. A tragédia que os assola é brutal e violenta. É um crime contra a humanidade. É um genocídio. É tudo, menos surpresa. A calamidade instaurada na terra indígena não é um evento circunstancial; é o projeto de extermínio mais persistente no país.

Colonizadores foram anistiados. Escravocratas também. Igualmente os militares pelos crimes do passado e do presente. Relatórios de inteligência da Funai apontam para um conluio entre garimpeiros e militares, incluindo uma possível relação de parentesco e o compartilhamento de informações em grupos de redes sociais para facilitar a atividade ilegal na terra indígena.
A anistia nos trouxe até aqui.

Nos trouxe também até a tentativa de ruptura da ordem democrática com uma minuta de golpe, para reverter o resultado das eleições, conspirações com propostas de espionagem de um ministro de Suprema Federal e sua posterior prisão. Nos trouxe à confissão de um deputado de que todos os ministros tinham uma minuta golpista em casa. Nos trouxe à revelação de um senador de que teria sido convidado para compor um comitê golpista.

A falta de justiça nos trouxe até aqui.

Em dezembro, a polícia alemã desarticulou uma rede de extrema direita que pretendia um golpe para restituir a monarquia. Para os procuradores alemães, tratava-se de um grupo terrorista que visava atingir o regime democrático. Foram realizados indiciamentos, prisões, restando à sociedade a confiança na Justiça para julgar e punir. Por aqui, prisões também foram feitas, mas sem chegar aos mentores do ato golpista.

A palavra anistia vem do grego e do latim “amnestía” ou “amnestia” e significa esquecimento. Vivemos no país sem memória e, só quando nos dermos conta disso, compreenderemos seu poder para nos devolver à trilha dos avanços civilizatórios.

Nas ruas de inúmeras cidades da Europa, é possível encontrar as “stolpersteine”, que significa “pedras do tropeço” em uma tradução livre. São pequenas chapas douradas fixadas nas calçadas em frente a casas de onde vítimas do Holocausto foram retiradas para a morte.

Somente em Berlim, são quase 9.000 placas com nome, sobrenome, data de nascimento e de morte de pessoas que viveram naquele exato local. São placas individuais para recordar que cada pessoa era única; somadas, dão uma pequena noção da dimensão da tragédia. Sem contar nos inúmeros monumentos e museus que abrigam a história desse evento tão traumático.

A justiça pode ser um poderoso instrumento contra o esquecimento.

Há poucos meses, escrevi um texto sobre a morte do indígena tanaru, último sobrevivente de sua etnia. Viveu sozinho na floresta durante 26 anos. Seus últimos parentes foram mortos por fazendeiros na década de 1990. Como ele, muitas etnias estão em risco pelo garimpo ilegal, pela criminosa extração de madeira, pela derrubada da floresta para criação de pastos e monoculturas, por conflitos fundiários de toda ordem.

As imagens dos yanomamis em grave estado de desnutrição são retratos da devastação de corpos e território atingidos por um projeto de extermínio que perdura há mais de cinco séculos. São resultados da anistia indiscriminada, da falta de justiça, da nossa condescendência quase cúmplice de não exigir o contrário.

É preciso romper com os ciclos de impunidade para que nos reste algum futuro.

Patriotas versus cidadãos, por Luiz Marques

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Pautas autoritárias, privatistas, de moral e costumes ensejaram o Frankenstein do atraso e da fome

Luiz Marques – A Terra é Redonda – 02/02/2023

Pautas autoritárias, privatistas, de moral e costumes ensejaram o Frankenstein do atraso e da fome
Entre as revoltas que precederam a declaração de Independência do Brasil, a Inconfidência Mineira (1789) refletiu os valores iluministas do século XVIII e a experiência das colônias da América do Norte. Os líderes descendiam da “casa grande” – militares, fazendeiros, magistrados, padres, poetas. À semelhança da Revolução Haitiana (1791), a rebelião mais popular foi a Revolta dos Alfaiates (1798), na Bahia, que envolveu militares de baixa patente, artesãos e escravizados. Composta por uma maioria de negros e mulatos, mirou na escravidão e no domínio dos brancos. Não buscou fundar um quilombo distante de uma cidade populosa, como era hábito dos foragidos (Palmares).

A última insurreição colonial aconteceu em Pernambuco (1817), encabeçada por militares de alta patente, comerciantes, senhores de engenho e padres (estima-se em 45), que se diziam “patriotas”. Sob inspiração maçônica, proclamou uma república autônoma que enlaçava Pernambuco e as capitanias da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Sobre o modelo escravista, iniciado logo após o descobrimento e mantido por penosos 350 anos, silêncio obsequioso. Os grilhões restariam intactos.

Apesar dos pesares, no livro Cidadania no Brasil, o historiador José Murilo de Carvalho salientou no evento insurgente “uma nascente consciência de direitos sociais e políticos”, na crua geografia de abestalhados – entrecortada pela mestiçagem derivada dos frequentes estupros das negras. Por república, entendia-se o governo de povos livres em oposição ao absolutismo monárquico. Não acenava um futuro com ideias sustentadas na igualdade. Com a identidade forjada em batalhas prolongadas contra os holandeses, o patriotismo do epicentro pernambucano superava o brasileiro.

Agora, um salto temporal. Adeptos do movimento golpista recente também se autodenominaram “patriotas”. Não “cidadãos”, como na terminologia propagada na Revolução Francesa para designar o pertencimento a um Estado-nação. No caucasiano acampamento da extrema direita, incubadora dos atos descompensados no 12 de dezembro e no 8 de janeiro, em Brasília, os partícipes não evocavam o conceito de cidadania ao justificar o vandalismo brutal dos símbolos republicanos. Considerando-se indivíduos de exceção perante as leis vigentes, depredaram com brutalidade os fundamentos sedimentados por práticas civilizacionais inexistentes em hegemonias fechadas.

O clamor contrarrevolucionário não se construiu em relação a um inimigo externo: portugueses, holandeses, franceses, espanhóis ou ingleses com os quais em algum momento o Brasil esteve em conflito. Dirigiu-se ao inimigo interno (o povo) que desfraldou a bandeira da democracia, em defesa das instituições da estremecida Terra brasilis. Apostou no fratricídio e nas manipulações digitais com robôs e fake news. O dedo seletivo apontou os judeus da hora: os sujeitos políticos (partidos de esquerda), regionais (nordestinos), étnicos (negros, indígenas), de gênero (mulheres), identitários (grupos LGBTQIA+) e do conhecimento (intelectuais, cientistas, agentes da cultura e das artes).

O simulacro patriótico tinha um forte ingrediente ideológico, ligado a uma visão mítico-messiânica para ocultar o antinacionalismo econômico remanescente do colonialismo. Fenômeno reatualizado pela vassalagem vira-lata ao imperialismo estadunidense e pelas privatizações crescentes. Vide o fatiamento da Petrobrás e do pré-sal. Tudo consentâneo o Consenso de Washington. A peculiaridade do neofascismo tropical foi a estreita associação com a globalização neoliberal que, com dogmas monetaristas em favor da “austeridade fiscal” e do “teto de gastos públicos”, retirou poderes da governança submissa que, de resto, cedeu-os sem um mínimo de decoro na função presidencial.

A estratégia desenvolvimentista com foco na reindustrialização para formar um mercado de massas, dentro das fronteiras territoriais, e amainar as infames desigualdades herdadas do longo ciclo de horrores, nunca integrou a agenda do Coisa Ruim. Os protestos de aparência leonina maquiavam os desprotestos raposinos, vergonhosos, pusilânimes, de traição à pátria. O objetivo era congelar a matriz colonialista (racista) e patriarcal (sexista), junto com as hierarquias sociais da antiga tradição de dominação e subordinação. A violência e a hostilidade aos progressistas tinham um por quê.

