Desajustes Externos

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Estamos terminando mais um ano marcado por grandes desafios e oportunidades, a sociedade global está vivendo momentos de rápidas transições, vivendo conflitos militares crescentes, degradação ambiental, pandemias insistentes, desigualdades sociais preocupantes, elevada concentração de renda, desemprego estrutural, crescimento tecnológico, incremento de uma ultradireita violenta e agressiva, além de uma fragilização democrática, desesperanças em todas as classes sociais e um medo premente e generalizado, de que o futuro pode ser mais devastador e degradante do que o presente que vivenciamos na contemporaneidade.

Nesta sociedade, percebemos que os valores estão em constante movimentação, aquilo que anteriormente eram vistos como errado e equivocado, na contemporaneidade são vistos como aceitáveis, palatáveis, justificáveis e até estimulados, os valores morais e os comportamentos éticos passaram a ser regidos pela lógica dos mercados, das trocas cotidianas, dos ganhos elevados, do imediatismo constante, do individualismo exacerbado e da busca constante pela acumulação material.

Diante disso, assistimos passivamente a degradação das relações sociais e da convivência pacífica, as políticos públicas estão sendo sucateadas e usam como justificativa a falta de recursos financeiros, enquanto os grandes conglomerados financeiros seus ganhos e isenções são garantidos e aumentados, com isso, percebemos o aumento da desigualdade na sociedade, o crescimento dos discursos de ódio e de ressentimento, as guerras estão degradando a economia mundial, elevando os preços de produtos imprescindíveis para a sobrevivência humana, levando os governos a aumentarem as taxas de juros que degradam as condições de vida de grande parte da sociedade internacional e garantindo, em contrapartida, altos lucros de poucos privilegiados, na maioria bilionários e herdeiros de grandes impérios, cujos ganhos crescem exponencialmente, garantindo lucros estratosféricos da ciranda financeira e da especulação monetária.

O modelo econômico dominante na comunidade internacional, centrado no imediatismo, no individualismo, na busca crescente por lucros e o consumo exagerado, na construção de desejos inalcançáveis, centrados no desenvolvimento tecnológico e poupador de mão de obra vislumbram ganhos e rentabilidades imediatas mas, em contrapartida destrói a estrutura produtiva das nações, desindustrializando as economias, achatando os salários dos trabalhadores, fragilizando o poder de negociação dos sindicatos, acabando com o mercado de consumo interno, espalhando pobreza e exploração crescentes, dificultando a recuperação econômica, maltratando as famílias, empobrecendo e gerando um caos generalizado.

Neste ambiente, as agendas dominantes dos economistas ortodoxos preconizam a diminuição do Estado na estrutura produtiva como forma de melhorar a eficiência econômica e alocação dos investimentos privados, defendendo que a iniciativa privada, o tal mercado, será o grande motor do crescimento econômico, ator central do desenvolvimento das nações e da melhoria das condições sociais das sociedades. Embora estas teorias embalaram o pensamento ocidental até o final do século passado, a crise imobiliário norte-americana, a ascensão chinesa e a pandemia começaram a rascunhar novas pensamentos econômicos nos países desenvolvidos, todas estas nações perceberam que o mercado não possuem instrumentos para reativar o crescimento econômico sozinhos, neste ambiente, surgem as ideias de planejamento econômico, as políticas industriais e os investimentos governamentais como forma de estimular as demandas internas, sem estas políticas o capitalismo internacional caminharia a passos largos à bancarrota.

Embora entendamos que o ambiente externo é marcado por grandes desajustes, preocupações e oportunidades, a sociedade internacional está compreendendo que o modelo econômico dominante não consegue construir uma sociedade mais justa e igualitária, que garanta oportunidades para todos os indivíduos, educação de qualidade e perspectivas de empregos melhores e salários dignos e decentes. Depois de tantas crises e instabilidades, quem sabe o ano novo traga novos horizontes e esperanças para a sociedade internacional.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 28/12/2022.

Nota sobre a educação à distância no Brasil, por Alexandre Marinho Pimenta

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Alexandre Marinho Pimenta

A Terra é redonda – 26/12/2022

A educação à distância possui uma dimensão de mercantil fundamental

No início de novembro, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) divulgou os resultados do último Censo da Educação Superior, referente ao ano de 2021. Os dados do Censo possibilitam um amplo retrato desse nível educacional, sendo assim muito relevantes para o debate sobre os rumos da educação no país.

Dentre as diversas informações e variáveis do Censo 2021, chama a atenção o forte crescimento da educação à distância (EaD). Trata-se de uma questão polêmica desse nível educacional, sobre a qual faremos alguns comentários críticos. Antes de analisar essa modalidade de educação mediada por tecnologias, importante situá-la na dinâmica recente da educação superior brasileira. Ademais, outro caminho interessante é partir da expansão da educação à distância para verificar mudanças tecnológicas em curso também no âmbito presencial, cada vez mais “híbrido”.

A expansão da educação superior nos últimos anos

Como demonstra uma vasta literatura, a educação superior no Brasil foi uma construção tardia, comparada inclusive a vários países da América Latina. A configuração sócio-histórica de nosso país também marcou tal nível educacional com profundas desigualdades sociais, regionais, raciais e de gênero. Ao menos desde a ditadura militar, há esforços reformadores da educação superior visando, sobretudo, um formato capaz de atingir um percentual mínimo de população com nível superior e algum patamar de produção científica institucionalizada. Tais esforços foram impulsionados, muitas vezes de forma conflitante e contraditória, tanto por movimentos sociais diversos, quanto por demandas das classes dominantes em prol da acumulação de capital no país.

A mais recente onda de expansão da educação superior se iniciou nos anos 1990 e continuou nos governos do PT, através de várias reformas. Essa expansão fez com que o número de matrículas nos cursos de graduação, dimensão mais significativa desse nível educacional, aumentasse de menos de 2 milhões, em 1991, para mais de 7 milhões, em 2011, segundo dados do Inep. Uma relevante multiplicação do tamanho da educação superior em um intervalo de duas décadas.

Mesmo que as vagas e as instituições públicas tenham crescido nos governos petistas, por exemplo, através do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), o setor privado também cresceu fortemente no mesmo período. Chegando inclusive a ampliar sua presença nas matrículas de educação superior: em 2011, a cada quatro matrículas, três eram no setor privado.

Ou seja, essa onda expansionista ocorreu de forma concomitante ao fortalecimento do já significativo setor privado. Isso foi possível através de várias legislações e políticas de fomento, conjuntamente ao próprio crescimento das empresas do ramo, que passaram por um processo intenso de financeirização e oligopolização. Os governos petistas continuaram o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies) de Fernando Henrique Cardoso e inauguraram o Programa Universidade para Todos (Prouni). Ambos os programas financiaram de forma abundante o setor privado educacional, direta ou indiretamente, e serviram de base para o desenvolvimento e a lucratividade de tal ramo empresarial.

Essa expansão mais recente começou a dar sinais de esgotamento nos anos de 2015 e 2016. Não à toa, período de profunda recessão econômica e de cortes no gasto público. Em 2015, a educação superior atingiu 8 milhões de matrículas na graduação. Seis anos depois, em 2021, ainda não se tinha alcançado 9 milhões de matrículas, mostrando uma desaceleração importante do crescimento. Mesmo nesses últimos anos de maior estagnação, o setor privado continuou avançando: em 2021, o setor ampliou sua presença para 77% das matrículas de graduação no país. Em relação aos ingressos, o setor privado representava 87%.

Apesar de significativa, a última expansão não foi suficiente para alterar a posição do país no ranking da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O Brasil continua bem abaixo da média em termos de percentual da população com nível superior. Também foi suficiente para ampliar a equidade. Algumas desigualdades sociais históricas permaneceram, ao mesmo tempo em que outras ganharam novos formatos e dinâmicas, por exemplo, através de estratificações internas a esse nível educacional. Apesar de vários grupos sociais terem acessado a educação superior pela primeira vez na história, as hierarquias de cursos, modalidades e instituições geraram “excluídos do interior”, para usar o termo de Pierre Bourdieu.

A educação à distância hoje no Brasil: dimensão e características

Desde o surgimento e a disseminação das novas tecnologias da informação, a educação à distância se tornou uma realidade em todo o globo, sob diversos formatos e arranjos. Seguindo a tendência mundial, no Brasil, tal modalidade educacional começou a ganhar forte impulso a partir dos anos 2000, integrando várias políticas de expansão do nível superior.

