Depois de dois anos de isolamento, que o ano novo chegue com movimentos, mas sem amnésia
Lúcia Guimarães É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.
Folha de São Paulo – 30/12/2021
Quem já não sonhou que está correndo, fugindo de uma ameaça, mas não consegue sair do lugar? É um sonho comum e é compreensível, antes de qualquer interpretação freudiana. O estágio de sono que nos permite sonhar é acompanhado de atonia, a paralisia de braços e pernas, daí a sensação de imobilidade que inunda o sonho.
Já o pesadelo que vivo acordada há dois anos é fruto de imobilidade imposta, nos Estados Unidos e no Brasil.
A disparada de casos de Covid-19 com a variante ômicron foi provocada pela desigualdade vacinal que permitiu ao vírus desenvolver novas cepas em populações não imunizadas nos países mais pobres —uma tragédia anunciada por epidemiologistas. Aqui, o público que escolheu recusar a vacina continua incapaz de aprender com as cenas de horror nas UTIs, morrendo duas vezes mais do que as pessoas triplamente vacinadas.
Dois anos de ataques à democracia, aumento de violência racial e religiosa nos EUA nada ensinaram aos brasileiros que votaram num Trump mais depravado e pavimentaram o terreno para a morte de 620 mil pessoas. E não importa os números deixarem claro que a grande maioria quer ver o monstro do Planalto pelas costas: 47% do empresariado brasileiro prefere mais morte, fome, desemprego, genocídio indígena e massacres em favelas —qualquer coisa para não eleger seu espantalho de estimação.
O comentariado pusilânime da imprensa política nada aprendeu com seu papel, em 2018, de conferir legitimidade à candidatura de um jagunço do baixo clero que planejou plantar bombas em quartéis antes de ser defenestrado com um tapinha na mão pelo Exército. Não se envergonha de ter manufaturado um ministro competente na figura de um fantasista medíocre, pinçado do merecido desdém que despertava entre pares economistas.
Os mesmos absolutistas que selecionam o reizinho da vez fazem marketing eleitoral escancarado para um santarrão de pau oco que não sai de um dígito nas pesquisas, nunca geriu sequer uma barraca na feira livre e abusou do Judiciário para interferir na eleição de 2018.
Não aprendem nada.
Viver nesse Brasil é correr o tempo todo sem sair do lugar. Somos reféns da soberba de uma elite niilista que detesta o país e promove uma permanente queima do estoque —das florestas, dos corpos jovens perfurados por balas, dos cérebros que fugiram para o exterior.
Depois de dois anos de isolamento e sucessivos planos cancelados de reencontrar a família, minha única expectativa para 2022 é sair do lugar. Para isso é preciso remover os obstáculos de toda ordem e, acima de tudo, derrotar nas urnas o autor de crimes contra a humanidade.
Mas é importante também clamar por Justiça para os cúmplices nesta matança intencional de brasileiros (consultem a lista do Renan Calheiros); resistir aos sociopatas que acham que nos infectar numa pandemia é exercer liberdade individual; e não compactuar com a degradação da minha profissão, cujo dever é defender a democracia, não inventar candidatos sob medida para manter o Brasil atolado no que pior se tem produzido na vida pública.
Sair do lugar não é seguir em frente com amnésia. Nenhum dos sonsos nos três Poderes, os que acharam normal o avanço do Partido Militar sobre a nossa democracia, os falsos arrependidos que voltam a pedir para comprar fiado no nosso balcão, nenhum deles merece perdão da dívida que contraiu com o Brasil.