Sobre teto e alicerces, por Graziella Magalhâes.

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Regra é rígida demais, crível de menos e pouco suscitou reformas

Graziella Magalhães, Doutora em teoria econômica (USP), é professora da Universidade Federal de Viçosa (MG)

Folha de São Paulo, 24/01/2023.

Leitora, leitor, gostaria de propor um exercício. Imagine que sua família gasta mais do que recebe todos os meses. Vocês costumam tomar empréstimos para arcar com as despesas. De repente, o seu banco torna-se menos disposto a conceder novos empréstimos ou, se o fizer, cobra juros maiores. Você decide que é o momento de arrumar as contas.

Sua família estabelece duas estratégias possíveis para organizar as finanças. A primeira consiste em reequilibrar despesas e receitas. Vocês começariam cortando itens supérfluos. Adeus, plataformas de streaming e jantares fora. Mas isso não é suficiente: seria necessário definir gastos prioritários e reorganizar a geração das receitas. Essa reestruturação não vai agradar a todos. Vocês precisariam de muita negociação familiar.

A segunda estratégia consiste em criar uma regra que limite o gasto. Vocês não precisariam fazer ajustes hoje, mas se comprometeriam a não aumentar o gasto por dez anos. A despesa só poderia crescer no mesmo ritmo da inflação. Você crê que essa regra forçaria a sua família a repensar os gastos, suscitando grandes reformas. Por outro lado, você sabe que alguns elementos da despesa crescerão mais rápido do que a inflação, dificultando o cumprimento da regra. Quanto maior a sua idade, mais caro será o plano de saúde; gastos educacionais tendem a encarecer, conforme a escolaridade das crianças.

A regra de limitação dos gastos tampouco prevê espaço para situações atípicas. Caso você descobrisse uma enfermidade, não seria possível arcar com despesas de saúde extra. Ainda que arranjasse um emprego melhor, que proporcionasse aumento permanente da renda, não seria possível colocar sua filha no curso de inglês.

Qual estratégia você escolheria?

A segunda é inspirada na regra fiscal do teto de gastos, adotada de modo a frear o crescimento da dívida pública. Dentre os países emergentes, o Brasil é um dos que possuem maior dívida, cerca de 75% do PIB. Nos últimos dez anos, a relação dívida PIB cresceu 36%.

Considerando que diversos países desenvolvidos possuem endividamento maior que o brasileiro, tais como Estados Unidos (126%), França (138%) e Japão (249%), por que a preocupação com o nosso grau de endividamento?

Governos precisam ter credibilidade no que tange a capacidade de honrar com as suas dívidas.

Isso porque os investidores, ao escolherem quais ativos desejam comprar, analisam seu retorno e o seu risco. Se a possibilidade de calote aumenta, os investidores tornam-se menos dispostos a comprar títulos da dívida do país.

Apesar do alto grau de endividamento dos países acima, a incerteza a respeito de um possível calote não recai sobre eles. Os credores confiam na capacidade de pagamento desses países, ao contrário do que ocorre no Brasil. Por aqui, o cenário de rápido crescimento da dívida gera desconfiança entre investidores.

Eles passam a exigir juros cada vez maiores, o que tende a aumentar ainda mais a dívida e a pressionar os juros de toda economia, podendo gerar recessão. Em economia, expectativas e credibilidade são cruciais. Por isso, toda essa discussão em torno dos gastos públicos.

Passados seis anos da criação da regra fiscal que limita os gastos públicos, ao menos cinco manobras já foram realizadas para acomodar despesas fora do teto. Para muitos economistas, um dos papéis mais importantes do teto de gastos é sinalizar o compromisso do governo com o ajuste da trajetória da dívida.

A criação do teto induziria a realização de reformas estruturantes que seriam fundamentais para reequilibrar o Orçamento, como a administrativa e a tributária. O que se verificou na prática foi uma regra rígida demais, crível de menos e que pouco suscitou reformas.

A possibilidade de o teto ruir na atual gestão preocupa a muitos. A estes digo que políticas de teto, e não de alicerces, eventualmente desabam.

Do Bolsa Família às cotas, por Luiz Augusto Campos.

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Sem prejuízo de outros desenhos institucionais, é esse modelo de política pública que explica parte do sucesso do PT no passado

Luiz Augusto Campos – Folha de São Paulo, 23/01/2023

Apesar de terem a paternidade disputada, o Bolsa Família e as cotas no ensino superior foram as mais originais políticas encampadas pelos governos petistas. Embora distintos, ambos os programas têm uma premissa comum: para reduzir desigualdades, é preciso considerar a existência e complexidade das
discriminações.

Num mundo de desigualdades complexas, políticas redistributivas não podem simplesmente tirar dos ricos e dar para os pobres. Isso porque outras assimetrias atravessam a pirâmide social. Mesmo dentro de uma mesma classe social, negros têm menos chances de melhorar de vida do que brancos, mulheres ganham comparativamente menos que homens, e crianças são infinitamente mais vulneráveis
do que adultos.

Louvada como política eficaz na redução da pobreza, o sucesso do Bolsa Família reside no modo complexo como ele manejou conjuntamente diferenças de classe, gênero e geração. Em seu desenho original, são as mães de família mais pobres as titulares prioritárias do benefício. As condicionalidades, por seu turno, recaíam sobre as crianças, que deviam ter certa assiduidade escolar e estarem em dia com as vacinas. Embora esse desenho possa ser criticado, precisamos reconhecer que ele multiplicou o impacto de cada real investido no programa.

Ainda que as cotas raciais tenham sido objeto privilegiado de polêmica, fato é que o governo federal adotou em 2012 um programa de cotas com recorte econômico, que privilegiou estudantes de escola pública e baixa renda. Só depois da aplicação dessas cotas é que inc idem subcotas raciais, ainda assim com percentuais totais bem menores que a representatividade de negros na população. Ao termo, a política de cotas ajudou a quase duplicar o percentual de negros e pobres nas universidades federais, tudo isso sem perda de qualidade no ensino e a custo próximo de zero.