Em 2000, eram apenas 10 cursos de graduação a distância no país, com participação ínfima no quantitativo de matrículas total. Em pouco mais de uma década de crescimento exponencial, em 2012, o número de vagas ofertadas na graduação a distância já tinha passado de 1 milhão, sendo maior do que o número de vagas ofertadas no presencial. Em termos de matrículas efetivadas, o avanço da educação à distância sobre o presencial tem sido mais gradual, mas não menos relevante.

Em 2011, a educação à distância tinha pouco menos de 1 milhão de matrículas, ou 14% do total de matrículas na graduação. Sobretudo após a última onda de expansão da educação superior, a educação à distância avançou ainda mais. Como mostra o recente Censo, a modalidade a distância passou de dois milhões de matrículas em 2018 para quase 3,7 milhões em 2021, atingindo assim 41% do total de matrículas do país.

Em relação aos ingressantes, a educação à distância já é superior ao presencial. Em 2021, 1,4 milhão de estudantes ingressaram na graduação presencial. Número em queda nos últimos anos, importante ressaltar. Já na graduação a distância, foram 2,4 milhões de ingressantes, representando crescimento nos últimos anos. A capilaridade dessa modalidade também impressiona: 2.968 municípios brasileiros contam hoje com polos de educação à distância. Sem dúvida, é possível afirmar que a EaD está consolidada no nível superior brasileiro.

Assim como na educação superior no geral, o setor público não foi o principal motor da recente expansão da educação à distância no país. Mesmo com programas inéditos e de relativo sucesso, como a Universidade Aberta do Brasil, lançada em 2006, as matrículas dessa modalidade representam apenas 6% das matrículas totais na rede federal. O setor privado foi e ainda é o principal motor das matrículas na educação à distância. E de forma muito impressionante: hoje, a educação à distância é amplamente privada e o setor privado é, cada vez mais, educação à distância.

Desde 2005, o setor privado se tornou o setor dominante na educação à distância em termos de matrículas. Paulatinamente, a própria modalidade a distância se tornou dominante na graduação do setor privado, também com o auxílio do financiamento público. No ano de 2021, 51% das matrículas do setor privado estavam na educação à distância. No mesmo ano, 70% dos ingressantes nesse setor foram na modalidade a distância. Todas as 15 maiores instituições ofertantes de educação à distância são privadas, e apenas elas dominam cerca de 74% das matrículas a distância no país.

A impressionante expansão da educação à distância possui, portanto, uma dimensão de mercantil fundamental. O setor privado lucrativo fortaleceu tal modalidade e foi por ela fortalecido no último período. Hoje, tal simbiose talvez seja o fator mais dinâmico do sistema de educação superior do país. No entanto, com questionável qualidade ou retorno econômico para além dos empresários do ramo. Também segundo o Inep, a razão aluno-docente na educação à distância privada chega a 185, enquanto no presencial é de 23, fato que tem possibilitado a redução do quadro docente em tal mercado. Ora, a formação de novos professores da desafiadora educação básica tem ocorrido de forma crescente nesse ambiente de “produtos e serviços educacionais” de qualidade reduzida. Dentre outros limites e contradições dessa suposta democratização.

O impacto das novas tecnologias para além da educação à distância

Importante ressaltar, por fim, que as novas tecnologias têm possibilitado transformações na educação superior não apenas através da educação a distância, enquanto modalidade educacional estruturada e reconhecida enquanto tal. Acompanhando as mudanças pelas quais passam a economia, o Estado e a sociabilidade contemporânea, os processos educacionais como um todo são cada vez mais impactados pela virtualização e pela expansão de plataformas digitais.

Não apenas por conta do momento de ensino remoto emergencial da pandemia, no qual a virtualização/plataformização se tornou abruptamente uma realidade, inclusive na educação básica.

Mas também antes e para além do pico da pandemia. Os ambientes virtuais de aprendizagem já avançavam como ferramenta didática nos cursos presenciais, antes mesmo da pandemia. Os eventos e as bancas online ou híbridos agora são o novo normal na graduação e na pós-graduação.

O uso das grandes plataformas digitais, cada vez mais especializadas para as práticas educacionais, está presente na construção, troca e armazenagem de informações em todas as instituições de educação superior, formal ou informalmente. E mais recentemente, os últimos desdobramentos da inteligência artificial ameaçam balançar ainda mais o mundo acadêmico. A incrível capacidade de algoritmos de buscar, sistematizar e gerar informações, inclusive com redação acadêmica (só ver o recente ChatGPT, da OpenAI), colocam uma grande incógnita sobre a forma futura do fazer educacional.

Nesse sentido, se podemos dizer hoje de uma consolidação da educação à distância enquanto modalidade de educacional de nível superior no país, ainda pouco podemos dizer da dimensão atual e dos futuros impactos da virtualização e da plataformização da educação no geral. De qualquer forma, cabe a nós nos posicionarmos politicamente frente a tais mudanças e tecnologias que atravessam toda a sociedade contemporânea – talvez esse seja um dos desafios centrais de nosso tempo. Qual tecnologia para qual sociedade?

*Alexandre Marinho Pimenta é doutorando em educação pela UnB.

‘Sociedades polarizadas não têm mais espaço para presidente popular’, diz professor

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Timothy Power, cientista político da Universidade Oxford, diz que manter coalizão deve ser mais difícil agora para Lula

ANGELA PINHO

FOLHA DE SÃO PAULO – 26/12/2022

Dificilmente um presidente terá a aprovação de mais de 50% da população em sociedades muito polarizadas com as do Brasil e Estados Unidos, avalia Timothy Power, chefe da divisão de Ciências Sociais da Universidade de Oxford, no Reino Unido.

O desafio de furar a bolha, em sua opinião, vale mesmo para o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), personagem que Power vê como caso único por liderar um mesmo partido em uma democracia por mais de 40 anos.
Professor de política com foco em América Latina, Power falou sobre as possíveis saídas para a polarização em evento da Fundação Lemann com a Blavatnik School of Government de Oxford no fim de novembro.

Com português fluente e detalhado conhecimento da política brasileira, ele avalia em entrevista à Folha que, apesar da capacidade de negociação de Lula, será mais difícil formar uma base ampla agora do que em 2003, entre outras razões devido à maior dificuldade de atrair parlamentares de estados bolsonaristas.

Em sua opinião, acenar ao centro na coalizão governista, o que ainda não aparece com força nos anúncios de ministros, será fundamental. Nesse sentido, a participação de Simone Tebet é importante, mas o tamanho da votação da senadora não lhe dá muito poder político no momento em que a Esplanada de Lula é definida.

Comentando a saída da Liz Truss [do cargo de primeira-ministra], Lula falou que ela não tinha tamanho para lidar com a crise do Reino Unido. Lula tem tamanho para lidar com a situação no Brasil, com crise social e gente protestando até agora em frente aos quartéis?

Tamanho ele tem. Ele começou em 2002 com condições bastante adversas e conseguiu formar uma coalizão e, ao longo do tempo, aumentá-la. Eu acho que vai ser mais difícil essa vez do que foi em 2002, por várias razões.
Em 2003 e 2004, a grande conquista foi trazer o PMDB para o governo.

Hoje, o MDB é um partido muito reduzido em tamanho e o PSDB tem mais ou menos tamanho do PSOL na Câmara. Vai ser mais difícil conquistar um centro que é mais superficial e reduzido. Em segundo lugar, muitos deputados eleitos em estados que votaram para Bolsonaro vão ter mais dificuldade em entrar na coalizão porque a situação hoje é muito mais polarizada. O custo de aderir ao governo petista em 2003 era menor do que é hoje se você vem de um estado como Santa Catarina, Paraná e Distrito Federal. E, em terceiro lugar, tem o quadro econômico externo, que não tem as mesmas condições favoráveis de 2003.

O senhor vê alguma chance do Lula terminar de novo o mandato com 83% de popularidade?

Eu acho que, em sociedades polarizadas, não existe mais espaço para presidentes populares. Por exemplo, nos Estados Unidos não vai ter mais presidente popular, porque o teto de aprovação é 50% e você não consegue ultrapassar. O Lula com muita sorte podia fazer isso, mas o teto será bem menor do que 83%.

Por que dificilmente um presidente hoje vai ter mais que 50% de popularidade?

