Morre Zygmunt Bauman. Leia entrevista inédita em que ele defende a redenção pelo diálogo

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O prolífico sociólogo polonês, célebre por teorizar sobre a “modernidade líquida”, faleceu nesta segunda-feira (9), aos 91 anos

GUILHERME EVELIN E RUAN DE SOUSA GABRIEL – 09/01/2017

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman morreu nesta segunda-feira (9), em Leeds, na Inglaterra, aos 91 anos. A morte de Bauman foi noticiada por jornais poloneses e confirmada por Anna Zejdler-Janiszewska, professora de filosofia da Universidade de Varsóvia e amiga pessoal do sociólogo. Bauman foi um dos pensadores mais celebrados das últimas décadas e escritor prolífico e popular de livros como Modernidade líquidaCapitalismo parasitário e Modernidade e holocausto, publicados no Brasil pela Zahar. Bauman analisou a “modernidade líquida”, característica do mundo pós-globalização, onde a fluidez da tecnologia digital também define as identidades e as relações sociais. O resultado de tanta “liquidez” é um mundo cada vez mais atormentado por ansiedades e inseguranças. Bauman não era um intelectual dos mais otimistas.

Nascido em 19 de novembro de 1925, numa modesta família judaica, Bauman buscou refúgio na União Soviética quando as tropas nazistas invadiram a Polônia. Juntou-se ao Exército Vermelho e se dedicou ao estudo do marxismo. A experiência da guerra marcou indelevelmente a vida e o pensamento do sociólogo, que escreveu sobre as ligações entre a modernidade e o Holocausto. Segundo Bauman, o nacionalismo alemão não é suficiente para explicar a barbárie nazista. As complexas burocracias e tecnologias modernas teriam contribuído para o empreendimento nazista ao criarem condições para o desaparecimento da responsabilidade individual. A preocupação com a ética e as responsabilidades morais é central na obra de Bauman.

Finda a guerra, Bauman voltou à Polônia, onde se dedicou à militância comunista e acadêmica. Com o tempo, desiludiu-se com o comunismo soviético, que descambara em totalitarismo. Ao lado de outros intelectuais da Universidade de Varsóvia – e inspirado pelas ideias do comunista italiano Antonio Gramsci – começou a desenvolver um “marxismo humanista”. “Eu descobri Gramsci, e ele me deu a oportunidade de uma libertação honrosa do marxismo. Era um modo de abandonar a ortodoxia marxista, mas eu nunca me tornei antimarxista, como a maioria. Eu aprendi muito com Karl Marx e sou muito grato”, afirmou.

No entanto, o regime comunista polonês não via com bons olhos o socialismo arejado sonhado por Bauman e seus camaradas. Em 1968, depois de um expurgo antissemita na Universidade de Varsóvia, Bauman partiu para o exílio. Depois de uma temporada em Israel, radicou-se na Inglaterra, em 1971, onde passou a lecionar sociologia na Universidade de Leeds e, posteriormente, na London School of Economics. Bauman também apreciava a literatura e era um grande leitor de Jorge Luis Borges Italo Calvino.

Bauman sempre levantou a voz em defesa dos despossuídos, dos refugiados e dos perdedores da globalização. E nunca perdeu a fé no papel do intelectual de intervir na realidade e fomentar ideias para a transformação do mundo: “Por que eu escrevo livros? Por que eu penso? Por que eu sou passional? Porque as coisas poderiam ser diferentes. Meu trabalho é alertar as pessoas dos perigos”, afirmou.

Bauman foi casado por 62 anos com a escritora polonesa Janina Lewinson-Bauman, que morreu em 2009. Ele deixa sua segunda esposa, Aleksandra Jasinska-Kania, filha do ex-presidente da Polônia comunista Bolesław Bierut, três filhas e mais de 50 livros publicados.

Leia abaixo uma entrevista inédita que Bauman concedeu a ÉPOCA em agosto do ano passado, quando foi publicada a edição brasileira de Babel – entre a incerteza e a esperança (Zahar, 154 páginas, R$ R$ 34,90).

ÉPOCA – Na edição brasileira, o nome do seu livro é Babel – entre a incerteza e a esperança. Por que o senhor acha que há um sentimento crescente, ao menos nas sociedades ocidentais, de vulnerabilidade e incerteza com relação ao futuro de nossa Babel?

Zygmunt Bauman – Um primo próximo da incerteza é o sentimento da impotência. As ferramentas que, no passado, se mostraram eficazes para lidar com os desafios da vida individual e coletiva têm sido desacreditadas, tornaram-se infrutíferas e fúteis. Individualmente ou conjuntamente, nós estamos emergindo, de sucessivos testes, desarmados, infelizes, incapazes de lidar com os desafios. Os sábios na ribalta rivalizam uns com os outros. Sugerem soluções para os nossos problemas, como a guerra ao terror, as restrições à migração, incontáveis reformas trabalhistas e educacionais com o objetivo de preparar nossas crianças de forma a atender a suas demandas caprichosas e voláteis. Todas essas aparentes soluções, uma após a outra, falham em cumprir com suas promessas. Junte à incerteza esse desencorajador e humilhante senso de inaptidão e o sentimento é semelhante a gastar a vida num campo minado que nós sabemos estar cercado de explosivos, mas sem termos nenhum indício de onde ou quando essas explosões vão acontecer.

