A fome em meio à abundância, por Ricardo Abramovay

0

A natureza econômica dos alimentos não pode escamotear o direito à alimentação

Ricardo Abramovay – A Terra é redonda – 11/12/2022

Amartya Sen[i] tinha 10 anos e se lembra até hoje dos gritos contínuos de gente pedindo ajuda, por falta de comida. Em sua recém-publicada autobiografia, Uma casa no mundo (Companhia das Letras), ele relata a cena chocante, 77 anos atrás, de um homem, no pátio de sua escola, em Santiniketan (um bairro da cidade de Bolpur em Bengala Ocidental, Índia), totalmente fora de si e que, pelo que os alunos descobriram, estava sem comer havia um mês.

A cidade fica a apenas 150 quilômetros de Calcutá, cidade portuária por onde as exportações agrícolas indianas transitavam, sob o incentivo do aumento dos preços, no auge da Segunda Guerra Mundial. O alimento existia, mas era inacessível aos que dele necessitavam. A famosa fome de Bengala de 1942/43 matou entre dois e três milhões de pessoas.

Este paradoxo da fome em plena abundância nunca lhe saiu da cabeça e quando, nos anos 1970, já economista, Amartya Sen, se debruçou sobre o tema, sua conclusão foi inequívoca: “era mais importante dar mais atenção ao direito aos alimentos e não à disponibilidade deles”. A frase singela resume o espírito do conjunto da obra deste prêmio Nobel de Economia, conquistado em 1988, por sua contribuição a um ramo da ciência econômica chamado economia do bem-estar. E nada resume melhor sua posição neste campo tão técnico e matematizado da microeconomia que sua definição de desenvolvimento.

Para Amartya Sen, desenvolvimento não se refere ao poder de aumentar a produção de bens e serviços, às tecnologias ou à organização social voltada a esta finalidade. Sua definição, que deu origem ao título do livro que publicou no ano em que foi contemplado com o Nobel, vai muito além: desenvolvimento é o processo permanente de expansão das liberdades substantivas dos seres humanos. O importante não são as coisas e sim o que as pessoas fazem com as coisas e como sua produção incide em suas vidas. Entre os benefícios potenciais que um bem econômico e, mais ainda, o crescimento econômico poderiam trazer e seus efeitos reais sobre a vida das pessoas, a distância pode ser quilométrica.

Em Bengala, as pessoas tinham a liberdade de produzir e de comprar alimentos. Mas essa liberdade era puramente formal, não era substantiva. A Índia era uma colônia britânica à época, e Amartya Sen mostra que nem o Parlamento britânico, nem a imprensa indiana, sob forte censura, veiculavam a tragédia que não escapava aos olhos de uma criança de 10 anos.

A natureza econômica dos alimentos, o fato de eles serem produzidos, distribuídos e consumidos no âmbito de uma economia de mercado, não pode escamotear o direito à alimentação. Em outras palavras, a eficiência na alocação dos recursos e os incentivos que os mercados oferecem aos agentes econômicos são importantes, mas não garantem uma alimentação suficiente e saudável para todos. O “direito aos alimentos” não pode ser puramente formal e abstrato. Se o preço dos alimentos está muito acima do que os pobres podem pagar, seu “direito à alimentação” está irremediavelmente comprometido, mesmo que os alimentos existam e, em tese, possam ser comprados.

Foi isso que Betinho[ii] percebeu nos anos 1990, e esta é a razão pela qual os governos democráticos brasileiros, sob pressão da sociedade civil organizada e de campanhas memoráveis, implantaram, ao longo de duas décadas, organizações estatais e iniciativas que permitiram ao
País sair do mapa da fome em 2014. Essas organizações e iniciativas foram discutidas no Congresso, mas, sobretudo, foram concebidas, implementadas e avaliadas por conselhos com forte participação cidadã. Parcela tão importante da vida econômica do País (a alimentação de sua população) era pautada por um conjunto de organizações que tinham voz ativa na organização das políticas alimentares.

O corpo das pessoas é um marcador social incontornável: 22% das crianças do Nordeste
de até cinco anos, em 1996, tinham uma estatura que revelava sua carência nutricional crônica.

Em 2006, este total caiu para 6%. É claro que o aumento na oferta alimentar resultou no barateamento da comida e contribuiu para esse resultado. Mas ele não teria sido alcançado sem um conjunto de medidas públicas voltadas a dotar as populações vulneráveis dos meios que lhes permitissem satisfazer suas necessidades.

A construção de cisternas, que possibilitaram a convivência com a seca, a decisão de melhorar a composição da merenda escolar com a aquisição de alimentos vindos da agricultura familiar, o aumento gradual do salário-mínimo e as transferências diretas de renda foram essenciais para que o aumento da produção agropecuária se traduzisse substantivamente em redução da fome. Este é um exemplo de ampliação das liberdades substantivas dos seres humanos (a liberdade de ter uma alimentação que permita um crescimento saudável) sem as quais é gigantesco o risco de que o crescimento econômico se afaste da satisfação das necessidades sociais.

Mas a influência da organização democrática sobre a vida social não pode limitar-se a suas dimensões distributivas. O crescimento econômico contemporâneo vem sacrificando os tecidos socioambientais nos quais ele até aqui se apoiou. A destruição dos serviços ecossistêmicos dos quais depende a oferta de bens e serviços é muito mais rápida que a capacidade da natureza de se recuperar da guerra que o sistema econômico trava sistematicamente contra ela. A oferta alimentar contemporânea depende de um pequeno número de produtos, cuja oferta concentra-se em algumas poucas regiões do mundo. Por um lado, a monotonia das paisagens agrícolas e a uniformidade das criações animais ampliam os riscos de colapso: segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) nos últimos 30 anos episódios de severa seca (como a que se abateu sobre as regiões produtoras de grãos no Brasil este ano) atingiram 75% da área plantada.

Por outro lado, a gigantesca biodiversidade que poderia estar na base dos sistemas alimentares é desperdiçada. Segundo o relatório da organização britânica Kew Royal Botanic Garden há mais de 7000 plantas comestíveis no mundo, das quais mais de 450 podem ser cultivadas. No entanto, 60% da humanidade depende de quatro culturas: soja, trigo, milho e arroz. As criações concentracionárias (e geneticamente homogêneas) de animais só não resultam em contaminação viral e bacteriana em larga escala em virtude do consumo de antibióticos em que estas tecnologias se apoiam. 70% dos antibióticos produzidos hoje destinam-se a animais e boa parte destes materiais escapam para o solo e os cursos d’água, resultando em preocupante avanço da resistência antibacteriana.

O paradoxo da fome em meio à abundância tomou uma nova feição no Brasil: nosso sistema agroalimentar é o terceiro maior emissor de gases de efeito estufa do mundo e, no entanto, a fome e a desnutrição cresceram exatamente à medida que estas emissões aumentavam. A hospitalização infantil por desnutrição atingiu, em 2022, o pior índice dos últimos catorze anos, como mostra pesquisa da Fiocruz.

É indispensável que a democracia atinja o cerne das decisões e das iniciativas econômicas e não esteja presente apenas nos mecanismos voltados à distribuição da riqueza. É cada vez mais evidente, por exemplo, o contraste entre as reais necessidades alimentares das pessoas e aquilo que o sistema agroalimentar lhes oferece, mesmo nas sociedades mais ricas do planeta. Os guias alimentares, que vêm sendo publicados em todo o mundo (tema em que a pesquisa brasileira exerce forte liderança global), sinalizam a urgência de que se aumente o consumo de verduras, hortaliças e folhas, reduzindo-se a quase nada a entrada de ultraprocessados na dieta e diminuindo também de forma importante o consumo de carnes.

Se depender estritamente do punhado de grandes empresas que dominam o setor agroalimentar, esta mudança não ocorrerá. A transição para sistemas agroalimentares saudáveis e sustentáveis depende de forte participação social e de instituições públicas voltadas à difusão de padrões alimentares e culinários saudáveis, mas também da descentralização de iniciativas capazes de desconcentrar a oferta alimentar e de promover a diversidade nos cultivos, nas criações animais e nas práticas culinárias. As diferentes formas de aglicultura urbana e periurbana que, no mundo todo, ganham importância em terrenos vazios das cidades, por iniciativas de movimentos sociais, são um exemplo neste sentido.

A crise socioambiental contemporânea exige que se amplie o escopo daquilo que a ciência econômica considerou até aqui pertencer ao domínio dos bens públicos. Tão importantes quanto as praças, as estradas, o sistema de água e esgoto e a internet são os impactos das decisões econômicas sobre a natureza e a sociedade. Esses impactos não podem mais ser tratados como “externalidades”.

O recém-falecido sociólogo Bruno Latour escreveu uma década atrás um livro em que propõe a derrubada da Torre de Marfim da vida acadêmica e tem como subtítulo a proposta de “colocar as ciências em democracia”. Neste momento de recuperação das instituições brasileiras, da mesma forma, é fundamental “colocar a economia em democracia” e deixar de tratá-la como se fosse uma esfera autônoma da vida social.