Os índices de rejeição a Lula e Bolsonaro foram muito previsíveis ao longo do ano todo, 45% a 55% dos eleitores rejeitavam totalmente a outra proposta. Isso de certa forma permanece, então existe um teto de vidro de 50%, um pouco mais, de popularidade para o presidente no primeiro ano. Quando a ressaca eleitoral terminar, e se as condições externas melhorarem um pouco, o Lula pode levantar esse teto, mas ele começa de uma base muito afetada pela ressaca eleitoral. Nos Estados Unidos é a mesma coisa, Biden e Trump nunca vão ultrapassar 50%.

A polarização é um cenário que já está dado ou tem algo que o governo eleito pode fazer para furar esse muro entre as duas quase metades do eleitorado?

Não vai ser fácil. Na campanha, o Lula deu sinais de que queria quebrar esse muro. O grande contraste foi justamente a indicação dos respectivos candidatos a vice-presidente. Todo mundo sabe que candidato a vice não agrega muita coisa matemática, mas tem valor simbólico muito grande de sinalizar aos adversários para o centro.

Lula escolheu Alckmin. O Bolsonaro tinha a mesma chance de sinalizar e optou por substituir um general por outro general. Desperdiçou a possibilidade de sinalizar e você vê as consequências. Podia ter virado o jogo numa eleição tão apertada.

Agora, sinalização não é a mesma coisa que conquistar cadeiras na Câmara ou compor um governo de transição. O importante é repetir o exemplo de Alckmin em cargos ministeriais. Os primeiros nomes que a gente vê anunciados vêm do PT. Deveria haver mais nomes de natureza simbólica, como o Alckmin, mas em cargos importantes.

Como se chegou a esse grau de polarização?

Há uma distinção entre polarização macropolítica e micropolítica. Na macropolítica, você define quem são os inimigos e não se posiciona em termos de políticas públicas ou decisões, você simplesmente sabe que, se aquela ideia veio do outro lado, é uma ideia ruim e não precisa mais ter debate. Tem muito a ver com a disseminação de mídias sociais, a simplificação de mensagens, a rapidez, desinformação, a falta de checagem dos fatos.

A polarização micropolítica é outra coisa. É a polarização dentro das famílias, na mesa do jantar, no lugar de trabalho, na rua. É o estresse que a polarização política impõe nas relações interpessoais, para mim, uma coisa que que foge à tradição brasileira.

Quais são as possíveis saídas?

Para a polarização micropolítica, não há uma resposta fácil. Já a polarização macropolítica pode ser quebrada por ação inteligente por parte das elites.

No Brasil, sempre houve duas instituições que atenuam a polarização na máquina política. A primeira é o presidencialismo de coalizão. Nenhum presidente chega com maioria a pré-fabricada, então as pessoas têm que formar maioria com negociação e coalizões nacionais. A outra instituição que atenua a polarização no Brasil é a governança multinível, municipal, estadual e federal. Muitos países têm apenas dois níveis ou um. Com três, as coalizões e as famílias políticas às vezes são incongruentes entre os níveis, e é natural que o palanque de um político em um município seja um, e em um estado seja outro. Os políticos brasileiros já estão acostumados com as essas incongruências, e isso ajuda a quebrar a polarização que existe numa eleição presidencial. Os anos de 2002 e 2022 foram sobre decidir o nome do futuro presidente, mas a formação de governo e a prática de executar políticas públicas despolarizam. E o Lula é mestre e fazer coalizões imprevisíveis. Ele gosta de recrutar o inimigo para o lado dele.

Como disse, será mais difícil em 2023 do que era em 2003. Mas também não é impossível.

A raiz da polarização está só rede social ou dá para pensar em outros fatores?

As instituições políticas, as organizações e os movimentos sociais perderam espaço para os meios sociais. Quando Lula formou um partido, a grande arma do PT eram os sindicatos. Mas hoje uma conta de WhatsApp pode valer uma CUT [Central Única dos Trabalhadores], porque a agilidade e o custo de mobilização foram muito reduzidos. Isso gera muita imprevisibilidade e é muito diferente de uma campanha tradicional, com partidos, sindicatos, movimentos sociais com bandeiras e plataformas consistentes. Havia, quem sabe, menos mobilização intereleitoral, porque hoje mesmo nos anos não eleitorais os meios sociais continuam muito ativos. E esse é outro traço do populismo. O populista, quando ganha, não governa, continua em campanha. Foi uma característica do Bolsonaro e do Trump. O imediatismo político é muito acentuado neste momento.

Quais são os pontos de diálogo possível com os bolsonaristas?

Um pacto nacional para a incentivar o crescimento econômico seria o ponto número 1, o segundo a reconstrução dos serviços públicos, da saúde, da segurança pública, depois desses anos de bolsonarismo e pandemia. Temas culturais, de identidade e de direitos reprodutivos voltam à polarização eleitoral imediatamente.

Essa é uma preocupação frequente. O que que as minorias, a população LGBTQIA+, por exemplo, podem esperar de um governo como esse?

Se eu participasse de qualquer movimento social no Brasil, estaria muito otimista, mas otimista em relação aos últimos quatro anos, não em relação à agenda total dos grupos. O PT tem uma tradição de trazer os movimentos sociais para o cerne do governo, com a Secretaria-Geral da Presidência da República.

Agora a criação de secretarias especiais, por exemplo, é mais difícil, porque isso infla o tamanho do ministério com pouco retorno político para o governo. Durante o mandato, o Lula aumentou o número de ministérios, e muitos eram ou criados para abrigar quadros do partido, como Cidades, ou como no caso de desmembrar reforma agrária e agricultura. Isso me parece uma estratégia defasada e sem muita eficácia neste momento.
Lula já declarou que não quer tentar a reeleição em 2026. O que isso muda para pensar as forças internas do governo?

Em vários outros momentos no passado, o Lula já tinha levantado a hipótese de o PT apoiar outro nome fora do partido, como o Eduardo Campos. Sempre houve resistência interna. Mas acho que falar isso também é uma mensagem interna para o partido de que é o momento de começar a pensar em nomes pós Lula. Olhando para todo o planeta, é muito difícil pensar em outros exemplos de partidos políticos que têm tido o mesmo líder há 43 anos.
Simone Tebet, caso entre no governo, estará numa situação peculiar, porque o governo vai abrigar alguém que muito provavelmente vai concorrer contra algum candidato do PT em 2026. Como vê a situação dela?

O comportamento dela na eleição foi extremamente corajoso. Ela arriscou tudo para apoiar o Lula, sabendo que, se ela errasse nessa estratégia, a carreira política dela acabaria em um minuto. Se o Bolsonaro tivesse vencido, seria muito difícil ela continuar, mas ela acertou na aposta. Acho importante o Lula usar esse nome para sinalizar novamente aos setores econômicos ao redor dela, aos quais a esquerda tem pouco acesso.

Agora ela teve 4% dos votos para presidente. É preciso cumprimentar as pessoas que tiveram um papel coadjuvante importante, mas não é algo que dá muito poder político a essas pessoas.

Como tem visto o papel do Judiciário no processo político? É uma jabuticaba?

É uma certa jabuticaba. [O ministro do Supremo e presidente do Tribunal Superior Eleitoral] Alexandre de Moraes é uma pessoa que defende com total energia a autonomia da Justiça Eleitoral exatamente no momento em que a Justiça eleitoral precisava dessa energia. Obviamente, é uma personalização muito forte da imagem da Justiça Eleitoral. A gente pode imaginar um imaginar uma utopia democrática, em quem ninguém sabe o nome de nenhum ministro da Justiça Eleitoral ou do Supremo, como era há 30 anos no Brasil, mas não é mais assim. Mas eu acho que todo poder tem que defender a sua autonomia. E Moraes fez isso de maneira impecável.

Que outra diferença em relação ao cenário internacional o senhor assinalaria?

Uma coisa que eu admirei muito sobre o processo eleitoral foi a agilidade do sistema eletrônico de contagem de votos. A gente sabia que era assim, mas não sabia o valor dessa agilidade no contexto político. A votação terminou às 17h e, antes das 20h, já tinha os parabéns do presidente da Câmara, dos governadores etc. Isso tirou o espaço do Bolsonaro e aliados para contestar. O tempo é importante, e Brasil chegou a uma técnica eleitoral que encurta o tempo de reconhecimento do resultado final, dando legitimidade ao resultado em poucos minutos. Nos Estados Unidos, entre a eleição em 4 de novembro e a certificação no Senado, houve dois meses para o pessoal do Trump preparar ações desestabilizadoras e premeditadas. Ao longo do ano, Bolsonaro lançou uma série de dúvidas sobre o sistema eletrônico, mas, como que vocês dizem, o feitiço virou contra o feiticeiro.