ÉPOCA – O senhor acha que esse sentimento de vulnerabilidade é devido à globalização – o modo como o capitalismo global é organizado – ou à evolução tecnológica que está substituindo o trabalho humano? Ou a ambos?


Bauman –  
De fato, a globalização parece uma das principais culpadas. Como Ulrich Beck (sociólogo alemão, que viveu entre 1944 e 2015), uma das mentes mais brilhantes do nosso tempo, colocou: nós estamos presos em uma “situação cosmopolita”. Nós, os residentes do planeta, somos interdependentes, conscientemente ou não, queiramos ou não. Mas essa situação não está sendo acompanhada pelo desenvolvimento, pela aquisição e aplicação de uma “consciência cosmopolita”. Nós continuamos com os memos instrumentos concebidos no passado para resolver problemas impossíveis de resolver, que emergem das condições de interdependência, erosão e diluição da autonomia territorial e das soberanias nacionais.

ÉPOCA – Esse sentimento de vulnerabilidade inflamou também uma crescente raiva nas sociedades, que passou a ter consequências políticas, como podemos ver na aprovação do Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia aprovada em referendo) e na emergência do fenômeno Donald Trump nos Estados Unidos. Como o senhor acha que essa raiva afetará a democracia?

Bauman – O que nós muitas vezes caracterizamos como “crise da democracia” é, na verdade, uma crise das obsoletas instituições dos Estados-nações territorialmente soberanos. Por mais que tentem, os governos desses Estados, devido a um constante déficit de poder, falham em entregar suas promessas. Mais e mais pessoas, desencantadas com essa experiência frustrante, desviam suas esperanças do sistema de partidos políticos para fora do sistema. A diminuição geral de confiança na política corrói a democracia. Muito de nós veem a alternativa sugerida pelos candidatos  autoritários – um governo pessoal e ditatorial, livre das restrições da democracia – como uma tentação difícil de resistir. Estamos todos próximos de cair numa emboscada. O que pode acontecer se a notoriamente fraca governança democrática for substituída por um “homem forte” ou uma “mulher forte” no topo, com capacidade de tirar a responsabilidade de nossos ombros para os seus ombros fortes, em troca de nossa não interferência e submissão incondicional? Lembre-se de que a grande maioria dos nossos contemporâneos nunca experimentou, de primeira mão, os duvidosos encantamentos de viver sob uma ordem autoritária, muito menos uma totalitária.

ÉPOCA – O senhor concorda que a principal divisão nas sociedades ocidentais deixou de ser entre esquerda e direita e passou a ser aquela que opõe os que favorecem as fronteiras abertas contra aqueles que querem fechá-las?

Bauman – A bicentenária divisão entre direita esquerda tem sido sistematicamente e efetivamente erodida pela política de privatização e individualização.  Essa é uma política que gradualmente, mas incessantemente, substituiu um ambiente social hospitaleiro à solidariedade humana por outro gerador de suspeição mútua e competição brutal; um ambiente no qual nós, por bem ou mal, operamos desde o nascimento até a morte.

ÉPOCA – Como conter a ascensão dos neopopulistas e dos neofascistas?

Bauman – Eu não tenho uma receita pronta, nem um atalho. Eu suspeito que nós estejamos passando de uma busca por uma utopia (uma sociedade que ainda não existe em nenhuma lugar) para um retorno a uma “retrotopia” (uma sociedade que não existiu). As presentes gerações estão crescentemente desviando suas esperanças de uma sociedade melhor do futuro para o passado (igualmente imaginário). “Progresso”, que num passado não muito longínquo era associado a uma vida melhor, agora tende a ser associado a mais catástrofes, mais privação e degradação, mais riscos e menos segurança.

ÉPOCA – Na nossa Babel, como transformar incerteza em esperança?

Bauman – Como é da natureza da Babel, a única esperança para as pessoas presas nela é o diálogo – um diálogo contínuo e de boa vontade. Engajar-se no diálogo, como o papa Francisco vive nos lembrando, é confiar nas outras pessoas, por mais diferentes e estranhas, para que sejamos dignos de atenção, de sermos ouvidos, de discutirmos. O diálogo tem de ser sobre a construção de pontes, não de muros. E deixe-me fazer uma advertência: o diálogo não é uma prescrição para soluções rápidas e instantâneas. Mas, sem diálogo, dificilmente haverá futuro para os residentes da Babel que lhes dê tempo para ponderar resoluções e colocá-las em prática. Em outras palavras: o diálogo é o instrumento para tornar o nosso planeta hospitaleiro para resolver os problemas que nós confrontamos conjuntamente e que, uma vez que permaneçam sem solução, podem dar origem a pesadelos apocalípticos.

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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