O antipatriotismo estrutural foi disfarçado com a estética verde-amarela dos desfiles, com hinos. Os toscos revoltosos concentraram os disparos nas balizas constitucionais de amparo a uma democracia com justiça social e ambiental. Por suposto, a raiva e o ódio não se estenderam até o mundo das finanças. O rebanho de manobra desconhecia os patrões e, por ignorância, aliou-se aos opressores. Para curar frustrações com as promessas descumpridas do sistema democrático, o remédio indicado foi a instalação do regime iliberal. O liquidificador fundiu a essência neofascista (Jair Bolsonaro), o neoliberalismo duro (Paulo Guedes) e o conservadorismo teocrático (Silas Malafaia, Edir Macedo). Pautas autoritárias, privatistas, de moral e costumes ensejaram o Frankenstein do atraso e da fome.

A lógica de financeirização do Estado e os interesses do agronegócio somaram-se ao predatório extrativismo de madeiras (nobres) e minerais (ouro, diamantes) da Amazônia, o que esgaçou a crise climática e o genocídio de comunidades originárias. O programa da ultradireita fez, da floresta, uma refém do totalitarismo da mercadoria. Nisto, resumiu-se a distopia de extermínio bolsolavista.

Com opção de classe nítida, os entreguistas celebraram a necropolítica no aparelho estatal. Danem-se os pobres; vivam os privilégios redobrados ao capital financeiro. La noblesse du dollar oblige.

Ao transformar as “liberdades individuais” em panaceia para os problemas da nação, a obtusidade das vertentes obscurantistas entrincheirou-se em um campo específico de direitos, que abrangiam a vida, a garantia da propriedade, a segurança pessoal, a manifestação do pensamento, organizar-se, ir e vir, e acessar informações alternativas – rápido, convertidas em passaporte para o negacionismo. Quando a ênfase recai apenas nos “direitos civis” e, estes, ademais, se restringem ao usufruto dos correligionários, os “direitos sociais” e os “direitos políticos” saem pela porta dos fundos; para retomar o estudo clássico de T. H. Marschall sobre as três dimensões indispensáveis da cidadania.

No transcurso da pandemia do coronavírus, vale lembrar, uma hermenêutica levada ao paroxismo liberou o desaforo de festas privadas, superlotadas, enquanto as UTIs dos hospitais estavam abarrotadas de pacientes da covid-19. No macabro jogral negacionista, não faltaram os empresários dispostos a “salvar a economia”, à revelia dos cuidados com as normas sanitárias para a proteção da população. A desobediência narcísica aos protocolos de isolamento social, à prescrição para o uso de máscaras e à vacinação enalteceu um hiperindividualismo, de pretensões aristocráticas. Com muita arrogância, se reproduziu nas ruas a pulsão genocida encastelada no Palácio do Planalto.

O quadro sombrio desembocou nos ataques terroristas à soberania popular, com a contestação das eleições – sem provas. A convicção tola foi regada pelo despresidente pária, a partir de 2018, para arregimentar as mentalidades entorpecidas pelo antipetismo / antilulismo e jogar desconfiança sobre os suportes da democracia na institucionalidade. O fetiche da “liberdade de expressão” avalizou as realidades paralelas dos militontos, com ares de zumbis. Mas o caos não angariou outras adesões.

É necessário intensificar a disputa política e ideológica na sociedade civil, empoderar a unidade na diversidade, fortalecer a esfera pública crítica e pluralista com a voz dos segmentos excluídos. Os marginalizados da história devem ocupar um “lugar de fala”, na intrincada arquitetura do poder nos municípios, nos estados e na União. Sem esse engajamento ativo é impossível mudanças de cenário. Não basta que os democratas e os intelectuais orgânicos das classes subalternas legitimem as justas demandas “de baixo”. A situação de espectadores das narrativas ofertadas e benefícios recebidos não contempla o importante princípio da autonomia, no processo pedagógico de desalienação. “A emancipação será obra dos próprios trabalhadores”, ensinava o ainda atual Manifesto comunista de 1848.

Para combater a sociopatia do extremismo direitista, a solução sob auspícios do governo liderado por Lula reside na implementação de: (a) Mais direitos sociais – saúde, educação, segurança, renda, formalização do trabalho, sociabilidade não discriminatória e; (b) Mais direitos políticos, por meio da participação cidadã ampliada para a elaboração coletiva de políticas públicas, na forma de um Orçamento Participativo Nacional (OPN). Para uma exposição detalhada, ver o artigo “Políticas participativas” de Leonardo Avritzer e Wagner Romão, no sítio internético A Terra É Redonda.

O desafio está em estimular a cidadania a confrontar o falso civismo que estupidificou a política, no quadriênio miliciano. Tarefa para os partidos e movimentos sociais do campo e da cidade, entidades comunitárias e estudantis, sindicatos e clubes de bocha, pagodes e saraus, ônibus e metrôs, praças e bares, almoços dominicais e intervalos dos jogos de futebol. Qualquer local. Como na bela canção de Caetano Veloso: “É preciso estar atentos e fortes / Não temos tempo para temer a morte”.

Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.

Carta Mensal – janeiro 2023

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O primeiro mês do ano de 2023, foi marcado por inúmeros movimentos políticos e institucionais, depois de quatro anos de governo Jair Bolsonaro, o ano começou com grandes agitações, com alterações estruturais, com novas agendas, novos comportamentos e grandes expectativas, muitas vezes as expectativas são imensas e preocupantes.

O governo que começa, do Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva (PT), inicia envolto em variadas composições políticas, onde encontramos pessoas ou representantes de várias vertentes políticas. Com isso, não podemos dizer que o governo seja de esquerda, podemos acreditar que o novo governo deve ser visto como de centro-esquerda. Neste momento, cabe uma reflexão mais sólida e mais sofisticada, que deve ser feita pelos cientistas políticos.

Antes de começarmos a descrever as questões políticas, gostaria destacar questões econômicas, embora a economia tenha uma importância em todos os governos, o mês de janeiro de 2023 foi marcado por poucas instabilidades no campo econômico, as medidas adotadas pelo Ministro da Fazenda Fernando Haddad foram sólidas e consistentes, com forte capacidade de conversação e de diálogo, as questões econômicas foram colocadas no segundo plano, ainda mais depois das movimentações de 8 de janeiro na Praça dos Três Poderes.

No front econômico, é importante destacar os escândalos ou as fraudes das Lojas Americanas, denunciadas pelo presidente da empresa Sérgio Rial, que levou ao mercado um rombo de, inicialmente, R$ 20 bilhões, que posteriormente, chegou a mais de R$ 43 bilhões, levando a empresa a buscar proteção jurídica que culminou no pedido de recuperação judicial, gerando variados conflitos com acionistas, bancos, fornecedores, trabalhadores e controladores.

O caso Americanas colocou em xeque um modelo de fazer negócio dos empresários do Grupo 3G, composto por Marcel Telles, Carlos Sicupira e Jorge Paulo Lemman, cujo patrimônio perpasse bilhões de dólares que os colocam na lista dos maiores bilionários brasileiros, acionistas de empresas gigantescas como AB Inbev, Burger King, Kraft Heinz, dentre outras…

Logo no começo do ano, no dia 8 de janeiro, a sociedade brasileira foi devastada pelos eventos que aconteceram na capital Federal, onde a praça dos Três Poderes foi fortemente saqueada por vândalos organizados que invadiram os prédios representantes da República Brasileira, depredando, saqueando, vandalizando, devastando e criaram uma verdadeira balbúrdia, cujas imagens foram espalhadas por toda a comunidade internacional, levando o país ao centro das grandes discussões dos eventos estimulados por defensores da extrema direita.

