O Brasil pode liderar a transição para uma bioeconomia circular, por Ayla S. da Silva

0

Exploração racional da maior biodiversidade do mundo pode gerar desenvolvimento

Ayla Sant’Ana da Silva, é pesquisadora do Instituto Nacional de Tecnologia e docente do Programa de Pós-Graduação em Bioquímica da UFRJ.

Folha de São Paulo, 06/01/2023

O Brasil é a nação de maior biodiversidade do planeta, com 15% a 20% da quantidade de espécies estimadas. De acordo com dados do Governo Federal, há cerca de 116 mil espécies animais e 46 mil espécies vegetais catalogadas, dispersas pelos biomas terrestres e ecossistemas marinhos. Apesar de parecerem dados expressivos, calcula-se que esses números representem apenas um pequeno percentual da diversidade do país, já que a identidade de centenas de milhares de outros organismos permanece um mistério.

Grande parte dessa biodiversidade, no entanto, antes mesmo de ser conhecida está ameaçada por atividades humanas não sustentáveis. A devastação descontrolada da Amazônia, por exemplo, faz com que estejamos num momento em que a taxa de destruição é muito mais rápida que a velocidade de descoberta de novas espécies.

É um cenário de corrida contra o tempo, pois a cada vez que uma área é desmatada, destruímos parte da biodiversidade que nunca mais conheceremos — uma vez perdida, provavelmente o será para sempre. Isso porque muitas espécies são encontradas somente em determinada região do globo, e em mais nenhuma. São as espécies endêmicas, que requerem atenção quanto a sua preservação. No Brasil, há preocupação especial com a Mata Atlântica e o Cerrado, biomas classificados como hotspots de biodiversidade por serem regiões com níveis excepcionais de endemismo e graves percentuais de perda de habitat.

Para além do impacto ambiental, a perda de nossa biodiversidade e a ignorância a respeito dela precisam ser analisadas do ponto de vista dos possíveis impactos econômicos e das oportunidades de desenvolvimento desperdiçadas. Atividades essenciais para a economia brasileira, como a agropecuária e a produção de alimentos e bebidas, são altamente dependentes do equilíbrio da natureza. É um contrassenso expandir essas atividades sem considerar as consequências da perda de diversidade nesses sistemas produtivos no médio e longo prazo.

A biodiversidade também deve ser considerada um ativo para alavancar o desenvolvimento econômico e social no Brasil. Ao desconhecer seu potencial, deixamos de produzir novos bioprodutos, como medicamentos, suplementos alimentares, biocombustíveis e cosméticos, entre outros.

É nesse contexto que nas últimas décadas o mundo vem discutindo oportunidades para passar à era da bioeconomia. Antes de mais nada, é preciso ressaltar que o termo bioeconomia pode ter muitos significados, dependendo do interlocutor. Aquela que pode beneficiar o Brasil de forma significativa é a que faz uso de recursos naturais em conjunto com novas tecnologias para criar produtos e serviços mais sustentáveis, sem prejuízo da biodiversidade. No caso brasileiro, um país com atuação consolidada no agronegócio, também é interessante incorporar conceitos da economia circular à bioeconomia. O modelo de bioeconomia circular irá gerar cadeias produtivas com menos desperdício, por meio da implantação de sistemas econômicos de ciclos fechados que aproveitam matérias-primas de forma mais completa, pois os resíduos gerados em um processo passam a ser matéria-prima na produção de novos produtos, agregando valor à cadeia como um todo.

Contudo, hoje, mesmo levando em conta o que já se conhece, há pouquíssimos estudos aprofundados que nos permitem usufruir de todas as potencialidades de nossa biodiversidade. Por exemplo, se olharmos para cadeias produtivas de frutos nativos como açaí, macaúba, cambuci, uvaia, jabuticaba ou licuri, vamos identificar uma gama de resíduos com uma diversidade química ainda pouco explorada, que por sua vez poderia ser fonte para obtenção de novos bioprodutos e derivados sintéticos. Essas potencialidades, no entanto, só serão desvendadas com o estímulo à pesquisa e à experimentação científica.

Tais estudos fundamentais, que vão da classificação de novos microrganismos, animais e plantas a pesquisas direcionadas a aplicações industriais, podem constituir a base do desenvolvimento sustentável descentralizado e duradouro com potencial de impactar economias locais, já que a biodiversidade varia de um bioma para o outro. Por exemplo, a produção de insumos de alto valor agregado na Amazônia por meio de empreendimentos de base biotecnológica pode aumentar a geração de empregos e a demanda pela profissionalização da população local, minimizando efeitos migratórios para grandes centros.

A abundância de recursos naturais põe o país numa posição privilegiada para assumir um papel de liderança mundial na era da bioeconomia. Dificilmente, porém, novos medicamentos e inovações biotecnológicas surgirão enquanto a biodiversidade brasileira não for pesquisada e financiada de forma sistemática e contínua, com visão multidisciplinar e investimentos de longo prazo. Somente o fomento da pesquisa científica, além do investimento em infraestrutura e educação, darão ao país a oportunidade de se transformar num importante agente na produção de bioprodutos de alto valor agregado. Assim, a exploração racional de nossos recursos naturais pode se somar à nossa já consolidada produção de commodities, dando suporte ao desenvolvimento tecnológico.

Taxem os ricos! por André Roncaglia

0

Tentativa de se impor um teto à riqueza ganhou força com a pandemia

André Roncaglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP

Folha de São Paulo, 06/01/2023

Em seu discurso de posse no domingo (1º), o presidente Lula contrastou a fila do osso no açougue com a fila nas concessionárias de carros de luxo. Poucos dias antes, a Assembleia Legislativa de São Paulo decidiu reduzir de 4% para 1% o imposto sobre heranças no estado. Estes eventos reacenderam o debate sobre a injustiça social no país.

Desde as infames Leis dos Pobres na Inglaterra do século 19, foi longo e tortuoso o caminho para se impor um piso à pobreza, por meio de programas de proteção social. A tentativa de se impor um teto para a riqueza ganhou força com a pandemia. O maior número de bilionários contrastou com as centenas de milhares de famílias vitimadas pelo vírus. Esse contexto reforçou o apelo social de impostos sobre patrimônio dos mais ricos, em particular o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF).
Sistemas tributários com maior participação da arrecadação sobre patrimônio têm melhor desempenho econômico. Além disso, impostos sobre heranças e doações, sobre riqueza financeira e imobiliária elevam o grau de isonomia e a progressividade da tributação. Neste sentido, o IGF é um instrumento indispensável.

O estado da arte sobre o tema é apresentado no livro Progressividade Tributária e Crescimento Econômico, organizado por Manoel Pires (IBRE-FGV e UnB). A experiência internacional mostra limitado potencial arrecadatório em termos do PIB. As razões estão na base de incidência sobre uma camada muito restrita no topo da distribuição, mas também no mau desenho do imposto e no pouco esforço de fiscalização.