O fato de essas medidas combinarem clivagens de raça, gênero, classe e/ou geração não nos autoriza a rotulá-las como “políticas identitárias”. Ao contrário, o Bolsa Família e as cotas são políticas que utilizam as diferenças entre grupos discriminados justamente para produzir mais igualdade de acesso a recursos e oportunidades. O sucesso do Bolsa Família é que os filhos das beneficiárias dispensem o auxílio, do mesmo modo que o sucesso das cotas é que os filhos dos beneficiários prescindam da reserva. Sem prejuízo de outros desenhos institucionais, é esse modelo de política pública —universalista nos fins e focal nos meios— que explica parte do sucesso do PT no passado e que, portanto, deve ser retomado e potencializado nesse novo ciclo.

O que está ocorrendo no Peru? por Sylvia Colombo

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Ingovernabilidade do país reside no desmonte dos partidos, vendidos ou alugados a grupos de interesse

Sylvia Colombo – Folha de São Paulo, 21/01/2023

Como se não bastasse o drama político e econômico que vive Lima no último mês, na última semana nos chocamos com as chamas que saíam de um antigo casarão colonial, dando conta de um desastre arquitetônico que se desenha trágico em uma das mais antigas e belas cidades da América do Sul.

Não se trata de mero detalhe. Como sempre, a história aparece para explicar alguns eventos do presente. Lima não foi construída para receber a população camponesa em fúria que decidiu “tomá-la” na última semana. Ao contrário, foi levantada para escondê-la. Por praticamente todos os séculos da história peruana, o campo era o lugar do indígena, do branco pobre, do afroperuano.

Enquanto isso, as exuberantes praças e os gloriosos palacetes limenhos, exuberantes possessões do Império Hispânico, estavam ali para os olhos dos que vinham da Europa visitar uma das capitais mais ricas do Novo Mundo. Se estiver em Lima, ligue a TV num noticiário ou numa novela e dificilmente verá uma apresentadora indígena ou uma atriz afroperuana num papel “comum”.

A “tomada de Lima” mostrou que, entre as demandas veiculadas pelos atores políticos —novas eleições, Constituinte, reforma do sistema político e tributária—, há também a do reconhecimento da diversidade do país, pelo fim do racismo e da desigualdade. Enfim, por maior representatividade social e política.

É por isso que os manifestantes insistem na restituição de Pedro Castillo, não tanto porque o consideram um “bom” ou “mau” presidente, mas porque a sensação que eles têm é que foram enganados por alguma artimanha constitucional que levou ao afastamento, outra vez, de um verdadeiro representante do povo.

Será difícil resolver essa equação de modo institucional. Afinal, o que Castillo tentou foi um autogolpe, uma artimanha fora das regras do jogo. Daí a transitar a uma posição de mártir, suas chances são parcas.

Para isso, conta com sua curta biografia e alguns símbolos: o fato de vir dos rincões do país, de pertencer a uma família camponesa e “rondera”, ou seja, que participava das rondas campesinas, uma polícia civil, na época do conflito com o Sendero Luminoso, e ser professor.

O principal culpado pela frágil institucionalidade do Peru hoje é o fujimorismo. Foi durante aqueles anos ditatoriais (1990-2000), quando opositores foram perseguidos, grupos atuantes da sociedade, destruídos, e lideranças políticas e estudantis importantes desapareceram, que o sistema de partidos se foi.

É comum escutar o comentário de que o sistema de governo é o que faz do Peru um país ingovernável.

Não creio que resida aí o problema, mas no fato de já não haver partidos, no desmonte das siglas e na venda ou aluguel delas a grupos de interesse. Reestruturar partidos e espaços de debate, envolver grupos que representam os distintos matizes sociais e voltar a debater o Peru pode ser um bom início.

Por ora, o atual Congresso se encheu de gente que não quer fazer política, mas defender pequenos negócios em suas regiões. O acordo para sair dessa crise deve se dar por meio de um Parlamento que escute as ruas. Se não for assim, de fato, fica fácil entender por que essa população tem todo o direito de ir a Lima e perguntar, afinal, o que esses políticos pretendem fazer com o país?

Sylvia Colombo, Correspondente em Buenos Aires, foi editora da Ilustrada e participou do programa Knight-Wallace da Universidade de Michigan.

Economia Circular

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Estamos vivendo momentos de grandes ansiedades, oportunidades e desafios crescentes. Vivemos momentos de mudanças estruturais, novas formas de convivência social, novas tecnologias que reduzem a privacidade, novos modelos de negócios, somos constantemente monitorados, com alterações no mundo do trabalho, exigindo de todos, estudos constantes e atualizações cotidianas, demandando investimentos financeiros e emocionais, estamos num momento de grandes incertezas e instabilidades.

Nesta sociedade, percebemos alterações crescentes no meio ambiente, as preocupações alarmantes do clima global, mudanças crescentes na agenda da sustentabilidade, fenômenos climáticos violentos que geram destruições humanas e degradação da natureza, levando a comunidade internacional a reflexões consistentes sobre o futuro da humanidade.

Neste ambiente, a Economia Circular vem ganhando espaço na sociedade global nas últimas décadas, na verdade percebemos uma grande preocupação com as condições de degradação do meio ambiente, o clima vem passando por grandes incertezas e instabilidades, os solos estão passando por perdas crescentes de produtividades, regiões propícias para um tipo de cultura estão percebendo uma degradação de seu solo original, gerando instabilidades sociais, tufões, maremotos, chuvas assustadoras, perdas econômicas e pressões demográficas, gerando milhões de pessoas que fogem de seus países para buscar abrigo em outras regiões, gerando, muitas vezes, conflitos culturais, violências, desesperanças e xenofobias.

