Invisível cidadania brasileira

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Uma sociedade desenvolvida se faz com seres humanos dotados de cidadania e compreensão de seu papel social, a construção desta conscientização é algo complexo e demorado, exigindo do Estado e da sociedade civil um compromisso claro com o ser humano, investimentos voltados para o indivíduo, sua melhoria e capacitação constantes, tudo com o intuito de garantir melhorias econômicas e sociais para toda a coletividade.

Vivemos num país paradoxal, de um lado, encontramos indivíduos que vivem num suposto paraíso material, esbanjando recursos escassos e vestindo um papel social que, para os desconhecidos, levam a crer que vivem no céu, comem do bom e do melhor e posam da mais fina flor da sociedade; de outro, encontramos um outro grupo social, vivem na miséria, conhecem todo tipo de infortúnio, são marcados pela mais sangrenta desigualdade social e, constantemente são colocadas como vítimas de uma sociedade indefesa, no meio deste grupo social encontramos uma classe média que perdeu sua relevância social e sua presença se torna cada vez mais desnecessária nesta sociedade, quanta desigualdade, este é o nosso Brasil, e alguns acreditam que podemos chegar logo ao primeiro mundo, será?

A sociedade brasileira, com seus paroxismos, vive momentos interessantes e conflitantes todos os dias, de um lado encontramos uma violência generalizada e uma justiça burocrática e ineficiente, que condenam os seres humanos a viverem marcados pelo medo contínuo e por incertezas generalizadas, afugentando investimentos e assustando todos os seus membros, gerando um caos generalizado por todos os poros da sociedade, nesta impotência social encontramos propostas mirabolantes que prometem resolver o problema rapidamente, mas para isso, muitos defendem medidas ousadas e urgentes, tais como a pena de morte, a prisão perpétua, a redução da maioridade penal. Propostas antigas colocadas em novo formato, que nos parece a panaceia da sociedade contemporânea, a solução definitiva para todos os problemas do país, adotadas a partir da assinatura de um papel, a criação de uma lei, que, será responsável pela resolução de problemas maiores e com características antigas e estruturais, é o velho Brasil se perpetuando, respostas rápidas e equivocadas para problemas maiores, de cunho social e com graves impactos na estrutura econômica e produtiva.

Diante deste retrato social, encontramos grandes desafios para os gestores modernos da sociedade, mudar o perfil social, agregar recursos sociais escassos e transformá-los em prol da coletividade, e mais, para uma sociedade mais democrática e moderna que, mesmo sendo mais democrática não tem noção clara de que direção deve tomar, qual caminho deve seguir e, principalmente, quais recursos devem investir para melhorar as perspectivas para esta coletividade, que, na contemporaneidade, sente claramente as ameaças da concorrência constante e inexorável entre pessoas, empresas e países.

A cidadania inexistente no Brasil se faz presente no cotidiano, não precisamos procurar muito para nos depararmos com esta falta de cidadania e civilidade, ao sairmos de nossas casas encontramos um trânsito caótico e degradado, onde todos os dias, as cidades recebem uma quantidade maior de veículos circulando, carros novos e vias públicas antigas, pouco sinalizadas e muito mal constituídas, nelas os acidentes se repetem com grande intensidade, todos os dias morrem milhares de brasileiros vítimas desta insanidade, motoristas trafegam pelas vias sem respeitar a sinalização, sinalizar as atitudes cotidianas como uma simples seta é algo difícil de encontrar, ultrapassagem em locais proibidos, alta velocidade, motoristas dirigindo embriagados são atitudes corriqueiras em um país onde os indivíduos tem na ponta da língua seus direitos, sabem e comentam a boca pequena, mas não se preocupam com seus deveres, neste ambiente encontramos uma cidadania limitada e canhestra, onde nos interessamos por aquilo que nos da retorno imediato e nos esquecemos das nossas obrigações imediatas, fundamentais para a formação de nossa identificação social e na construção de uma sociedade civilizada e próspera, e mais, capacitada e consciente dos desafios do século XXI.

Nos anos 90, o mundo foi inundado por um pensamento e por uma ideologia brutal, o neoliberalismo, que se interessava apenas pela construção de consumidores, pessoas empregadas e com este voltavam ao mercado como consumidores, estas teorias deixavam de lado o cidadão, sua formação e sua construção social, um projeto maior e mais sólido na formação de uma sociedade soberana e autônoma, responsável pelos seus rumos e consciente de suas necessidades mais prementes e imediatas.

O resultado imediato disso tudo estamos vendo claramente no Brasil e na sociedade mundial, pessoas sedentas por seus direitos e sem nenhuma preocupação com seus deveres, pessoas que querem consumir e pouco consciente dos excessos do consumo desenfreado, que degrada o meio ambiente, destrói o clima e geram graves desajustes para as gerações futuras, uma sociedade que busca nas escolas e nas universidades uma formação rápida e de qualidade, sem compreender que esta formação exige dedicação constante e esforço imediato, formar consumidores é algo muito mais fácil, educar para o emprego e para o mercado é algo simples e imediato, agora, educar para a vida e para a cidadania é muito diferente e demorado, exige dedicação e esforço concentrado dos governos, das famílias e das escolas e universidades, um trabalho hercúleo e intenso, que exige um esforço concentrado de todos os atores sociais, deixar a educação e a capacitação profissional apenas para a escola é uma atitude covarde e fadada ao insucesso, outros agentes sociais devem assumir suas respectivas responsabilidades, cumprir com seus compromissos e deixar de exigir dos outros que cumpram responsabilidades que lhes competem.