Em contexto de maior mobilidade de capitais e amplo acesso a paraísos fiscais, acredita-se que este imposto afugenta a riqueza. Estudos mostram efeitos heterogêneos entre países, bem como há evidências de que este risco de fuga seja superestimado (home bias). De qualquer forma, a focalização nos ricos requer uma alíquota moderada para evitar distorções potenciais de alocação de recursos e comportamentos evasivos.

Além da capacidade de evasão, os grupos abastados têm grande influência sobre a opinião pública. A pressão política pode restringir a base de tributação (excluindo-se ativos e elevando o limite de isenção), reduzir a alíquota e a duração do tributo (taxar uma única vez ou em contextos de calamidade).

Mesmo assim, vale a pena enfrentar o desafio. Por ser um tributo sobre riqueza líquida (ativos menos dívidas), pode-se elevar a progressividade no topo da distribuição. Em sua ausência, famílias com patrimônio elevado, mas renda baixa, podem ficar sub-tributadas em termos relativos. A digitalização é importante aliada na redução do custo administrativo em monitorar e fiscalizar a riqueza no topo.

O caso brasileiro exubera injustiça tributária e, por isso, oferece boas condições à aplicação do IGF. Os superricos pagam 5% de alíquota efetiva de IR sobre sua renda e têm quase R$ 7 em cada R$ 10 da sua renda anual isenta de impostos. A imagem piora ao subir a pirâmide. O 0,01% mais rico da população detém cerca de 20% da renda total do grupo. Neste grupo a isenção pode atingir 90% da renda pessoal.

A Constituição prevê a instituição do IGF no inciso VII do artigo 153. Desde 1989, mais de 40 projetos de lei foram apresentados ao Congresso Nacional para regulamentar o imposto. As propostas mais recentes propõem taxar fortunas acima de R$ 20 milhões, com alíquotas que vão de 0,5% a 1%. As 220 mil pessoas afetadas pelo imposto representam 30% da riqueza declarada no IRPF.

Modulações de limites de isenção e de alíquota afetam o potencial de arrecadação. Uma proposta prevê isenção a patrimônios menores que R$ 5 milhões e estima R$ 40 bilhões (0,4% do PIB) em recolhimentos.

Por não ser uma bala de prata, o IGF deve integrar um arranjo mais amplo de tributação sobre patrimônio. Ao produzir maior progressividade, ele pode reduzir a injustiça tributária no Brasil. E isso já é um bom começo.

Depressão geopolítica, por Nouriel Roubini

0

A Terra é Redonda – 04/01/2023

As economias avançadas e os mercados emergentes estão cada vez mais envolvidos em “guerras” inevitáveis. Por isso, o futuro será estagflacionário. E a única questão é saber quão ruim ele será

A inflação aumentou acentuadamente ao longo de 2022 nas economias avançadas e nos mercados
emergentes. As tendências estruturais sugerem que o problema será secular – e não transitório. Especificamente, muitos países estão agora envolvidos em várias “guerras” – algumas reais, outras metafóricas – que levarão a déficits fiscais ainda maiores, mais monetização da dívida e inflação mais alta no futuro.

O mundo está passando por uma forma de “depressão geopolítica” coroada por uma crescente rivalidade entre o Ocidente e potências revisionistas alinhadas entre si (se não aliadas), como China, Rússia, Irã, Coréia do Norte e Paquistão. As guerras frias e quentes estão em ascensão. A brutal invasão da Ucrânia pela Rússia ainda pode se expandir e envolver a OTAN. Israel – e, portanto, os Estados Unidos – está em rota de colisão com o Irã, que está prestes a se tornar um Estado com armas nucleares. O Oriente Médio, de modo amplo, é um barril de pólvora. E os EUA e a China estão se enfrentando sobre quem dominará a Ásia e se Taiwan será reunificada à força ou não com a China continental.

Consequentemente, os EUA, a Europa e a OTAN estão se rearmando, assim como praticamente todos os países no Oriente Médio e na Ásia, incluindo o Japão, que embarcou agora num reforço militar, o maior em muitas décadas. Assim, níveis mais altos de gastos com armas convencionais e não convencionais (incluindo as dos tipos nuclear, cibernética, biológica e química) estão praticamente garantidos e esses gastos pesarão nas contas públicas.

A guerra global contra a mudança climática também custará caro – tanto para o setor público quanto para o privado. A mitigação e a adaptação às mudanças climáticas podem custar trilhões de dólares por ano nas próximas décadas; é tolice pensar que todos esses investimentos impulsionarão o crescimento. Depois de uma guerra real que destrói grande parte do capital físico de um país, uma onda de investimento pode, é claro, produzir uma expansão econômica; no entanto, o país vai estar mais pobre por ter perdido grande parte de sua infraestrutura. O mesmo se aplica aos investimentos climáticos. Uma parte significativa do capital social existente terá de ser substituída, seja porque se tornou obsoleta seja porque foi destruída por eventos climáticos.

Agora também estamos travando uma guerra cara contra as futuras pandemias. Por diversas razões – algumas delas relacionadas às mudanças climáticas – os surtos de doenças com potencial para se tornarem pandemias se tornarão mais frequentes. Mesmo se os países investirem em prevenção para lidar com futuras crises de saúde, após o evento acontecer, eles incorrerão em custos mais altos de forma permanente. Ora, isso aumentará o fardo crescente associado ao envelhecimento da sociedade o que onerará os sistemas de saúde privados e os planos de pensão. Já se estima que essa carga implícita de dívida não financiada esteja próxima do nível da dívida pública explícita para a maioria das economias avançadas.

Além disso, será necessário travar cada vez mais guerras contra os efeitos disruptivos da “globótica”, ou seja, a combinação de globalização e automação (incluindo inteligência artificial e robótica), pois essa tecnologia está ameaçando um número crescente de ocupações manuais ou intelectuais. Os governos estarão sob pressão para ajudar os que ficaram para trás, seja por meio de esquemas de renda básica, transferências fiscais maciças ou expansão dos serviços públicos.

Esses custos permanecerão altos mesmo que a automação leve a um aumento no crescimento econômico. Por exemplo, sustentar uma escassa renda básica universal de US$ 1.000 por mês custaria aos EUA cerca de 20% de seu PIB.

Finalmente, também será preciso travar uma guerra urgente contra o aumento da desigualdade de renda e de riqueza. Em caso contrário, o mal-estar que aflige os jovens e muitas famílias da classe média e mesmo da classe operária continuará a gerar reações contra a democracia liberal e o capitalismo de livre mercado. Para evitar que regimes populistas cheguem ao poder e sigam políticas econômicas imprudentes e insustentáveis, as democracias liberais precisarão gastar uma fortuna para reforçar suas redes de segurança social – como muitas já estão fazendo.
Lutar contra essas cinco “guerras” será caro; fatores econômicos e políticos limitarão a capacidade dos governos de financiá-las com impostos mais altos. As taxas de impostos em relação ao PIB já são altas na maioria das economias avançadas – especialmente na Europa – e a evasão, a elisão e a arbitragem fiscais complicarão ainda mais os esforços para aumentar os impostos sobre altas rendas e sobre os ganhos de capital (supondo que tais medidas possam vencer a reação dos lobistas e dos partidos de centro-direita).

