Livro premiado conta como China comunista fez transição à economia de mercado

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Isabella Weber evita velho erro de pensar o Estado chinês como monolito e explicita a luta política da burocracia

Isabela Nogueira, Professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Folha de São Paulo, 29/07/2023

Os contrastes são gritantes. De um lado, a transição da União Soviética para a Rússia foi guiada pelo receituário da chamada terapia de choque —rápida desregulamentação de preços, liberalização de capitais e privatização em massa—, levando a uma hecatombe econômica de curto prazo e a uma desindustrialização continuada no longo prazo.

De outro, a China comunista fez sua transição para uma economia de mercado de maneira controlada e gradual, com o Estado se mantendo firme nos setores estratégicos da economia. Os resultados, enfim, ninguém precisa dizer o que a China representa hoje para a economia mundial.

Esse é o pano de fundo da pergunta que a economista alemã Isabella Weber, da Universidade de Massachusetts em Amherst, faz em “Como a China Escapou da Terapia de Choque”, uma obra premiada que acaba de ser lançada em português pela Boitempo.

Engana-se quem pensa que este é um livro apenas sobre os anos 1980. Trata-se de uma obra sobre as bases intelectuais em torno da formulação de políticas econômicas na China. E com desdobramentos que tornaram Weber uma das economistas mais importantes no debate atual sobre inflação no mundo.

Ao contrário do mito de que a China seria um Estado monolítico, um ente racional e guiado pelo Partido Comunista de maneira unitária, Weber destrincha os debates ferozes entre formuladores de políticas públicas sobre como conduzir a transição chinesa rumo a uma economia de mercado. É uma rigorosa pesquisa empírica, baseada em 51 entrevistas com fontes chinesas (e algumas internacionais) e fontes primárias não publicadas.

Weber mostra como o pensamento neoliberal penetrou na China ao longo dos anos 1980 e, em dois momentos, quase venceu a luta política dentro do Partido Comunista por reformas tipo “big bang”.

Essa visão defendia que a liberalização de preços deveria ser rápida, causando uma dor de curto prazo e evitando uma dor de longo prazo, e teria que ser acompanhada de forte ajuste fiscal e aperto monetário para evitar uma espiral inflacionária. Compunham esse grupo os economistas de inspiração neoclássica, muitos baseados nas teorias de “rent-seeking”, que argumentavam que o sistema de controle de preços em vigor seria uma distorção que deveria ser abolida rapidamente.

Eles se baseavam no sucesso internacional de Milton Friedman e nos modelos matemáticos em busca de preços de equilíbrio.

O próprio Deng Xiaoping, principal líder no período, teria se transformado em um defensor da terapia de choque durante uma curta fase em 1988. Isso levou a uma disparada inflacionária e as políticas de liberalização foram rapidamente revertidas, mas o embrião para a revolta social que eclodiu em 1989 estava implantado.

Do outro lado da disputa política estava um grupo de burocratas que defendia o que a autora chama de “gradualismo experimental”. Em vez de um modelo teoricamente derivado, o novo sistema deveria ser induzido por meio da experimentação e da pesquisa empírica.

Essa é a essência do pragmatismo chinês: no caso da reforma, só poderiam ser liberalizadas as partes da economia que não fossem essenciais para o controle de preços. O objetivo seria ampliar os mercados gradualmente, pelas margens, sem abrir mão do controle pelo Estado de tudo que fosse considerado essencial.

Em resumo, o que esse grupo defendia era que o excesso de demanda agregada não deveria ser resolvido por meio da sua supressão (austeridade fiscal e aperto monetário), mas por meio de um aumento expressivo da oferta. A escassez deveria ser gerida em nível setorial, mantendo a gestão estatal em energia e commodities essenciais. E o foco seria industrializar rapidamente o país.

Qual a base intelectual desse grupo? A resposta, segundo Weber, está na história e no método.
A autora mostra como os debates sobre temas básicos da economia política são parte da civilização chinesa há 2.000 anos. Ela revê textos antigos como o “Guanzi” e argumenta que a responsabilidade do Estado por disciplinar mercados e estabilizar os preços dos grãos para evitar convulsão social é uma preocupação constante dos tempos imperais.

Do ponto de vista do método, em todos esses textos ela encontra a necessidade de estudar relações econômicas de maneira concreta e adaptar as políticas públicas de maneira experimental.

O pragmatismo seria, enfim, congruente com uma longa linha de pensamento tradicional.

A autora ressalta que não está buscando uma explicação sinocêntrica baseada exclusivamente na experiência civilizacional. Burocratas dos anos 1980 também se debruçaram sobre vários outros casos, inclusive Brasil e América Latina.

Lições essenciais teriam vindo dos Estados Unidos e das experiências de estabilização de preços em países ocidentais no imediato pós-Segunda Guerra. E da própria experiência de sucesso do Partido Comunista no controle de preços assim que tomaram o poder, em 1949.

Weber entrega uma narrativa institucionalista sobre o sucesso do modelo econômico chinês que não incorre no velho erro de pensar o Estado enquanto um monolito.

Ela explicita a luta política da burocracia, reconstruindo o papel central de figuras como Zhao Ziyang, ex-secretário geral do Partido que morreu em prisão domiciliar após tentativa de evitar o Massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989. Por conta da censura à história de Zhao, o livro está, ironicamente, tendo dificuldades para ser publicado na China continental.

Daí deriva o principal limite da obra de Weber. O Estado chinês não chega a ser propriamente caracterizado e é retratado como insulado das forças sociais, como no velho institucionalismo.

As relações sociais imbricadas com o poder político surgem como sombras difusas na narrativa.
Weber remete a um Estado sem forma social, com uma burocracia que aparece de maneira independente das forças produtivas. Tudo em uma sociedade que está transformando suas relações de produção e de propriedade e criando novos capitalistas na velocidade da luz.

COMO A CHINA ESCAPOU DA TERAPIA DE CHOQUE
Preço R$ 97 (472 págs.) Autoria Isabella M. Weber Editora Boitempo Tradução Diogo Faia Fagundes

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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