Necropolítica nacional sentou praça no Congresso, por Marcelo Leite

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Com decisão sobre maconha, STF se curva à amoralidade parlamentar

Marcelo Leite, Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas – Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

Folha de São Paulo – 30/06/2024

Após nove anos cozinhando o galo, o STF (Supremo Tribunal Federal) botou um ovo de serpente ao se pronunciar sobre o porte de Cannabis para uso pessoal. Policiais seguirão na função de juízes, decidindo na rua quem é traficante ou usuário.

O STF reconheceu, é verdade, que havia viés racial na prática anterior de quase sempre enquadrar pretos e pobres como traficantes, como bem celebrou Djamila Ribeiro. Talvez o arbítrio dos agentes resulte um pouco dificultado com o limite objetivo que rebaixou de crime para ilícito a posse de até 40 g da maconha. Talvez.

Já o advogado Cristiano Maronna, que representou o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) na ação de 2015 no Supremo, apontou a Mônica Bergamo que a decisão favorece “apenas o playboy” consumidor da droga.

“A pressão que a extrema direita fez sobre o STF funcionou”, disse ele à colunista. “O STF se impôs uma autocontenção exagerada. Ficou aquém das decisões tomadas pelas Supremas Cortes de Argentina, Colômbia, México e África do Sul.”

A premissa dos 40 g pode terminar posta de lado quando houver testemunho policial e provas ancoradas nele. Se PMs se investem do poder de matar jovens pardos a qualquer tempo, o que os impedirá de dar falso testemunho e forjar provas?

Maronna assinalou ainda que muitos dos alvos da violência policial são usuários de outras drogas, como o crack. Por prudência ou pusilanimidade (decida o leitor), o ministro Gilmar Mendes as excluiu de seu voto inicial. Abriu a porteira, e a carneirada passou.

Não existe motivo plausível, jurídico ou científico, para fazer essa distinção entre maconha e outras drogas, como observou Hélio Schwartsman. Ela deriva de puro cálculo político; melhor dizendo, do temor de que a decisão constitucional espicaçasse a húbris parlamentar.

Sobre as supremas cabeças paira a PEC das Drogas, desembainhada em setembro pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), após o STF ousar avançar na pauta. Na mesma terça-feira (25) da decisão tão protelada, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) oficializou a comissão especial que a analisará.

A comissão já havia sido formalizada uma semana antes por Lira, mas ele só a fez publicar quando a corte se pronunciou. Também na mesma data o deputado alagoano completou 55 anos, que comemorou em Portugal durante festa do grupo Esfera Brasil, um “esquenta” do Fórum Jurídico de Lisboa, vulgo “Gilmarpalooza”.

Pela praxe da Câmara, a composição da comissão seguirá a proporcionalidade das bancadas. Em outras palavras, será dominada pela centro-direita com que cinco ministros do Supremo confraternizam sem corar no convescote lisboeta de Gilmar.

Nenhum dos comensais, juiz, empresário ou banqueiro, se incomoda com Pacheco e Lira brandirem a PEC das Drogas não por convicção, mas oportunismo. Para manter controle sobre a própria sucessão, querem adular a bancada da bala e da bíblia, que depende de realimentar pânico moral entre apoiadores para se reeleger.

Pouco importa se meninos e rapazes escuros forem mortos ou encarcerados injustamente, ao arrepio de garantias constitucionais. A necropolítica sentou praça no Congresso –eis o maior legado das trevas bolsonarianas com que o andar de cima e a Faria Lima voltam a flertar.

O que esperar, se não a mais abjeta amoralidade, de gente que propõe tratar como assassinas garotas estupradas que ultrapassam a 22ª semana de gravidez porque profissionais de saúde fundamentalistas se recusam a realizar abortos a que elas têm direito por lei?

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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