*Ricardo Abramovay é professor titular sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Autor, entre outros livros, de Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza (Elefante/Terceira Via).

Publicado originalmente na revista Ciência e cultura.

Notas
[i] Amartya Sen é professor de economia e filosofia da cátedra Thomas W. Lamont na Universidade Harvard. Anteriormente, foi professor de Economia na Universidade Jadavpur de Calcutá, na Escola de Economia de Delhi e na London School of Economics, e professor de Economia Política na Universidade de Oxford.

[ii] Herbert José de Sousa foi um sociólogo e ativista dos direitos humanos brasileiro. Concebeu e dedicou-se ao projeto Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida.

Ailton Krenak: Não quero salvar os índios, mas evitar a extinção da espécie humana

0

Escritor diz que crise do clima levará à metástase e que Lula foi saudado na COP27 pois mundo está pelado com a mão no bolso

WALTER PORTO – FOLHA DE SÃO PAULO – 12/12/2022

SÃO PAULO

“Olha que lindo é aqui”, diz Aílton Krenak enquanto filma pelo celular as árvores do lugar onde se sentou para dar esta entrevista. É uma parada prosaica de beira de estrada, onde ele estacionou em meio à viagem que fazia de Minas Gerais até o Rio de Janeiro. Dali partiria para a Holanda, em sua primeira viagem internacional após a pandemia, no começo do mês.

Krenak apresentaria aos europeus suas ideias para adiar o fim do mundo, expressão popularizada pelo título de seu primeiro livro na Companhia das Letras, lançado em 2019.

De lá para cá, a coletânea virou uma febre comercial, rendendo duas edições reimpressas 16 vezes, e continuou com “A Vida Não É Útil”. As obras ampliaram o alcance de uma liderança indígena já reconhecida por articulações nacionais desde os anos 1970.

Agora o tríptico se encerra com “Futuro Ancestral”, que reúne reflexões sobre a educação de crianças, o colonialismo e o planejamento urbano, sempre partindo de cosmogonias indígenas tornadas acessíveis aos leitores brancos.

Nesta entrevista, Krenak discute por que prefere pensar no presente que no futuro e pensa a efetividade da política institucional —ele foi um dos nomes lembrados para o prometido Ministério dos Povos Originários no governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

‘Futuro Ancestral’ brinca com a questão temporal, falando que a ideia de futuro é uma ilusão branca, mas também expressando com frequência a ideia de ‘adiar o fim do mundo’. Pode explicar melhor como enxerga o conceito de futuro? A ideia de fazer uma comunicação aberta com outra cultura, outros sujeitos, obriga você a criar recursos narrativos que alcancem o outro. Se eu ficar ensimesmado em uma cosmovisão na qual o futuro é uma balela, não vou conversar com ninguém. Todo mundo ao meu redor acredita no futuro.

Se você não fizer sua autodescrição quando vai dar uma palestra, o cego não vê. Como eu vou falar com você sobre o futuro se eu suprimir a palavra futuro? Não quer dizer que eu acredito nele, mas que questiono a razão que instituiu uma narrativa global, ampla, em que há o mesmo futuro para mim, para você e para o chinês. Isso é uma besteira.

Se tem alguma coisa que pode corresponder a essa ideia de futuro instituída socialmente, temos que considerar que ele é ancestral, porque só pode ter concretude a partir do que já foi. A materialidade dele é o ontem, não é o agora —e quando o agora for ontem, fechamos a parábola de um futuro ancestral.

Pode parecer especulação filosófica, mas é também a afirmação de um lugar de pensar o mundo aqui e agora. Igual à canção de Gilberto Gil.

Isso embute uma proposta de salvar o meio ambiente e preservar os povos originários priorizando ações imediatas acima de planos para um futuro que talvez não se concretize? Do ponto de vista climático, muito mais que a ideia de salvar qualquer coisa é a ideia de evitar nossa extinção. O Homo sapiens, a espécie, está entrando em extinção. Não são os índios. Eu não estou salvando os índios. Estou dando um toque de que, se a gente não se cuidar, vamos todos para a metástase.

Com relação ao clima, ou a gente para tudo agora ou a gente torra. O secretário das Nações Unidas, Antônio Guterres, disse na COP27 que estava decepcionado porque, a considerar a posição dos governos que foram para Sharm el-Sheikh, no Egito, vamos marchar a passos largos para o inferno. Parece letra de rock ‘n’ roll brabo.

Não é brincadeira, não. Ele só não jogou a toalha, mas o que está dizendo é que não tem mais prazo para conversa mole. É aqui e agora.

Você diz no livro que não acredita mais na atuação em partidos ou sindicatos e afirma que, quando se começa a cobrar impostos, alguma coisa já deu errado. Instituições como essas não podem ajudar a organizar a mobilização por uma causa? Partido é um organismo com configurações implícitas. Nunca tive relação com partido, organizei o movimento indígena, anti-partido. Em 1995, renunciei à coordenação para que não virasse partido. Eu e o Batman temos um dispositivo que, quando tudo fica muito ruim, a gente aperta o botão.

Na COP27, Lula foi saudado como uma estrela, alguém com potencial de ter uma atuação positiva em termos ambientais diante de um mundo preocupado com a Amazônia. O próximo governo tem uma boa oportunidade de levar o Brasil a uma posição melhor nesse aspecto? 

Seria uma injustiça atribuir essa responsabilidade ao Brasil. Estamos saindo de uma tragédia política tão grande que cuidar das nossas feridas já seria heroico.

Lula foi saudado lá porque o mundo está pelado com a mão no bolso. É como se ele fosse a aspirina do momento, mas isso só mostra que o mundo está realmente uma merda.

Lula também aventa a ideia de um ministério específico voltado aos povos originários. Isso vai ser efetivo para organizar as políticas dessa área? Foi muito corajoso ele ter feito esse anúncio, inclusive num momento em que a vitória dele ainda não estava decidida. De lá para cá, ele radicalizou, está criando o ministério e isso é um sinal muito amplo para todo mundo.

Quando você diz que vai empoderar os povos originários, diz que vai limitar o genocídio e a ação deliberada de destruir florestas e ecossistemas que se implantou no Brasil nos últimos anos. Significa também um comprometimento pessoal do presidente de que ele não vai mais cometer Belo Monte.

Então você não desistiu completamente da política institucional. A política institucional é a única maneira de assegurar que a gente não vire uma barbárie total, com pirataria e invasões feito o que Donald Trump promoveu no Congresso dos Estados Unidos e o que os sujeitos que tomaram a política brasileira tentaram fazer levando tanques militares para dar rolezinho em volta do Congresso.

As instituições precisam ser responsáveis, o que não quer dizer que todo mundo tem que se meter na política. Não é por isso que você e o Ailton têm que se meter em política e criar um partido. Sair por aí com o apelido de centrinho.

Em outro trecho dos seus textos, você diz que ‘o colonialismo causou um dano quase irreparável ao afirmar que nós somos todos iguais’. O que quer dizer? Somos 8 bilhões de pessoas no planeta hoje. Se continuarmos todos fiéis ao propósito “somos todos iguais”, vamos ter que dar um carro para cada pessoa, um apartamento, uma casa no campo, férias em outro país. Não tem sentido dizer que somos iguais quando príncipes sauditas embarcam carros de luxo em aviões para passear na Europa.

Enquanto eles escravizavam povos no mundo inteiro, as declarações de igualdade só cresciam. No século 20, a propaganda de igualdade é descarada. É um plasma que cobre tudo, as injustiças, o sexismo, o racismo. Todo tipo de segregação e sacanagem acontece sob o manto tacanho da igualdade. Somos radicalmente diferentes. É uma tremenda embromação.

Lula vai governar para quem? por Rodrigo Zeidan

0

O governo petista irá transferir dinheiro público para ricos ou pobres?

Rodrigo Zeidan, Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

Folha de São Paulo. 10/12/2022

Em um sinal de retomada da sanidade política, Lula anunciou que vai governar para todos os brasileiros, não somente os que votaram nele. Mas a pergunta que mais importa é: com pouca margem de manobra, quais vão ser suas prioridades de gastos públicos?

Sabemos que o PT acredita na tese de um Estado grande na economia. Se isso é certo ou errado, pouco importa, pois seu governo vai tentar colocar isso em prática. A questão é: o governo petista irá transferir dinheiro público para ricos ou pobres? Por mais que a plataforma do partido seja de justiça social, o histórico dos governos petistas é o de colocar montanhas de dinheiro da sociedade nos bolsos dos acionistas de empresas de médio e grande porte.

Nunca vou me esquecer do brilho dos olhos de um empresário de transportes do Amazonas que ia usar recursos próprios para atualizar a frota quando o governo Dilma renovou o PSI (Programa de Sustentação do Investimento), com juros de 2,5% para empresas da região.