Uma agenda para o governo Lula, por Oded Grajew

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Com participação da sociedade, combate à desigualdade pode ser maior legado

Oded Grajew, Idealizador do Fórum Social Mundial, é presidente emérito do Instituto Ethos e conselheiro do Instituto Cidades Sustentáveis; fundador e ex-presidente da Fundação Abrinq e ex-assessor especial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003)

Folha de São Paulo, 26/12/2022

O Brasil tem uma das maiores economias do mundo. É vergonhoso, portanto, que seja um dos países mais desiguais. Aqui, 5% concentram 95% da renda, e 1% possui metade das riquezas nacionais.

A desigualdade não é apenas econômica e financeira. Ela se desdobra em todas as áreas da sociedade brasileira: social, racial, de gênero, etária, ambiental, alimentar, educacional, de saúde, cultural, habitacional,
territorial, de assistência social, política. São muitas desigualdades que se interconectam e se retroalimentam.

Sem reduzir as desigualdades, não há a mínima chance de o Brasil se tornar um país decente e desenvolvido —isso sem falar do imperativo moral e ético.

Apesar das várias tentativas ao longo do tempo de diminuir as desigualdades, elas nunca se reduziram de forma permanente e sustentável. Precisamos inovar, promover transformações estruturais que vão às causas, não apenas aos sintomas das desigualdades; de ações permanentes e multissetoriais, envolvendo governos e sociedade, duradouras, indo além dos mandatos dos governantes. O futuro governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deveria:

1 – Eleger a redução das desigualdades como a grande prioridade do governo (não apenas reduzir, mas eliminar a fome de forma permanente seria uma consequência da redução da desigualdade alimentar);

2 – Criar o Observatório Brasileiro das Desigualdades, selecionando os principais indicadores das desigualdades que precisam ser atacados e acompanhados;

3 – Estabelecer metas nacionais e anuais para a melhoria de cada indicador;

4 – Envolver todos os ministérios, agências e estatais no combate às desigualdades, assumindo indicadores, metas e planejando ações;

5 – Aproveitar o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, os conselhos temáticos nacionais e outros espaços para mobilizar e engajar a sociedade no combate às desigualdades (sindicatos de trabalhadores, empresas e associações empresariais, acadêmicos e instituições de ensino, ONGs, igrejas, agentes e entidades culturais, prefeitos, governadores, Legislativos federal, estaduais e municipais etc.). Cada cidadão e cidadã teriam como colaborar;

6 – Promover ações, seminários e publicações com propostas, exemplos e referências nacionais e internacionais;

7 – Apresentar um balanço anual da evolução dos indicadores;

8 – Visibilizar e premiar as ações exemplares;

9 – Criar uma instância intergovernamental para coordenar o programa.

A redução das desigualdades raramente esteve nas pautas dos governos como prioridade —embora deveria ser, assim como manda a nossa Constituição. Porque reduzir as desigualdades seria redistribuir recursos e poder. E a minoria da sociedade brasileira que tem o poder e a maioria dos recursos, com poucas e honrosas exceções, raramente se dispôs a redistribuir seu poder e seus recursos. Os países de melhor qualidade de vida são aqueles de menor desigualdade. Sem reduzir as desigualdades, o Brasil continuará a ser o país da pobreza, da fome e dos conflitos. O governo Lula, com a participação da sociedade, tem a oportunidade de assumir essa histórica missão. Seria seu maior legado.

Pobre no orçamento, rico no imposto de renda, por Paulo Nogueira Batista Júnior

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Por Paulo Nogueira Batista Júnior

A Terra é redonda – 19/12/2022

O Brasil é um paraíso fiscal para os bilionários

Posso falar do Lula outra vez? Pergunto e eu mesmo respondo: posso! Afinal, este é o derradeiro artigo do ano de 2022. E quem foi a grande figura deste ano tão difícil que atravessamos? Existe salvador da pátria? Se existe, nós sabemos quem é.

Não pense, leitor, que este parágrafo inicial entusiasmado signifique admiração fervorosa e irrestrita pelo presidente eleito. Não! Tenho minhas reservas, minhas dúvidas. É natural. Ninguém é perfeito e ninguém merece ser poupado de críticas. E o papel de pessoas como eu será não apenas apoiar, mas também criticar, se necessário, o futuro governo brasileiro.

E, em especial, cobrar o cumprimento das promessas de campanha. Por exemplo, o candidato Lula disse diversas vezes que pretendia “colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”. Perfeito. Nada mais justo, nada mais necessário.

O que significa essa fórmula feliz? Duas coisas, pelo menos. Primeiro, modificar a composição do gasto público. E, em segundo lugar, aumentar a tributação sobre os super-ricos.

Vamos por partes, à moda de Jack, o Estripador. Do lado do gasto, o importante é assegurar que os programas governamentais beneficiem em primeira instância os pobres, os miseráveis, os mais necessitados. No jargão eufemístico do economista: as pessoas de baixa renda. Fundamental, portanto, abrir espaço no orçamento para aumento expressivo das transferências sociais, inclusive o Bolsa Família, para o aumento do poder de compra do salário-mínimo e, também, para maiores despesas de educação e saúde focadas no mais pobres. Merenda escolar, por exemplo. Farmácia popular, outro exemplo. Também moradia. Transporte público.

Veja, leitor, que falei em “abrir espaço”. Isso significa cortar gastos supérfluos, que beneficiam os mais aquinhoados. Como declarou o vice-presidente eleito, Geraldo Alckimin, será preciso passar um pente fino nas despesas de governo e identificar o que pode e deve ser cortado, os programas ineficientes, de baixa qualidade, e em especial as despesas que beneficiam os super-ricos, aqueles que já têm renda e riqueza em excesso. Isso inclui, diga-se de passagem, rever as isenções e os incentivos tributários, os chamados gastos tributários, que representam nada menos que R$ 371,1 bilhões em 2022, o equivalente a quase 4% do PIB, segundo estimativa da Receita Federal.

Bem sei que tudo isso é muito mais fácil de escrever do que de colocar em prática. Para cada programa ineficaz e de baixa prioridade, para cada incentivo fiscal inútil ou duvidoso, existem um ou mais grupos de interesse, não raro poderosos, que lutam para preservar os seus privilégios. E logo aparece, do lado do governo, a turma do deixa disso, sempre disposta a contemporizar. Se o presidente da República der ouvidos a esse pessoal, nada de importante será feito.

A linha de menor resistência, leitor, será sempre sobrepor os programas sociais aos programas ineficazes e concentradores de renda já existentes. Pequeno problema: o nível do gasto público é alto no Brasil. Novos aumentos serão difíceis de conciliar com a estabilidade e o desenvolvimento da economia.

E do lado da receita? Nesse ponto, o nível de embuste das discussões econômicas habituais alcança uma espécie de ponto máximo. O assunto é vasto. Tratarei de apenas alguns aspectos. Dedico, em todo caso, um pouco mais de espaço a esse lado da questão, que tende a ser negligenciado (et pour cause!).

De fato, é fundamental colocar os ricos no imposto de renda, como disse o candidato Lula. Melhor dizendo: colocar os super-ricos. Importante não deixar margem para exploração política ou politiqueira. Não se trata de aumentar a carga tributária sobre a classe média, que já é elevada. E muito menos sobre a população pobre, que suporta a pesada carga de tributos indiretos. Os super-ricos, que dominam a mídia tradicional, conseguem normalmente vender como aumento de impostos sobre “a sociedade” qualquer tentativa de fazê-los contribuir um pouco mais para o funcionamento do Estado.

Eis a verdade incômoda: o Brasil é um paraíso fiscal para os bilionários, a tenebrosa turma da bufunfa. Essa turma não quer nem ouvir falar em tributação.

Ora, o nosso país é um dos mais desiguais do planeta. Em 2021, de acordo com o IBGE, o 1% mais rico da população tinha uma renda média 38,4 vezes mais alta do que a renda média dos 50% mais pobres. Repare, bem, leitor: 38,4 vezes! Um dos fatores que contribuem para isso é a injustiça do sistema tributário. Em 2019, um único brasileiro declarou renda de R$ 1,4 bilhão, sendo R$ 1,3 bilhão em dividendos livres de tributação!