Neste instante, percebemos o surgimento de novos conceitos na sociedade, a economia nos traz novos instrumentos de reflexão, destacando, compreendendo e estimulando o que chamamos de Economia Circular, uma nova forma de reflexão, deixando a economia linear, imediatista e abrindo espaço para o que chamamos de circularidade.

A economia circular está ligada a uma grande revolução em curso na lógica econômica e produtiva, impactando fortemente a economia linear, que domina a sociedade internacional, onde os recursos são utilizados para a produção de um determinado bem ou mercadoria e este produto é descartado quando o produto perde efetividade, degradando o meio ambiente e gerando um passível ambiental para toda a comunidade.

A economia circular traz novas reflexões para a sociedade, olhando não apenas a mercadoria inicial, mas toda a vida deste produto, onde o produto que perde espaço e, posteriormente, pode ser reaproveitado constantemente, onde se recicla, se reutiliza e se reinventa para que os produtos originais sejam vistos como um instrumento de circularidade, gerando uma verdadeira revolução na sociedade, uma grande transformação sobre o capitalismo, levando-o a repensar todos os instrumentais de produção, distribuição, marketing, consumo, desejos, necessidades, uma verdadeira revolução que impacta sobre a sociedade.

A Economia Circular também tem um papel mais estrutural do que as pessoas imaginam, estimula uma reflexão sobre conceitos ligados a necessidades, repensando o conceito de economia como uma ciência. Os economistas aprendem no começo do curso de ciência econômicas que a economia é a ciência da escassez, que nasce para satisfazer as necessidades dos indivíduos, a economia surge como um instrumento para responder a um dilema ético da sociedade, destacando os conflitos entre necessidades ilimitadas e recursos limitados. A Economia Circular nasce com um papel de grande relevância, surge para repensarmos a sociedade, as necessidades dos seres humanos, os comportamentos e que nos auxilia a compreender que vivemos numa sociedade marcada por recursos naturais, finitos e ambientais limitados, diante disso, somos levados constantemente a fazermos escolhas.

A economia circular nos traz novos horizontes para refletirmos sobre a coletividade, sobre a comunidade, sobre o pertencimento e nos levam a compreender que somos todos seres humanos, ao destruirmos o planeta para alavancar a riqueza de poucos estamos nos comportando irracionalmente e a consequência imediata é a degradação da vida de todos.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Circular, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 18/01/2023.

Ataque golpista tem digitais da Lava Jato, diz pesquisador

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Para Fábio de Sá e Silva, que analisou postagens da operação, Moro e Deltan alimentaram discurso contra instituições democráticas

UIRÁ MACHADO – FOLHA DE SÃO PAULO, 16/01/2023

SÃO PAULO Autor de estudos sobre a Lava Jato, o pesquisador Fábio de Sá e Silva enxerga as digitais do ex-juiz Sérgio Moro e do ex-procurador Deltan Dellagnol nos eventos do dia 8 de janeiro, quando apoiadores de Jair Bolsonaro (PL) avançaram sobre Brasília numa tentativa de golpe de Estado.

Primeiro, diz Silva, elas aparecem quando a operação Lava Jato começou a sofrer derrotas na Justiça e subiu o tom contra os tribunais, sobretudo contra o STF (Supremo Tribunal Federal).
“A Lava Jato acelera e fomenta uma indisposição de parte da sociedade contra os poderes instituídos. Ela reforça uma ideia de que todas as instituições estão contaminadas pela corrupção”, diz Silva, professor de estudos da Universidade de Oklahoma, nos EUA.

Depois, num segundo momento, quando ganha força a ideia de que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não teria legitimidade para enfrentar Bolsonaro, como se sua saída da prisão e sua habilitação eleitoral fizessem parte de uma grande trama cujo desfecho seria garantido pelas urnas eletrônicas, supostamente fraudulentas.

Em entrevista à Folha, Silva também diz que é cedo para avaliar a conduta de Alexandre de Moraes, do STF, na condução de processos contra atos antidemocráticos e fake News. Mas afirma que, em comparação com Moro, o ministro tem à disposição instrumentos jurídicos melhores e os utiliza de maneira mais inteligente.

O sr. argumenta em um estudo que o “fora STF” nasceu com a Lava Jato e que o discurso anticorrupção de membros da força-tarefa foi se transformando em ataques às instituições democráticas. Na sua visão, há relação entre isso e a intentona golpista em Brasília? Sim. Eu vejo como uma linha de continuidade. É um processo de mudança política que foi acontecendo no Brasil, com o centro de gravidade da política se movendo à direita até a consolidação de uma extrema direita. E é difícil, para mim, separar a Lava Jato disso, porque ela deu uma contribuição grande.

De que maneira? A Lava Jato se apoiava juridicamente em teses controvertidas algumas das quais cruzavam as linhas do que é razoável na interpretação da legislação, e lidava com um histórico legislativo recente, então não tinha jurisprudência consolidada. Era uma arena de disputa.

Dentro dessa disputa, tem uma retórica muito forte do Dallagnol no sentido de envolver a sociedade no combate à corrupção. É claro que é importante envolver a sociedade no combate à corrupção, mas isso foi feito de modo a colocar a opinião pública contra os tribunais, para forçar os tribunais a acolher as teses que a Lava Jato elaborava. Eles inclusive usaram uma estratégia de comunicação pesada, em contato com a mídia e pelas próprias redes sociais.

Num primeiro momento, o sistema de Justiça cede. Cometem-se barbaridades na Lava Jato, como o grampo ilegal da ex-presidente Dilma Rousseff com o atual presidente Lula. O Moro pede escusas e não perde a jurisdição dos processos.