O empresário pegou todo o dinheiro que pôde, fez a atualização da frota com dinheiro do BNDES e aplicou o caixa da empresa em títulos públicos, que pagavam juros de quase 10% ao ano. Ou seja, o dinheiro público não sustentou nenhum investimento, que ia ser feito de qualquer maneira, e foi direto para o bolso dos acionistas (cujo lucro ainda aumentou pelo benefício tributário de reduzir o lucro tributário pelo montante de juros pagos).

Quando o governo petista coloca o dinheiro direto nas mãos dos mais pobres, acerta. O Bolsa Família foi, e deve voltar a ser, o melhor programa social da história brasileira. O Prouni, criado em 2004, permitiu a muitos brasileiros cursar ensino superior, sem gerar gigantescos ônus ao erário e sem gerar distorções no mercado educacional.

Há muito espaço para gastar dinheiro realmente ajudando quem mais precisa e tirando o Brasil da crise.

Restrições fiscais são “profecias autorrealizáveis”: o governo anuncia relaxamento de regras fiscais para criar gastos públicos absurdos, o prêmio de risco do país sobe e torna ainda mais inúteis esses gastos, prejudicando programas futuros.

O que não dá para fazer é entrar na megalomania de programas pessimamente desenhados, como o Fies e o Ciência sem Fronteiras; ideias boas que, por serem mal executadas, custaram centenas de bilhões aos brasileiros; e, dessa vez, quem se deu melhor foram os acionistas de universidades brasileiras e estrangeiras, que recebiam mensalidade cheia, não importando se os alunos completariam seus estudos ou não. Também não me esqueço de um reitor de universidade privada que comprou um iate novo que queria batizar de Fies.

Há questões mal resolvidas na criação de gastos permanentes com as dezenas de universidades federais criadas pelos governos Lula e Dilma, mas mil vezes novas instituições de ensino superior que a redução de IPI de carros e outros subsídios que torraram dinheiro público sem nenhum efeito de longo prazo. Se o governo petista se comportar como se estivéssemos na década de 1970, quando se acreditava que bastava sair dando subsídios que a indústria magicamente se tornaria competitiva, estaremos perdidos.

Não precisamos de um governo Robin Hood às avessas: tirando dos pobres para dar aos ricos. Teremos algo próximo de Lula 1, que foi uma excelente gestão, ou algo perto dos outros governos, que nos levaram a uma das piores crises da nossa história? Saberemos no ano que vem.

“A grande crise é inevitável”, diz Nouriel Roubini.

0

O economista que previu o colapso de 2008 aponto: dívidas privadas dispararam. Juros muito baixos e emissão de dinheiro em favor dos mais ricos impediam um colapso. Mas agora a inflação frustrou o remendo e tudo pode estar por um triz

Nouriel Roubini – Outras Palavras – 09/12/2022

A economia mundial está caminhando para uma confluência sem precedentes de crises econômicas,
financeiras e de dívida, após a explosão de déficits, empréstimos e alavancagem.

No setor privado, a montanha de dívidas inclui famílias (endividadas em hipotecas, cartões de crédito, empréstimos para automóveis, empréstimos estudantis, empréstimos pessoais), empresas e corporações (empréstimos bancários, títulos de dívida e dívida privada) e o setor financeiro (passivo de instituições bancárias e não bancárias). No setor público, estão os títulos dos governos centrais, subnacionais e locais, além de outros passivos formais e dívidas implícitas – como passivos não financiados dos sistemas de pensão por repartição e de atendimento à saúde. Tudo isso continuará a crescer à medida que as sociedades envelhecem.

Olhando apenas para as dívidas explícitas, os números são impressionantes. Globalmente, a dívida total dos setores públicos e privado como parcela do PIB aumentou de 200% em 1999 para 350% em 2021. A proporção é agora de 420% nas economias avançadas e de 330% na China. Nos Estados Unidos, é 420%, maior do que durante a Grande Depressão e após a Segunda Guerra Mundial.

Por certo, a dívida pode impulsionar a atividade econômica, se os tomadores de empréstimos investirem em novo capital (máquinas, residências, infraestrutura pública) que gere retornos superiores ao custo dos juros. Mas muitos empréstimos são simplesmente para financiar recorrentemente as famílias que consomem acima de sua renda das famílias – o que é uma receita para a falência. Além disso, os investimentos em “capital” também podem ser arriscados, em casos como o de uma família que compra uma casa a um preço artificialmente inflado, uma corporação que tenta crescer -se muito rápido, independentemente dos retornos ou um governo que desperdiça o dinheiro em “elefantes brancos”. (projetos de infraestrutura extravagantes, porém inúteis).

Esses empréstimos em excesso vêm ocorrendo há décadas, por vários motivos. A “democratização” das finanças permitiu que as famílias com poucos rendimentos financiassem o consumo com dívidas. Governos de centro-direita têm persistentemente cortado impostos sem também cortar gastos, enquanto governos de centro-esquerda gastam generosamente em programas sociais que não são totalmente financiados por impostos insuficientes. E as políticas fiscais que favorecem a dívida em detrimento do patrimônio, auxiliadas pelas políticas monetárias e de crédito ultra flexíveis dos bancos centrais, alimentaram um aumento das dívidas dos setores público e privado.

Anos de flexibilização quantitativa (QE), [em que os bancos centrais emitiram trilhões de dólares, em favor de um punhado de credores da dívida pública (Nota da Tradução)] e de crédito barato mantiveram os custos dos empréstimos próximos de zero e, em alguns casos, até negativos (como na Europa e no Japão até recentemente). Em 2020, a dívida pública com rendimento negativo era de US$ 17 trilhões e, em alguns países nórdicos, até as hipotecas tinham taxas de juros nominais negativas.

A explosão de índices insustentáveis de dívida significava que muitos tomadores de empréstimos – famílias, corporações, bancos, bancos paralelos, governos e até mesmo países inteiros – eram “zumbis” insolventes sustentados por baixas taxas de juros (que mantinham os custos do serviço da dívida administráveis). Durante a crise financeira global de 2008 e a crise da covid-19, muitos agentes insolventes que teriam ido à falência foram resgatados por políticas de taxa de juros zero ou negativa, flexibilização quantitativa e resgates fiscais definitivos.

Mas agora, a inflação – alimentada pelas mesmas políticas fiscais, monetárias e de crédito ultra flexíveis – pôs fim a este amanhecer financeiro dos mortos. Com os bancos centrais forçados a aumentar as taxas de juros, em um esforço para restaurar a estabilidade de preços, os zumbis estão experimentando aumentos acentuados nos custos do serviço da dívida. Para muitos, isso representa um golpe triplo, porque a inflação também está corroendo a renda familiar real e reduzindo o valor dos bens familiares, como casas e ações. O mesmo vale para corporações, instituições financeiras e governos frágeis e super endividados: eles enfrentam custos de empréstimos em alta acentuada, rendas e receitas em queda e valores de ativos em declínio, tudo ao mesmo tempo.

Pior, esses eventos estão coincidindo com o retorno da estagflação (inflação alta junto com crescimento fraco). A última vez que as economias avançadas experimentaram tais condições foi na década de 1970. Mas naquela época, pelo menos os índices de endividamento eram muito baixos.

Hoje, enfrentamos os piores aspectos da década de 1970 (choques estagflacionários) ao lado dos piores aspectos da crise financeira global. E, desta vez, não podemos simplesmente cortar as taxas de juros para estimular a demanda.

Afinal, a economia global está sendo atingida por persistentes choques negativos de oferta de curto e médio prazo que estão reduzindo o crescimento e aumentando os preços e custos de produção. Isso inclui as interrupções pela pandemia no fornecimento de mão de obra e bens, bem como o impacto da guerra da Rússia na Ucrânia sobre os preços das commodities; A política de covid zero da China; e uma dúzia de outros choques de médio prazo – de mudanças climáticas a desenvolvimentos geopolíticos – que criarão pressões estagflacionárias adicionais.

Diferente da crise financeira de 2008 e dos primeiros meses do covid-19, simplesmente socorrer agentes privados e públicos com macropolíticas frouxas jogaria mais gasolina no fogo inflacionário. Isso significa que haverá um pouso forçado – uma recessão profunda e prolongada – além de uma grave crise financeira. À medida que as bolhas de ativos estouram, os índices de serviço da dívida disparam e as rendas das famílias, corporações e governos caem, a crise econômica e o colapso financeiro se alimentam mutuamente.

Certamente, as economias avançadas que tomam empréstimos em sua própria moeda podem usar um surto inesperado de inflação para reduzir o valor real de algumas dívidas nominais de longo prazo com taxa fixa. Com os governos relutantes em aumentar impostos ou cortar gastos para reduzir seus déficits, a monetização dos déficits dos bancos centrais será mais uma vez vista como o caminho de menor resistência. Mas não se pode enganar todas as pessoas o tempo todo.