Toda essa destruição só foi possível, porque os setores de segurança do Distrito Federal foram omissos, além da participação das forças armadas e de grupos de acampados que colocaram para que o evento acontecesse, todos foram irresponsáveis para evitar esse caos, cujos impactos mostraram a fragilidade da democracia nacional, onde pessoas organizadas, dotadas de câmeras de celulares, muitos deles com paus e produtos cortantes, levaram à praça dos Três Poderes a destruição, a degradação, que impactaram fortemente a democracia brasileira.

Neste evento foram invadidos o Supremo Tribunal Federal (STF), o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto, todos foram fortemente degradados na invasão, deixando um rastro de destruição, de incertezas e sentimentos de que estamos, todos os momentos, vivendo num ambiente de insegurança.

Logo depois da devastação foram calculadas em mais de 18 milhões de reais de prejuízos e levaram as autoridades a adotarem medidas extremas para punir os agitadores e rever parte dos recursos milionários que foram degradados na capital federal.

Depois do dia 8 de janeiro, o governo inicia um novo momento, marcado pela adoção de medidas fortes de punição aos vândalos, que muitos chamaram de terroristas, com prisão de mais de mil pessoas e inúmeros perseguidos pelas forças policiais, que movimentou todo o aparato de repressão do Distrito Federal, na busca dos indivíduos que participaram deste ato, a condução das investigações, as tomadas dos depoimentos, além da acomodação dos presos, toda a logística da ação repressiva, além de uma verdadeira busca de culpados e participantes indiretos, como financiadores e idealizadores.

Neste período se descobriu muitas lacunas, que colocaram no centro da invasão pessoas de alta hierarquia, como o Secretário de Segurança Pública, Anderson Torres, ex-ministro da Justiça do governo anterior e o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, sendo que o primeiro foi preso e o segunda foi afastado por 90 dias do cargo, sendo último foi substituído pela vice-governadora.

Ações do governo foram rápidas, as investigações foram aceleradas, os responsáveis foram punidos, demitidos ou investigados. A segurança pública do Distrito Federal foi retirada do governo local e foi repassada pelo governo federal, que nomeou como interventor um agente indicado pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Cappelli, que conduziu a segurança até o final de janeiro, investigando e punindo as pessoas que participaram direta ou indiretamente pela invasão dos poderes da República.

O mês de janeiro de 2023 foi marcado por grandes desastres para a sociedade brasileira, embora o Brasil conseguisse escolher um novo presidente, em uma eleição muito apertada com graves conflitos e confrontos, depois da posse, muitos fenômenos mostraram que, nestes quatro anos do governo anterior, os dados de destruição e degradação foram elevadíssimos, levando-nos a se afastar da comunidade internacional e passou a ser visto como uma nação pária. Tanto assim, que neste primeiro mês de governo, o novo presidente visitou mais da metade dos países que o presidente anterior visitou em quatro anos de governo.

Destacamos ainda, os eventos importantes do mês de janeiro de 2023, a descoberta da situação famélica da população indígena Yanomamis, uma comunidade que foi fortemente degradada pelo governo anterior, fenômeno possibilitado pela invasão de seu território por garimpeiros ilegais, que levaram para a região a destruição dos rios, degradando o solo, além de estupros de indígenas, aumentando as gravidez de meninas yanomamis, além de assassinatos e cooptação forçado de índios para trabalhar nos garimpos ilegais.

Neste cenário, o governo foi estimulado a adotar medidas de proteger a comunidade indígena, levando alimentos, equipes médicas, assistência social, além de medidas para combater os garimpeiros ilegais, levando um aparato militar e de segurança para evitar que essa situação não perdure por mais tempo.

Como vimos, o mês de janeiro de 2023 foi marcado por grandes agitações, grandes crises, fortes conflitos, graves confrontos e grande incertezas políticas que devem postergar a recuperação da economia nacional, devastadas nos últimos anos, de graves crises políticas e dificuldades fiscais e financeiras da sociedade nacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Demissões em massa

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Constantemente refletimos, nesta coluna, sobre as grandes transformações econômicas e seus impactos para a sociedade internacional. Neste cenário, marcado por alterações nos modelos de negócios e fortes transformações no mundo do trabalho, onde a tecnologia está moldando as bases da comunidade, destruindo empresas até então bem-sucedidas, fragilizando trabalhadores e criando instabilidades na empregabilidade dos indivíduos, gerando novos desafios, medos e incertezas, que podem abrir espaço para novas oportunidades, criando ganhadores e perdedores com fortes impactos sociais e políticos na sociedade.

Recentemente, as mídias especializadas, estão mostrando o aumento das demissões das grandes empresas de tecnologia, que se transformaram em fortes empregadores de trabalhadores altamente capacitados e, na contemporaneidade, estão demitindo números consideráveis de trabalhadores, com impactos sobre todas as regiões do mundo, pois são grandes conglomerados e empregam pessoas do mundo todo, tais como Amazon, Google, Twitter, Meta, Microsoft, dentre outras.

Nos últimos anos, as empresas de tecnologia ganharam relevância na sociedade internacional, angariando valores de mercado, consolidando seus modelos de negócios e se transformaram nas queridinhas do mundo corporativo. Suas ações eram desejadas pelos investidores, seus valores de mercado foram multiplicados várias vezes, passando a se transformarem nos maiores conglomerados da economia internacional, deixando para trás grandes empresas automobilísticas, siderúrgicas, varejistas e petroleiras, algumas delas conseguiram ultrapassar US$ 1 trilhão em valores de mercado, algo impensável anteriormente.

Depois de fortes contratações no período da pandemia, as empresas perceberam que, com a normalidade da estrutura econômica e a redução das paralisações das economias em decorrência do covid-19, seus ganhos financeiros foram reduzidos fortemente e levando-as a uma reestruturação em seus negócios, diminuindo sua força de trabalho, iniciando dispensas em todos os setores e diminuindo os cargos estratégicos, visando reestruturar seus modelos de negócios e buscando incrementar seus lucros e ganhos adicionais, melhorando sua performance financeira e operacional, incrementando os valores de suas ações e a rentabilidade de seus negócios.

Destacamos ainda, o incremento dos preços dos produtos internacionais, impacto direto da pandemia, da quebra das cadeias globais de produção e da guerra entre a Ucrânia e a Rússia, inflacionando preços de energia, dos combustíveis, dos fertilizantes e dos alimentos. Com o aumento da inflação, redução da renda das famílias e, imediatamente, levando os governos, via Bancos Centrais, a incremento das taxas de juros, com redução da liquidez internacional e a elevação dos custos financeiros, com a redução dos movimentos de riscos, levando os agentes econômicos e financeiros a reduzirem recursos alocados em investimentos de risco e a buscarem os investimentos de menor risco, como a renda fixa.

As empresas de tecnologias, grandes conglomerados econômicos e produtivos, perceberam os movimentos de reestruturação, buscando equacionar seus equilíbrios financeiros e aumentar seus rendimentos sem mexer nos grandes ganhos para seus acionistas e os investidores, com isso, aumenta o contingente de desempregados numa sociedade centrada por instabilidades e volatilidades crescentes, com degradações econômicas, desequilíbrios familiares, com incremento das ansiedades e formas generalizadas de patologias sociais que culminam em violências crescentes, ressentimentos, medos e inseguranças que levam a sociedade as desorganizações crescentes.

As demissões em massa da sociedade contemporânea tendem a continuar em alta e os lucros dos acionistas e dos investidores tendem sempre a ascensão. Neste ambiente, a exploração dos fragilizados tende a crescer e os rendimentos dos trabalhadores tendem a se reduzir rapidamente, com isso, os consultórios de psicólogos e terapeutas tendem a crescer de forma acelerada, caracterizando uma sociedade desigual, degradada e violenta. E ainda encontramos gurus acreditando e apregoando que a solução desta equação está no empreendedorismo….

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 01/02/2023.