Mas, quando a Lava Jato sofre alguns reveses, há uma subida de tom contra os tribunais. E, com isso, ela acelera e fomenta uma indisposição de parte da sociedade contra os poderes instituídos.

Ela reforça uma ideia de que todas as instituições estão contaminadas pela corrupção, de que os tribunais superiores são coniventes com isso. Não só contra o Supremo Tribunal Federal, mas também contra o Congresso.

E isso a gente observa nos dados. Estou falando antes de Bolsonaro assumir esse discurso no governo. Alguns eventos foram mais catalisadores disso. O indulto do [Michel] Temer, por exemplo, foi bastante explorado pelo Dallagnol. Ele fez diversas postagens. E o tom dos comentários sobe muito.

É quando começa a aparecer discurso de intervenção militar no STF, “vamos sitiar o STF”, “se forem 200 mil pessoas em Brasília cercar o prédio, eu duvido que eles vão continuar decidindo assim” etc.

É possível comparar esse evento aqui no Brasil com a invasão do Capitólio nos EUA? Ambos envolveram violência contra os poderes instituídos e ambos estão fundados numa mesma coisa, na “big lie”, uma grande mentira. No caso do [Donald] Trump, foi a acusação de fraude eleitoral nos estados. No caso do Brasil, a ideia é mais complexa: começa com uma trama para soltar o Lula, para que ele pudesse concorrer nesse sistema eleitoral em que as urnas são fraudadas para derrotar Bolsonaro.

E aí tem as digitais do Moro e do Dallagnol. Já na política, eles usaram a soltura do Lula como uma plataforma para acusar o STF de beneficiar indevidamente o [então] ex-presidente. O Dallagnol, inclusive, elaborou a noção do “descondenado”, que aparece muito no discurso das pessoas que estão pedindo golpe.

Óbvio que, quando se olha isso objetivamente, é uma argumentação que não tem sentido. Até porque o [ministro Edson] Fachin anulou condenações do Lula numa tentativa de preservar a Lava Jato. Ele queria evitar discussão da suspensão, e a tese da incompetência já estava estabelecida no STF, tanto que alguns casos tinham sido transferidos de Curitiba para outros tribunais.

A soltura e a elegibilidade do Lula não têm nada de armação, nada de ilegítimo. São decorrência natural de três fatores: a decantação de algumas questões jurídicas; as trapalhadas da Lava Jato, depois expostas com a Vaza Jato e a operação Spoofing; e a ida do Moro para o governo Bolsonaro.

A ida do Moro e do Dallagnol para a política contradiz o discurso antipolítica que eles sustentavam? Não acho que seja plenamente contraditório. Eles desvalorizam a política que está aí e, ao mesmo tempo, se vendem como pessoas que vão imunizar essa política, que vão agir em defesa do interesse público. Ou seja, com o discurso antipolítica você cria um problema para vender uma solução, e a solução é você.

E é preciso ponderar que tanto Moro como Dallagnol escolheram caminhos políticos que estão muito bem situados à direita ou à extrema direita. Ambos têm agendas profundamente conservadoras. E, no caso do Moro, o empreendimento é familiar, porque a Rosângela [esposa de Moro] também vai para a política.

Qual sua avaliação da passagem do Moro no Ministério da Justiça? É trágica. O Moro tem as digitais em algumas das coisas mais terríveis que aconteceram nesse período. Na primeira semana, ele assina os decretos de armas. Depois, dá início a uma prática, que depois ganhou mais densidade sobretudo com o [também ex-ministro da Justiça] André Mendonça, que é a perseguição de críticos do governo.

Ele também tem declarações terríveis. Por exemplo, quando teve denúncia de tortura num presídio federal, ele dizia que isso era apenas o “rule of law” [Estado de Direito, ou primado da lei], expressão que ele adora usar de forma distorcida.

Ele foi diferente dos dois sucessores, André Mendonça e Anderson Torres? Vejo muita semelhança. A diferença, se existe, é que Moro tinha pretensões políticas mais elevadas. E isso o colocou em rota de colisão com Bolsonaro.

Como essa trajetória do Ministério da Justiça sob Bolsonaro termina no decreto golpista encontrado na residência de Torres? Num projeto com a FGV em São Paulo, a gente estuda o que a gente chama de legalismo autocrático, que é o uso do direito para fins não democráticos. Bolsonaro, na medida do que pôde, cooptou as corporações jurídicas e fez uso do direito para fins autoritários.

Não é só o Ministério da Justiça. A gente está falando também da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral da República. Essas três instituições foram colonizadas, e todos os que estiveram à frente delas foram serviçais do Bolsonaro.

Como o Brasil escapou do destino de países como Hungria, Turquia e Rússia? Em outras palavras, por que o decreto ficou na gaveta? O sistema político brasileiro é muito complexo. Eu falo isso porque o Bolsonaro tentou, por exemplo, passar uma PEC do voto impresso. E o voto impresso era só um artifício que ele buscava para criar confusão nas eleições. Bastaria um cidadão dizer, ‘eu votei Bolsonaro e apareceu o Lula’. Pronto, criava a confusão que poderia ser usada para justificar uma medida de força.

A [deputada] Bia Kicis [PL-DF], na Câmara, apresentou uma proposta de reversão da PEC da Bengala, para tentar aposentar ministros do STF.

Houve várias tentativas da parte do Bolsonaro de fechar o regime. Mas é difícil isso andar, em parte porque o Congresso é complexo. A fragmentação do sistema político brasileiro impede soluções pelo Legislativo.

Além disso, no caso do Executivo, tem a dificuldade de legitimação internacional. Os Estados Unidos soltaram várias notas afirmando o respeito pelas eleições, parabenizando o Lula logo que ele foi eleito. Isso gera um receio das elites de embarcar nesse tipo de aventura.

