‘Narcoterrorismo’: um olhar geográfico sobre o tema, por Gabriel de Pieri & Padilha

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Vitor Stuart Gabriel de Pieri e Marcela do Nascimento Padilha

Professores associados do Instituto de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)

Folha de São Paulo, 06/11/2025

O emprego do termo “narcoterrorismo”, cada vez mais recorrente no debate político brasileiro para equiparar a violência urbana ao terrorismo, revela uma leitura distorcida das dinâmicas espaciais da criminalidade. O conceito confunde dimensões distintas: a criminalidade, orientada pelo lucro, e a subversão política, guiada por ideologias. Essa distorção se evidencia na forma diferenciada como cada um desses atores se relaciona e se projeta sobre o território.

O crime organizado é guiado por uma essência eminentemente lucrativa. Seu objetivo primário é o acúmulo incessante de capital por meio do domínio de atividades ilícitas, não a tomada de poder político.

Requer um ambiente operacional estável, buscando coexistência funcional com o Estado ou a ocupação de suas lacunas. A relação do crime organizado com o espaço é essencialmente pragmática e logística.

O controle de territorialidades, entendido como o conjunto de regras, símbolos e práticas de poder que um grupo impõe sobre determinado espaço, constitui um recurso logístico e econômico crucial, um ativo fundamental para otimizar o lucro das operações. Em síntese, o crime organizado instrumentaliza o controle do espaço como um ativo empresarial, garantindo a continuidade e a maximização de seus negócios ilegais.

Em nítido contraste, o terrorismo possui natureza predominamente política ou ideológico. Sua motivação fundamental não é financeira, mas a obtenção de poder e influência, orientando suas ações para a modificação estrutural da ordem estatal vigente. A violência é sua ferramenta primária de coerção.

A relação do terrorismo com o espaço não é de domínio para fins de lucro, mas de comunicação política: a violência é deliberadamente propagada no território —espaço geográfico sob soberania estatal—, convertendo-o em palco de mensagem ideológica e efeito simbólico.
O objetivo central é amplificar sua projeção política, espalhar o pânico social e impor sua agenda, mirando a alteração da própria estrutura estatal. Em síntese, o terrorismo instrumentaliza a violência no espaço para alcançar seu objetivo político.

A discrepância fundamental entre os dois conceitos é crucial: enquanto o crime organizado instrumentaliza o controle do espaço para garantir o negócio, o terrorismo, em geral, instrumentaliza a violência no espaço com finalidade política.
É vital reconhecer que facções criminosas geram terror, mas seu propósito primordial é a otimização de ganhos financeiros, não a subversão ideológica do Estado. Tais grupos exploram o vazio de controle estatal para prosperar em seus negócios, sem a meta de impor um novo sistema político.

Nesse sentido, o termo “narcoterrorismo” revela-se conceitualmente inadequado para descrever a natureza da criminalidade organizada no Brasil.

Sua aplicação acrítica e indiscriminada acarreta dois riscos conceituais de graves implicações: a banalização do conceito de terrorismo e o deslocamento da análise técnica e especializada em favor de classificações de caráter meramente político-ideológico.

Desse modo, tal mecanismo tende a legitimar práticas de exceção incompatíveis com os direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal, abrindo espaço para o alinhamento automático a agendas de segurança externas, expressão de um movimento de subordinação a um modelo hegemônico global que articula elementos de guerra cultural, estratégias de ataques preventivos e naturalização de zonas de influência.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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