A quantidade de injustiças da tributação brasileira não cabe em um artigo. Remeto a meu livro mais recente, O Brasil não cabe no quintal de ninguém, que traz, na sua segunda edição, um texto um pouco mais alentado sobre a subtributação dos super-ricos. E pretendo voltar ao assunto, nesta coluna, em 2023.

Por ora, listo alguns exemplos escandalosas. O imposto de renda da pessoa física se torna regressivo após a faixa de 30 a 40 salários-mínimos (isto é, tributa proporcionalmente menos as rendas mais elevadas). A renda do capital é isenta na pessoa física ou sujeita a tributação proporcional ou de baixa progressividade. A alíquota marginal máxima é pequena (em tese e do ponto de vista da justiça, nada impede estabelecer alíquotas marginais mais elevadas sobre os super-ricos). Além disso, a não correção da tabela progressiva sobrecarrega a classe média, inclusive a classe média baixa.

A injustiça é maior do que se imagina. Em 2020, para os declarantes que ocupam o topo da pirâmide (os 0,01% mais ricos), 63% dos rendimentos ficaram isentos, em média, e 30% sofreram tributação exclusiva na fonte! Ou seja: apenas 7% dos rendimentos, em média, entraram na tabela progressiva. Em 2020, a alíquota efetiva média dos 0,01% mais ricos foi de apenas 5,4%, próxima à dos assalariados que recebem em torno de R$ 6.500 mensais! (Dados da Receita Federal, que me foram repassados pelo auditor fiscal Paulo Gil Hölck Introíni.)

O Brasil é ou não é um tremendo paraíso fiscal para os super-ricos?

A tributação da riqueza também é modesta. Heranças e doações estão sujeitas à alíquota máxima de 8%. Iates e aviões particulares estão isentos de IPVA. O imposto sobre grandes fortunas, previsto na Constituição de 1988, nunca foi criado. O Imposto Territorial Rural corresponde a apenas 0,1% da arrecadação federal.

Para completar o quadro, as fragilidades da administração tributária, agravadas durante o governo de Jair Bolsonaro, permitem que os bilionários escapem dos impostos com relativa facilidade. Praticam o chamado planejamento tributário, com assessoria de advogados tributaristas regiamente remunerados.
Os beneficiários desse paraíso tributário são exatamente os mesmos que, por intermédio dos seus serviçais – uma legião de economistas e jornalistas econômicos –, entopem a mídia tradicional com clamores por “responsabilidade fiscal”.

Veremos o que o novo governo fará para colocar “o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”. A resistência à mudança será grande, como sempre, mas é uma luta que vale a pena.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém (LeYa).

O que é comunismo? por Wagner Miquéias Damasceno

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Wagner Miquéias Damasceno

A Terra é redonda – 18/12/2022

O grande responsável pelo crescimento da curiosidade sobre o comunismo é o próprio capitalismo
Dentre as perguntas do tipo “o que é”, feitas no Google Brasil, aquela que mais cresceu neste ano foi “o que é comunismo”. É o que revelou levantamento do próprio Google, na semana passada
Sem dúvida, tamanha curiosidade no país se deve, em parte, à campanha de demonização feita por Jair Bolsonaro e pelo falecido Olavo de Carvalho, que elegeram o comunismo como “o” alvo de suas ofensivas ideológicas.

Mas o grande responsável pelo crescimento da curiosidade sobre o comunismo é o próprio capitalismo. Sim, o capitalismo. Vejamos: apenas nos três últimos anos (a) vimos o surgimento da pandemia da COVID-19, que ceifou mais de 6,6 milhões de vidas em todo o mundo; (b) assistimos o aumento da concentração de renda, onde 2 mil bilionários têm mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas; (c) sentimos na pele de forma cada vez mais drástica as consequências das mudanças climáticas, com prognósticos nada animadores; (d) e acompanhamos a guerra da Rússia contra a Ucrânia que reavivou o temor de uma nova guerra mundial.
Diante disso, é natural que as pessoas queiram conhecer uma alternativa ao capitalismo.

Um espectro ronda (novamente) o mundo

No Manifesto Comunista, de 1848, Marx e Engels perguntavam provocativamente: “Que partido de oposição não foi acusado de comunista por seus adversários no poder? Que partido de oposição, por sua vez, não lançou a seus adversários de direita ou de esquerda a pecha infamante de comunista?”.

No Brasil, bolsonaristas acusam partidos como o PT e o PCdoB de serem comunistas; stalinistas, por seu turno, dizem que a URSS sob Stálin era comunista… Mas, afinal, o que realmente é comunismo?

Podemos dizer que a palavra comunismo tem dois sentidos que se conectam: (1) é um movimento político dos trabalhadores; (2) e é uma outra forma de organizar a produção e distribuição de riquezas que criaria, por consequência, uma outra forma de se viver em sociedade.

Os dois sentidos partem da constatação de que a sociedade capitalista é dividida entre duas poderosas classes sociais: burgueses e proletários. Ou, dito de outra forma, capitalistas e trabalhadores. Duas classes cujos interesses são completamente antagônicos já que a fonte da riqueza de uma destas classes advém da exploração da força de trabalho da outra.

Socialismo

Embora seja tratado como sinônimo de comunismo, socialismo e comunismo não são a mesma coisa. Quando falamos em socialismo nos referimos a uma sociedade com um modo de produção surgido de uma revolução dos trabalhadores, onde ainda haverá burguesia e ainda haverá Estado.

Porém, diferente do que acontece no capitalismo, o Estado no socialismo não será controlado pela burguesia, mas pelos trabalhadores que imporão uma “ditadura do proletariado” sobre a burguesia para impedir que ela tome de volta o poder e volte a explorá-los. O verso dessa moeda é que essa ditadura sobre um punhado de burgueses será uma formidável democracia para os milhões de trabalhadores do meio urbano e rural e para a população pobre.

No socialismo, os meios de produção (indústrias, plataformas, grandes extensões de terras, grandes supermercados etc.) deixam de ser propriedade privada dos capitalistas e se tornam propriedades coletivas sob o controle do Estado operário. Estabelecendo planos econômicos, os trabalhadores decidirão sobre o “que”, “como”, “quanto” e “quando” produzir, atendendo as necessidades sociais e, de quebra, acabando com o desperdício. É o fim da anarquia do mercado.

Mas, para tanto, o socialismo deve ir além das fronteiras nacionais, impulsionado por aquilo que Leon Trotsky chamou de revolução permanente.

Comunismo

O comunismo é a evolução do socialismo. Nele, o Estado terá se extinguido assim como as próprias classes sociais que lhe deram vida. A propriedade privada da terra, das indústrias e dos medicamentos serão vagas lembranças, difíceis até de serem explicadas para as futuras gerações.

A concorrência entre os trabalhadores será substituída pela mais genuína cooperação, extinguindo-se, assim, a base material de opressões como o racismo e a xenofobia. Como resultado lógico do desenvolvimento científico e tecnológico alcançado, a jornada de trabalho será reduzida a um mínimo necessário e será decidida e distribuída por produtores livremente associados.

Se hoje o desenvolvimento tecnológico se volta contra os trabalhadores produzindo mais desemprego e intensificando o trabalho, no comunismo isso será radicalmente diferente. A automação do trabalho, por exemplo, será utilizada racionalmente para aumentar a produtividade de riquezas sociais e oferecer tempo livre para os trabalhadores desenvolverem seus interesses e vocações livremente. Praticar esportes pela manhã, trabalhar por três horas depois, atuar em peças de teatro à tarde, desfrutar de um cinema a noite… livre das correntes do trabalho alienado, os seres humanos se reconciliarão com o trabalho e poderão experimentar uma jornada histórica verdadeiramente humana.

*Wagner Miquéias Damasceno é professor de sociologia na UNIRIO. Autor do livro Racismo, Escravidão e Capitalismo no Brasil: uma abordagem marxista (Mireveja) e dirigente da Secretaria Nacional de Negras e Negros do PSTU.

Carta Mensal – novembro 2022

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A Carta Mensal de novembro vem destacando dois fatos que achei relevante para compreender as mudanças em curso na sociedade. De um lado, no âmbito nacional, o assunto mais relevante foi a transição de governo, as pressões dos grupos econômicos, políticos e sociais, buscando angariar mais poder dentro da nova gestão, influenciando as agendas e colocando nos postos chaves seus asseclas, garantindo a manutenção do status-quo dos setores mais organizados e os grupos alijados do poder neste governo que está chegando ao final. Vivemos um momento de grandes conversas, escolhas, decisões e estratégias.