E teve o [ministro] Alexandre de Moraes. Quando o PL entrou com aquela ação para contestar o resultado das urnas, ele deu uma resposta pronta e dura, o que teria desencorajado o partido a continuar esse tipo de conversa.

O sr. citou o Alexandre de Moraes como um obstáculo ao Bolsonaro. Alguns especialistas têm apontado exageros dele, tanto no Tribunal Superior Eleitoral quanto no STF. De que maneira ele difere de Moro na Lava Jato? O caso do Alexandre de Moraes ainda está em andamento. A gente precisa ver como ele pousar esse avião: se vai ser uma queda brusca e fatal, como a Lava Jato, ou se ele vai ter habilidade de fazer um pouso tranquilo na pista.

Mas já dá para dizer, em primeiro lugar, que a gente tem de internalizar no Brasil a ideia de que o sistema de Justiça não é feito para defender a democracia ou para causar grandes transformações no sistema político.

Um erro da Lava Jato foi achar que, pelo processo judicial, conseguiria transformar a estrutura política no país –que tinha problemas, evidentemente, e eu nunca em meus estudos neguei a existência de esquemas de corrupção. É oneroso para o sistema de Justiça levar adiante esse tipo de tarefa muito ambiciosa, porque logo surgem questionamentos e porque os instrumentos são limitados.

Dito isso, Alexandre de Moraes tem à mão instrumentos melhores do que os da Lava Jato, porque ele lida não só com direito penal, mas também com direito administrativo-eleitoral. Por exemplo, muitas das medidas dele durante o processo eleitoral estão salvaguardadas por leis eleitorais. Ele não está simplesmente usando a lei penal pura.

Além disso, ele soube fazer um uso um pouco mais inteligente e menos espetaculoso dos instrumentos. A Lava Jato era baseada no espetáculo. O Alexandre de Moraes decidia e colocava nos autos; não dava entrevista, não fazia PowerPoint. Recentemente, ele começou a dar algumas declarações, e é onde eu acho que às vezes ele escorrega, como quando ele disse que essas pessoas são incivilizadas, que não dá para conversar.

Terceiro ponto: como ele é parte de um colegiado, ele consegue construir legitimidade de uma maneira diferente da que o Moro construía. O Moro teve muitas decisões validadas por instâncias superiores, mas demorava um tempo maior e gerava tensão em torno das decisões.

E o que faz muita diferença é o fato de o Alexandre de Moraes estar um pouco sozinho nisso, o que não é bom, mas também não é ruim.

Na Lava Jato, Ministério Público e juiz estavam consorciados. No caso de Moraes, ele é criticado por promotores, e isso serve como espécie de sistema de freios e contrapesos. Assim como a própria mídia, que tem apontado muito mais problemas agora do que fez em relação ao Moro.

RAIO-X | FÁBIO DE SÁ E SILVA, 42

Formado em direito na USP, com mestrado em direito na UnB (Universidade de Brasília) e doutorado direito, política e sociedade na Universidade Northeastern (EUA), é professor assistente de estudos internacionais e professor Wick Cary de estudos brasileiros Universidade de Oklahoma (EUA). Publicou na revista “Law & Society Review” o artigo “Relational legal consciousness and anticorruption: Lava Jato, social media interactions, and the co-production of law’s detraction in Brazil (2017–2019)” (Consciência jurídica relacional: Lava Jato, interações de redes sociais e a coprodução da detração do direito no Brasil).

Por que é preciso repolitizar a Economia, por Monica de Bolle

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Por trás da visão segundo a qual ela é uma ciência “técnica”, que trata “da escassez”, há um truque ideológico. É o de ocultar as disputas sociais pela riqueza coletiva e, ao fazê-lo, tratar como “naturais” as piores desigualdades

Monica de Bolle – Outras Mídias -12/01/2023

Qual é o objeto de estudo da economia e porque a resposta é tão importante para os rumos do Brasil? Comecemos pelo objeto de estudo. Pregam os livros-básicos de economia que a disciplina tem como foco a análise da escassez, ou, dito de outro modo, em um mundo em que há restrições de todo tipo — orçamentárias, de acesso, de oferta — a economia busca revelar os mecanismos que levam às alocações mais eficientes, guardadas as inescapáveis limitações.

Essa forma de orientar o olhar sobre a ciência econômica é relativamente “nova”, tendo vindo à tona mais ou menos em meados do Século XX, durante o período do pós-guerra. Não por acaso, foi nessa época que a disciplina se distanciou da política e adquiriu ares de ciência exata com a matematização crescente e o desenvolvimento de variadas técnicas quantitativas de análise. Desde então, a economia, parte integrante das ciências sociais, tendeu a se enxergar como uma ciência mais científica do que as demais. Afinal, o arsenal matemático e a crescente tecnocracia que passou a envolvê-la eram vistos como superiores às metodologias utilizadas por outras áreas das ciências sociais. Essa redefinição da economia foi possibilitada pela ótica da escassez: a partir do momento em que a economia é entendida como o estudo das privações e das restrições, tudo passa a ser uma questão de demanda e de oferta. O que determina a demanda? O que determina a oferta? Identificados esses fatores de ordem técnica, pouco sobra para a política, e, sobretudo, para a ordenação dos direitos conferidos pela Constituição às pessoas que integram a economia.

A economia como ciência da escassez é o que permite a soberania dos argumentos tecnocráticos sobre gasto e inflação, é o que dá o espaço para que medidas equivocadas como o Teto de Gastos instituído em 2016 sejam articuladas e postas em prática. Pouco importa se são ou não compatíveis com a Constituição. O que vale é que estejam bem concatenadas com as noções de demanda e oferta e com seus determinantes. Essa forma de olhar a economia, portanto, a afasta da política, da vida das pessoas, dos direitos que possuem como cidadãos. Não espanta que, em última análise, essa forma de olhar a economia gere resultados como o rebaixamento normativo da Constituição Federal, como vimos acontecer com o Teto de Gastos e suas sucessivas alterações ao longo desses últimos seis anos.