Leniência militar em 8 de janeiro lembra levante integralista de 1938, por Antonio Lavareda.

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Há 85 anos, Palácio da Guanabara estava desguarnecido na hora do ataque e forças de segurança demoraram a chegar

Antonio Lavareda, Doutor em ciência política e professor colaborador da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Presidente de honra da Abrapel (Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais)

Folha de São Paulo, 29/01/2023

[RESUMO] O Brasil sofreu 13 investidas golpistas desde a Independência, entre as quais o ataque aos três poderes no último dia 8. A ação dos bolsonaristas guarda semelhanças com o levante da AIB (Ação Integralista Brasileira) em 1938. Nesses episódios, os golpistas encontraram a residência e a sede da Presidência desguarnecidas, as forças de segurança demoraram a chegar e houve omissão de setores do Exército. Resta saber se o futuro da nova extrema direita será melhor que o do fascismo tropicalizado dos anos 1930, que entrou em declínio após a Segunda Guerra.

Alguns fenômenos políticos, sobretudo quando inusuais e estrepitosos, ao ocorrerem tornam irresistíveis os exercícios comparativos. É quando a leitura dos fatos os coloca em perspectiva, permitindo identificar singularidades, de um lado, e constantes históricas, de outro.

O 8 de janeiro, que despertou estupor no mundo, por certo demandará um olhar assim quando as investigações descortinarem toda a sua tessitura, incluindo, além dos vândalos, a autoria intelectual e os apoiadores explícitos e ocultos e esclarecendo como se dava a relação entre os quartéis e os acampados à sua frente.

Nós não temos, que eu saiba, um estudo comparativo suficientemente amplo desses processos de tomada violenta do poder na América Latina, embora o continente seja pródigo deles. Nem mesmo das revoluções havidas —do que, aliás, já reclamava Joaquim Nabuco (1849-1910) em sua releitura do fim trágico do presidente chileno José Manuel Balmaceda— e muito menos no Brasil, onde, desde a Independência, tivemos 13 golpes de Estado, exitosos ou não.

Eles se distinguem dos movimentos separatistas, como a Confederação do Equador (1824) ou a Guerra dos Farrapos (1835-1845). Diferem também de outros conflitos como a Revolução Constitucionalista de São Paulo (1932) e mais ainda dos movimentos revoltosos tenentistas, incluída a Coluna Prestes (1924).

Golpes ou autogolpes implicam o assalto direto aos Poderes e objetivam a ruptura constitucional. Foram de iniciativa palaciana os de 1823 (dissolução da Assembleia Constituinte), 1840 (Golpe da Maioridade), 1891 (Deodoro fecha o Congresso) e 1937 (Estado Novo). O de Marechal Deodoro durou apenas 20 dias.

Todos os demais tiveram como objetivo a destituição ou o impedimento dos então chefes de Estado. Começando pela implantação da República (1889), depois pela Revolução de 1930, que culminou com o golpe militar que depôs Washington Luiz, pela Intentona Comunista (1935), pelo Levante integralista de 1938, pela deposição de Vargas (1945), pelo chamado contragolpe legalista do marechal Lott (1955), pela adoção forçada do parlamentarismo (1961), pelo golpe militar de 1964, que inaugurou a Quinta República, e pelo assalto às sedes dos três Poderes em janeiro de 2023. Golpes e autogolpes vitoriosos foram 70% deles.

Houve movimentos com menor ou maior participação popular, mas a constante irrefutável é a participação de “cidadãos armados”, os militares. Nunca foi minimamente plausível subverter o regime sem a sua participação, e o tamanho da adesão dos mesmos sempre foi a principal variável explicativa do êxito ou do fracasso dessas iniciativas.

A breve compilação acima dos eventos anteriores de igual natureza nos permite identificar um único episódio que guarda alguma similaridade com o golpe frustrado do início deste ano: o putsch da AIB (Ação Integralista Brasileira), o fascismo tropicalizado, em 11 de maio de 1938, uma semana após o fechamento da entidade pelo governo Vargas.

Os que atacaram, 85 anos atrás, o Palácio Guanabara, residência presidencial à época, também o encontraram desguarnecido, tal como se deu em Brasília nos prédios do Planalto, Congresso e Supremo, quando horas foram decorridas até que os responsáveis pela segurança enfrentassem os invasores.

Como lembra Lira Neto, no golpe integralista eram poucas dezenas de atiradores, mas não se via inicialmente qualquer mobilização dos milhares de militares acantonados no Rio de Janeiro para sufocar o levante, que era enfrentado na madrugada pelos funcionários do Palácio, alguns militares leais ao presidente e por Vargas e seus familiares empunhando armas.

O tenente Júlio Barbosa, oficial do dia, facilitou a entrada, por um portão lateral, dos invasores chefiados pelo também tenente Severo Fournier. Ele também restringiu propositalmente a munição da tropa incumbida da guarda, que terminou se rendendo aos golpistas.

Mesmo comunicada, a polícia demoraria horas para enviar reforços e foram visíveis as omissões de setores do Exército e da Marinha, cujo prédio também foi ocupado. Os atacantes só foram rechaçados após a chegada decisiva do general Dutra, então ministro da Guerra, cuja presença sinalizou o apoio da cúpula das Forças Armadas ao presidente. A lógica da operação estava desfeita.

O objetivo era eliminar fisicamente o presidente e, no vácuo político, abrir caminho para os militares, entre os quais havia um sem número de simpatizantes do integralismo, tomarem o poder. Suspeitos de envolvimento ou simpatia foram, entre outros, o almirante Guilhem, o general Góis Monteiro, admirador confesso de Hitler, e Filinto Müller, o chefe de polícia famoso pela repressão sanguinária. Mas Vargas, ditador dependente dos aliados militares, não quis esclarecer a participação deles. Anos depois seria deposto por Góis.

Quanto à autoria intelectual, esse papel coube a Plínio Salgado, depois preso e exilado em Portugal. Líder do movimento que chegou a contar com 1,5 milhão de adeptos por todo o Brasil, ele se sentiu traído por Getúlio, que mandara fechar as sedes da AIB, colocando-a na ilegalidade, após ter contado com seu apoio no combate aos comunistas e na criação do Estado Novo. Ou seja, o golpe de 1938 foi urdido por um movimento político, o integralismo, com apoio na sociedade civil e ramificações incontroversas nas Forças Armadas e na polícia do Rio de Janeiro.

A lógica da tentativa de golpe de 2023, mesmo sem tiroteios como seu congênere da Terceira República, foi basicamente a mesma. Visava surpreender e desarticular o sistema político, promovendo um cenário caótico nas sedes dos três Poderes, o qual, transmitido pelas redes sociais e repercutindo nas TVs, obrigaria, no entendimento dos seus idealizadores, a “intervenção militar” reclamada desde a vitória do novo presidente pelos acampamentos à frente dos quartéis, com milhares de radicais que imaginavam ter suas teses acolhidas, interpretando dessa forma a leniência dos chefes militares que admitiram essas concentrações, não o bastante suas faixas e redes sociais afrontarem a Constituição.

Lembrando que a ideia de intervenção no TSE, no último mês do mandato de Bolsonaro, na prática um autogolpe como a famosa minuta do decreto evidenciou, provavelmente foi descartada por insuficiência de adesão das altas patentes.

Os participantes de agora foram extraídos de um movimento antissistema de extrema direita que, ao invadir e destruir os prédios que simbolizam a República, removeram as últimas dúvidas sobre o caráter regressivo de sua liderança, movida pela nostalgia do regime militar de 1964.

O bolsonarismo, no segundo turno do ano passado, aproximou-se da metade da votação presidencial válida, e o partido que o abrigou (PL) logrou eleger a maior bancada da Câmara Federal. Tal como a antiga AIB, tem conexões internacionais —é o capítulo local da nova direita mundial— e se mostrou bem mais enraizado que seu predecessor da primeira metade do século 20.