De outro lado, destacamos a COP-27, conferência liderada pela Organização das Nações Unidas (ONU), que pode ser vista como um espaço de conversa e de construção de novas agendas para as questões climáticas.

Desde a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ganho no final de outubro, o mês seguinte foi marcado por grandes expectativas para a sociedade brasileira.

De um lado percebemos as pressões constantes dos grandes grupos econômicos e financeiros para impor sua agenda e seus interesses imediatos, buscando nortear as políticas a ser adotadas pelo próximo governo.

De outro lado, percebemos variadas formas de pressão dos grupos que contribuíram para a eleição do então candidato Lula, na grande maioria grupos de esquerda e centro esquerda, além dos apoiadores da última hora, grupos fundamentais para desalojar o presidente Jair Bolsonaro do Palácio da Alvorada, inaugurando novos rumos para a sociedade brasileira.

Neste mês de novembro percebemos grandes espaços de construções democráticos para a montagem do novo governo, percebendo que os grupos de influência, os chamados lobbies estão vivos e sedentos de influenciar os novos governantes, não apenas o governo federal mas todos os governos estaduais, uns mais avançados na confecção de seus governos e outros, depois do segundo turno, ainda estão na construção de todas as equipes dirigentes, os integrantes, os projetos e as perspectivas para o ano vindouro.

Em novembro de 2022, a sociedade mundial organizou a chamada COP-27, a 27® Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, que ocorreu de 6 de novembro a 18 de novembro em Sharm El Sheikh, no Egito. No evento inúmeros chefes de governo ou chefes de Estados se reuniram para conversar sobre as mudanças climáticos e seus impactos sobre a sociedade internacional, mostrando uma ampla capacidade de organização, planejamento e construção de novos modelos para que a comunidade global, tenham condição de sobreviver as degradações que estão em curso da sociedade mundial. Embora as discussões são imprescindíveis para a comunidade internacional, percebemos que os discursos crescem, mas as medidas efetivas e concretas estão muito longe de serem adotadas.

Neste evento das Nações Unidos, a sociedade brasileira foi representada pelos membros do atual governo e do presidente eleito, onde este último foi convidado pelo governo do Egito para participar e discursar no evento, destacando as heranças do governo atual, as políticas implementadas, elencando as medidas criadas por setores que usam seu poder material para garantir subsídios e a criar desmandos, as desregulações, a fragilização dos órgãos de controle que levariam a sociedade para momentos de inseguranças e instabilidades crescentes, além de desmandos institucionais, com grandes ganhos para os setores do submundo da institucionalidade.

Importante destacar, que no mês de novembro a sociedade brasileira percebeu o crescimento dos grupos de pessoas descontentes com o resultado da eleição do executivo federal, contrários da eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, onde milhares de pessoas começaram a se mobilizar maciçamente para protestar, se alojando na frente dos tiros de guerras, clamando pela atuação dos chamados “patriotas” para lutar contra os ideais e os pensamentos dos chamados “comunistas”.

Segundo os grupos descontentes da eleição presidencial, a sociedade precisa se organizar para defender os caminhos da sociedade brasileira, impedindo a posse dos chamados governos de “esquerda”, que querem degradar a família tradicional e, neste momento, é fundamental contar com a atuação e espontânea dos homens e mulheres de “bem” ou de bens….

O mês de novembro foi marcado por grandes discussões dos candidatos eleitos, variadas conversas políticas para a construção das equipes dos novos governos, as conversações com os variados partidos políticos que participaram da formação do novo governo, buscando formas de aparar as arestas dos apoiadores, dirimindo os descontentes, buscando formas de construir a governabilidade política, que é fundamental para que o novo governo tenha força política, instrumentos de gestão e capacidade de influenciar os rumos da sociedade brasileira.

Neste momento de grandes expectativas, os agentes econômicos, políticos e sociais estão se organizando, os setores financistas usam seus poderes econômicos como forma de influenciar o governo sobre as decisões, mantendo tetos de gastos, políticas de austeridades e enfocando os interesses do grande capital.

De outro lado, percebemos o poder dos grupos das elites agrárias e agroexportadores, que não abrem mão dos ganhos fiscais e tributários, lutam contra a tributação progressiva e usam seus instrumentos de poder para influenciar e defender seus interesses locais, seus ganhos elevados, créditos fartos, taxas de câmbio desvalorizada e facilidades crescentes, com isso, garantem a perpetuação de seu poder na comunidade.

Destacamos os interesses dos trabalhadores organizados, setores que estão em amplo desgaste político e fragilizações econômicas, setores que congregam os sindicatos, associações e setores que lutam para destruição total, grupos que estão sendo devastados pelo crescimento da tecnologia, gerando uma parte substancial da classe média sem recursos, sem trabalhos, sem perspectivas e sem esperanças, vivendo ou sobrevivendo num verdadeiro caos generalizado.

Neste ambiente, destacamos as organizações dos grupos desorganizados, grupos informais, grupos sem unidade política, grupos sem identidades e todos os grupos invisíveis que vivem ou sobrevivem arduamente, passando fome, sem dignidade, sem condições dignas de sobrevivência, sem emprego, sem renda e sem esperança de dias melhores.

Novembro sentiu na pele os grandes desafios dos gestores da sociedade brasileira em 2023, desafios, oportunidades, estratégias e planejamentos são conceitos fundamentais para compreendermos que o futuro da nação deve ser construído fortalecendo a democracia, ampliando os direitos sociais, reconstruindo políticas públicas e atuando diretamente sobre o modelo econômico que rege a sociedade nacional, sem entrarmos nas discussões do modelo econômico todas as reflexões são despropositadas.

O mês de novembro nos traz um grande xadrez da sociedade contemporânea, o êxito do novo governo só será conseguido se as demandas forem atendidas, se o governo conseguir mostrar que o desenvolvimento é fundamental para toda a nação, a diversificação econômica é imprescindível, o ensino de qualidade é uma condição central para revertermos as dívidas acumuladas em duzentos de exploração social, pilhagem econômica, instabilidades políticas e degradação ambiental.

Ary amos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Comportamental, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

Por trás do debate sobre “equilíbrio fiscal” por José Luís Fiori

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O Brasil precisa de um governo capaz de afirmar sua opção incontornável pela conquista de uma sociedade mais justa e igualitária. Mesmo sob a resistência dos “operadores de mercado”, que não representam 1% da população brasileira

José Luís Fiori – OUTRAS PALAVRAS – 12/12/2022

Artigo publicado originalmente pelos Cadernos CRIS/Fiocruz 23/2022 – Título original: Uma ladainha sem fim e uma pequena história exemplar

Agentes econômicos têm manifestado preocupação com o risco de uma onda de gastos desenfreados na nova gestão – o que poderia minar os indicadores fiscais do país e aumentar a percepção de risco, grande depreciação cambial e maior pressão inflacionária. Com um Banco Central independente, isso poderia ser traduzido em juros altos por mais tempo e mais dificuldades para crescer.

Mortari, M.“A. Fraga, E. Bacha e P. Malan enviam carta a Lula e alertam para risco fiscal”. InfoMoney, 17 de novembro de 2022

O debate econômico sobre a questão do “equilíbrio fiscal” é tão antigo e tão repetitivo que às vezes lembra uma polifonia medieval, em que as vozes se alternam repetindo as mesmas frases e os mesmos acordes infinitas vezes, como se fosse um mantra, ou uma “ladainha sem fim”. O fraseado pode mudar através do tempo, mas a essência dos argumentos é sempre a mesma, há mais de 200 anos. Seja pelo lado dos liberais ou monetaristas, que defendem o imperativo absoluto do “equilíbrio fiscal”, seja pelo lado dos desenvolvimentistas ou keynesianos, que consideram que o crescimento econômico exige políticas fiscais menos rígidas e mais expansionistas.

Apesar de longevo, este debate nunca teve nem terá uma conclusão clara e definitiva, simplesmente porque não se trata de uma divergência acadêmica, ou puramente científica, e envolve sempre os interesses de “agentes econômicos” e classes sociais que são muitas vezes antagônicos e excludentes. Além disso, para confundir ainda mais a discussão, constata-se através da história que, em distintas circunstâncias, as mesmas políticas econômicas podem ter resultados completamente diferentes, dependendo do poder e do grau de soberania de cada governo.