Mas, a economia como ciência da escassez está com os dias contados ao menos desde a crise financeira global de 2008. De lá para cá, vimos ruir os pilares da macroeconomia conforme a entendíamos e nada ainda conseguimos pôr no lugar. Testemunhamos a volta do debate sobre o aumento da desigualdade e da pobreza, além das convulsões políticas geradas por essas mazelas: a ascensão da ultradireita mundo afora, a vitória de líderes autoritários, os questionamentos sobre a Democracia, a insatisfação popular, o nacionalismo em suas piores vertentes. O Brasil não escapou dessas tendências, como bem sabemos após 4 anos de intenso sofrimento. Direitos foram pisoteados, vidas foram descartadas, instituições foram abaladas. A tecnocracia em excesso resultante dessa visão aparentemente inócua a respeito da economia pavimentou o caminho para os “conservadores nos costumes” e os “liberais na economia”. Os liberais na economia, sobretudo os mais extremados, se orientam pelos preceitos da escassez — da demanda e da oferta. Não há lugar para a Constituição naquilo que propõem. Portanto, os defensores de um Estado diferente daquele que foi pactuado em 1988 inadvertidamente abrem os caminhos para os anti-democratas.

Como deslocar esse olhar pernicioso da economia? A disciplina, na verdade, jamais tratou simplesmente da escassez, dos fatores técnicos que determinam as restrições. A economia nasceu há séculos da economia política, e a economia política sempre tratou de estudar os conflitos distributivos existentes em qualquer sociedade, e sob qualquer regime político. Os conflitos distributivos são a essência do nosso convívio em sociedade. Como distribuir os recursos públicos?

Quem deve deles mais se beneficiar? Essas são perguntas fundamentais da economia que tratam, sim, de escassez. Contudo, a tratam de forma indireta. A questão é: os recursos são limitados. Logo, quem deve recebê-los? E o quê garante tal ordenação de prioridades, qualquer que seja? Definida dessa forma, a economia é, também, política, por óbvio. Vista dessa maneira, a economia é indissociável da Constituição. A resposta para “o quê garante a ordenação de prioridades” é “a Constituição Federal”, a Lei das leis que define os direitos fundamentais e aponta os caminhos para a resolução dos conflitos distributivos. Entendida assim, a economia não haverá de gerar políticas econômicas inconstitucionais como o Teto de Gastos, e menos ainda pavimentará a ascensão do autoritarismo. O motivo é simples: a economia desse modo definida não é algo apartado da Constituição, mas por ela legitimado.

Ao longo dos próximos meses o Brasil nos oferece uma oportunidade única de pôr a discussão econômica dentro dos marcos constitucionais a partir do entendimento aprofundado de nossos conflitos distributivos. Fazer o esforço de reconfigurar o que a economia de fato representa e tornar esse esforço o centro do debate, extirpando de vez a tecnocracia que anima fiscalistas e desgasta a população, é um dever civilizatório. Ou melhor, é o dever civilizatório. Só assim seremos capazes de evitar o retorno de uma ultradireita anti-democrática, ainda que repaginada, em 2026.

Desafios da Reindustrialização

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Nestes últimos anos, percebemos grandes transformações nas estruturas produtivas internacionais, novos modelos de negócios, novas exigências para os trabalhadores, novos desafios para as empresas, novas formas de organizações social e política, que exigem, na sociedade contemporânea, novos instrumentos de acumulação que tendem a levar as nações a buscarem uma reestruturação produtiva e industrial ou aquilo que os economistas chamam de reindustrialização para diminuir as dependências externas e aumentarem a soberania nacional.

Desde o começo do século XXI a sociedade global foi assolada por grandes crises econômicas e financeiras, como o grande crash do mercado imobiliário nos Estados Unidos, com repercussões violentas sobre a economia internacional, gerando quebradeiras, falências de bancos e empresas, aumento no desemprego e da degradação das condições de vida de milhares de trabalhadores nos países desenvolvidos e subdesenvolvidos, cuja recuperação demandou forte intervencionismo estatal, estatização de empresas e recursos bilionários para evitar que a bancarrota não fosse maior.

Recentemente, a sociedade internacional, sentiu na pele a pandemia da covid-19, que ceifou mais de 7 milhões de pessoas no mundo todo, gerando degradações crescentes, instabilidades econômicas, quebras produtivas e incrementos nos preços. Neste cenário, muitas nações desenvolvidas perceberam crescimento da dependência industrial dos países asiáticos, notadamente crescimento da dependência das estruturas produtivas chinesas, responsáveis por grande parte da produção de insumos industriais, transformando nações ocidentais em sociedades dependentes do gigante asiático.

A pandemia desnudou a dependência das nações ocidentais da indústria asiática, fortalecendo a China, Coréia do Sul e Taiwan, gerando insatisfações internas nas economias europeias e estadunidense, aumentando as pressões dos setores produtivos para aumentarem as políticas protecionistas de seus respectivos governos, como forma de preservar a estrutura produtiva e sua autonomia industrial. Diante disso, os governos ocidentais passaram a implementar novas políticas protecionistas para garantirem mercados internos para suas indústrias, recuperar empregos perdidos anteriormente e aumentaram, sensivelmente, os subsídios para atrair novas indústrias, garantindo um estímulo para a reindustrialização e reduzir a dependência da indústria asiática.

Estamos vivendo um momento de forte intervencionismo estatal por parte das nações desenvolvidas, notadamente europeus e norte-americanos, que anteriormente, se caracterizavam com um discurso liberal agressivo, defensor dos mercados livres e forte estímulo da concorrência e da competição como o grande agente gerador de desenvolvimento das nações, uma verdadeira falácia que a contemporaneidade está desmascarando.