Em expansão no mundo, o futuro dessa vertente não parece comprometido, como se deu com as ideias fascistas que, após empolgarem porções significativas do Ocidente, entraram em derrocada juntamente com o Eixo na Segunda Guerra. Nadando nessa raia, o integralismo brasileiro declinaria durante o conflito e nunca se recuperou da mancha de 1938. Quando sobreveio a redemocratização, tampouco conseguiria reaver a força original.

Ao disputar finalmente a Presidência, em 1955, Plínio Salgado só alcançou 8,3% dos votos. Somente na região Sul chegou aos dois dígitos (14,2%). Em toda a República do Pós-Guerra, a direita seria representada pela UDN, que terminaria encapsulando o populista Jânio Quadros para finalmente ganhar a eleição de 1960. Plínio continuaria sua caminhada com horizonte mais modesto. Seria deputado por São Paulo, apoiador do golpe militar de 1964 e depois vice-líder da Arena na Câmara dos Deputados.

Não é fácil divisar o futuro do bolsonarismo. Vai depender do aprofundamento das investigações e da eventual responsabilização e inelegibilidade de Bolsonaro, sobre o qual pesam suspeitas de participação no possível autogolpe de dezembro e no golpe de janeiro. Também dependerá do posicionamento que seus líderes —o ex-presidente e parlamentares— venham a adotar.

Para qualquer evento futuro, sempre haverá no mínimo duas rotas possíveis para os personagens, como Churchill nos mostrou escrevendo o perfil de Hitler em 1935.

Prevalecerá a retórica antissistema, baseada no mito da fraude nas urnas? Ou essa página será virada, como aliás já fizeram os governadores desse campo, e o enfrentamento se dará como oposição “normal”?

Na primeira hipótese, o movimento, uma vez inviabilizado legalmente o líder, apresentaria uma candidatura do clã. Perderia certamente densidade eleitoral, deixando de ser competidor efetivo pelo poder nacional.

Já na segunda opção, novos nomes disputariam o espólio bolsonarista, distanciando-se do fantasma do 8 de Janeiro, embora sempre equilibrando-se para contar com as bênçãos do ex-presidente e tentar, assim, manter a hegemonia à direita no espectro ideológico.

Barbárie em Brasília não é obra só de bolsonaristas radicais, por Bernardo Carvalho

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Tentativa de se desvincular de responsabilidades une eleitores não envolvidos no ataque e criminosos

Bernardo Carvalho, Romancista, autor de “Nove Noites” e “O Último Gozo do Mundo”.

Folha de São Paulo, 29/01/2023

Nos dias seguintes à invasão da praça dos Três Poderes pela turba bolsonarista, 93% dos brasileiros se diziam contrários aos atos de vandalismo, segundo pesquisa do Datafolha, mas apenas 55% atribuíram alguma responsabilidade ao ex-presidente, um pouco mais dos que não votaram nele.

Desde a invasão, governo, autoridades e jornalistas tentaram associá-la a uma minoria criminosa, ignorante e insana. O momento é de emergência, de reunir forças para tentar governar (“pacificar”) um país onde quase metade dos eleitores votou em Bolsonaro mesmo depois de quatro anos de um governo cuja racionalidade não diferia em essência da turba que invadiu e depredou as sedes dos Três Poderes.

Que racionalidade é essa?

O ex-presidente tem histórico de incendiário. Como militar, planejou plantar bombas para aumentar seu salário. Como deputado, fez a apologia da tortura no Parlamento. Como presidente, tomou todas as medidas a seu alcance para incendiar o patrimônio público, extinguindo multas, desregulando e desmontando órgãos de controle, corrompendo com prendas diversas as forças de segurança, pondo-se a serviço dos delírios inconstitucionais de alguns de seus membros. Também fez de tudo para armar a população contra si mesma, para implodir e desestabilizar as instituições.

Daí o aparente absurdo, embora essa sempre tenha sido a tática bolsonarista, de tentar desvinculá-lo dos atos do dia 8, chegando ao cúmulo de atribuir a supostos esquerdistas infiltrados a responsabilidade do crime. depois de tê-lo defendido e incentivado de maneiras mais ou menos dissimuladas ao longo dos anos.

Por razões opostas, analistas de diversos extratos também tentaram circunscrever a barbárie a uma minoria ignara e radical, como se ela nada dissesse dos eleitores de Bolsonaro não diretamente envolvidos nos atos.

Há, entretanto, um elemento da performance do dia 8 que acaba unindo os dois grupos (ativos e passivos) no próprio esforço de desvinculação. Quase tudo o que vimos da destruição do Congresso, do Palácio do Planalto e do STF se deve a selfies orgulhosas e registros da cena do crime gravados pelos próprios criminosos. O que esperavam que ocorresse?

Nas selfies há uma cisão entre ato e responsabilidade. A conexão entre os dois só pode ocorrer pela lei. A queda no real, num segundo momento, a ressaca da alucinação bolsonarista, com as prisões, as investigações e os indiciamentos, fez com que os vídeos de repente começassem a desaparecer, apagados pelos próprios agentes que os gravaram para registrar suas ações antes “heroicas e patrióticas”.

Já ouvi gente em princípio civilizada dizer que votou em Bolsonaro pela segunda vez porque não tinha escolha, tapando o nariz, repetindo o mesmo mantra de 2018, como se não houvesse história, memória, experiência ou responsabilidade.

Tem a ver com o autoengano de um identitarismo ideológico, infantilizado e oportunista, para o qual a justiça é um estorvo: o culpado é sempre o outro. Ninguém assume nada nunca. Se tive de votar em Bolsonaro, foi culpa do “comunismo”.

Os que dizem ter tapado o nariz para votar em Bolsonaro também taparam o nariz para os criminosos do dia 8, mas como se fossem coisas diferentes, assegurando que o ex-presidente (assim como a parte da polícia e das Forças Armadas aparelhada e corrompida por e com ele) nada tem a ver com o crime. Se o ex-presidente tiver a ver com o crime, eles também terão. A conexão é insuportável. A responsabilidade associa “gente de bem e de Deus” a criminosos.

Pouco a pouco, vai se delineando o papel de militares no que culminou com os atos de vandalismo contra a República. Não haverá “pacificação” sem que os responsáveis assumam, sob a pena da lei, sua parte no horror. Mas também não dá para continuar a perpetrá-lo no conforto do lar, com a mão no nariz, dizendo que não tem nada a ver com isso, ou conspirando, à espera de uma nova oportunidade, atrás dos muros dos quartéis. A irresponsabilidade e a covardia são a base do modo de agir bolsonarista.

O governo Bolsonaro foi um longo ato de incitação contra a República, e não podia ser outra a sua consequência. Bolsonaro tomou o partido do crime contra os bens públicos. Grileiros, garimpeiros e madeireiros ilegais. Chefes da milícia.

Desvincular-se dele significa uma condenação enfática não apenas do personagem mas do que ele representa. Significa fazer as conexões, assumir as responsabilidades. Ou ficaremos à espera do próximo ataque, para sempre à espera dos bárbaros, quando faz tempo que eles estão entre nós.

Lula precisa derrotar o ódio e usar sua autoridade sem abusar do poder, por Betty Milan

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Petista se opõe a todas as formas de fanatismo e pode reintegrar o Brasil no mundo

Betty Milan, Escritora e psicanalista, é autora de “O Papagaio e o Doutor” e “Baal”; membro da Academia Paulista de Letras

Folha de São Paulo, 28/01/2023.

O que já mudou com as eleições? Tivemos um presidente que se autoengrandecia a ponto de se declarar imune ao coronavírus e merecedor da medalha do mérito científico. Um narcisismo desmesurado pelo qual o país pagou com a morte de milhares de pessoas que poderiam não ter morrido. Disso ninguém mais duvida. Se o lockdown tivesse sido sério e a vacina aplicada em tempo hábil, o número de mortes seria significativamente menor.