Assim que o gênio da inflação sair da garrafa – que é o que acontecerá quando os bancos centrais abandonarem a luta diante do iminente colapso econômico e financeiro – os custos nominais e reais dos empréstimos aumentarão. A mãe de todas as crises de dívida estagflacionária pode até ser adiada, não evitada.

A pressão do mercado financeiro, por Paulo Nogueira Batista Júnior.

0

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.*

A Terra é redonda – 05/12/2022

O presidente eleito enfrenta, ao mesmo tempo, pelo menos três blocos hostis; o mais perigoso é formado pelo mercado financeiro e a mídia tradicional

Só o Lula mesmo! Imagine, leitor, a eleição de 2022 sem ele na disputa. Estaríamos neste momento diante de mais quatro anos de desastre e desagregação. Agora, leitor, imagine o dificílimo quadro pós-eleitoral sem Lula. Digo isso sem nenhuma satisfação ou idolatria. A nossa dependência em relação a um só homem é altamente problemática. Muito pior do que a dependência da seleção brasileira jamais foi em relação a Neymar.

Friedrich Nietzsche dizia que a capacidade de suportar sofrimento é o que determina a hierarquia. Lula tem essa capacidade em altíssimo grau. E é com ela que estamos contando (de novo!) para tentar superar os imensos desafios pós-eleição. Imensos porque a sociedade brasileira está profundamente degenerada. Não apenas os bolsonaristas estacionados em frentes aos quartéis ou bloqueando rodovias, mas grande parte das camadas dirigentes, do Congresso, do empresariado e da mídia. Há muitas exceções a isso, felizmente, mas o quadro geral é desolador.

O presidente eleito enfrenta, ao mesmo tempo, pelo menos três blocos hostis a ele e ao que ele representa: a extrema direita (rebelada contra o resultado das eleições com apoio de parte das Forças Armadas), a direita fisiológica que domina o Congresso (o chamado Centrão) e, last but not least, o capital financeiro. Este último, referido impropriamente como “mercado”, tem estreita ligação com a finança internacional e domina amplamente a mídia tradicional, que em geral vocaliza de modo automático e monótono seus interesses e preconceitos. A direita fisiológica e o capital financeiro são mais hipócritas e disfarçam sua hostilidade, mas ela é real e não deve ser subestimada.

Evidentemente, os três blocos não são estanques. Colaboram com frequência, e não raro ativamente. Aliaram-se, por exemplo, para patrocinar a devastação bolsonarista. Agora tentam inviabilizar ou capturar o novo governo. Estou exagerando? Não creio.

O bloco mais perigoso talvez seja aquele formado pelo capital financeiro e a mídia tradicional. É dele que gostaria de falar um pouco hoje.

Para além do óbvio – o nexo dinheiro/poder/influência – o perigo reside no fato de que boa parte desse bloco embarcou na famosa Arca de Noé do Lula. Em outras palavras, aderiu à frente ampla formada para derrotar o bolsonarismo nas eleições. Agora querem cobrar caro pela sua participação. Era previsível.

Imediatamente depois das eleições, sem dar tempo para a poeira baixar, promoveu-se uma campanha midiática para intimidar e enquadrar o presidente eleito. E a campanha continua. Uma verdadeira inquisição financeira, como notou Luiz Gonzaga Belluzzo.

O mote é a “responsabilidade fiscal” e as supostas indicações que Lula teria dado, depois da vitória eleitoral, de não entender a importância desse princípio. Ora, ora, nada que Lula tenha declarado depois das eleições diverge do que ele disse, repetidamente, durante a campanha. Ou ele não avisou, várias vezes, que não conviveria com o teto constitucional de gastos? E que o enfrentamento da crise social seria a prioridade número 1 do seu governo?

O debate econômico quase desapareceu da mídia tradicional. Há muito tempo. O que se tem, na maior parte do tempo, é a repetição monocórdia de uma mesma mensagem, dos mesmos slogans, transmitidos por economistas e jornalistas a serviço da turma da bufunfa. Não são muito frequentes os lampejos de inteligência ou criatividade. Como dizia Nelson Rodrigues, subdesenvolvimento não se improvisa. É obra de séculos.

O que está por trás do barulho todo? Em uma frase: o capital financeiro quer povoar o futuro governo Lula de funcionários do status quo. Como Lula não entregou, ou ainda não entregou os pontos, o barulho continua. Temos de tudo: entrevistas, editoriais, noticiário editorializado, opiniões, artigos e, de quebra, cartas abertas ao presidente eleito. O Banco Central já está sob comando do capital financeiro, graças à lei de autonomia, aprovada durante o governo Bolsonaro.

Não é o suficiente, porém, para eles. Querem também o comando do Ministério da Fazenda e tentam induzir o presidente Lula a colocar lá alguém palatável, que não desafie seus interesses e privilégios. Alguém que dance conforme a música.

No entorno de Lula, no campo da esquerda ou da centro-esquerda, há muita gente de alto nível e espírito público. Por outro lado, há também gente ansiosa para agradar e se mostrar “responsável”, buscando viabilizar projetos individuais de poder. Instala-se assim uma race to the bottom, um nivelamento por baixo, com algumas pessoas disputando para ver quem se mostra mais confiável aos olhos do capital financeiro e da mídia corporativa.

É a síndrome de Palocci. O que o capital financeiro busca, na verdade, é um novo Palocci. E seus representantes manifestam, abertamente, o desejo de que o Lula 3 seja parecido com o Lula 1, isto é, aquele Lula dos anos iniciais de governo, mais dócil, enquadrado, com Antônio Palocci na Fazenda e Henrique Meirelles no Banco Central. Meirelles era um típico executivo do mercado financeiro, mais ou menos equivalente a Roberto Campos Neto, o atual presidente do Banco Central. Palocci era um político do PT que se viabilizou dando todas as garantias de que nada faria contra os poderes estabelecidos. E copiou descaradamente a política que vinha sendo seguida por seu antecessor, Pedro Malan, o ministro da Fazenda de Fernando Henrique Cardoso – sem nunca pagar os devidos direitos autorais. Colheu todos os elogios da Faria Lima e da mídia. Deslumbrou-se. E terminou melancolicamente, na traição mais abjeta.

Lula prometeu que voltaria “para fazer mais e melhor”. Não conseguirá se perder o controle da área macroeconômica do governo.

*Paulo Nogueira Batista Jr. é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém (LeYa).

A democracia militante, por Paulo Sérgio Pinheiro

0

PAULO SÉRGIO PINHEIRO*

A Terra é redonda – 08/12/2022

Após quatro anos de pregação e práticas neofascistas, a sociedade e o Estado terão de definir de que forma a militância poderá ser exercida na defesa da democracia

Uma das mais precisas análises do efetivo funcionamento do regime do Estado Novo no Brasil está em Brazil under Vargas (Russell and Russell, 1942), obra do filósofo e cientista político alemão Karl Loewenstein (1891-1973). É na conclusão desse livro – aliás, dedicado a Thomas Mann e lamentavelmente até hoje não traduzido para o português – que é proposto um conceito inovador, na época, para caracterizar aquela ditadura: “Reduzido aos mais simples termos de análise, o regime de [Getúlio] Vargas não é democrático, nem uma democracia “disciplinada”; não se trata de totalitário nem de fascista; é uma ditadura autoritária, para a qual a teoria constitucional francesa criou o termo régime personnel”. Mais tarde, em 1975, na Conferência Internacional sobre História e Ciências Sociais, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o cientista político Juan Linz, de Yale University, retoma o conceito de autoritarismo para caracterizar o regime da ditadura militar de 1964.

Mas Karl Loewenstein, além de produzir uma influente obra em direito constitucional, em 1937, quando o nazismo estava longe de estar consolidado, criou o termo de “democracia militante”. Em dois seminais artigos, “Militant Democracy and Fundamental Rights” (Democracia Militante e Direitos Fundamentais) I e II, examina de que modo a democracia constitucional é capaz de proteger as liberdades civis e políticas, por meio de limitações das instituições democráticas, para conter o fascismo de então. Para Karl Loewenstein, “a democracia e a tolerância democrática estariam sendo usadas para sua própria destruição. Sob a cobertura dos direitos fundamentais e do Estado de direito, a máquina antidemocrática pode vir a ser construída e posta em marcha legalmente”.

Ele lamenta “o exagerado formalismo do estado de direito que, sob o encantamento da igualdade formal, não julga adequado excluir do jogo os partidos que renegam a existência de suas regras”. Alerta igualmente que a desobediência perante as autoridades constitucionais naturalmente tende a transbordar para a violência, a violência se tornando nova fonte de “emocionalismo disciplinado”, no qual se fundam os regimes fascistas. E cita um exemplo relevante de como uma democracia pereceu, justamente por não ter essa proteção militante: “Na República de Weimar [na Alemanha de 1919 a 1933], a falta de militância contra os movimentos subversivos, mesmo tendo sido claramente reconhecidos como tal, foi ressaltada tanto como um dilema da democracia no pós-guerra, quanto como ilustração e advertência”.