Poucos são os economistas que conseguem reconhecer e aceitar que este nunca foi um debate
teórico, e que no campo da política econômica não existem verdades absolutas. Pelo contrário, qualquer decisão que seja tomada envolverá sempre uma arbitragem política, que deverá ser feita em função dos objetivos estratégicos e dos interesses particulares que cada governo se proponha defender ou priorizar. Basta olhar para o caso do governo brasileiro atual, paramilitar e ultraliberal, que foi apoiado incondicionalmente pelo mercado financeiro e por seus economistas “ortodoxos” que nunca se alarmaram ou protestaram quando o governo ultrapassou seu próprio “teto fiscal” em mais de 700 bilhões de reais. Bem diferente do comportamento alarmista que adotaram recentemente frente às primeiras medidas sociais anunciadas pelo governo progressista que acabou de ser eleito, e cujo custo não chega aos pés da “gastança eleitoral” apoiada pelos militares, pelos seus economistas e por todo o mercado financeiro.

No Brasil, essa “polifonia inconclusa” começou já na segunda metade do século XIX, com a
oposição entre os “metalistas” e os “papelistas”, e suas diferentes visões a respeito do gasto público e da “neutralidade da moeda”. Uma divergência que se prolongou durante todo o século XX, colocando de um lado os monetaristas, ortodoxos, ou liberais, como Eugenio Gudin, Roberto Campos e seus discípulos; e do outro, os estruturalistas, keynesianos, ou desenvolvimentistas, como Roberto Simonsen, Celso Furtado e todos os seus discípulos, até nossos dias. Foi na vã tentativa de incorporar e conciliar os dois lados que Getúlio Vargas inaugurou uma solução prática que depois se tornou quase uma norma dos “governos desenvolvimentistas”, mesmo conservadores, colocando um “monetarista” ou “fiscalista ortodoxo” no Ministério da Fazenda, e um “desenvolvimentista” ou “gastador”, na presidência do BB, e depois de sua criação, no Ministério de Planejamento.

Essa disputa, entretanto, começou muito antes das agruras brasileiras. Não por acaso, a obra fundacional da Economia Política publicada por William Petty chamou-se “Tratado sobre impostos e contribuições”, e foi publicada em 1662 para dar conta dos desequilíbrios entre as “receitas” e as “responsabilidades fiscais” da coroa inglesa, envolvida naquele momento em várias guerras sucessivas com a Holanda, e logo em seguida, numa prolongada disputa militar com a França. E o mesmo se pode dizer a respeito da obra mais famosa de Adam Smith, A riqueza das nações, publicada em 1776, no momento exato em que a Grã-Bretanha enfrentava o problema da grande “perda fiscal” de sua principal colônia norte-americana.

Se recuarmos ainda mais no tempo, descobriremos que esta mesma questão ou disjuntiva se colocou para todos os grandes impérios ou poderes territoriais que se propuseram a aumentar sua produção de excedente econômico para poder expandir seus territórios. Senão vejamos, relendo de forma muito rápida um episódio da história chinesa, paradigmático e exemplar, que pode ajudar-nos a clarificar nosso argumento central sobre essa velha polêmica que volta a assombrar o cenário político brasileiro.1

No século XIV, depois de um longo período de fragmentação territorial e guerras intestinas, a China viveu um grande processo de centralização do poder, sob a Dinastia Ming (1368-1644), que foi responsável pela reorganização do Estado chinês e por um verdadeiro renascimento de sua cultura e civilização milenar. Também foi responsável pelo início de um movimento expansivo da China em várias direções, para dentro e para fora de seu espaço geopolítico imediato, sobretudo durante o reinado do imperador Yung-Lo. Tudo isto até a morte do imperador em 1424, quando a China suspendeu suas expedições marítimas e todas as suas guerras de conquista continental. Uma mudança de rumo que permanece até hoje como uma das grandes incógnitas da história universal. É difícil de acreditar, mas essa mudança de rumo – verdadeiramente histórica – esteve associada, de uma forma ou de outra, a uma “disputa fiscal” parecida com as que se reproduzem até hoje em nosso ambiente econômico.

Para entender o que estamos dizendo, voltemos ao reinado de Yung-lo (1360-1423), que foi um dos imperadores chineses com maior visão estratégica e expansionista da China. Foi ele que concluiu as obras do Grande Canal, comunicando o Mar da China e a antiga capital, Nanquim, com a região mais pobre do norte do império, e decidiu construir uma nova capital, que veio a ser Pequim. Um gigantesco “projeto desenvolvimentista” que mobilizou e empregou, durante muitos anos, milhares de trabalhadores, artesãos, soldados e arquitetos chineses. Além disso, Yung-Lo estendeu a hegemonia chinesa – política, econômica e cultural – em todas as direções, através das fronteiras territoriais da China, e ainda na direção dos Mares do Sul, do Oceano Indico, do Golfo Pérsico e da Costa Africana. Foi durante seu reinado que o Almirante Cheng Ho liderou seis grandes expedições navais que chegaram até a costa da África, quando os portugueses estavam recém-chegando a Ceuta. Mas durante todo seu reinado, as políticas “desenvolvimentistas” do Imperador Yung-Lo enfrentaram a oposição acirrada da elite econômica chinesa liderada por seu próprio ministro da Fazenda, Hsia Yüan-Chi, defensor implacável do “equilíbrio fiscal”. Sem lograr uma conciliação, o imperador Yung-Lo mandou prender o ministro em 1421. Mas logo depois o imperador morreu numa batalha, e seu sucessor, o imperador Chu Kao-Chih, tirou o velho ministro da cadeia e o recolocou no ministério das Finanças, com poder total para suspender todas as obras e expedições de Yung-Lo, tudo em nome da necessidade de cortar os gastos para conter a inflação e manter a credibilidade do império. E foi assim que o Império Ming perdeu seu fôlego expansivo e fechou-se sobre si mesmo, caindo no isolamento quase total durante quase quatro
séculos.

Não é possível afirmar que a vitória da posição “fiscalista” do ministro Hsia Yüan-Chi contra a posição “expansionista” do imperador Yung-Lo atrasou em 600 anos a expansão global da economia e da civilização chinesas. Mas pode-se dizer, com toda certeza, que a vitória política e imposição das ideias “contencionistas” do ministro das finanças da China durante o reinado do imperador Chu Kao-Chin mudaram radicalmente o rumo da história chinesa depois de 1424. Naquele momento, como disse um historiador inglês, “para levar à frente a estratégia ‘desenvolvimentista’ de Yung-Lo, teria sido necessária uma sucessão de líderes com sua mesma visão vigorosa e estratégica, a visão de um construtor de impérios que não teve seguidores”.2

Há duas principais lições, pelo menos, que podem ser extraídas dessa verdadeira “fábula chinesa”: a primeira é que toda e qualquer “escolha contencionista” de curto prazo envolve opções mais dramáticas e com consequências de longo prazo que podem afetar os caminhos futuros de um povo e até de uma civilização, como no caso chinês; e a segunda é que o sucesso de uma “escolha expansionista” depende quase inteiramente da existência de um governo e de um bloco de poder capazes de sustentar esta opção por um período prolongado de tempo, sempre orientados por uma “visão vigorosa e estratégica”, como diz o historiador inglês. Para avançar numa direção mais expansionista, o Brasil precisa de um governo com a disposição e o poder de transmitir à sociedade e aos seus “agentes econômicos” sua opção definitiva e incontornável pela conquista de uma sociedade mais justa e igualitária, mesmo enfrentando a resistência dos “operadores de mercado” (que, somados todos, não dão mais do que 1% da população brasileira, mesmo incluindo o pessoal do cafezinho e da limpeza de seus escritórios).

De uma vez por todas, há que se entender que essa pequena minoria afortunada da população não
sente nenhum tipo de responsabilidade material ou moral pela “qualidade de vida” dos 30 a 40% dos brasileiros que passam fome e vivem na miséria ou na mais completa indigência. Na verdade, a maior parte da burguesia empresarial brasileira não necessita nem nunca necessitou aliar-se a seu próprio povo para obter sucesso com seus negócios e aumentar seus lucros privados, que crescem de forma geométrica mesmo nos períodos de baixo crescimento do PIB nacional. É como se existissem no Brasil dois universos paralelos e absolutamente incomunicáveis: num, vivem os pobres, os desempregados, os indigentes e os “condenados da terra” em geral; e no outro, vive uma burguesia muito satisfeita, sertaneja ou cosmopolita, mas ambas igualmente de costas para seu próprio povo.

