O sistema de justiça brasileiro é um parque de diversões para o uso do direito como arma de guerra
Sílvio Almeida, Advogado, professor visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, e presidente do Instituto Luiz Gama.
Folha de São Paulo, 18/02/2022
Em meu último artigo para essa Folha, teci alguns breves comentários sobre o que considero contradições e fragilidades do pré-candidato Sergio Moro. Na esteira do que declarou esta semana o prefeito do Rio de Janeiro Eduardo Paes, não é compreensível que um homem que nitidamente nada sabe sobre o que o Brasil possa pleitear o posto de comando mais elevado do país.
Entretanto, no dia de hoje, mantendo as observações que fiz anteriormente, gostaria de fazer ao pré-candidato Moro algo que ele nem sempre observou em sua atuação como magistrado: justiça. No meu caso, “fazer justiça” é reconhecer que o candidato teve sim, um papel muitíssimo importante na política brasileira, mais precisamente, no processo de destruição da política institucional do país.
Foi Sergio Moro que, juntamente com os vingadores da Lava Jato, introduziu uma das grandes inovações tecnológicas da política do nosso tempo, o chamado Lawfare. Mas o que é lawfare?
Uma boa resposta pode ser encontrada no livro “Lawfare: uma introdução”, de autoria dos advogados e professores Cristiano Zanin Martins, Valeska Teixeira Zanin Matos e Rafael Valim. É importante ressaltar que Cristiano e Valeska atuaram na defesa jurídica do ex-presidente Lula, o que faz com que os aspectos teóricos revelados pelo livro sejam baseados em uma experiência direta com o fenômeno que descrevem.
No texto aprende-se que o termo lawfare é um neologismo que resulta da junção dos termos law (direito) e warfare (guerra ou estado de guerra). Isso indica que a palavra se refere à utilização do direito ou, melhor, das instituições e das técnicas jurídicas, como armas de guerra.
Como definem os autores lawfare é “o uso estratégico do direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar um inimigo” (p. 26).
Destaco aqui o uso de “inimigo” e não “adversário” ou “oponente”. Inimigo porque o lawfare pressupõe um ambiente de guerra, em que o diálogo, a conciliação e a diplomacia são impossíveis. A oposição, portanto, não pode ser institucionalizada; há que ser extirpada, retirada completamente do jogo. O inimigo deve ser apresentado como uma ameaça vital contra a qual todos os meios podem ser empregados, sejam legais ou ilegais.
Como explicam os autores o lawfare é resultado de reflexões sobre diferentes estratégias e táticas possíveis em uma guerra. Do ponto de vista estratégico o lawfare requer a observação das dimensões da geografia (levar o conflito judicial para a jurisdição onde se tenha maior chance de vitória), do armamento (utilização e criação de normas que facilitem a perseguição do inimigo e o uso de medidas excepcionais contra ele) e da externalidade (o uso dos meios de comunicação para coletar, transportar ou deturpar informações produzidas fora do sistema processual).
Já dentre as inúmeras táticas de lawfare que se ligam às dimensões estratégicas, podemos destacar a violação de competência, a proposição de ações em diferentes localidades para confundir ou estressar o litigante, o uso abusivo de prisões preventivas, o vazamento seletivo de informações para contaminar o ambiente social, o excesso de acusações (e.g. o famoso “power point”) e a intimidação de críticos —especialmente jornalistas— por meio de ações judiciais.
Se a Sergio Moro e à força-tarefa da Lava Jato cabem o mérito de terem servido como suporte material para o fantasma do lawfare que encarnou no Brasil, é preciso considerar que a introdução dessa tecnologia de guerra só foi possível por que havia um ambiente propício.
Antes de colonizar as grandes estruturas econômicas e políticas nacionais, o uso do direito para extermínio e produção da exceção já estava disseminado no sistema de justiça brasileiro, como muito bem sabem os pobres e, especialmente, os negros e os indígenas.
A desigualdade social, o autoritarismo e o racismo que nos caracterizam historicamente foram centrais para que a prática do lawfare encontrasse tanta acolhida no Brasil.
Nos próximos anos o Brasil terá que repensar seu sistema a fim de impedir e responsabilizar os assediadores judiciais e aqueles que, diante da função que ocupam nas instituições jurídicas, participam ou são coniventes com a devastação do país. Lawfare não é apenas a destruição do direito. É a destruição da política.