O momento presente no Brasil
Por que as reflexões de Karl Loewenstein são relevantes para o momento presente no Brasil? Ao contrário do que se alardeou, as instituições do Estado brasileiro não funcionaram diante da escalada de extrema direita com conteúdo neofascista, liderada pelo presidente da República. Essa desconstrução do Estado de direito contou com a cumplicidade das Forças Armadas e com a inércia, tanto da Procuradoria Geral da República, para processar os crimes de responsabilidade do presidente, quanto do Congresso Nacional, especialmente da Câmara de Deputados, que ignorou mais de uma centena de pedidos de impeachment.

A situação somente não está pior porque as eleições presidenciais derrotaram o líder da extrema direita, graças à anulação, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), dos processos crimes contra o então ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva e à sua soltura da iníqua prisão, reavendo seu direito de se candidatar – decisão que foi corroborada, em 2022, pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU, que reconheceu a violação de direitos do ex-presidente pelo Estado brasileiro, por negar-lhe acesso a um processo justo e à presunção de inocência.

Porém, o ex post da eleição nos deixa um inusitado cenário de veículos em chamas interditando estradas e milhares de cidadãos orando por intervenção militar nas portas dos quartéis. A autoridade que mais atuou na proteção do Estado de direito e em resistência a esse movimento golpista foi o ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Com firmeza, ele rebateu os ataques da extrema direita antes, durante e depois das eleições; defendeu as urnas eletrônicas, enfrentou corajosamente a litigância golpista, articulou a atuação das Polícias Militares e da Polícia Rodoviária Federal contra os bloqueios de vias, aplicando multas e congelando ativos de financiadores das badernas.

No dia 12 de dezembro, com a diplomação do presidente eleito, o presidente do TSE não tenderá a atuar de modo tão incisivo quanto atuou durante o último trimestre de 2022. Além dos bloqueios, como lembrou Camila Rocha (Folha de São Paulo, em 3.12.2022), há registros de vandalismo, saques, incêndios, sequestros, a maioria desses casos nos estados de Mato Grosso, Rondônia e Santa Catarina, organizados e financiados por empresários ricos que atentaram contra a democracia, acobertados por generalizada impunidade por parte das autoridades estaduais.
Após a eleição de Luís Inácio Lula da Silva como presidente da República, crimes contra a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito (4.5.2021) se sucederam e continuam. Assim, a sociedade e o Estado terão de definir, portanto, de que forma a militância poderá ser exercida, na defesa da democracia, depois da nova era que começará em 1º de janeiro de 2023.

Após quatro anos de pregação e práticas neofascistas, é urgente refletir: o que fazer para que, gradualmente, os brasileiros que caíram nessa esparrela da “intervenção militar” e acreditaram nas bravatas do bolsonarismo possam tornar-se cidadãos republicanos de novo?

*Paulo Sérgio Pinheiro é professor aposentado de ciência política na USP; ex-ministro dos Direitos Humanos; relator especial da ONU para a Síria e membro da Comissão Arns. Autor, entre outros livros, de Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil, 1922-1935 (Companhia das Letras).

Dívida pública, inimigo oculto, por José Álvaro de Lima Cardoso.

0

Enquanto afirmam que “não há recursos” para reconstruir o país, neoliberais festejam a montanha de dinheiro que recebem do Estado, na forma de juros. Governo Lula precisará enfrentar este fantasma – e o primeiro passo é revelá-lo à sociedade

José Álvaro de Lima Cardoso, Economista, doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, supervisor técnico do escritório regional do DIEESE em Santa Catarina

Outras Palavras – 08/12/2022

O Brasil vem de cinco anos de estagnação do Produto Interno Bruto (PIB), possivelmente o pior desempenho do produto que se tem registro nas contas nacionais, fruto da crise mundial e das políticas recessivas adotadas a partir do golpe de 2016. Isso leva a um círculo vicioso: baixos níveis de crescimento do PIB conduzem a uma queda na arrecadação de impostos com aumento proporcional da dívida pública. Esse fenômeno foi verificado recentemente na Europa: os países que apostaram em maior austeridade e cortes de despesas públicas, como Grécia e Itália, acabaram aumentando seus níveis de dívida pública e pagam o preço disso.

Neste momento assistimos no Brasil a um debate sobre as dificuldades de continuar pagando o auxílio emergencial, mecanismo fundamental para evitar que milhões de compatriotas passem fome. Críticos da proposta alegam que o pagamento de R$ 600 para os pobres, compromete a “saúde fiscal” do país. Mas o país transfere todo ano 5% ou mais do PIB para os credores da dívida pública, comprometendo mais de 50% do orçamento federal executado, sem praticamente ouvirmos um pio desses críticos da proposta de um novo Bolsa Família.

Como item integrante desse método de exploração colonial, o Brasil pratica há anos o maior juro real (taxa de juros descontada da inflação prevista para os próximos 12 meses) do mundo. O fato da taxa básica de juros do Brasil estar muito acima da média mundial (neste momento bem acima do segundo lugar da lista, o México) seguindo uma receita que nunca funcionou – tentar controlar com juros altos uma inflação que não decorre de excesso de demanda – não tem nada de “opção técnica”. Antes de mais nada, é uma decisão política do Banco Central.

O orçamento federal destinou míseros R$ 139,9 bilhões para saúde neste ano e R$ 62,8 bilhões para a educação, que são uma fração dos quase dois trilhões destinados aos juros da dívida em 2021. Mas quase ninguém fala disso, é como se esses pagamentos fossem uma determinação vinda dos céus. Ao longo dos anos vários mecanismos foram montados para garantir aos banqueiros o recebimento fácil dos juros, o que praticamente ninguém questiona. As vozes que denunciam esse assalto sistemático ao país não têm espaço na grande imprensa, que está ao serviço desse sistema.

Os mecanismos de favorecimento dos credores vêm sendo construídos há anos. Ainda em 2000 foi votada a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), uma imposição do Fundo Monetário Internacional (FMI) para conceder empréstimos ao Brasil, que em 1988 tinha quebrado financeiramente mais uma vez, no governo de Fernando Henrique Cardoso. A LRF impõe limites ao poder público com os gastos com pessoal, de forma a garantir os polpudos juros aos banqueiros. O teto de gastos, vindo com a Emenda Constitucional 95, de 2016, uma das primeiras medidas do golpe, garante que o orçamento destinado a todas as despesas do governo com infraestrutura, salários, aposentadorias, saúde, educação, transportes, etc. não ultrapasse um valor determinado, garantindo que a parcela destinada ao pagamento de juros da dívida não seja afetada.

Para garantir o modesto auxílio de R$ 600 no ano que vem, a equipe de transição está propondo na PEC encaminhada ao Congresso, ultrapassar o limite (teto) de gastos previsto no Orçamento. Recentemente Armínio Fraga, Edmar Bacha e Pedro Malan, que foram do governo FHC, todos ligados à fina flor dos especuladores mundiais, lançaram uma carta aberta (em 17.11.22) posicionando-se em relação ao comentário de Lula que disse que “Se eu falar que será preciso ultrapassar o teto de gastos para colocar os programas sociais prometidos vai cair a bolsa, vai aumentar o dólar. Paciência. Porque o dólar não aumenta e a bolsa não cai por conta das pessoas sérias, mas é por conta dos especuladores que vivem especulando todo santo dia” (fala na COP 27).

Na Carta Aberta criticam a fala acima e saem em defesa da “sagrada” responsabilidade fiscal e do teto de gastos. Ou seja, o teor da Carta revela que os banqueiros até aceitam que o futuro governo combata a fome e a pobreza, desde que isso não diminua em um centavo os ganhos que extraem sistematicamente do Brasil, através do sistema de pagamento da dívida pública.

A capacidade de apropriação de riqueza por parte desses banqueiros, de extrair todo ano 5% ou mais do PIB brasileiro, lhes fornece um poder que permite controlar sistematicamente os processos políticos e, assim, muitas vezes os próprios governos que se revezam no poder. Essa reação dos porta-vozes dos credores revela o grau de pressões que o novo governo já está enfrentando, que certamente se aprofundarão nos próximos meses.

A pancadaria da imprensa à decisão de Lula de furar o teto de gastos para atender aos famintos corre solta. Matérias nos jornais especializados, já afirmam que se furar o teto de gastos (estimativas apontam um valor de menos de 200 bilhões anuais) talvez Lula nem consiga terminar o seu governo. Ou seja, a chantagem já está de vento em popa, pela medida mais simples possível, que é atender aos miseráveis, proposta que compõe o núcleo central do programa do futuro governo.