O narcisismo é mortífero como mostra o mito. De tão belo e vaidoso, Narciso desprezou todas as pretendentes e se apaixonou pelo próprio reflexo. Não podendo deixar de se olhar, não podia sair da beira da fonte onde via sua imagem refletida e, de tão fascinado por si mesmo, morreu de fome e sede. Tornou-se o símbolo da falta de empatia pelos outros e do individualismo.

Como Narciso, o ex-presidente só existia pela e para a sua imagem. O lábio inferior tremia sempre que precisava fazer um discurso.

De nada ele tinha mais medo do que da tribuna para qual, dada sua limitada capacidade intelectual, não havia nascido. Como só a palavra permite justificar os próprios atos, só podia ser autoritário. Se valia da palavra para atacar as instituições ou fazer provocações e saiu de cena como incendiário-geral da República.

Na democracia, quem governa precisa se valer da sua autoridade sem abusar do poder que lhe é outorgado e, para tanto, tem que escutar. O que Lula está fazendo é isso. A exemplo, o seu discurso para os reitores das universidades. “Não pensem que o Lula vai escolher o reitor que ele gosta. Quem tem que gostar do reitor são os professores.”

Lula se vale da fala para se posicionar como quem respeita o desejo e o saber do outro. Por isso, diante do mesmo público, afirmou que a comunidade universitária, e não o presidente, sabe quem tem condições de administrar a universidade.

Como ele respeita o saber alheio, valoriza a escuta e a reunião com as diferentes corporações para ouvir queixas, cobranças, “se informar sobre o que falta e o que não falta”. Insiste na ideia de que será sempre possível divergir, “mas de forma civilizada porque democracia é isso”.

Faz questão de transmitir o que sabe.

Quer “derrotar” o ódio, as fake news, o fanatismo para que a sociedade brasileira possa voltar a sorrir, gostar de música, de Carnaval e de futebol, “gostar da gente ser humanista, a gente ser mais fraterno, mais solidário”.

Há circunstâncias em que o ódio precisa ser derrotado como fez Lula, ao demitir e exonerar rapidamente quem foi conivente com o vandalismo. Nas suas memórias sobre Auschwitz, Primo Levi escreveu que, contra um lobo furioso, a gente pode tudo: mentir, trair, matar.

Noutras circunstâncias, não se tratará de derrotar o ódio, e sim de vencê-lo, não instigando mais ódio, “contendo as pedradas” como disse sabiamente o ministro Luís Roberto Barroso para um jornalista, ao sair do STF vandalizado.

No que diz respeito às fake news, só uma nova regulamentação sobre a informação permitirá resolver esta prática que foi sistematicamente adotada pela KGB, onde quanto mais desinformação o funcionário produzia, mais subia na hierarquia da instituição. Putin foi o desinformador mor.

Quanto ao fanatismo, é necessário denunciar o seu discurso onde quer que ele se manifeste. O fanatismo religioso, durante a pandemia, foi tão responsável pela contaminação quanto o ex-presidente.

Segundo um dos bispos evangélicos, a preocupação com o novo vírus resultava de uma tática de Satanás para espalhar o medo. Queira ou não ainda estamos às voltas com esta e outras formas de fanatismo como o racismo, o machismo e o nacionalismo.

Lula se opõe a todas. Mostrou isso ao compor o seu ministério e anunciar um programa de governo que leva em conta a solidariedade internacional e pode reintegrar o país no mundo. Será uma glória se nós enfim pudermos deixar de viver isolados no mapa mundi do Brasil.

Homofobia é um elemento central para mobilizar paixões políticas, diz cientista político

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Luis Felipe Miguel, professor na UnB, afirma que a ideia de democracia política está em crise como resultado de uma ausência de democracia social

Tayguara Ribeiro e Priscila Camazano

Folha de São Paulo, 25/01/2023

A ideia de democracia está em crise. Causas? Uma das principais é a ausência de democracia social, ou dito de outra forma, a existência de desigualdades e a dificuldades no acesso a serviços essenciais.

Segundo essa análise de Luis Felipe Miguel, professor de ciência política da UnB (Universidade de Brasília), isso levou a conflagração nos últimos tempos pelo mundo afora porque os regimes democráticos passaram a cada vez menos responder às demandas da população.

Para ele, as pessoas se sentem ameaçadas porque os seus valores maiores estão sendo atacados.
“É um pânico moral, que não leva a reflexão. Ele é alimentado pelos preconceitos mais arraigados das pessoas. A homofobia, por exemplo, é um elemento central para mobilizar paixões políticas.”

A partir da incapacidade dos governos de reduzir as desigualdades, cresce também o papel social das igrejas. E o poder político de alguns de seus representantes. Abalando, assim, o conceito de separação de religião e política.

“O mais grave é que essa entrada da religião perverte o debate público. Vimos no segundo turno um debate sobre coisas fantasiosas, como satanismo e quem é mais cristão. As questões centrais em termos de projeto de país não têm espaço porque há esse uso político da religião”, avalia.

Setores que têm discurso antissistêmico, como os apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, afirma o professor, “ao mesmo tempo em que cooptam as pessoas, eles meio que blindam contra a realidade”. “Porque [esses indivíduos] estão inseridos em bolhas em que as pessoas repetem os maiores absurdos e não são confrontadas.”

O professor da UnB analisa que a direita tradicional tem parcela importante de responsabilidade no atual momento político. “Achou que colocar a extrema direita na rua seria útil para derrubar a presidente Dilma”, diz. “Mas o que aconteceu foi que a direita tradicional foi aniquilada no Brasil nas últimas eleições”.

No livro “Democracia na Periferia Capitalista: Impasses do Brasil”, o senhor faz uma análise sobre a democracia. Qual a relação entre a crise democrática e o momento atual do Brasil? O modelo de organização política que chamamos de democracia foi construído nos países da Europa.

Em um processo longo de compromisso entre as elites e a maioria da população.

Foi um sistema que permitiu que a maioria fosse ouvida de alguma maneira no processo de tomada de decisões, ou seja, amenizava a dominação social.

Mas isso foi entrando em crise nos últimos tempos pelo mundo afora, porque os regimes democráticos passaram a cada vez menos responder às demandas da população.

As pessoas foram se desencantando desse modelo. A democracia perdeu vitalidade, ou seja, as demandas populares deixaram de encontrar eco nas decisões do governo. Foi nesse espaço que os políticos com o discurso antissistêmico —o Bolsonaro é o maior exemplo no Brasil—, conseguiram ter sucesso.

Vemos no Brasil um exemplo muito radical de um processo que acontece em outros países do mundo, como nos Estados Unidos com o Trump, na Hungria e na Polônia. Agora, a Itália tem um governo que é tão radical quanto o brasileiro. Isso é um fenômeno generalizado.

A desigualdade social prejudica ou diminui o interesse pela democracia? Sem dúvida nenhuma, porque o que está no coração da democracia é a ideia de igualdade. Quando percebemos que as desigualdades não são enfrentadas, parece que ela não está funcionando.

Depois da Constituição de 1988, iniciativas para melhorar as desigualdades foram implantadas, mas grupos começaram a obstaculizar os avanços no Brasil. O maior exemplo disso é o teto dos gastos, uma emenda constitucional que proíbe o Estado brasileiro de adotar medidas de combate às desigualdades.

Nós votamos, mas tem certas coisas que mexem com a estrutura de desigualdade que já estão proibidas de antemão. Isso desencanta as pessoas. Daí chegou alguém com discurso de ‘sou contra tudo e contra todos’ e isso criou uma sedução.