Assim, essas guerras necessárias aumentarão os gastos e as transferências do governo como parcela do PIB – provavelmente sem um aumento proporcional nas receitas fiscais. Os déficits orçamentais estruturais irão crescer ainda mais do que agora, o que produzirá certamente dívida insustentáveis. Ora, isso aumentará os custos dos empréstimos, mas poderá culminar em crises de dívida, com óbvios efeitos adversos no crescimento econômico.

Para os países que tomam empréstimos em suas próprias moedas, a opção mais conveniente será permitir que uma inflação mais alta reduza o valor real da dívida nominal de longo prazo quando ela é remunerada com taxa de juros fixa. Essa abordagem funciona como uma taxação adicional contra os poupadores e os credores e em favor dos tomadores de empréstimos e devedores. Como o “imposto inflacionário” é uma forma sutil e sorrateira de tributação que não requer aprovação legislativa ou executiva, ele se afigura como um caminho padrão de menor resistência quando os déficits e as dívidas se tornam cada vez mais insustentáveis.

Essa opção pode ser combinada com medidas complementares e draconianas, tais como repressão financeira, impostos pesados sobre o capital e aceitação da inadimplência total em certos casos (por exemplo, para países que tomam empréstimos em moedas estrangeiras ou que mantêm uma grande dívida de curto prazo ou uma dívida total indexada à inflação).

Concentrei-me principalmente nos fatores do lado da demanda e estes levarão a maiores gastos, maiores déficits, mais monetização da dívida e mais inflação. Mas também haverá certamente muitos choques negativos de oferta agregada no médio prazo e eles poderão aumentar as pressões estagflacionárias, as quais já se fazem presentes atualmente, elevando assim o risco de recessões e de crises de dívida em cascata. A “grande moderação” está morta e enterrada; a “grande crise da dívida estagflacionária” está aí vivíssima e prosperando.

*Nouriel Roubini, professor de economia na Stern School of Business da Universidade de Nova York, é economista-chefe da Atlas Capital Team. Autor, entre outros livros, de MegaThreats: Ten Dangerous Trends That Imperil Our Future, and How to Survive Them (Little, Brown and Company).
Tradução: Eleutério F. S. Prado

A alienação do trabalho intelectual, por Bruno Machado

0

Bruno Machado*

A Terra é Redonda – 05/01/2023

É de interesse da classe proprietária que a classe trabalhadora se enxergue como dividida entre trabalhadores físicos e intelectuais

É comum entre jovens de classe média, indo da classe média baixa à classe média alta, a entrada no mercado de trabalho diretamente em funções de trabalho intelectual, com pouca ou nenhuma presença de trabalho físico. A entrada na Universidade e o primeiro emprego após a graduação, ou mesmo a atuação profissional dentro de empresas familiares, faz com que boa parte dos jovens de classe média nunca tenham contato com qualquer tipo de trabalho que não seja intelectual como o trabalho físico, ainda que de leve intensidade.

Esse fenômeno favorece a divisão entre o trabalho físico e o trabalho intelectual na sociedade. O que faz com que esses jovens de classe média que entram no mercado diretamente em funções intelectuais se sintam melhores do que os jovens que atuam no mercado de trabalho em funções de menor posição hierárquica e em trabalhos não voltados a intelectualidade.

Essa enganosa sensação de superioridade, que muitas vezes sequer acompanha um salário mais alto, cria uma falsa divisão de classes no mercado de trabalho. Em vez de enxergar a divisão social entre trabalhador e proprietário, por ter mais contato com o “peão” do que com o “patrão” essa classe média se vê no topo de pirâmide social, acima dos trabalhadores braçais.

Isso ocorre tanto nas classes médias de visão de mundo liberal quanto nas de visão de mundo socialista. A classe média liberal enxerga a classe trabalhadora apenas como a parte que exerce o trabalho físico, se excluindo dessa classe social, apesar de pertencer a mesma. Dessa forma, veem as massas como gente a ser explorada, por crer que esses não têm condições de exercerem outro papel social.

Por outro lado, a classe média socialista, principalmente a que compõe uma esquerda universitária, vê as massas como gente a ser educada, esclarecida e ajudada, pois não vê nessa parcela da sociedade uma capacidade de autonomia política. Ambas as visões de mundo, fundadas no privilégio do trabalho intelectual, alienam essa classe média, que passa a se identificar como uma classe diferente das massas. Porém, do ponto de vista do sistema como um todo são massa junto com aqueles que eles veem como a massa.

Por isso, o trabalho físico, que é fundamental para o funcionamento da sociedade e necessita ser realizado, não precisa ser exclusivo de uma parcela da sociedade enquanto outra se vê distante dele. Da mesma maneira que o acesso a capacitação para o exercício do trabalho intelectual deve ser universal, deve haver uma equânime divisão social do trabalho físico na sociedade. Tal ideia sequer é nova, na União Soviética muitos estudantes universitários que tinham acesso gratuito a graduação também tinham que trabalhar em carga horária reduzida em fábricas ou plantações. Tal política tinha como objetivo valorizar o trabalho e demonstrar a igualdade da importância do trabalho físico com o intelectual.

Se a classe média que vive desde a entrada no mercado de trabalho o privilégio do trabalho intelectual tivesse contato com o trabalho físico, ainda que de forma reduzida, teria menos preconceito com os trabalhadores ditos “peões” e desenvolveriam maior consciência de classe, se identificando como classe trabalhadora. É de interesse da classe proprietária que a classe trabalhadora se enxergue como dividida entre trabalhadores físicos e intelectuais e não se
voltem contra a verdadeira classe dominante na sociedade capitalista.

É evidente que políticas públicas voltadas a inserção de jovens universitários no mercado de trabalho em trabalhos não intelectuais que levem a valorização do trabalho como um todo e, por consequência, também eleve a conscientização de classe desses jovens, seria duramente rejeitado pela classe média brasileira. Isso ocorreria pois o trabalho não intelectual, que inclui o trabalho meramente físico, é visto como castigo para essa parcela da sociedade privilegiada.

*Bruno Machado é engenheiro.

Desejos de ano novo

0

Estamos iniciando mais um ano, um novo governo, com novas esperanças, novas expectativas, novos sonhos, vontades e desejos no coração. Depois de momentos de incertezas, instabilidades, conflitos políticos, polarizações ideológicas e fraco crescimento econômico. O ano nos traz grandes desafios e oportunidades, depois de uma pandemia global que dizimou quase 7 milhões de pessoas, sendo que no Brasil, os dados mostram mais de 700 mil pessoas mortas, um número assustador e nos coloca como um dos países que mais foram afetados pela pandemia.