1 Por ser um episódio absolutamente paradigmático, reaparece muitas vezes em nossas aulas, palestras, artigos e entrevistas.

2 The Cambridge History of China, 1988, vol. 7, p. 275.

Encruzilhadas

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Vivemos momentos marcados por grandes escolhas, desafios e oportunidades, para isso, precisamos construir novos horizontes de sobrevivências, entendermos o que queremos para os próximos anos, desenvolver lideranças conscientes e capacitadas para compreendermos os horizontes futuros, investindo fortemente em educação, conhecimento e tecnologias, capacitando as organizações, retomando projetos exitosos, fortalecendo as instituições e repensando estratégias malsucedidas. Vivemos envoltos, na contemporaneidade, em inúmeras encruzilhadas, cujas escolhas devem nortear o comportamento das sociedades das próximas décadas.

O maior desafio para a sociedade internacional é reduzir, por completo, os desequilíbrios gerados pelas desigualdades crescentes nas sociedades contemporâneas. Países ricos e nações pobres perceberam o crescimento das desigualdades, desde social, econômica, política e cultural, que impactam negativamente para a sustentabilidade das estruturas produtivas e sistemas políticos, que degradam as relações sociais, incrementando conflitos cotidianos, aumentando as violências e gerando o esgarçamento dos tecidos sociais.

O crescimento das desigualdades gera constrangimentos crescentes para as estruturas sociais, limitando os mercados internos de consumo, reduzindo a capacidade de recuperação econômica, limitando a renda disponível e exigindo recursos públicos para socorrer grupos mais fragilizados, para evitar que as sociedades entrem em colapsos, aumentando o caos generalizado, com graves consequências para a convivência pacífica e a consolidação democrática.

Nas sociedades contemporâneas, os líderes devem ser dotados de grandes habilidades de conversação, ouvindo as demandas de todos os grupos sociais, arbitrando os conflitos econômicos e políticos, solicitando esforços de setores que ganham constantemente e canalizando recursos financeiros para reconstruir espaços de cidadania e garantindo que as estruturas democráticas tragam benefícios para todos os setores da comunidade, evitando que setores mais organizados, donos de lobbies mais eficientes, dotados de grande capacidade financeira imponham seus interesses imediatos, seus ganhos adicionais e limitem os repasses para setores mais fragilizados.

Numa sociedade como a brasileira, marcada por desigualdades generalizadas, é fundamental que os líderes e gestores modernos, tenham que construir uma grande capacidade de negociação, entendendo que, muitas vezes, políticas urgentes e necessárias, demandam tempo para trazer retornos consistentes. Estas políticas devem ser adotadas, visando o bem estar da comunidade, reduzindo privilégios de alguns setores, que sempre se beneficiaram de menor tributação, isenções fiscais e ganhos monetários e financeiros oriundo de taxas de juros elevadas praticadas pelas autoridades monetárias controladas pelos donos do capital, em detrimento da maioria da comunidade, que vivem ou sobrevivem com as migalhas do orçamento público, enquanto setores mais abonados e dotados de grande capacidade de organização política e econômica, garantem a concentração da renda nas mãos de poucos privilegiados e contribuem para a perpetuação de uma pobreza crônica que perpassam o momento da descoberta desta nação.

Governar é fazer escolhas, estas escolhas devem nortear os resultados imediatos e futuros de cada governo. Numa sociedade, como a nossa, centrado por grandes desequilíbrios e conflitos latentes, todas estas escolhas devem sem claras, urgentes e transparentes para a comunidade. Neste momento de transição de governo, percebemos que os grupos ganhadores desta política econômica se arvoram com seus tentáculos para impor seus ganhos financeiros e monetários, perpetuando uma estrutura econômica centrada no imediatismo e dos ganhos financeiros que pouco trazem para a comunidade nacional.

Neste momento, percebemos que as encruzilhadas aparecem mesmo antes do novo governo tomar posse, querendo controlar as políticas futuras como fizeram em quase todos os governos anteriores, controlando os repasses financeiros para os grupos mais fragilizados, estimulando o incremento de seus ganhos monetárias que garantem um parasitismo crescente que contribuem pouco para a comunidade, mas perpetua seus ganhos adicionais e sua indiferença com os setores marginalizados.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Economia Criativa, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário.

O resgate do Planejamento no século XXI, por Marcio Pochmann

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Ele teve papel central no pós-guerra, mas neoliberais o destruíram. Emergiu o presentismo, sem diálogo com os desafios do futuro. Retomá-lo exige refletir qual país desejamos construir após três décadas de ruína da sociedade industrial

Marcio Pochmann – Outras Palavras – 12/12/2022

Foi somente com o fracasso do liberalismo exposto na Depressão de 1929 que a ideia de planejamento nacional ganhou força. Embora a presença do ato de planejar remonte às antigas civilizações pré-modernas (por exemplo, na construção de grandes obras como as pirâmides egípcias há 4,5 mil anos), o progresso, sob o modo de produção e consumo capitalista, era compreendido pelas elites dominantes como a ser exercido naturalmente pela espontaneidade das forças de mercado.

Diferentemente do sistema de planificação soviético (1921-1991), concebido pelo Comitê Estatal do Planejamento (Gosplan) como a base da economia socialista, o planejamento no capitalismo assumiu indicativo de parte do Estado em relação ao setor privado. Tratou, fundamentalmente, das implicações futuras para a economia e sociedade decorrentes das decisões presentes da administração pública, mais do que decisões propriamente do futuro.

A centralidade alcançada pelo planejamento na maioria dos países, sobretudo após a segunda Guerra Mundial, terminou por transformar a natureza da administração pública. O denominado O novo Estado Industrial por John Galbraith em 1967 alterou profundamente a atuação do Estado em relação aos mercados e à sociedade.

No Brasil não foi diferente. Como o atraso nacional era expressivo e decorrente do longevo e primitivo agrarismo vigente, o planejamento emergiu na década de 1930, incorporado à construção própria do Estado moderno.

Naquela oportunidade, por exemplo, o seu pressuposto fundamental era estruturar a passagem do país atrasado para uma nova sociedade urbana e industrial. Com a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) em 1938, a ossatura estatal foi sendo constituída através do impulso da maioria política construída a partir da Revolução de 1930.

A ação programada pelo Estado alçou dinamismo com o enfrentamento do subdesenvolvimento proveniente do tradicional modelo econômico primário-exportador. A partir daquela época, o planejamento se tornou o meio pelo qual o distante futuro foi sendo antecipado pelas decisões do presente da nação no interior da administração pública.

Ao longo do tempo, no Brasil, o Estado de natureza industrial sofreu reformas preparadas para transformá-lo no Estado mais adequado aos desafios contemporâneos. No segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954), por exemplo, o planejamento sustentou a montagem de empresas estatais estruturadoras do capitalismo organizado do segundo pós-guerra, assim como na presidência de Juscelino Kubitschek (1956-1961), a operação dos chamados grupos executivos setoriais se mostrou competente para a consolidação da industrialização sob o tripé dos capitais privado nacional, estrangeiro e estatal.

Também durante o regime militar (1964-1985), a reforma do Estado nos anos 1960 foi acompanhada pelo fortalecimento do fundo público e da tecnocracia dirigente. Em meio século de planejamento, a estrutura produtiva foi modernizada, colocando o Brasil entre as principais economias modernas do mundo.

A derrota da maioria política desenvolvimentista ao final da década de 1980 possibilitou a dominância neoliberal. O abandono do planejamento seguido pelo desmonte do Estado Industrial confinou a administração pública a uma espécie de pronto-socorro a gerir as emergências do país que passava a cancelar o seu próprio futuro.

O haraquiri neoliberal aprisionou o presentismo, sem diálogo com os desafios do futuro. Neste contexto nacional, o máximo que o receituário neoliberal permitiu foi o planejamento orçamentário na administração pública. O planejamento nacional seguiu esvaziado e sem sentido para a maioria política que validava a desindustrialização feita ao mesmo tempo em que ocorria a combinação da dominância da financeirização do estoque de riqueza com o modelo econômico primário-exportador.

Neste início da terceira década do século 21, o planejamento deveria ser recuperado, concomitantemente com a transformação do Estado brasileiro, fundamental para trazer para as decisões do presente as escolhas sobre o futuro que o conjunto da sociedade deseja. Para tanto, é necessária a definição de qual país se deseja alcançar após mais de três décadas de ruína da sociedade industrial.