Jornais defenderam deposição de João Goulart, presidente democraticamente eleito
Oscar Pilagallo, Jornalista, é autor de “História da Imprensa Paulista” (Três Estrelas) e “O Girassol que nos Tinge: uma História das Diretas Já, o Maior Movimento Popular do Brasil” (Fósforo)
Folha de São Paulo, 02/04/2024
A imprensa brasileira, esta Folha inclusive, desempenhou papel relevante na conspiração contra o presidente João Goulart e, em 31 de março de 1964, apoiou com entusiasmo a deflagração do golpe militar, antes mesmo que ele fosse consumado.
Com exceção do “Última Hora” –que nascera em 1951 para apoiar o projeto trabalhista de Getúlio Vargas e, depois, de seus herdeiros políticos–, os jornais fustigaram com intensidade crescente um governo democraticamente eleito, preparando a opinião pública, durante meses, para a intervenção que rasgava a Constituição do país.
No Rio de Janeiro, os principais concorrentes locais deixaram de lado as disputas comerciais para se unir num projeto comum.
Em fins de outubro de 1963, cinco meses antes do golpe, entrou no ar a Rede da Democracia, um programa em que as rádios Jornal do Brasil, Globo e Tupi, dos Diários Associados, juntaram esforços para combater o que identificavam como ameaça comunista. O acordo foi costurado pelos próprios donos dos veículos: Nascimento Brito, Roberto Marinho e um representante de Assis Chateaubriand respectivamente.
A repercussão ultrapassava largamente o alcance das frequências das três rádios fluminenses. O programa era retransmitido em centenas de emissoras espalhadas pelo país e, mais tarde, transcrito nos grandes jornais.
Embora tivessem o mesmo objetivo –derrubar Jango–, os veículos do Rio se diferenciavam pelo alvo da artilharia. Marinho, tendo em vista uma demanda por um canal de TV, evitava a crítica direta ao presidente, com quem mantinha aberto um canal de comunicação. O Globo focava o governo, não o governante, ao contrário dos outros, que personalizavam os ataques na figura de Goulart.
Não por acaso, fuzileiros navais obedientes a um militar fiel a Leonel Brizola –cunhado e apoiador de Jango– invadiram as sedes do JB, Globo e um jornal dos Diários Associados, além da Tribuna da Imprensa, nas primeiras horas do golpe.
Os editoriais resumem a participação dos jornais no golpe. O tradicional Correio da Manhã entrou para a história com os títulos “Basta!” e “Fora!”, publicados em 31 de março e 1º de abril. O prestigioso JB celebrou “a vitória da democracia” contra “a implantação de um regime comunista”.
E o Globo, um vespertino com penetração limitada, festejou na capa no dia 2: “Vive a nação dias gloriosos”, escreveu, atribuindo o desfecho da ação militar à “Providência Divina”.
O início do golpe, no entanto, foi uma surpresa para a imprensa, assim como para os principais articuladores da ruptura na caserna, como o general Castello Branco. A ação foi precipitada por Olympio Mourão Filho, general que comandava as tropas de Juiz de Fora e não estava entre os protagonistas dos planos para derrubar Jango. Ele deu início às mobilizações na madrugada de 31 de março.
Em São Paulo, o sinal mais nítido de que a imprensa passou a agir conjuntamente para afastar Jango foi a aproximação, às vésperas do golpe, dos arqui-inimigos Assis Chateaubriand e Júlio de Mesquita Filho, dono do jornal O Estado de S. Paulo.
A diferença na atitude dos principais veículos limitou-se ao nível de engajamento de seus proprietários. Se quase todos franquearam as páginas dos jornais aos propósitos golpistas, houve quem fosse além, abrindo as portas de seus gabinetes aos conspiradores.
Mesquita foi além do apoio editorial do Estadão, então o principal jornal de São Paulo. Em janeiro de 1962, mais de dois anos antes do golpe, recebeu na sede do matutino um general –Orlando Geisel, irmão do futuro presidente Ernesto Geisel – que o sondou sobre a ideia de instaurar uma ditadura. A resposta é uma carta intitulada “Roteiro da revolução”, que exorta os militares a intervir.
Mais tarde, sairia da sala de Mesquita um documento em tudo semelhante a um ato institucional, prevendo até a suspensão temporária de garantias constitucionais.
Quanto à Folha, teve influência relativamente menor –do tamanho de sua importância na época. A empresa que edita o jornal havia sido comprada em 1962 por Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho, e os empresários trabalhavam para saná-la financeiramente antes de investir no setor editorial.
No discurso, porém a Folha não se distinguia da concorrência. Contribuía para a difusão de teses antipopulistas e conclamava as elites à ação coordenada, com um tom cada vez mais alto. O jornal trabalhava com a hipótese de que Jango pretendia dar um golpe ou realizar uma manobra continuísta.
A deposição do presidente contou até com a criação de um jornal popular para fazer contraponto ao Última Hora. Foi o Notícias Populares, que nasceu em outubro de 1963 financiado por Herbert Levy, um político da UDN (União Democrática Nacional), o principal partido de oposição a Goulart. Anos depois, já sem essa função, o NP seria incorporado ao Grupo Folha.
Ao longo das duas décadas de ditadura militar, os veículos sofreram censura, passaram a criticar o governo e, sobretudo após a redemocratização, se penitenciaram por terem apoiado o golpe.