A sensibilidade idiota das redes tomou conta do jornalismo profissional
Luiz Felipe Pondé, Escritor e ensaísta, autor de “Notas sobre a Esperança e o Desespero” e “Política no Cotidiano”. É doutor em filosofia pela USP.
Folha de São Paulo, 13/03/2022
Uma pena que a cobertura da guerra da Ucrânia esteja, em grande parte, entregue à sensibilidade de classe média. Os jornalistas mais choram do que pensam.
É verdade, claro, que há uma violência em curso: um país agredido por outro, muito mais forte. Vidas civis destruídas. Mas o que há para além de “Putin, assassino”?
O Ocidente achou que conflitos importantes não mais aconteceriam —só na periferia desgraçada do mundo—, assim como até 2020 também se acreditou —ao menos os incautos— que pandemias tampouco matariam milhões.
Monumentos com as cores da Ucrânia, cantar “Imagine” numa praça em Budapeste —num país que vive sob um ditador que, aliás, é parte da Otan—, tudo isso é a prova de que a sensibilidade idiota das redes tomou conta do jornalismo profissional.
Guerras nunca levaram em conta o sofrimento civil. A sensibilidade barata das redes sociais faz parecer que profissionais de Estado pensam como a classe média, postando crianças e grávidas sofrendo.
Na verdade, eles usam essa sensibilidade de classe média a favor deles quando ela tem valor estratégico. Usam o horror das imagens de sofrimento humano para onerar o inimigo na guerra das narrativas. A Rússia já perdeu a guerra no Instagram.
Um dos argumentos mais comuns utilizados por Putin é que o Ocidente mente sobre seus bons sentimentos morais. Quando a Otan invadiu o Afeganistão ou o Iraque, não se trouxe à tona a destruição causada a população civil daqueles países porque esta era de interesse dos Estados Unidos.
Quando os americanos patrocinaram massacres nas guerras durante a Guerra Fria, tampouco isso importou.
Mesmos as misérias das ditaduras latino-americanas a serviço dos EUA na Guerra Fria não levaram em conta sentimentos morais. A Coca-Cola boicota ditadores africanos?
No caso das investidas da Otan junto aos países que antes eram da esfera do império russo e depois da União Soviética, o argumento dos russos encontra alguma racionalidade geopolítica.
Quando em 2008, em Bucareste, a Otan convidou a Geórgia a fazer parte de seu clube, a Rússia invadiu a Geórgia.
Quando, já na segunda década do século 21, a Otan ensaiou levar a Ucrânia para o seu clube, Putin retomou a Criméia. Ele anunciava sua resposta à Otan já ali, naquele início de 2014.
Países como Hungria, Romênia, Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia, quase todos na fronteira oeste russa, sempre um tanto porosa ao longo de séculos, todos fazem parte da Otan. A argumentação de Putin é que os EUA usaram o desmonte da União Soviética para cercar a Rússia e torná-la um player irrelevante na geopolítica europeia e mundial. Para os russos, isso foi uma demonstração da pouca importância que os EUA atribuíam à possibilidade da Rússia se reerguer da derrocada da URSS.
Nada disso justifica a agressão a Ucrânia do ponto de vista moral. Mas é este mesmo ponto de vista moral bradado pelo Ocidente como seu trunfo que os russos entendem como uma mentira estratégica. Tudo que os americanos querem é manter a Rússia na condição de uma potência enfraquecida, à deriva do poder americano.
Para Putin, é como se os russos pusessem armas e exércitos no México, no Canadá e em Cuba —como aliás fizeram em 1962, na baía do Porcos. Na época, a Otan tinha mísseis na Turquia e considerava isso “normal”. A Turquia, país bem duvidoso do ponto de vista dos “valores ocidentais”, fazia fronteira com a URSS, e esta era a razão dela ter sido alçada ao clube dos notáveis do Atlântico Norte —ainda que ela esteja no Mediterrâneo.
Veremos se o ataque frontal de empresas ocidentais e do sistema financeiro internacional à Rússia conseguirá conter a violência na Ucrânia. Há que ver se a tentativa de cancelamento de uma potência militar —para alguns, detentora do maior arsenal nuclear no mundo— e econômica como a Rússia não causará danos terríveis à economia global e forçará o Ocidente a reduzir seu tom. A conta do boicote a Rússia chegará.
Putin parece disposto a escalar a situação. Ousado como é —para alguns, um louco—, ele aposta que o fraco governo Biden não tem condição de ir tão longe quanto a Rússia nessa guerra de nervos.