Neste cenário, percebemos os governos desenvolvidos dispendendo trilhões de dólares para estimular a produção interna, impedindo empresas norte-americanas de comprarem produtos de fornecedores chineses, como está acontecendo com a Dell Computadores que foi proibida de importar chips fabricados pelo gigante asiático, destacamos ainda, o governo Biden aportando mais de US$ 52 bilhões para que a TSMC e a Samsung instalem fábricas de semicondutores em solo estadunidense, fortalecendo a produção interna, aumentando a produtividade das empresas nacionais e reduzindo a dependência externa da estrutura produtiva norte-americana. Todas estas medidas fazem parte de um grande pacote de 280 bilhões de dólares dos Estados Unidos para estimular a reindustrialização de sua economia, além de mais de US$ 550 bilhões de um programa de investimento em infraestrutura e geração de empregos, capacitando sua economia para uma forte competição com as economias asiáticas e, principalmente, a China.

A reindustrialização das economias desenvolvidas voltou a agenda internacional, depois de fortes crises econômicas e da pandemia, que geraram grandes destruições produtivas, as nações perceberam a importância do setor industrial, infelizmente, internamente, a indústria brasileira foi dizimada nas últimas décadas, estimulando o rentismo, degradando o emprego e matando o mercado interno, com isso, nos afastamos fortemente do desenvolvimento.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Brasileira Contemporânea, Mestre, Doutor e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 11/01/2023.

Os inimigos da democracia, por Oscar Vilhena Vieira

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Houve falha de setores, e apurar responsabilidades deve ser primeira tarefa

Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.

Folha de São Paulo, 09/01/2023

A ação violenta dos manifestantes bolsonaristas contra os Poderes constitucionais, com a conivência dos setores de segurança do Distrito Federal, configura crime de tentativa “abolição do Estado democrático de Direito”, conforme disposto pelo artigo 359-L do Código Penal.

As autoridades constituídas não mais podem transigir com inimigos da democracia. Sem uma ação contundente que apure a responsabilidade, não apenas dos vândalos que invadiram e depredaram a sede dos Poderes da República, mas também aqueles que vêm vandalizando as nossas instituições democráticas nos últimos anos, a democracia perecerá.

De imediato, o presidente decretou intervenção federal, conforme disposto no artigo 39, III, da Constituição Federal, que deverá ser apreciada imediatamente pelo Congresso Nacional. O decreto lido pelo presidente da República restringe a intervenção à esfera de segurança pública.

Caso tivesse optado pela decretação do Estado de Defesa, poderia haver restrição aos direitos de “reunião”, assim como quebrado o sigilo de “correspondência” e “comunicação telegráfica e telefônica”.

Restabelecida a ordem, a primeira tarefa será apurar responsabilidades. Os que invadiram e depredaram prédios devem ser presos em flagrante imediatamente. Aqueles que financiaram e organizaram essas caravanas golpistas também devem ser presos temporariamente, para que não persistam esses atos contrários ao regime democrático e para que as provas possam ser coletadas.

As responsabilidades do governador do Distrito Federal, do seu secretário da Segurança e de outras autoridades também devem ser imediatamente apuradas. O afastamento dessas autoridades, por prática de crime de responsabilidade, é um imperativo para que a ordem pública, não apenas seja restaurada, mas para que possa ser mantida no futuro imediato. Não se deve negligenciar ainda, a apuração daqueles que têm incitado animosidade das Forças Armadas contra os Poderes constitucionais, conforme disposto no artigo 286, parágrafo único do Código Penal.

O novo governo, por fim, deverá tomar medidas urgentes para reorganizar os setores de inteligência e de segurança do Estado brasileiro. Essa insurgência estava prevista. Vinha sendo anunciada há vários dias. Houve falha desses setores, ao não prevenirem esses ataques à democracia. Se não se colocar em marcha uma profunda reforma desses setores, assim como uma revisão da legislação e dos mecanismos institucionais de defesa do Estado democrático de Direito, nosso regime constitucional continuará sob a grave ameaça dos inimigos de nossa democracia.

A rebeldia de direita e o homem comum, por Camila Rocha.

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Slogan da esquerda de 1968 tornou-se central para as direitas contemporâneas

Camila Rocha, Doutora em ciência política pela USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

Folha de São Paulo, 09/01/2023

Por que e em que momento a ideia da rebeldia foi apropriada pela direita? Foi com essa pergunta que o presidente chileno Gabriel Boric iniciou uma entrevista concedida à jornalista Mônica Bergamo. De fato, ao longo das últimas duas décadas, o “politicamente incorreto” ganhou ares de rebeldia. Hoje, o conhecido slogan da esquerda de 1968, “é proibido proibir”, tornou-se central para as direitas contemporâneas.

As origens do fenômeno coincidem com a popularização da internet entre pessoas de classe média e alta. No início dos anos 2000, redes sociais como MySpace e Orkut, e fóruns como Reddit, 4chan e Vale Tudo, do brasileiro UOL Jogos, permitiram a circulação de ideias inusitadas, absurdas ou mesmo odiosas e violentas.

O propósito de direitistas que frequentavam tais espaços era demolir as estruturas ideológicas do establishment a partir da periferia da esfera pública. A esquerda era vista como hipócrita, corrompida e vendida à sociedade de consumo, e a direita tradicional tida como abobalhada, tediosa e incapaz de fazer frente aos avanços da esquerda no campo cultural.

Com o tempo, a partir da circulação crescente de memes, discursos que antes ficavam restritos a livros e fanzines obscuros começaram a atingir cada vez mais pessoas. Mas foi apenas quando a internet se massificou, e privilégios históricos começaram a ser questionados na esfera pública tradicional, amplificando o alcance do chamado “politicamente correto”, que parcelas mais amplas da sociedade passaram a fazer coro à rebeldia de direita.