Então estamos em um ciclo que se retroalimenta? Como sair? Isso não é fácil, porque ainda tem outros fatores.

Setores que têm discurso antissistêmico, ao mesmo tempo em que cooptam as pessoas, eles meio que se blindam contra a realidade. Porque [os indivíduos] estão inseridos em bolhas em que as pessoas repetem os maiores absurdos e não são confrontadas.

O que vemos no Brasil hoje é o efeito disso. Quer dizer, uma captura de uma parte significativa da população por uma mistificação política. Ninguém penetra naquilo. Não existe contraste com a realidade, nem critério de verdade.

É por isso o maior poderio da religião no sistema político? A religião está suprindo as demandas sociais? Sim. Na verdade, temos um recuo também desse ponto de vista.

A combinação entre religião e política leva ao acirramento dos conflitos políticos. Porque os valores religiosos estão a serviço das pessoas como intocáveis, ao passo que a política exige sempre o espaço de negociação. Essa combinação vai ser mobilizada porque é útil para os agentes políticos.

Nas comunidades mais pobres do Brasil, mas não só, as igrejas aparecem como aqueles espaços que dão esperança para as pessoas que não estão encontrando isso nos serviços públicos.

O mais grave é que essa entrada da religião perverte o debate público. Vimos neste segundo turno um debate sobre coisas fantasiosas, como satanismo e quem é mais cristão. As questões centrais em termos de projeto de país não têm espaço porque há esse uso político da religião.

As pessoas se sentem ameaçadas porque os seus valores maiores estão sendo atacados. É um pânico moral, que não leva a reflexão. Ele é alimentado pelos preconceitos mais arraigados das pessoas.

A homofobia, por exemplo, é um elemento central para mobilizar paixões políticas.
Isso mostra a meu ver que nesses anos de democracia só arranhamos a casca dos preconceitos e ressentimentos presentes na sociedade brasileira.

As fake news que são lançadas remetem para os mesmos pontos. Um dia é o kit gay nas escolas, outro dia a mamadeira de piroca, outro dia o banheiro unissex. Estamos vendo uma mobilização deliberada da homofobia que está presente na mentalidade de boa parte da população brasileira misturada com o discurso religioso.

Existe dificuldade para as pessoas entenderem essa discussão sobre democracia nas eleições? Para começar, existe uma dificuldade de compreender o funcionamento da democracia. Temos o voto e o mais votado manda em nome da maioria. Isso é democracia, mas é só um aspecto dela.

As pessoas precisam ter condições de pensar com as suas próprias cabeças e formular suas preferências políticas na democracia. Por isso, precisamos de um debate livre e plural.

É preciso ter mecanismos que impeçam o abuso de poder por parte de quem foi eleito. Por isso, temos instituições liberais, divisão dos poderes e controles mútuos.

O que vemos no governo [Bolsonaro] é um ataque contra tudo isso. Existe um ataque contra a separação de poderes e uma tentativa de dobrar o Legislativo por meio da corrupção.

A liberdade de dissidência, ou seja, de fazer oposição, foi ameaçada por um governo que estimula apoiadores à violência política.

Quais fatores contribuíram para a ascensão da nova extrema direita brasileira? Há um elemento internacional que tem a ver com as frustrações com a democracia liberal. Uma parte da população está ressentida com os avanços, ainda que insuficientes, das lutas antirracistas, feministas e assim por diante. Não é à toa que a principal base dessa extrema direita é formada por homens brancos.

No caso brasileiro, tem uma coisa que é muito importante e não se pode deixar de lado. A direita tradicional achou que colocar a extrema direita na rua seria útil para derrubar a presidente Dilma [em 2016]. A ideia era que depois esse pessoal fosse recolhido e os conservadores de sempre ficariam com o prêmio, mas o que aconteceu foi que a direita tradicional foi aniquilada no Brasil nas últimas eleições.

Na conclusão do livro “Democracia na Periferia Capitalista: Impasses do Brasil”, o senhor fala sobre possíveis cenários para o Brasil após as eleições. Quais são eles? Lula vai enfrentar uma série de desafios. Mas eu quero focar em duas questões principais.

Uma é como lidar com a força da extrema direita. Eu penso que a estabilidade do novo governo e a possibilidade de efetiva reconstrução democrática dependem da responsabilização de Bolsonaro e de seus próximos pelos muitos crimes cometidos. Não é admissível deixar impune o golpismo explícito, a corrupção eleitoral, o banditismo institucional da Polícia Rodoviária.

A segunda questão é a relação de Lula com seus muitos aliados conservadores. Há uma pressão forte para que, restabelecendo a fachada da vigência das regras democráticas, o governo se mantenha impermeável às demandas populares.

Mas se Lula não for capaz de responder às premências dos mais pobres e de conceder novamente aos trabalhadores uma voz no debate público, ele terá fracassado na missão que ele mesmo sempre atribuiu a si mesmo como líder político.

É um caminho estreito, entre, de um lado, a reaglutinação das forças que deram o golpe de 2016, para impedir Lula de governar com ou sem impeachment, e, de outro, uma normalização dos retrocessos sociais que representa a traição das promessas da democracia. Nenhum político brasileiro é tão credenciado quanto Lula para trilhar esse caminho, mas nem por isso a tarefa é fácil ou o resultado, garantido.

RAIO-X
Luis Felipe Miguel, 55
É professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. Coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê), e é pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Autor, entre outros, do livro “Democracia na Periferia Capitalista: Impasses do Brasil” (Autêntica, 2022).

O que o Brasil quer de seus militares? por Ricardo Abramovay

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Ricardo Abramovay

A Terra è Redonda – 23/01/2023

A elite de nossa corporação armada fez como se a queda do Muro de Berlim nada significasse em sua estratégia de atuação e para os valores básicos que a orientam

O exercício reflexivo e autorreflexivo necessário à superação da tentativa de golpe de 8 de janeiro passa por uma pergunta crucial: o que o Brasil quer de seus militares? Até aqui, e desde 1985, o país fortaleceu sua democracia – não apenas sem acertar as contas com os crimes cometidos por representantes do Estado durante a ditadura, mas, sobretudo, sem jamais entrar no mérito daquilo que os mais expressivos comandos militares pensam, como se as bases político-culturais da formação e da atuação dos militares fossem assunto corporativo interno. O problema é que essa autonomia pesa como espada de Dâmocles sobre a sociedade. [Segundo a lenda grega, Dâmocles era um conselheiro que cobiçava o lugar do rei – que um dia o cedeu. Dâmocles observou então que sobre o assento real pairava permanentemente uma espada.]

A questão central se inverte e recebe formulação ameaçadora: o que os militares querem do Brasil?

A pergunta é impertinente e absurda numa democracia, mas é radicalmente legitimada pelos comandos militares. Sua resposta não se limita à ideia de que todos queremos um país soberano, próspero, cada vez menos desigual e democrático. Inúmeros seminários, declarações e lives realizadas durante a pandemia mostram que os comandos militares mais próximos ao Palácio do Planalto difundiram uma visão alucinada de mundo, que as redes sociais amplificaram e que não seria tão grave se não viesse da burocracia armada que tem como função constitucional defender o país.

Mas defender o país contra o quê? Por incrível que pareça, a mais importante inspiração do comando militar que esteve junto ao Palácio do Planalto nos últimos anos para responder a esta pergunta é um conjunto de trabalhos do general Golbery do Couto e Silva, publicados nos anos 1950, cuja ideia básica é que, no mundo posterior à Segunda Guerra Mundial, as fronteiras físicas foram substituídas por fronteiras ideológicas. Por essa concepção, a missão da burocracia armada não é tanto proteger o país de invasões externas, mas sim de guardá-lo contra um inimigo interno que acabou se materializando, após o golpe de 1964, nas organizações de resistência à ditadura. Nessa narrativa, tortura, assassinatos, sequestros e outras formas de violência amplamente documentadas justificam-se pela missão cívica de impedir a vitória do comunismo.