No início do Plano Real, em julho de 1994 (28 anos atrás), a dívida pública (dívida externa e interna) era de cerca de R$ 60 bilhões. Fechou o ano de 2021 em R$ 5.613 trilhões. Somente no ano passado o estoque da dívida brasileira teve um aumento de R$ 604 bilhões. Ou seja, é um sistema infinito de exploração do povo brasileiro, que é quem sustenta essa festa toda. Não existe país no mundo que transfira tanto recurso para os banqueiros quanto o Brasil. O país sofre um processo de desindustrialização há décadas, mas não há recurso para reerguer a indústria porque não sobra dinheiro (dentre outras razões).

No Brasil os especuladores levam todo ano mais da metade do Orçamento Federal. Nos EUA, que têm um orçamento federal de 6 trilhões de dólares (cerca de 8,2 vezes superior ao brasileiro) a dívida pública custa 12% do Orçamento. Isso com uma dívida pública bruta, de 31,2 trilhões de dólares (outubro de 2022), que representou mais de 124,9% do PIB norte-americano no ano passado (23 trilhões de dólares). Claro, temos que considerar que os EUA dispõem de uma condição única no mundo, típica do maior império terreno, que a de contar com uma moeda com “aceitação” mundial (forçada), uma espécie de “padrão dólar” no qual essa moeda é utilizada no mundo inteiro para comércio entre as nações. Este é um privilégio equivalente, na área econômico-financeira, ao de ser a principal potência militar do planeta. A transição para outras moedas, como já está ocorrendo gradativamente, significa um duro golpe para os EUA, que há décadas imprime em casa a moeda que possui utilização mundial (em declínio).

A dívida pública é uma síntese de um sistema de parasitagem que os pobres do país suportam. Manter a maior taxa de juros do planeta e transferir fortunas para os banqueiros todo ano, não tem nada a ver com decisões técnicas. A dívida é um sistema extraordinário de transferência de riqueza para pessoas jurídicas e físicas muito ricas, residentes no país, ou não. Como é um sistema complexo, afeito aos especialistas, a população não entende. Como quem controla tudo é gente ligada aos próprios banqueiros, é um sistema fora do controle das estreitas instâncias democráticas da sociedade.

Os especialistas no tema denunciam sistematicamente que não há transparência nenhuma nos dados da dívida pública. Mas imaginem se um processo de desvio de 5% do PIB nacional, para um grupo de bilionários, em nome de uma dívida ilegítima poderia ter transparência? Se a população entendesse que o país que deixa 33 milhões de brasileiros passar fome, tem ruas esburacadas e gente morrendo na fila do SUS, transfere diariamente bilhões para super-ricos? Isso em nome de uma dívida, inclusive, que no fundo, já foi paga várias vezes? Por isso mesmo, esses processos não poderiam ser transparentes.

A Eletrobras, que o governo Bolsonaro entregou neste ano, foi “doada” por cerca de um sétimo dos juros pagos aos banqueiros no ano passado. A maior empresa de energia da América Latina foi entregue, praticamente em troca de bananas. O que revela que a história de privatizar empresas públicas para pagar a dívida, repetida tantas vezes por Paulo Guedes e outros, é uma conversa fiada que não tem limites.

A situação do Estado brasileiro é radicalmente complexa e, portanto, requer ações determinadas. Os capitalistas não investem em obras de infraestrutura, seja porque não têm dinheiro (no caso dos pequenos e médios), seja porque podem ter muito mais retorno especulando com papéis da dívida pública (no caso dos grandes capitalistas). Por outro lado, a sucção de recursos provocada pela dívida pública, faz com que o Estado fique trabalhando o tempo todo somente para engordar os especuladores. Não sobra dinheiro para mais nada. Quando acontece uma enchente, como há poucos dias no Sul do Brasil, o povo pobre fica debaixo de água, porque o Estado não tem dinheiro para fazer obras fundamentais para um mínimo de bem-estar da população. Isso em um país onde a estrutura de arrecadação é regressiva, ou seja, feita através de impostos indiretos, pagos pelo povo.

Do ponto de vista econômico algumas medidas não poderiam faltar em um processo de reconstrução econômica do Brasil, cuja economia foi quase destruída pelos golpistas: retomada do crescimento; programa vigoroso de combate à fome; programa de investimentos em infraestrutura urbana; recuperação do mercado consumidor interno; revogação do Teto de Gastos; nova política de preços dos derivados do petróleo; amplo programa de recuperação da indústria e inovação; política de exploração mineral do país; política pública e integrada de segurança hídrica para o país; reversão das privatizações na Petrobrás e na Pré–Sal Petróleo S.A. (PPSA); reversão de todas as privatizações ocorridas desde o golpe de 2016; estruturação de uma política de defesa da Amazônia.

A implementação dessas medidas – e tantas outras essenciais – depende de alteração na correlação de forças, e não apenas de competência técnica. Ademais, o encaminhamento das medidas elencadas implica na retomada do papel que foi retirado do Estado brasileiro, principalmente a partir do golpe, de indutor do crescimento e do desenvolvimento nacional. O país precisará ser reconstruído. Lula, em entrevista coletiva no dia 02 de dezembro último, repetiu o que já tinha dito em outras ocasiões: “ganhei as eleições para governar para o povo pobre mais humilde deste país. Esta é a minha missão”. Esta genuína convicção do futuro presidente, para se tornar ação concreta, terá que encarar o problema da dívida pública e os seus beneficiários, que são muito poderosos.

Educação sob Lula: os consensos e as polêmicas, entrevista com Daniel Cara

0

Equipe de transição parece concordar sobre recomposição orçamentária, fim das escolas militarizadas e revisão do “Novo Ensino Médio”. Mas como tratar as escolas privadas – em especial por meio do Fies e Prouni? Aí despontam as próximas disputas

Daniel Cara em entrevista a Thalita Pires, no Brasil de Fato. Outras Mídias – 08/12/2022

O Grupo de Trabalho de Educação da transição é composto por atores diversos: gestores, fundações empresariais, membros de universidades, representantes de trabalhadores e parlamentares. Entre eles, está em disputa o tipo de projeto de educação que o Brasil terá nos próximos quatro anos: investimento em educação 100% pública ou parcerias com a iniciativa privada.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Daniel Cara, integrante do GT, dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e coordenador do curso de licenciaturas da Universidade de São Paulo, afirma que, apesar disso, o grupo está em acordo sobre a revogação de uma série de políticas destrutivas aplicadas pelos governos Bolsonaro e Temer.

Entre elas está o fim das escolas cívico-militares, da alfabetização focada em um aplicativo, da atual política de formação de professores e da Política de Educação Especial, considerada excludente.

Outro ponto, esse ainda em discussão, é a aplicação de mudanças no Novo Ensino Médio, aprovado no governo Temer. “É preciso, no mínimo, reformar a reforma do Ensino Médio. Ela é catastrófica, caótica, foi uma irresponsabilidade promovida pelo Michel Temer junto a vários aliados e fundações e associações empresariais”, diz Cara. “Todos hoje reconhecem que ou a reforma é reformada ou ela tem que ser revogada. Então a sentença está dada, estamos discutindo a dosimetria.”

Cara afirma, ainda, que o próprio presidente Lula pautou suas prioridades. “Na educação básica, ele quer fazer uma recuperação de aprendizagem pós-pandemia e recompor o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae)”, afirma. “Em relação à educação superior, ele exige que o grupo de transição se paute essencialmente sobre a recomposição orçamentária das universidades e institutos federais de educação superior.”

Confira a entrevista na íntegra:

O que existe até agora de diagnóstico em relação à educação no GT? Qual é o resumo do governo Bolsonaro em relação a esse tema?

O governo Bolsonaro, na prática, desligou o Ministério da Educação da tomada. Foi uma das áreas mais atacadas pelo governo, junto com ciência e tecnologia, pelo fato de que, para o governo Bolsonaro, essas áreas têm que servir como uma caixa de ressonância à propaganda bolsonarista.

Com isso, o Ministério da Educação foi completamente debelado. O último fato que ocorreu [na semana passada] foi um bloqueio dos recursos das universidades federais. Ele bloqueou os recursos, em sequência, por conta da pressão dos reitores e da sociedade civil, desfez o bloqueio para seis horas depois refazer o bloqueio. Então é um governo que de fato não se preocupa com a educação, pelo contrário, ataca a educação, porque sabe que tanto a educação quanto as ciências servem como espaços de racionalidade, de construção democrática, construção republicana. É exatamente isso que o governo Bolsonaro não quer que aconteça.

Numa primeira análise, entregue no dia 30 de novembro, apresentamos um relatório com quatro tópicos: alertas a respeito da desconstrução que foi feita da política educacional, com relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU), do Parlamento, do Ministério Público Federal (MPF) e de órgãos de controle externo, pautados pela sociedade civil; sugestão de reorganização da estrutura do Ministério da Educação; recomposição orçamentária e revogaço de medidas tomadas pelo governo que precisam ser extirpadas.