As empresas exigem das escolas e das universidades, que estas façam a formação completa do aluno, querem que se transfira aos alunos informações técnicas e científicas, além de estágios e uma bagagem superficial de cidadania, mas se possível com aulas dinâmicas e superficiais, nada de leitura mais profunda e direcionada, e ainda exige-se que cobre mensalidades acessíveis sobre pena de perder os alunos em caso de mensalidades mais caras, a escola deve fazer todo o trabalho de formação de seus supostos colaboradores, esquecem-se de que nenhuma consegue atingir este patamar de formação, as que formam para o mercado e conseguem um resultado positivo em conteúdos, não conseguem cobrar mensalidade mais acessíveis e estão restritas aos poucos privilegiados do sistema que tem condições financeiras de pagar por tal educação.

Em décadas anteriores, as empresas eram o lócus da formação prática dos estudantes, abriam espaços em suas fileiras para todos aqueles jovens interessados em estagiar, aprender e se qualificar, muitos eram absorvidos por estas companhias e lá mesmo começavam sua vida profissional, agora tudo ficou por conta das faculdades e das escolas que, cheia de cobranças imediatas se encontram fragilizadas e em crise estrutural, vitimadas por uma sociedade imediatista e centradas na irresponsabilidade de variados grupos sociais, que acossados pelos excessos do mundo contemporâneo transferem aos outros, responsabilidades que são nitidamente suas, o resultado virá muito brevemente e terá impactos crescentes sobre todos os indivíduos e, principalmente, para a sociedade como um todo.

A forma como vivemos no mundo contemporâneo é a grande responsável pelos desajustes, o poder desenfreado do dinheiro e a luta constante por enriquecimento, levam os indivíduos a buscas desenfreadas, se capacitam para o trabalho com cursos rápidos, aprendem as novas tecnologias que surgem e vivem todos os instantes fazendo atualizações em pós-graduações que, na maioria das vezes são de qualidades duvidosas, mas não conseguem acompanhar o desenvolvimento das tecnologias, não estimulam o desenvolvimento do seu espírito crítico, não se habituam a estudar e a buscar informações salutares para sua formação enquanto seres humanos, seguem perseguindo conhecimentos que estão pululando no mundo, muito mais próximo do que imaginam, nos jornais, nas revistas e nas conversas edificantes que encontramos em alguns programas de televisão, raros, mas existentes em todos os canais, cabe a cada um se dispor a procurar e buscar tais conhecimentos, pois são eles os maiores patrimônios que nós, seres humanos, temos a condição de angariar para nossa vida e para nossos familiares.

Vivemos num país onde a cidadania é de papel, como dizia o jornalista Gilberto Dimenstein, vivemos e nos empanturramos de produtos desnecessários e de utilidade duvidosa, sabemos disso e somos conscientes de nossas limitações intelectuais e acreditamos, ainda, que o Estado vai nos salvar de nossas escolhas infelizes ou que Deus, na sua onipotência, vai se disponibilizar a vir pessoalmente para nos mostrar o caminho do progresso, compactuamos sempre com a mediocridade e sonhamos com um mundo de sonhos, utópico, que encontraremos em algum lugar, mesmo estando longe, mas que, infelizmente não movemos uma palha para auxiliar nesta construção, mas queremos usufruir de seus sabores e prazeres, como a cidadania, cheios de direitos e sem nenhum dever, ou melhor, uma cidadania invisível, o resultado é a nossa condição atual como país, ricos e cheios de perspectivas positivas mas, ao mesmo tempo, muito mal colocado nos principais rankings mundiais de qualidade de vida e desenvolvimento sustentável.

Numa sociedade onde a cidadania é algo transparente e invisível, cabe a cada um de nós, e, principalmente, a todos aqueles que podem ser chamados de cidadão, o compromisso coletivo para com todos seus concidadãos, orientar, falar e agir, sempre, como cidadãos verdadeiros, para que nosso conceito de cidadania saia de nosso umbigo e se espalhe para toda a sociedade, onde cada cidadão se comporte como um agente social de ganhos coletivos, onde todas as classes se unam para defender direitos coletivos, onde a educação, a saúde e a segurança pública sejam vistas como um bem coletivo e que, se houver deterioração, todos seremos imensamente prejudicados, porque aquele jovem que está preso no mundo das drogas é um problema para todos nós, é uma ameaça para toda a sociedade, pois este mesmo indivíduo num momento de insanidade e de desespero pode causar traumas terríveis a inúmeras famílias e grupos sociais, matando, roubando ou destruindo sonhos que poderiam se tornar realidade na vida de cada um de nós, a noção de solidariedade nos levaria a colaborar e a cooperar para a melhora deste indivíduo, agora, a visão de meros consumidores nos conduziria a entoar o discurso da prisão, da morte e do extermínio destes seres que, na verdade já foram imensamente maltratados pela sociedade e, mais uma vez, seriam condenados à inanição e ao mundo dos invisíveis, um mundo onde a cidadania não existe e a solidariedade faz com que os homens não vejam seus semelhantes e outros, mesmo olhando não os conseguem enxergar, perpetuando a máxima do filósofo francês Sartre O inferno são os outros.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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