Neste momento, fomos assolados por graves crises econômicos e sociais, com aumento da fome, incremento do desemprego, crescimento da violência urbana, degradação dos serviços públicos e aumento considerável da desesperança, os medos aumentaram, a convivência humana foi degradada, o ambiente corporativo fortemente competitivo e centrado no individualismo gerou mais fragilidades emocionais e desequilíbrios sentimentais, criando uma sociedade cada vez mais degradada, polarizada, individualista e imediatista, desta forma, infelizmente estamos caminhando rapidamente para um colapso social.

O próximo ano precisa reestruturar a sociedade, inserindo uma parcela substancial da comunidade no mercado de consumo, garantindo espaço de empregabilidades para todos os indivíduos, garantindo novas esperanças e perspectivas para todos os grupos sociais, fortalecendo os laços familiares e sociais na comunidade, construindo políticas públicas que insiram os jovens e os adolescentes nas escolas e faculdades, garantindo uma educação de qualidade.

A sociedade precisa compreender que a educação não é a bala de prata para a sociedade, a educação é imprescindível para o desenvolvimento de uma sociedade, mas desde que seja inserida num projeto maior de país, um projeto de nação, precisamos discutir qual tipo de educação queremos para as crianças, adolescentes e jovens, precisamos discutir todo ecossistema relacionado com a educação e com o sistema econômico e produtivo, cobrando qualidade nas instituições de ensino, investindo em melhorias substanciais e impedindo o funcionamento de instituições de ensino superior dotadas de grandes bilhões de recursos financeiros, caixas abarrotadas de cifrões e responsáveis pela formação de alunos de péssima qualidade que contribuem ativamente para os indicadores degradantes da educação brasileira.

O ano novo deve trazer de volta para a sociedade o planejamento econômico e políticas estratégicas para o futuro da nação, que adianta aumentar a arrecadação tributária numa estrutura de tributos altamente regressivo que degrada a classe média e os setores mais fragilizados em detrimento dos grandes milionários e bilionários que pouco contribuem e são os grandes ganhadores das isenções fiscais e das taxas extorsivas da economia, que destroem os empreendedores e aumentam os lucros dos financistas e dos prepostos do mercado financeiro.

O ano novo deve trazer de volta os sonhos dos criadores do sistema de saúde nacional, os precursores do Sistema Único de Saúde (SUS), que vislumbraram a saúde integral para cada cidadão nacional, garantindo-a como um direito do Estado Nacional, mas se não revermos as políticas em curso, estamos caminhando a passos largos para um processo, sem volta, de uma financeirização da saúde, como aconteceu no setor educacional e suas consequências se mostram cada vez mais degradantes, garantindo aos donos dos recursos atendimentos de saúde de qualidade, exames de grande complexidade e uma grande massa de degradados, exilados em condições de indignidade, de desesperança e de exclusão social.

O ano novo pode nos trazer novas perspectivas positivas para a sociedade, os desafios são imensuráveis, grande parte dos grupos sociais e econômicos não perceberam a urgência destes desafios, diante disso, é urgente reconstruirmos os laços sociais, fortalecer as instituições e consolidar a democracia.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no jornal Diário da Região, Caderno Economia, 04/01/2023.

Carta Mensal – Dezembro 2022

0

O último mês do ano de 2022 foi marcado por grandes discussões referentes ao novo governo, a formação dos ministérios, as secretarias e as pessoas que participariam da nova gestão a partir de janeiro de 2023. Foi um momento de grandes conversas e discussões que visavam a construção de um governo de coalizão, com inúmeros partidos políticos, com variados grupos sociais, com agendas variadas, visando a chamada a governabilidade.

Neste momento, os olhos estavam voltados a definição da equipe econômica, as pessoas que seriam responsáveis pela condução da política econômica, onde os jornalistas destacavam como seria a nova âncora fiscal do novo governo, quais as medidas que seriam implementadas para reverter os indicadores econômicos herdados do governo Jair Bolsonaro. Depois de grandes conversações foram alçados ao posto maior da economia brasileira o professor Fernando Haddad, ex-ministro da Educação, ex-prefeito de São Paulo e ex-candidato à presidência da República de 2018. A escolha foi marcada por grandes críticas e aplausos da mídia corporativa, de um lado, ligados aos donos do capital, ressaltavam a pouca experiência no cargo e o fato de Haddad não ser visto como um economista original, sua formação contempla uma formação em Direito, Economia e Filosofia. De outros, mais progressistas, a escolha de Haddad foi positiva, com muitos elogios e visto como uma pessoa responsável fiscalmente, sensível socialmente e dotado de grande capacidade de conversação política.

Neste mês de dezembro foram escolhidos todos os 37 ministros, com nomes conhecidos, como Marina Silva (Meio Ambiente), Simone Tebet (Planejamento), Margareth Menezes (Cultura), Carlos Luppi (Previdência), Luiz Marinho (Trabalho), Wellington Dias (Desenvolvimento , Silvio Almeida (Direitos Humanos), Carlos Fávaro (Agricultura e Pecuária), Paulo Pimenta (Secretaria de Comunicação Social), Rui Costa (Casa Civil), Alexandre Padilha (Relações Institucionais), Flávio Dino (Justiça e Segurança Pública), Ana Moser (Esporte), Esther Dweck (Gestão), Nísia Trindade (Saúde), Camilo Santana (Educação), Márcio França (Portos e Aeroportos), Mauro Vieira (Relações Exteriores), José Múcio Monteiro (Defesa), dentre outros.

Destacamos um governo de coalizão com vários partidos políticos, setores do PSD foram contemplados, União Brasil, PSB, PT, PC do B, Rede Sustentabilidade, dentre outros. Neste momento, percebemos que vivemos de grandes desafios políticos, a democracia brasileira está sendo, novamente, testada, tudo como forma de construirmos uma governabilidade, que é fundamental para que o governo consiga impor uma agenda de grandes transformações para a sociedade brasileira, marcada por grandes destruições nas mais variadas áreas e setores, desde a educação, da saúde, das políticas públicas, da infraestrutura, da cultura, uma verdadeira destruição que precisa ser reconstruída urgentemente.

Destacamos ainda, as movimentações dos grupos bolsonaristas, que desde o final do segundo turno, se concentraram na frente dos quartéis como forma de pressionar as forças armadas a atuarem diretamente para reverter os resultados das urnas, um movimento antidemocrático, organizado e financiado por setores que ganharam grandes recursos no governo de Bolsonaro, visto como “patriotas” e defensores do “povo” brasileiro, uma grande falácia, centrada numa narrativa enviesada e pouco convincente. Neste período, percebemos que os setores das Forças Armadas atuaram, indiretamente, para impedir a remoção destes movimentos das portas dos quartéis, gerando fortes constrangimentos na sociedade e levando os setores militares perderam uma parte substancial da respeitabilidade na sociedade brasileira.

