Estamos exaustos, mas precisamos ser resilientes para enfrentar os próximos meses
Ilona Szabó de Carvalho, Empreendedora cívica, mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia). É autora de “Segurança Pública para Virar o Jogo”.
Folha de São Paulo, 23/03/2022
Neste ano de 2022 estamos diante de uma batalha civilizacional. Já se foram mais de três anos de um desgoverno que dispensa apresentações. Finalmente voltaremos às urnas. Há muita coisa em jogo, a começar por nossa jovem democracia. Estamos exaustos, mas precisamos ser resilientes para enfrentar os próximos meses.
Desde 2019, o Instituto Igarapé monitora veículos da imprensa e identifica os ataques ao espaço cívico, classificando os episódios de abuso de poder, violação de direitos, intimidação e assédio, dentre outras táticas usadas por líderes populistas-autoritários para minar a democracia. As reações das instituições do Estado e da sociedade civil também são registradas.
E para melhor nos preparar para o que ainda está por vir, organizamos uma retrospectiva da situação do espaço cívico no ano de 2021. Começo com uma boa notícia: mesmo diante de ofensivas antidemocráticas diárias estamos resistindo. Se por um lado mapeamos 1.551 ameaças ao espaço cívico, por outro, foram 1.349 respostas institucionais e 750 ações de resistência da sociedade. Portanto, há esperança.
Porém, ao longo de 2021, as ameaças se diversificaram e se tornaram mais graves, o que deixou ainda mais claro o objetivo de seus perpetradores: centralizar o poder, alienar a população e silenciar a oposição. O avanço no aparelhamento de órgãos-chave contribuiu para o enfraquecimento de áreas vitais como educação, meio ambiente, cultura, saúde e direitos humanos. Ao todo, foram 240 casos de abuso de poder identificados.
Por sua vez, o assédio institucional e a perseguição de servidores não alinhados cegamente ao governo agravaram o desmonte de políticas públicas. A aplicação abusiva da Lei de Segurança Nacional expôs o uso ilegítimo do aparato policial e judicial para silenciar vozes dissidentes por meio de prisões, intimações e investigações arbitrárias.
Os 325 casos contabilizados de intimidação e assédio restringiram a liberdade de expressão de jornalistas, ativistas, pesquisadores, dentre outros. Em certos casos, as agressões verbais escalaram para a violência física.
Para driblar o sistema de freios e contrapesos republicano, o governo usou e abusou de atos infralegais: consolidou-se a era do “governar por decretos”. Foram 308 decretos em 2021, muitos deles invadindo a competência do Congresso para legislar, como é o caso dos decretos sobre armas de fogo —que enfraquecem o pacto democrático em que cidadãos confiam ao Estado a sua segurança e o monopólio responsável do uso da força.
Além disso, foram identificados 142 casos de jogo duro constitucional —uso indevido de prerrogativas institucionais, forçando os limites da legalidade para obter ganhos pessoais ou para grupos políticos. Essas táticas vieram acompanhadas da escalada do discurso autoritário. O episódio do desfile de blindados, por mais caricato que tenha sido, e as manifestações de 7 de setembro foram, possivelmente, prenúncios de atos antidemocráticos que ainda estão por vir.
Nesse contexto, também ganharam palanque campanhas de descredibilização da ciência e do sistema eleitoral. Por um lado, a retórica autoritária e enganosa foi ecoada por uma onda de fake news e desinformação —412 casos—, que, somando-se à gestão irresponsável da pandemia, impactou sobremaneira a população indígena, quilombola, negra e de baixa renda —principais alvos dos 145 casos de violação de direitos civis e políticos.
E, por outro, as alegações sem provas de fraude nas eleições contribuíram para minar a confiança da população nas instituições e preparar o terreno para os ataques planejados para, no mínimo, gerar dúvida e confusão nas eleições.
Em outubro temos a chance de corrigir o rumo e voltar a trilhar o caminho da consolidação democrática. É mais que chegada a hora de virar esse jogo.