Poder e autoridade judicial são fenômenos semelhantes
Oscar Vilhena Vieira, Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de “Constituição e sua Reserva de Justiça” (Martins Fontes, 2023).
Folha de São Paulo, 19/04/2025
Certa vez fui despachar com um jovem magistrado, que me interrompeu no meio de uma frase: “Já entendi, o senhor está dizendo que eu errei”. Percebendo a minha perplexidade, voltou-me sua folha de anotações, onde estava escrito, em letras garrafais: “Errei!!! Corrigir”, numa clara demonstração de que sua autoridade não estava em jogo.
Poder e autoridade judicial são fenômenos semelhantes. Ambos se referem a capacidade de um juiz ou tribunal de impor conduta a outro agente. O respeito à autoridade judicial, no entanto, está intrinsecamente associado à imparcialidade, objetividade e rigor com que um juiz ou tribunal aplicam a lei. Já a submissão ao poder judicial decorre, sobretudo, do medo de sofrer alguma forma de coerção.
Os atritos entre a Justiça do Trabalho e o Suprema Tribunal Federal têm origem na forma equivocada como o Supremo vem aplicando a legislação trabalhista, assim como as normas constitucionais relativas ao direito do trabalho, nos últimos anos.
Sob o pretexto de que a Justiça do Trabalho estaria confrontando a jurisprudência do Supremo, diversos de seus ministros têm cassado decisões proferidas por juízes e tribunais do trabalho que, no exercício de suas competências constitucionais, detectaram a existência de fraude na contratação de trabalhadores, por meio de pessoas jurídicas.
A pejotização é um neologismo cunhado para designar um tipo de fraude contratual, voltada a suprimir o acesso do trabalhador aos seus direitos previstos na Constituição e na legislação trabalhista, além de promover a evasão fiscal e previdenciária.
Não importa se por preconceitos contra os trabalhadores CLT, viés ideológico, ou por simples desconhecimento da legislação trabalhista, inúmeras decisões do Supremo vêm incentivando a substituição de contratos de trabalho por contratos civis ou comerciais com pessoas jurídicas (MPE e MEI), compostas na grande maioria dos casos apenas pelos seus sócios proprietários. Esses “empreendedores”, no entanto, continuam mantendo relação de trabalho marcada pela pessoalidade e subordinação.
Sob a justificativa de valorizar a livre iniciativa e formas mais flexíveis de relações de trabalho, a postura do Supremo tem permitido que um número cada vez maior de empregadores deixe de recolher devidamente encargos sociais, como INSS, FGTS ou PIS, ampliando a crise da previdência e sobrecarregando os setores que contratam de acordo com a CLT e cumprem com as suas obrigações patronais.
Paralelamente, esse esquema também favorece a evasão do imposto de renda, por parte de trabalhadores contratados através de pessoas jurídicas, contribuindo para ampliar ainda mais a já perversa regressividade de nosso sistema tributário. Estima-se uma redução de cerca de 88% no valor de imposto de renda a ser recolhido com esse esquema. Desnecessário lembrar que, no país dos privilégios, essa redução de imposto de renda favorecerá, sobretudo, os trabalhadores mais ricos.
A postura do Supremo, por fim, tem contribuído para a precarização das relações de trabalho, impedindo o acesso do trabalhador a direitos básicos estabelecidos pela Constituição, como descanso semanal remunerado, limitação da jornada de trabalho ou décimo terceiro salário, além de não ser discriminado em face de sua raça ou gênero.
Torço para que o Supremo não use o seu poder para ganhar o braço de ferro com a Justiça do Trabalho. Ao julgar a tese de repercussão geral 1389, o tribunal terá a oportunidade de corrigir a confusão por ele criada e, como fez o jovem magistrado, restabelecer sua autoridade.