O mês de dezembro de 2022 não foi apenas marcado pela formação do novo governo brasileiro, destacamos alguns fenômenos que devemos comentar e deixar como um instrumento de registro na Carta Mensal/2022. Dentre elas, destacamos a Copa do Mundo do Catar, que muitos acreditavam na vitória da seleção de Tite, depois de alguns jogos pouco envolventes e vitórias fracas e descritas como magras, a seleção brasileira foi, novamente, desclassificada pela Croácia, dando adeus ao sonho de nos tornarmos a primeira nação a ser seis vezes campeã, amargando, ainda, o título de nossos irmãos argentinos, que se tornaram tricampeões depois de uma final eletrizante com os franceses. Parabéns aos Argentinos!!!

Dois outros fenômenos marcaram o mês de dezembro de 2022, ou melhor, duas mortes que entraram para história mundial, de um lado, os brasileiros e todos os fãs do futebol se despedem da Edson Nascimento, o Pelé, o maior jogador de todos os tempos. A história de Pelé é imprescindível para compreendermos o futebol brasileiro, o drible, os lances, os ritmos e a leveza. O mundo perde a morte do maior jogador de futebol de todos os tempos, único que parou uma guerra, responsável por transformar o Santos, um time do interior do estado de São Paulo, um dos times mais conhecidos de todos os tempos e tornar o Estádio de Vila Belmiro o templo do futebol mundial durante algumas décadas.

O ano terminou com o passamento do Papa emérito Bento XVI, depois de 95 anos e um legado que tende a gerar grandes reflexões sobre o futuro do Cristianismo, o primeiro papa na história do cristianismo a renunciar, diante disso, vivemos um momento de repensarmos as questões religiosas, momentos de valores novos, pensamentos novos, comportamentos novos, vivemos num momento de grandes incertezas e instabilidades, onde não sabemos para onde estamos indo…. infelizmente!

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

A desigualdade como bloqueio estrutural, por Vladimir Safatle

0

Vladimir Safatle

A terra é redonda – 31/12/2022

A desigualdade econômica traz em seu bojo uma urgência propriamente biopolítica; ela define os ritmos de vida e morte que separam grupos sociais

A igualdade é o horizonte normativo fundamental da vida democrática. Seu sentido não está vinculado a alguma forma de imposição de homogeneidades, como se não fosse possível, em uma sociedade igualitária, o reconhecimento efetivo da diferença. Na verdade, podemos dizer exatamente o contrário, a saber, que só em uma sociedade radicalmente igualitária, diferenças e singularidades são possíveis. Pois, nesse contexto, “igualdade” significa ausência de hierarquia, ausência de sujeição. Quando a hierarquia impera, diferenças só podem ser vividas como desigualdades, pois a hierarquia impõe níveis de valores. O que é diferente do que está acima é necessariamente menos valorizado. Nesse sentido, ser diferente em uma sociedade hierarquizada significa ser desigual, ser mais vulnerável, não ser conforme ao que se espera para ter poder.

Note-se ainda que a crítica da hierarquia não significa necessariamente o desconhecimento da existência de relações sociais baseadas em autoridade e poder, mas significa simplesmente que tais relações de autoridade e poder podem circular em várias direções, que elas não se cristalizam, que elas são continuamente reversíveis e dinâmicas. Ou seja, em uma sociedade desprovida de hierarquia, as relações de poder não se transformam em relações de dominação.

Poder e dominação não são necessariamente a mesma coisa, embora normalmente eles se sobreponham.

Poder é a capacidade de exercer sua própria potência de ação e engajar outros nesse processo.

Poder é compreender que essa potência de ação não é individual, mas é expressão do desdobramento
de relações sociais, passadas e atuais, das quais faço parte. Por isso, a ação que daí deriva não é uma imposição. Ela é um encontro. Todo encontro é uma relação de poder, pois permite a circulação de dinâmicas de ação e transformação através de um engajamento coletivo que ressoa dimensões inconscientes de minhas motivações para agir.

Dominação, por sua vez, é a sujeição da vontade de um sujeito à vontade de outro. Por isso, ela só pode se exercer como mando e vigilância. Pois uma vontade individual só se exerce pela força ou pela promessa de participação de mandos posteriores.

Ou seja, em uma sociedade radicalmente igualitária, as diferenças não são destruídas por hierarquias, o poder circula e não se cristaliza em pontos específicos. E se as diferenças não são destruídas, isso significa que uma sociedade igualitária reconhece tais diferenças, essa é sua real dinâmica. Devemos falar em “dinâmica” nesse contexto porque reconhecimento não é simples recognição. Reconhecer algo ou alguém não significa simplesmente tomar nota de sua existência. Antes, significa mudar estruturalmente quem reconhece, pois ao reconhecer outro que até então eu não reconhecia, algo de meu mundo se modifica, sou afetado por aquilo que até então me era inexistente, uma mutação estrutural do campo da experiência ocorre. Por isso, sociedades igualitárias são plásticas e em contínua mutação.

Essas colocações iniciais servem para lembrar como a desigualdade é não apenas um problema de ordem socioeconômica, mas um bloqueio estrutural na realização de uma sociedade democrática. Ela não é um problema dentre outros, mas o problema central quando se é questão de compreender os déficits normativos de uma sociedade e as limitações em sua potencialidade de criação e coesão.

E, nesse ponto, é claro que a sociedade brasileira aparece como um caso dramático, devido a seus níveis exponenciais de desigualdade.

O problema da desigualdade em uma sociedade como a brasileira é algo que exige uma abordagem transversal, pois atinge múltiplas dimensões de nossas formas de vida e de nossos processos de reprodução material. Tais dimensões não podem ser tratadas separadamente, mas exigem abordagens focadas que possam ser capazes de consolidar um conjunto articulado de ações.

De forma esquemática, podemos dizer que não há discussão sobre a desigualdade entre nós sem que
possamos analisar as articulações entre desigualdades econômicas, regionais, raciais, de gênero e epistêmicas. Um país como o Brasil, que se constituiu a partir da naturalização de hierarquias e apagamentos coloniais, não pode confundir a luta contra a desigualdade com a realização de políticas de redistribuição. De fato, a redistribuição é fator central desse debate, mas ela não elimina a necessidade de lidar com as múltiplas dimensões de reconhecimento bloqueado advindo das hierarquias presentes em estruturas sociais de gênero, raça e circulação de saberes.

Redistribuição e reconhecimento são assim dimensões constituintes das políticas de combate à desigualdade e precisam estar no horizonte de toda constituição de ações articuladas de governo.

Desigualdade econômica e regional

É evidente, no entanto, que historicamente a desigualdade econômica tem chamado mais a atenção dos que se debruçam sobre a realidade brasileira. O que não poderia ser diferente para um país que se encontra entre os dez países com maior desigualdade econômica no mundo, segundo o índice Gini. Essa desigualdade econômica se mostrou extremamente resiliente, a despeito das inúmeras políticas tentadas nas últimas décadas. Na verdade, ela se agravou nos últimos anos. Basta levar em conta o fato de que, em 2000, o 1% mais rico da população brasileira detinha 44,2% da riqueza nacional. Em 2010, esse número cai para 40,5% e em 2020 sobe novamente para 49,5%. Para se ter uma ideia da magnitude de tais números, nos EUA, 1% da população mais rica detém, em 2020, 35% da riqueza nacional.