Grandes corporações só perduram no tempo se forem capazes de perceber as mudanças nos ambientes em que atuam. Mas a elite de nossa corporação armada fez como se a queda do Muro de Berlim nada significasse em sua estratégia de atuação e para os valores básicos que a orientam.

O inimigo continua sendo interno. O delírio de que paira sobre o país uma ameaça comunista no início da terceira década do século XXI não é um puro produto das redes sociais. É uma ideia que a direção da burocracia militar não cessou de propagar, seja quando insistia em comemorar o golpe de 1964 seja em declarações cotidianas. Os acampamentos em frente aos quartéis foram admitidos por fortalecerem essa fantasia com a qual a elite militar brasileira, ao menos a que esteve junto ao Palácio do Planalto nos últimos anos, se identifica.

E isso não foi objeto de debate público em que essas fantasias pudessem receber algum teste de realidade. Ao contrário, formou-se, por meio das redes sociais, o que a professora Zeynep Tufekci, da Universidade Columbia, chama de “esfera pública oculta”, em que a visão conspirativa de mundo se espalha, mas sob a forma de bolhas de pertencimento, o que impede que ela se submeta a qualquer forma sensata de verificação empírica e, muito menos, de discussão pública e aberta.

Mas, nos dias de hoje, o maior inimigo interno, além desse fantasma comunista, é a sustentabilidade. Quem o afirma é o general, e agora senador, Hamilton Mourão. Em Webinar realizado por ocasião dos duzentos anos da independência, no dia 25 de agosto de 2021, no Instituto General Villas Bôas, ele explicava: “neste século XXI, uma das maiores questões que ameaçam a soberania é a sustentabilidade. Dessa forma, a questão do desenvolvimento da Amazônia, onde diversos atores não estatais limitam nossa soberania, é algo que tem que se abraçado pela nação como um todo”. Ao comunismo somam-se, como inimigos internos, os ativistas, os cientistas e os empreendedores que defendem a floresta e os povos que nela vivem.

Já o general Augusto Heleno, na audiência pública sobre o Fundo Clima, convocada pelo ministro Luís Roberto Barroso, no STF, pontificava, em 2020: “As razões do aquecimento são discutidas por cientistas famosos com teses antagônicas”.

Estes não são casos isolados: ainda em 2021, em conversa com o Instituto Defesa & Segurança, o general Luiz Eduardo Rocha Paiva criticava os “governos submissos” que comprometeram a soberania nacional, particularmente em áreas de fronteira, por terem promovido a demarcação e assinado a “Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas”.

Estes desvarios estão fortemente relacionados às prioridades que o comando da burocracia militar estabeleceu, juntamente com o Palácio do Planalto e parte significativa do Parlamento, para a maior floresta tropical do mundo: legalizar o que o bom senso e a democracia tornaram ilegal (invadir territórios indígenas, fortalecer o garimpo, extrair madeira ilegalmente e grilar de terras públicas) e impedir o fortalecimento das organizações e das atividades ligadas ao desenvolvimento sustentável. Paralisar o Fundo Amazônia e denunciar o multilateralismo democrático são expressões desse desatino que fez do Brasil um pária global.

É claro que as pessoas têm o direito de acreditar no que quiserem. O que não é admissível é que as ideias e as bases político-culturais da formação e da atuação de um corpo burocrático tão importante e custoso sejam tratadas como um tema de interesse interno, inacessível e insensível ao debate democrático. O 8 de Janeiro não irá para o passado enquanto o Brasil não discutir ampla e abertamente os valores ético-normativos que norteiam a burocracia militar.

Ricardo Abramovay é professor titular sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Autor, entre outros livros, de Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza (Elefante/Terceira Via).

Instabilidades gerais

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Estamos iniciando mais um ano marcado por grandes incertezas e desafios crescentes na sociedade internacional, que geram instabilidades gerais, desequilíbrios emocionais e novas oportunidades. De um lado, percebemos o crescimento dos conflitos militares, com instabilidades sociais, degradações políticas, contestações sobre modelos de negócios e fortes transformações no mundo do trabalho. De outro lado, percebemos a degradação climática, alterações crescentes no meio ambiente, além de desequilíbrios existenciais, desajustes emocionais e, no limite, aumento da depressão, ansiedades e suicídios, gerando um verdadeiro caos na saúde pública.

Neste cenário, percebemos as movimentações militares que podem gerar constrangimentos para a sociedade internacional, onde as nações estão impulsionando os investimentos bélicos, despejando trilhões de dólares para aumentar a produção de armas e tecnologias militares, gerando medos e preocupações sobre conflitos nucleares, cujas repercussões armamentistas são incertas, destruidoras e degradantes.

Destacando o incremento das demissões de trabalhadores em grandes conglomerados econômicos e produtivos, todos os dias recebemos, nos noticiários especializados, informações de empresas de tecnologia, bancos, indústrias e grandes varejistas que estão demitindo grande contingente de seu quadro funcional. Neste cenário, percebemos que o ambiente de fortes investimentos destes conglomerados está chegando ao final, com o incremento dos juros e a diminuição da liquidez global, estes negócios estão buscando investimentos em renda fixa, risco baixo e, ao mesmo tempo, os governos que, anteriormente aumentavam os investimentos nos momentos de incertezas e instabilidades, foram fragilizados financeiramente depois dos gastos elevados da pandemia. Com isso, suas dívidas cresceram e seus riscos de insolvência aumentaram, levando-os a reduzirem suas exposições e postergando os investimentos produtivos, resultado imediato, sem investimentos públicos e um setor privado endividado, a recuperação econômica tende a demorar mais e os grandes perdedores são os setores mais fragilizados da sociedade, gerando instabilidades, incertezas sociais e degradação política.

O ambiente internacional se caracteriza por grandes instabilidades e fortes volatilidades, a escalada de conflitos militares e as preocupações crescentes com guerras nucleares, o aumento da inflação, o incremento da inadimplência, a compressão dos mercados internos, taxas de juros em ascensão, aumento nos conflitos comerciais e o protecionismo entre nações, instabilidades dos preços dos alimentos e da energia, tudo isso contribuem para as incertezas da economia mundial, criando um clima adverso e fortemente negativo, que contribuem para postergar a recuperação da economia internacional e acaba criando um século de instabilidades gerais e fortes preocupações sobre os rumos das nações, com impactos negativos para os indivíduos, alterando constantemente os modelos de negócios, levando todos os agentes econômicos e políticos a buscarem um caminho seguro e consistente numa travessia fortemente tortuosa, marcadas por medos, incertezas e constrangimentos crescentes.

Neste cenário centrado em fortes volatilidades, a sociedade brasileira sente as grandes inquietações que restringem as estratégias econômicas e limitam a recuperação econômica, postergando medidas estruturais fundamentais para que o país encontre o crescimento econômico sustentável, desta forma, percebemos que a economia nacional caminha a passos lentos, sem investimentos produtivos, sem perspectivas positivas e convivendo com instabilidades cotidianas, com conflitos políticos, desorganização institucional e confrontos generalizados. Enquanto as outras nações buscam a construção de novos horizontes de desenvolvimento econômico, refundando suas estruturas industriais, adotando políticas urgentes para reduzirmos as dependências externas e o aumento de sua autonomia.

Neste momento de instabilidades é imprescindível o surgimento de lideranças conscientes, visionárias e capacitadas para reconstruir novos horizontes, contornar os desequilíbrios, fortalecendo setores produtivos, reorganizando as instituições, reconstruindo e aperfeiçoando políticas públicas exitosas, pacificando a nação, investindo em capital humano e construindo um verdadeiro projeto nacional, sem isso, não teremos desenvolvimento econômico.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.