Captura política das nossas instituições nunca foi tão grave
Josué Medeiros, É cientista politico, professor da UFRJ e da UFRRJ e integrante do Vigência, grupo de estudos e ação política com foco na captura dos foros democráticos por atores privados
Daniel Angelim, É doutorando em economia política mundial pela UFABC e integrante do Vigência
Folha de São Paulo – 03/05/2022
O aumento das desigualdades e a regressão democrática no Brasil saltam aos olhos de qualquer pessoa que caminhe pelas ruas de qualquer cidade grande do país e seja minimamente sensível e solidário às dores alheias. A crise econômica e social se manifesta, por exemplo, no crescente número de pessoas em situação de rua. A violência interpessoal explode tanto em situações cotidianas quanto na ação de agentes estatais. O funcionalismo público vive em um barril de pólvora. O retrocesso nos direitos é vertiginoso. Casos de racismo, machismo e homofobia se multiplicam. A natureza e os povos indígenas são violentados como se estivéssemos em tempos coloniais. O ar está cada vez mais irrespirável.
As soluções para esse quadro são variadas e complexas, como mostram os diversos textos já publicados neste espaço. Há, porém, uma questão que tem o potencial de amarrar tais explicações e propostas em uma grande e coletiva mobilização pela reconstrução nacional: a democracia. Mais democracia.
As eleições de 2022 serão um primeiro e fundamental momento dessa mobilização. As pesquisas mostram uma polarização crescente, e a possibilidade de resolver o pleito presidencial no primeiro turno é real. Eleger um novo mandatário comprometido com a democracia e com a justiça social é crucial para iniciarmos a redemocratização do Brasil. É preciso, porém, dar atenção especial à disputa parlamentar e aos Executivos estaduais. Eleger lideranças populares, mulheres e negros para o Congresso e para as assembleias legislativas estaduais será decisivo para enraizar a reconstrução da nossa democracia. Conquistar o governo de alguns Estados-chave vai no mesmo sentido. Como, por exemplo, ter democracia no Brasil sem repactuar o Rio de Janeiro, que, além de berço do bolsonarismo e palco do brutal assassinato de Marielle Franco, vê o controle territorial por milícias se expandir cada vez mais?
É imperativo, entretanto, que a eleição seja o ponto de partida, e não o de chegada. Ter mais democracia equivale a reduzir a desigualdade entre governantes e governados —ou seja, ampliar a igualdade política.
É esse o espírito da nossa Constituição de 1988, que precisamos recuperar, além de revogar as reformas neoliberais do golpista Temer e do genocida Bolsonaro. A Carta Magna brasileira afirma a igualdade política em múltiplas dimensões, a começar pela eleitoral, com a expansão definitiva do sufrágio no Brasil, permitindo, por exemplo, que os analfabetos passassem a ter o direito de votar. Naquele contexto de saída de duas décadas de autoritarismo militar, nossa sociedade, pulsante, exigia mais nas ruas, e os legisladores consagraram a igualdade política para além do voto: a cidadania ganhou o direito de se organizar e se manifestar, referendar ou não decisões, ocupar espaços no Estado para fiscalizar os governos e decidir sobre políticas públicas em conselhos e conferências.
Mas a dinâmica política atual vai no sentido oposto. Testemunhamos o mergulho das instituições no abismo da captura do Estado pelos poderes privados. Os exemplos são incontáveis.
No Ministério da Saúde, as necessárias e esperadas vacinas contra a Covid foram objeto de uma abjeta negociação de bastidores. Já no Ministério da Educação, dois líderes religiosos montaram um balcão de negócios sem qualquer escrúpulo; na área ambiental, madeireiros e garimpeiros em terras indígenas são autorizados por agentes estatais a pilhar florestas e rios.
No Congresso, as emendas parlamentares via orçamento secreto inviabilizam qualquer política pública democrática e recriam o coronelismo no século 21. Não é por acaso que um dos símbolos desse perverso mecanismo de transferência de renda para políticos governistas seja a compra de tratores superfaturados.
O Judiciário, de Norte a Sul, mantém pobres e pretos presos enquanto pressiona por aumento de seus salários e privilégios.
As portas giratórias estão escancaradas, a começar pelo ministro da fazenda, Paulo Guedes, cuja grande qualidade curricular é ser um especulador financeiro. E nem mesmo na ditadura militar tivemos tantos militares ocupando cargos de confiança no Governo Federal.
Em resumo, desde que os civis voltaram ao poder, nunca vivemos um quadro de tamanha distância entre governantes e governados.
Pior, as respostas das elites políticas, jurídicas e econômicas vão sempre no sentido de institucionalizar essa desigualdade política. O STF (Supremo Tribunal Federal) pactua com o orçamento secreto. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), considera a regulamentação do lobby uma agenda prioritária, sem nem mesmo se preocupar em justificar essa medida com base em legislações internacionais que, ao menos, se baseiam na necessidade de formalizar a exposição pública (transparência) e o monitoramento (accountability) da atividade, o que ajuda a minimizar o desequilíbrio na relação com o poder público.
Essa captura política reflete e reforça a distância entre governantes e governados, agravando o esgarçamento do tecido social, com violência e miséria —a experiência histórica recente mostra que é impossível diminuir as desigualdades econômicas e sociais sem diminuir a desigualdade política.
Uma reconstrução democrática do Brasil é possível. Nossa população continua dando mostras de vitalidade nas soluções que emergem da prática e da sabedoria popular e dos laços de solidariedade que ativismos dos mais variados reforçaram durante a pandemia. Mas, para que essa reconstrução se concretize, a frente ampla e democrática eleitoral precisa se constituir em um movimento por um novo pacto coletivo, mobilizador das nossas melhores energias na direção de uma institucionalidade mais aberta e transparente. É urgente que todos os setores democráticos se comprometam com uma ordem política menos desigual para que sejamos capazes de diminuir a distância entre governantes e governados.