Vale lembrar que, segundo o mesmo índice Gini, em 2020 o Brasil conheceu paradoxalmente uma queda significativa da desigualdade, fruto da massiva transferência de renda realizada no momento da pandemia. No entanto, essa era uma política emergencial, que não tocava efetivamente nas estruturas de concentração de renda e preservação de ganhos e propriedades que caracterizam a sociedade brasileira. Por isso, ela foi um ponto fora da curva. Esse fato demonstra como as políticas necessárias precisam ser duradouras, e isso exige mobilizar uma dimensão propriamente estrutural da economia brasileira.

Notemos, entre outros, como a questão da desigualdade econômica traz em seu bojo uma urgência
propriamente biopolítica, ou seja, ela define os ritmos de vida e morte que separam grupos sociais. Tomemos, por exemplo, os níveis de expectativa de vida nos bairros da cidade de São Paulo. Segundo o Mapa da desigualdade, em Alto de Pinheiros, a expectativa de vida média é atualmente de 80,9 anos. Em Guaianazes, ela é de 58,3 anos.

Isso demonstra de forma clara como a sociedade brasileira, por preservar de forma atávica seus níveis de desigualdade, decidiu de forma soberana quem pode ter uma vida longa e quem deve morrer rápido.

Contra a estabilização de tais situações, faz-se necessário não apenas políticas públicas de reparação, mas de transformação estrutural. Elas deveriam passar por dois eixos. O primeiro deles lembra que a desigualdade econômica é fruto direto da desigualdade no controle e posse dos aparelhos produtivos. Essa é a questão mais intocada de nossas sociedades capitalistas, no entanto, ela é uma das chaves fundamentais para a luta contra a desigualdade econômica.

Sociedades que criam dispositivos de autogestão da classe trabalhadora ou de participação conjugada da classe trabalhadora no processo de gestão de empresas e corporações têm melhores condições para realizar administrações voltadas ao interesse coletivo e ao enriquecimento comum.

Podemos lembrar, nesse contexto, de um exemplo de nosso Estado de São Paulo. A partir de 2003, a fábrica de reservatórios e tonéis plásticos Flaskô, sediada no município de Sumaré, passou à autogestão da classe trabalhadora. Nesse período, ela viu sua produção aumentar, o tempo de trabalho diminuir e os salários subirem. Pois a visão do processo produtivo própria a quem está efetivamente vinculado à produção é mais racional e menos onerosa. Exemplos dessa natureza demonstram que incentivos à autogestão (como isenção de impostos a empresas que passem para esse modo de gestão) e à gestão participativa (como leis que obriguem empresas e corporações a terem ao menos 30% de seus conselhos diretivos compostos de representantes das trabalhadoras e trabalhadores) teriam impacto relevante na estrutura da desigualdade econômica.

Da mesma forma, a limitação da diferença de ganhos é elemento fundamental em tal política. Isso
passa por uma reforma tributária que efetivamente taxe renda e lucros, ao invés de taxar consumo. Devemos lembrar que o Brasil é, juntamente com a Estônia, o único país no mundo a não taxar lucros e dividendos. Da mesma forma, ele desconhece imposto sobre grandes fortunas, mesmo que tal imposto esteja previsto na Constituição de 1988. Há uma exigência de justiça tributária que deve ser o horizonte real de políticas públicas.

Mas a limitação de ganhos passa também pela possibilidade de impor limites claros para diferenças salariais. O Brasil é um país onde o menor e o maior salário no interior de uma empresa (sem contar bonificações e outros rendimentos) pode chegar a até 120 vezes. Uma limitação legal dessa diferença, assim como a implantação de um salário máximo poderia servir como fator robusto de limitação de tais desigualdades.

Soma-se a isso o fato de países como o Brasil conhecerem ainda profundas desigualdades regionais, fruto da concentração de seu desenvolvimento industrial e de sua política tributária na qual a arrecadação vai à União sem os correspondentes repasses aos Estados e municípios.

Desde os anos sessenta, graças ao trabalho pioneiro de economistas como Celso Furtado, é clara a
necessidade de conjuntos específicos de políticas de desenvolvimento regional com respectivas instituições gestoras. Se quisermos utilizar o mesmo critério de expectativa de vida para medir o impacto das desigualdades regionais, há de se lembrar que em Estados como Santa Catarina a expectativa de vida é de 79,4 anos enquanto no Maranhão encontramos 70,9.

Desigualdades de gênero, raça e epistêmica

Mas como foi dito anteriormente, a reflexão sobre a desigualdade brasileira exige uma abordagem transversal na qual problemas de redistribuição e reconhecimento possam ser pensados conjuntamente. O processo de acumulação primitiva do capitalismo exige não apenas a espoliação do trabalho pago, mas o uso do trabalho gratuito. Nesse caso, seja como trabalho realizado por populações escravizadas, seja como trabalho não pago resultante da sujeição patriarcal das mulheres. E mesmo nas estruturas tradicionais da espoliação do trabalho pago, encontramos o impacto das desigualdades de gênero e de raça. A sociedade brasileira preserva suas hierarquias de desigualdade através da consolidação de certos setores como potencialmente vulneráveis.

A esse respeito, lembremos como o Brasil foi um país criado a partir da implementação da célula econômica do latifúndio escravagista primário-exportador em solo americano. Antes de ser uma colonização de povoamento, tratava-se de desenvolver, pela primeira vez, uma nova forma de ordem econômica vinculada à produção exportadora e ao uso massivo de mão de obra escrava. Lembremos como o Império português será o primeiro a se engajar no comércio transatlântico de escravos, chegando à posição de quase-monopólio em meados do século XVI. 35% de todos os escravos transportados para as Américas foram direcionados para o Brasil. Sendo o latifúndio escravagista a célula elementar da sociedade brasileira, sendo o Brasil o último país americano a abolir a escravidão, não será estranho conceber o País como o maior experimento de necropolítica colonial da história moderna.

De fato, a dinâmica colonial assenta-se em uma “distinção ontológica” que se demonstrará extremamente resiliente, conservando-se mesmo após o ocaso do colonialismo como forma socioeconômica. Ela consiste na consolidação de um sistema de partilha entre dois regimes de subjetivação. Um permite que sujeitos sejam reconhecidos como “pessoas”, outro que leva sujeitos a serem determinados como “coisas”. Aqueles sujeitos que alcançam a condição de “pessoas” podem ser reconhecidos como portadores de direitos vinculados, preferencialmente, à capacidade de proteção oferecida pelo Estado.