Para um segmento expressivo de trabalhadores, os avanços progressistas incomodam em várias frentes. Em primeiro lugar, há o incômodo com a possibilidade de que outros setores oprimidos possam roubar seu lugar na fila do pão. Depois, a percepção de que a família e a religião, suas principais fontes de proteção e acolhimento frente à violência e insegurança cotidianas, teriam passado a ser vilipendiadas. Mas mais do que isso, seu próprio modo de ser e estar no mundo, e seu orgulho, estariam sendo atacados de forma insistente e pedante pelo “politicamente correto”.

O sentimento é de que qualquer deslize pode provocar brigas na família, com amigos e conhecidos, ou até mesmo a perda do trabalho. Daí a sensação constante de repressão e a catarse provocada por políticos e influenciadores que “mandam a real, sem papas na língua”, alardeando uma suposta liberdade absoluta contra uma “ditadura do politicamente correto capitaneada por esquerdistas”.

Porém, o que ocorre de fato é que o mesmo “ímpeto civilizatório” utilizado nas redes sociais para defender grupos que historicamente são alvo de discriminação e violência não costuma se estender à defesa de trabalhadores comuns. Sobretudo daqueles tidos como ignorantes e atrasados.

Além disso, a esquerda não consegue enfrentar a opressão econômica e as injustiças vivenciadas por largos setores da população, que incluem justamente as pessoas tachadas de ignorantes e atrasadas. Na prática, o que prevalece é o neoliberalismo progressista, que, na visão de vários trabalhadores, seria o mesmo que defender os interesses dos ricos e o “politicamente correto”. E assim o homem comum fica abandonado à própria sorte e aos rebeldes de direita, que apresentam ser mais “empáticos” com suas angústias.

No mote do governo Lula, falta ‘retirar o rico do Orçamento’, por Sérgio Firpo

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Políticas públicas, por mais bem intencionadas, podem ser ineficazes na redução de desigualdades

Sérgio Firpo, Professor de economia e coordenador do Centro de Ciência de Dados do Insper

Folha de São Paulo, 07/01/2023

Há diversos fatores estruturais para a manutenção da desigualdade de renda no Brasil em níveis extremamente elevados. São causas conhecidas e reconhecidas há tempos, como o acesso limitado à educação básica de qualidade; discriminação no mercado de trabalho por gênero, raça e idade; e acesso desigual a transferências governamentais implícitas ou explícitas.

Entre essas transferências destacam-se, entre outras aqui não listadas, os benefícios previdenciários para além das contribuições individuais; as isenções e desonerações tributárias como as do IR (Imposto de Renda) sobre gastos privados com saúde e educação, e as regionais ou setoriais, como nos regimes especiais de tributação; e os subsídios financiados pelo Tesouro (ainda que camuflados sob diversos disfarces) a empresas como nos empréstimos indexados pela antiga TJLP (Taxa de Juros de Longo Prazo).

A desigualdade de renda se alimenta e se fortalece tanto da forma como o Estado brasileiro arrecada tributos, quanto da forma como gasta e investe. O Estado brasileiro, em vez de desfazer desigualdades de oportunidades, as cristaliza e as amplifica.

O mote do novo governo de “colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda” aponta na direta correção de rumos do papel do Estado brasileiro. Mas dificilmente o fará sem “retirar o rico do orçamento”. O papel amplificador da desigualdade de renda que o Estado brasileiro tem desempenhado não se alterará com uma transitória inclusão de grupos socialmente vulneráveis no orçamento.

A luta por fatias no orçamento tem tradicionalmente beneficiado grupos politicamente mais fortes, ainda que não necessariamente mais representativos do tecido social. O resultado tem sido a acomodação de demandas particulares, que até a criação do teto de gastos, fazia com que as despesas governamentais crescessem continuamente como proporção do PIB (Produto Interno Bruto) nas últimas três décadas.

Crescem as despesas, mas a desigualdade não necessariamente cai junto. A queda da desigualdade de renda entre o fim dos anos 1990 e começo dos anos 2010 foi puxada pelas mudanças no mercado de trabalho. Pode-se argumentar que o principal mecanismo pelo qual o aumento do orçamento público afetou a queda na desigualdade nesse período tenha sido via aumento da cobertura educação básica.

A inclusão no sistema educacional de parte da população tradicionalmente excluída, que se refletiu no aumento do investimento em educação pública desde o fim dos anos 1980, colaborou com a redução nos prêmios educacionais e, portanto, com a queda da desigualdade da renda do trabalho.

Programas focalizados e bem desenhados de transferência de renda, como o Bolsa Família, são ótimos para redução da pobreza extrema, mas não têm capacidade de reduzir desigualdade de renda. Transferências diretas só afetam a desigualdade extraordinariamente, como foi o caso do ano 2020, num arcabouço de mercado de trabalho paralisado pela pandemia.

Há pouco espaço para aumento da carga tributária. Pode-se e deve-se “colocar o rico no imposto de renda”, sobretudo ao se extinguirem as diversas desonerações e isenções tributárias. Mas o Estado brasileiro deve ter permanentemente o foco de seus investimentos e gastos nos mais vulneráveis.

Não será com distribuição de subsídios nas taxas de juros para projetos economicamente inviáveis ou com falta de focalização nas despesas sociais, entre elas a previdenciária, que se conseguirá, finalmente e permanentemente, “colocar os pobres no orçamento”.

A escolha de políticas públicas precisa de orientação, não apenas política, mas técnica. A eficácia das políticas na redução da desigualdade pode ser mensurada com base nas experiências prévias e nas técnicas disponíveis para avaliação de impacto. Ao não fazermos escolhas e tentarmos incluir quem precisa sem excluir quem não precisa, apenas adiamos o enfrentamento sério de nossas iniquidades sociais.