São políticas totalmente equivocadas, como a educação cívico-militar, de uma lógica absurda, que faz uma oposição equivocada entre a disciplina autoritária, que não funciona em termos de ensino-aprendizado, e as ciências pedagógicas que de fato funcionam. Nesse sentido nós já tomamos algumas decisões. A escola cívico-militar é um caso do revogaço.

Desses pontos que vocês já analisaram e entregaram para Lula, quais são os piores diagnósticos?
São muitas coisas, então vou falar aquilo que interessa objetivamente às pessoas. Um ponto é a Política Nacional de Alfabetização. O governo Bolsonaro acreditou que era possível alfabetizar uma criança por um aplicativo em seis meses. Utilizavam um aplicativo que é um dos componentes do processo de alfabetização na Finlândia, o mais irrelevante, diga-se de passagem.

Trouxeram esse aplicativo da Finlândia e fizeram uma propaganda absurda de que o aplicativo pode substituir professoras e professores. Então a política de alfabetização é toda pautada em uma ciência antiquada, num método antiquado, que é o método fônico. Inclusive cientificamente já vem sendo comprovado como um método ineficaz especialmente para línguas complexas e irregulares como a língua portuguesa. Para dar um exemplo bem fácil: no método fônico é muito difícil a criança perceber a diferença entre ‘osso’ e ‘aço’. São palavras com grafias completamente distintas e a separação silábica não é simples.

Outra política que tem que ser revogada é a Política Nacional de Educação Especial, que Bolsonaro transforma em uma política discriminatória, não em uma política inclusiva. A gente também está revendo essa questão.

Há outro debate que não é simples no grupo. É preciso revogar a Política de Formação de Professores proposta pelo Conselho Nacional de Educação na forma da Resolução 02/2019 (Base Nacional Comum Formação). Por que é preciso revogar essa medida? Porque ela sequer foi implementada, de tão ruim que ela é. Quem propôs essa política nunca formou um professor sequer.
Nesse momento sou professor da Universidade de São Paulo, essa é a minha filiação principal em termos profissionais. Sou coordenador do curso de licenciaturas de toda a USP pela Faculdade de Educação. Nesse semestre nós formamos 2.761 professores que vão trabalhar nas redes públicas brasileiras. Já as fundações e associações empresariais e também as pessoas do Conselho Nacional de Educação não podem falar sobre algo que elas desconhecem, que é formação de professores.

Para além disso, há uma preocupação enorme na recomposição orçamentária das universidades e Institutos Federais [IFs] de educação superior. Os IFs são o nosso ponto estratégico para democratizar o acesso ao ensino, são as instituições que de fato vão fazer com que o acesso ao ensino seja nacionalizado, pois conseguem regionalizar.

É claro que Lula e Dilma criaram muitas universidades e as interiorizaram. Mas os IFs têm demonstrado uma capacidade mais eficaz de interiorização, porque é uma estrutura mais dedicada ao ensino. Eles têm também um trabalho efetivo e qualificado de pesquisa e extensão, mas em relação ao ensino são imbatíveis, conseguem chegar a lugares em que as universidades não chegam.

Então a gente precisa recompor esse orçamento. E aí tem uma grande facilidade, porque essa é a obsessão do presidente Lula. Se tem um presidente da República com a compreensão de que o Brasil precisa da educação, ciência e tecnologia para se desenvolver é o Lula. Nesse sentido a gente está tranquilo. O nosso trabalho é muito mais indicar caminhos porque a agenda está estabelecida por quem foi eleito.

Considerando o histórico dos governos Lula e Dilma, que você mencionou, existe a necessidade de alguma mudança de rota daquilo que já foi realizado nas administrações do PT?

Na educação básica, há algumas coisas, como a primazia das avaliações de larga escala na educação. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), índice que é fruto de um exame, o Sistema de avaliação da Educação Básica (Saeb), e outras avaliações de larga escala precisam ser redimensionadas em relação ao seu tamanho dentro da área de educação.

O Brasil, desde 2007, se acostumou a fazer política de educação orientada para a avaliação, sendo que deveria ser o contrário, a avaliação deveria mostrar como foi aplicada a política de educação. Ou seja, quando você transforma a avaliação, que é um instrumento, no fim da política,

o resultado é que você faz tudo, menos educar com qualidade as crianças, adolescentes, jovens adultos e idosos que cursam a educação básica. O Brasil tem uma grande quantidade de adultos e idosos que não completaram a educação básica, cerca de 30 milhões de brasileiros já têm mais de 15 anos e estão em uma situação de analfabetismo funcional.

Outro tema que tem que entrar na agenda é discutir Fies e Prouni. São programas que devem ser tratados como emergenciais, mas precisam ter forte regulação do Governo Federal em termos de qualidade. Especialmente nos governos Temer e Bolsonaro, serviram essencialmente para enriquecer as universidades [privadas]. Já tinha acontecido esse problema com o Lula, mas com Temer e Bolsonaro isso se tornou muito pior, até pela relação que o governo Bolsonaro tem com o setor privado.

A família do Paulo Guedes e o próprio Paulo Guedes investem ou já investiram na área. Hoje outros membros da família dele investem na área, são lideranças da área da educação superior privada. Isso precisa ser revisto. Não porque eu estou aqui querendo dizer que a educação privada não tem que existir, não é disso que eu estou falando. Eu estou dizendo que a educação superior privada precisa ter qualidade. E se ela recebe apoio do poder público, ela precisa ter duas vezes mais qualidade, porque é o dinheiro do contribuinte que financia o Fies e o Prouni. O Prouni é de forma indireta, porque é uma renúncia fiscal, é um dinheiro que deixa de ser arrecadado, e o Fies é um sistema de empréstimo que tem um impacto muito grande no Tesouro Nacional.

O Tesouro Nacional pertence a todas e todos nós. Nós construímos o Tesouro Nacional. Em termos de contribuição, as pessoas mais pobres do Brasil contribuem mais do que as mais ricas, porque mais do bolso delas é retirado para o financiamento das políticas públicas. Então as políticas públicas têm que priorizar as pessoas que mais contribuem para o orçamento público, que são os mais pobres. Por isso é preciso rever a forma como se dá a regulação do Fies e também do Prouni.

A gente tem uma perspectiva de atualização das políticas do governo Lula e Dilma, mas não adianta pensar só no passado, olhar só para o retrovisor, a gente precisa começar a construir o futuro, e é nisso que estou dedicado dentro da área da educação na transição governamental.

Hoje na educação existe disputa pelo recurso público. Muitas vezes se defende que ele vá de fato para as empresas privadas. Isso vem acontecendo em alguns estados, há projetos de lei para que a gestão seja privatizada. Existe essa disputa dentro do grupo de transição?

Tem pessoas que pensam isso, mas não têm coragem de dizer. Só que é importante frisar uma realidade: Lula teve 58 milhões de votos no primeiro turno. Bolsonaro teve isso no segundo turno. Com 900 mil votos a mais, Lula já venceria o Bolsonaro, mas ele teve três milhões a mais.

Aliados que chegaram no segundo turno não podem querer determinar toda a agenda do que vai ser o futuro governo, não em relação só à educação, mas a toda a transição.

Espero que o Lula nomeie Fernando Haddad como ministro da Fazenda, porque é um sinal claro de quem vai comandar o governo, de quem tem a responsabilidade de fazer um processo de gestão com aquilo que foi votado pelo eleitor. O eleitor indicou o Lula no primeiro turno. É importante frisar que o anti-Bolsonaro é o eleitor do segundo turno, não o do primeiro. Então nesse sentido, quem defende a educação privada tem que saber lidar com o tamanho que eles têm, um tamanho muito menor do que quem defende a educação pública de qualidade. É claro que nesse momento não estou querendo criar uma cisão, só estou dizendo que as forças têm que ser dimensionadas, porque esse é nosso compromisso com o eleitor, quem votou no Lula não quer educação privatizada, mas educação pública de qualidade.

Quais são os principais pontos que a equipe de transição já entrou em acordo para as sugestões para o futuro governo Lula?

Nesse momento nós acordamos a revogação da política de escola cívico-militar, revogação da Política Nacional de Alfabetização, revogação da Política de Educação Especial. Nós acordamos que é preciso debater a revogação da formação de professores conforme o Bolsonaro propôs, que é uma desconstrução dos de licenciaturas e de pedagogia. Nós também acordamos que é preciso, no mínimo, reformar a Reforma do Ensino Médio. Essa reforma é catastrófica, caótica, foi uma irresponsabilidade promovida pelo Michel Temer junto a vários aliados e fundações e associações empresariais. Todos hoje reconhecem que ou a reforma é reformada ou ela tem que ser revogada. Então a sentença está dada, estamos discutindo a dosimetria.

Há ainda duas políticas que o presidente Lula agendou em relação à educação básica e uma terceira em relação à educação superior. Ele quer fazer uma recuperação de aprendizagem pós-pandemia e recompor o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Em relação à educação superior, ele exige que o grupo de transição se paute essencialmente sobre a recomposição orçamentária das universidades e institutos federais de educação superior.