Como uma das consequências, a morte de uma “pessoa” será marcada pelo dolo, pelo luto, pela manifestação social da perda. Ela será objeto de narrativa e comoção. Já os sujeitos degradados a condição de “coisas” (e a degradação estruturante se dá no interior das relações escravagistas, embora ela normalmente permaneça mesmo depois do ocaso formal da escravidão) serão objetos de uma morte sem dolo. Sua morte será vista como portadora do estatuto da degradação de objetos. Ela não terá narrativa, mas se reduzirá à quantificação numerária que normalmente aplicamos às coisas. Aqueles que habitam países construídos a partir da matriz colonial sabem da normalidade de tal situação quando, ainda hoje, abrem jornais e leem: “nove mortos na última intervenção policial em Paraisópolis”, “85 mortos na rebelião de presos de Belém”. A descrição se resume normalmente a números sem história.

Não é difícil compreender como esta naturalização da distinção ontológica entre sujeitos através
do destino de suas mortes é um dispositivo fundamental de governo. Ele perpetua uma dinâmica de guerra civil não declarada através da qual aqueles submetidos à espoliação econômica máxima, às condições mais degradadas de trabalho e remuneração, são paralisados em sua força de revolta pela generalização do medo diante do extermínio de Estado. Ela é assim o braço armado de uma luta de classes para a qual convergem, entre outros, marcadores evidentes de racialização. Pois trata-se de fazer passar tal distinção ontológica no interior da vida social e de sua estrutura cotidiana. Os sujeitos devem, a todo momento, perceber como o Estado age a partir de tal distinção, como ela opera explicitamente e em silêncio.

Neste sentido, notemos como tal dinâmica necropolítica responde, após o ocaso das relações
coloniais explícitas, às estratégias de preservação de interesses de classe, na qual o Estado age, diante de certas classes, como “Estado protetor”, enquanto age diante de outras como “Estado predador”. Em suma, há de se insistir como a necropolítica aparece assim enquanto dispositivo de preservação de estruturas de paralisação de luta de classes, normalmente mais explícita em territórios e países marcados pela centralidade de experiências coloniais.

Essa gestão de uma guerra civil não declarada passa necessariamente pela degradação de matrizes epistêmicas vinculadas a populações submetidas ao extermínio (povos originários) e à escravidão.

Nesse ponto, a universidade brasileira deve ter consciência de sua posição paradoxal. Podemos falar em paradoxo porque a universidade latino-americana está diante de um processo emancipador e silenciador. Por exemplo, a primeira universidade da América Latina (San Marco, Peru) data do século XVI. Ela se instaura no meio de uma guerra colonial contra um povo com largo conhecimento tecnológico e complexa cosmovisão, a saber, os incas. Uma das funções da universidade será impor um silenciamento cultural e epistêmico que irá perdurar, de certa forma, até hoje. Ter essa consciência autocrítica, entender-se também como parte do problema, é uma das maiores contribuições que a universidade brasileira pode dar à luta contra a desigualdade.

*Vladimir Safatle é professor titular de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação (Autêntica).

Carta de um professor aos novos governantes, por Walber Gonçalves de Souza.

0

Convido-os a conhecer as entranhas de uma escola

Walber Gonçalves de Souza, Professor, é doutor em geografia (PUC Minas).

Folha de São Paulo, 01/01/2023

Completo 22 anos de magistério, do ensino básico ao superior —são muitas experiências acumuladas no chão de uma sala de aula. Sempre pensei que pela educação podemos transformar o rumo de uma nação, em especial o nosso Brasil, um país tão rico, de gente (maioria) tão pobre.

Infelizmente não é isso que tenho percebido. A educação pública no Brasil não passa, com raras exceções, de uma grande mentira, de uma farsa. Vemos uma triste realidade camuflada em índices e um monte de conversa fiada, com ares de uma pedagogia modernizada. Basta conhecer as entranhas de uma escola que saberão que nossa realidade é de aterrorizar.

Sem medo de errar, posso afirmar que a nossa educação é de péssima qualidade e caminha a passos largos para se tornar ainda pior, mesmo parecendo não ser mais possível ultrapassar o fundo do poço. Um dia pensei que a educação poderia mudar a sociedade, mas o que vejo é justamente o contrário: a sociedade mudou a educação e levou para dentro das escolas todos os seus vícios e problemas.

Discursos bonitos aparecem em todas as eleições. Mas vivemos de promessas e contos do vigário. Sempre há alguém que nunca pisou em uma sala de aula da educação básica propondo uma metodologia nova; mas, como diria o ditado popular, “de boas intenções o inferno está cheio”.

A “pedagogia da modinha”, criada por aqueles que não conhecem a realidade de uma escola, só escancara um dos nossos grandes desafios: estabelecer uma política pública de Estado para a nossa educação, não a corriqueira política de governo.

Nossas escolas estão tomadas e reféns da indisciplina, várias pelo tráfico e abandono. A falta de professores já é percebida. A educação brasileira é um faz de contas. Pouco se ensina, por inúmeros motivos, e por consequência pouco ou quase nada se aprende. Mas o discurso governamental é sempre o mesmo: nossa educação vai bem! Afinal, ninguém quer admitir a realidade.

Provavelmente esta carta não chegará ao seu destino final, mas fica o desabafo e a eterna esperança de dias melhores. Peço: vamos encarar os desafios da educação. Ela não pode ser medida simplesmente por estatísticas. Precisamos alcançar resultados, que se manifestam na vida das pessoas, através de condições humanas e civilizadas de vida.

Precisamos solucionar a indisciplina, valorizar a carreira docente, tornar o ambiente escolar um lugar propício e necessário para o aprendizado e, principalmente, estimular as pessoas a acreditarem na escola (educação) como um meio de crescimento humano e social. O que não dá mais é continuar como está: fingindo que as coisas estão acontecendo.

Finalizando, convido-os a escolherem uma escola de uma cidade brasileira, pois retratará a realidade da imensa maioria, e ministrarem aulas durante um mês. E, se não for pedir demais, que vossos salários, ao longo do mandato, sejam iguais aos dos professores. Quem sabe assim entenderiam o que é a educação brasileira e, por consequência, fomentariam as devidas soluções.
Cordiais saudações de um professor que não vai desistir da educação!

Que 2023 venha com saúde!, por Márcia Castro

0

Com o novo governo eleito de forma democrática, há esperança de dias melhores

Márcia Castro, Professora de demografia e chefe do Departamento de Saúde Global e População da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Folha de São Paulo, 02/01/2023

O Brasil entra 2023 enfrentando uma crise sanitária. Há necessidade urgente de trilhar um caminho de recuperação. Com o novo governo eleito de forma democrática, há esperança de dias melhores.

A deterioração da saúde começou com a implantação da Emenda Constitucional 95, conhecida como PEC da Morte, no final de 2016. A EC 95 congelou os gastos com saúde e comprometeu a capacidade do SUS de prover serviços essenciais. A estimativa é que, entre 2018 e 2022, o SUS tenha perdido cerca de R$ 60 bilhões por causa da EC 95.

Os últimos quatro anos, porém, foram sem precedentes. Vivemos uma pandemia, administrada por um governo irresponsável, sem compromisso com a verdade, a ciência e a vida. O saldo disso tudo? Quase 700 mil vidas perdidas, mais de 113 mil crianças órfãs e um retrocesso de décadas em vários indicadores de saúde.

Esse governo que acaba de sair deixa um legado mórbido na saúde. Afastou a ciência da tomada de decisão, não apoiou a pesquisa básica e comprometeu a coleta de dados que são fundamentais para uma resposta rápida e eficaz às demandas sanitárias.

Cortou os canais de comunicação com a sociedade e se isolou do mundo, rompendo uma tradição de protagonismo que o Brasil costumava ocupar em acordos de cooperação internacional.

Não reconheceu o racismo estrutural como um determinante social de saúde e cortou parte do orçamento para ações de saúde indígena, a qual também foi drasticamente prejudicada por decisões que impulsionaram o desmatamento e o garimpo ilegal na Amazônia (“passar a boiada”).

A lista é longa! Parte do que o SUS bravamente conquistou ao longo de três décadas foi destruída em pouco mais dois anos.

É esse cenário que terá que ser administrado pelo novo governo. Será um trabalho intenso. Realisticamente, não há como resolver tudo ao mesmo tempo e em apenas quatro anos. Afinal, também há desafios na educação, economia, meio ambiente, infraestrutura etc. Será necessário definir prioridades e promover ações intersetoriais a fim de otimizar os resultados.

O Relatório do Grupo Técnico de Saúde da Comissão de Transição Governamental, apresentado pelos ex-ministros Arthur Chioro e José Gomes Temporão à nova ministra Nísia Andrade no dia 29 de dezembro, faz uma análise do desmonte das políticas públicas de saúde, lista pontos de alerta que demandam ações urgentes, identifica atos normativos e decretos que deveriam ser revogados e recomenda dez prioridades para os primeiros cem dias de governo.

Conforme apresentado durante a coletiva, essas prioridades incluem fortalecer a gestão do SUS, reestruturar o Programa Nacional de Imunizações, fortalecer a resposta à pandemia e outras emergências, reduzir as filas do serviço especializado, fortalecer a atenção básica, resgatar o Programa Farmácia Popular, fortalecer a saúde da mulher, criança e adolescente, bem como a saúde indígena, retomar o desenvolvimento do complexo industrial da saúde e revitalizar a tecnologia de informação e saúde digital.

A ministra Nísia Trindade e sua equipe começam agora o trabalho árduo de não só definir prioridades como também elaborar o Plano Nacional de Saúde para os próximos quatro anos.

Para quem acha que os problemas podem ser resolvidos de imediato, lembre-se de que a destruição é rápida, mas a retomada é lenta. Que em 2023 haja empatia, senso comunitário e responsabilidade política e fiscal. Acima de tudo, que os direitos estabelecidos pela Constituição Federal sejam respeitados.

“A saúde é direito de todos e dever do Estado.” Feliz 2023, com saúde!

Responsabilidade fiscal e políticas sociais, por Reynaldo Fernandes

0

Cortes de gastos podem ser mais fáceis de anunciar do que de realizar

Reynaldo Fernandes, Professor titular do Departamento de Economia da USP em Ribeirão Preto (SP)

Folha de São Paulo, 02/01/2023

Por responsabilidade fiscal entende-se manter, no longo prazo, os gastos do governo compatíveis com a arrecadação de impostos. Significa que os gastos públicos não devem ser sistematicamente financiados por inflação ou aumento da dívida pública (que, ao final, acaba virando inflação). Portanto, responsabilidade fiscal não determina o tamanho nem a composição dos gastos públicos.

O governo pode ter responsabilidade fiscal gastando e arrecadando 20%, 30% ou 40% do PIB e, para um dado montante de gastos, pode ter uma participação maior ou menor dos programas sociais.

O tamanho e a composição do Orçamento público são questões de escolha política. Costumava-se dizer que, na Europa e nos Estados Unidos, o debate entre esquerda e direita poderia em grande medida ser resumido ao tamanho do Estado de bem-estar social almejado. A esquerda defendendo mais gastos sociais e mais impostos, e a direita menos impostos e menos gastos.

O teto de gastos, introduzido no governo Michel Temer (MDB), é uma medida de responsabilidade fiscal com viés à direita. Congela os gastos reais da União e, assim, impõe uma redução dos gastos em relação ao PIB na medida que haja algum crescimento econômico. E mais: como algumas despesas tendem a crescer mais que a inflação, as demais rubricas teriam que ser comprimidas. Os próprios defensores da medida reconheciam a necessidade de realizar outras reformas, reduzindo, por exemplo, o crescimento das despesas com Previdência e assistência social.

Com a volta do Partido dos Trabalhadores ao governo, seria de esperar uma nova orientação à política fiscal: a proteção e mesmo a expansão dos gastos sociais. O novo presidente tem garantido que, a exemplo de seus governos anteriores, não haverá irresponsabilidade fiscal. A questão, então, é como financiar esses novos gastos. O equacionamento é fundamental para o sucesso do novo governo —e não se trata de uma questão simples. Cortes de gastos em outras rubricas podem ser mais fáceis de anunciar do que de realizar.

O mesmo vale para a alta da carga tributária. Um aumento de alíquotas ou criação de novos impostos, por exemplo, pode sofrer resistências no Congresso. Por outro lado, nosso sistema tributário é cheio de vinculações e transferências, de modo que parte significativa do aumento da carga tributária por parte da União pode ficar comprometida com novos gastos e transferências. Deixar que o ajuste fiscal seja realizado no bojo de uma necessária reforma tributária é temeroso, pois a reforma pode demorar para ser concretizada.

Orientar a política fiscal de modo a sinalizar uma trajetória sustentável da dívida pública é o principal desafio econômico para o início deste novo governo. Além de rever gastos em áreas não prioritárias e desonerações tributárias, um novo aumento de impostos pode ser inevitável. Mudar as metas de inflação, de modo que ela seja um pouco mais elevada para 2023 e cadente até 2026, também seria uma alternativa. Pode ser preferível a colocar uma meta de inflação incompatível com o fiscal, obrigando o Banco Central a elevar os juros e a dívida pública.

Se as metas devem ser revistas, o início de um novo governo é o momento para isso. Por fim, a responsabilidade fiscal deve ter uma perspectiva de longo prazo. Em uma recessão, a política fiscal restritiva pode agravar o quadro, e uma política fiscal expansionista seria mais recomendável.

No entanto, é preciso cautela com certas ideias econômicas em circulação, que parecem ver o estado recessivo como a situação sempre prevalecente na economia. Nesse caso, uma política fiscal expansionista seria sempre benéfica: elevaria a produção, o emprego e a arrecadação tributária. Em sua versão mais otimista, o aumento de arrecadação seria suficiente para financiar o aumento inicial dos gastos. Tais ideias podem soar atraentes para muitos, mas são a receita para a crise fiscal e o descontrole inflacionário.