O custo do ‘não à educação’ para o desenvolvimento do Brasil, por Guggenberger .

0

Teremos apagão de mão de obra qualificada sem os investimentos necessários para formar bons profissionais

Luís Fernando Guggenberger, Executivo de marketing, inovação e sustentabilidade da Vedacit, participa do Conselho de Governança do Gife – Grupo de Institutos, Fundações e Empresas, do Conselho Consultivo da GRI Brasil e do Conselho Fiscal do ICE

Folha de São Paulo, 08/12/2022

Você já parou para pensar na receita de sucesso de grandes indústrias e startups? Um dos fatores é a junção de conhecimentos técnicos, seja em linguagem de programação e outros ligados ao universo da tecnologia, ou nas diferentes disciplinas das engenharias, assim como é estratégico o estudo em negócios, finanças, recursos humanos, vendas e marketing.

Proponho então uma reflexão necessária sobre o futuro do ambiente de negócios no Brasil com a falta de investimento público na educação.

Cada vez que esse investimento é negligenciado, das universidades públicas às escolas técnicas, empresas são impactadas com a falta de mão de obra qualificado e com a necessidade de desenvolver mais pessoas dentro das organizações.

A criação de startups e novas tecnologias, que demandam estudos especializados, também diminui, em contraponto ao trabalho informal que cresce vertiginosamente.

Com o anúncio recente do governo do bloqueio de R$ 2,4 bilhões do orçamento do MEC (Ministério da Educação) deste ano, os institutos da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica terão uma perda de R$ 300 milhões, somando os cortes anteriores.

Nas universidades federais, a soma anual até o momento é de uma perda de R$ 763 milhões, com relação ao orçamento aprovado para 2022. Esses desinvestimentos terão impacto direto nas futuras gerações, que sofrerão com a falta de qualificação profissional.

Anunciar cortes nas universidades não é uma questão ideológica de “tirar dinheiro dos pesquisadores das áreas humanas”. Florianópolis é um exemplo concreto de como esse investimento faz a diferença.

Conhecida como uma das cidades do “Vale do Silício Brasileiro”, Santa Catarina reúne cerca de 19 mil startups, resultado da visão de futuro de antigos governantes.

Há cerca de 40 anos, professores universitários, especialmente nas áreas de engenharias e afins, fizeram cursos no exterior. O objetivo era fortalecer a vocação industrial do estado, mas os frutos colhidos foram além, com o desenvolvimento tecnológico de toda a região.

Afinal, as competências básicas para criação de uma startup incluem empreendedorismo, visão de negócios e a parte de programação, habilidade técnica que envolverá a solução.

Desta forma, ao diminuir os investimentos nas universidades agora, estamos enfraquecendo a capacidade empreendedora do país nos próximos anos. Desenvolveremos menos competências técnicas nos futuros profissionais e, consequentemente, teremos um apagão de mão de obra qualificada e de habilidades técnicas.

Atualmente, o mercado de trabalho já demonstra esse impacto especialmente na área de digitalização, na qual sobram vagas e faltam profissionais.

Pesquisa realizada pela Agência Alemã de Cooperação Internacional (Giz), em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), mostra especialmente as novas necessidades no setor agrícola, com vagas para operador de drones, engenheiro agrônomo digital, cientista de dados e engenheiro de automação.

Outra pesquisa do Senai indica que nos próximos dois anos o setor de tecnologia contratará mais de 400 mil profissionais, mas atualmente há apenas 106 mil trabalhadores capacitados.

Nas empresas, os investimentos em treinamentos técnicos são, em sua maioria, para colaboradores de nível não gerencial, segundo o estudo “O Panorama do Treinamento no Brasil”, da Associação Brasileira de T&D (ABTD) em parceria com a Integração Escola de Negócios.

A distribuição do investimento em treinamento e desenvolvimento de competências técnicas é de 47% para operação e indústria, 46% para áreas administrativas e 43% para equipe comercial.

As porcentagens só são invertidas, com o aumento no incentivo das competências comportamentais, para a alta liderança, com 52%, e para gerentes e supervisores, com 48%.

Já estamos pagando um preço alto pelo descaso histórico de governos anteriores, que não priorizaram como deveriam a educação, e o buraco fica cada vez mais profundo, com impacto direto na mão de obra qualificada em diversas carreiras não operacionais. Empresas podem até absorver parte desse custo, mas não é o suficiente.

É urgente olharmos e cobrarmos comprometimento de nossos governantes com a educação, especialmente se os projetos e planos de governo propostos durante as campanhas —seja de deputados, senadores, governadores ou do presidente— , serão realmente colocados em prática a partir do próximo ano.

Com profissionais preparados, aliados à inteligência e criatividade do brasileiro, as possibilidades de crescimento do país serão infinitas.

Transição

0

Estamos vivendo momentos de grandes alterações na sociedade, neste cenário, a palavra transição tem grande relevância para a sociedade, um momento de grandes modificações, novos movimentos e novos horizontes, criando espaços de melhoras de um lado e perdas de outro, vivemos momentos de grandes transições sociais, econômicas, culturais, tecnológicas e políticas.

Vivemos momentos de medos e desesperanças convivendo lado a lado com espaços de confianças, solidariedade e esperanças, onde os seres humanos vislumbram melhoras na qualidade da vida, crescimento econômico e incrementos culturais convivendo com desequilíbrios sociais e degradação democrática. Vivemos num mundo marcada por grandes transições, que nos leva a refletir sobre conceitos fundamentais para a convivência social.

Dentre as grandes transições em curso na sociedade, encontramos transições de governos, mudanças políticas, novas construções sociais, novas agendas econômicas, novos modelos produtivos, novos modelos energéticos e o surgimento de pautas que geram perspectivas para uns e pesadelos para outros, com reivindicações legítimas e confrontos abertos, que geram guerras declaradas e desequilíbrios que levam a comunidade a momentos de caos generalizados.

Nestas transições, os agentes econômicos buscam garantir seus ganhos imediatos, a manutenção de seus patrimônios monetários, buscando blindar suas influências políticas e incrementar seus repasses materiais que garantem a perpetuação de seu poder visível e invisível, que perpassa anos, décadas… e, em muitos casos, milênios. Vivemos um momento de grandes transições produtivas, neste momento os grandes bilionários internacionais possuem grandes impérios de tecnologia, controlam dados e conhecimentos e garantem, com isso, o comando das estruturas sociais, dominam setores financeiros, controlam as mídias e influenciam as estruturas do poder político.

As novas formas de poder da sociedade contemporânea diferem enormemente das estruturas de poder convencional, cinquentas anos atrás os grandes detentores do poder econômicos eram os conglomerados siderúrgicos, automobilísticos e varejistas. Na contemporaneidade os donos do poder são os grupos de tecnologia, as chamadas big techs, grandes conglomerados que controlam todos os espaços no mundo digital e definem os pensamentos, criam valores, padrões de comportamento e novas formas de socialização dos seres humanos, vivemos num momento de grandes transições, que geram incertezas, medos e violências crescentes.

Os ventos da transição estão gerando novas formas de convivência social, aproximando os indivíduos no espaço virtual e afastando pessoas dos espaços físicos, gerando novas formas de relações sociais. A tecnologia nos aproxima no mundo virtual, mas ao mesmo tempo, gera distanciamento real, estamos cada vez mais sozinhos, solitários, individualistas, imediatistas, frios e, neste cenário, nos assustamos com os comportamentos do indivíduo na sociedade contemporâneo, que dissemina inverdades, degradação e ressentimentos.

Neste momento, estamos naturalizando a violência, cultuando a ignorância, defendendo a segregação, fomentando a degradação do mercado de trabalho, cultuando o deus mercado mas, neste momento de grandes transições, utilizamos seus lobbies para garantir suas benesses tributárias e suas isenções, falamos da ineficiência dos governos mas não refletem sobre suas ineficiências, sua incompetências e só prosperam degradando os direitos alheios, pouco investem na qualificação de sua mão de obra e criam novas obrigações e sem contrapartidas.

Vivemos numa sociedade marcada por grandes transições e de contradições, o Brasil vive sempre em transições inacabadas, transitando do trabalho escravo para o modelo de assalariamento e, na contemporaneidade, estamos nos organizando para retornar um novo modelo de trabalho escravo. Estamos transitando de uma educação feudal para uma educação fordista e, não percebemos que vivemos no mundo do conhecimento. Sem projeto nacional, sem visão de nação, continuaremos transitando sem norte, sem rumo e perpetuando as misérias morais e a insensibilidade social.

Ary Ramos da Silva Júnior, Bacharel em Ciências Econômicas e Administração, Especialista em Sociologia do Trabalho e Exclusão Social, Mestre, Doutor em Sociologia e professor universitário. Artigo publicado no Jornal Diário da Região, Caderno Economia, 07/12/2022.