Nem progressista nem identitário, papa Francisco foi defensor radical da tradição cristã, por Francisco Razzo

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Pontífice se empenhou na preservação das instituições evangélicas, sem qualquer pretensão de ruptura

Francisco Razzo, Professor de filosofia e autor dos livros “Contra o Aborto” e “A Imaginação Totalitária” (Record), entre outros.

Folha de São Paulo, 27/04/2025

[RESUMO] O papa Francisco, que morreu aos 88 anos, era por muitos erroneamente considerado um progressista inimigo da tradição, sobretudo quando comparado a seu antecessor, Bento 16. Na verdade, sustenta o texto a seguir, não há oposição entre os dois papas, e o pontífice argentino foi o intérprete mais radical da lógica de continuidade do Concílio Vaticano 2º. Ao optar por gestos simples, linguagem direta e defesa dos excluídos, Francisco retomava princípios básicos cristãos, como a compaixão, e seguia a linguagem do Evangelho.

Em fevereiro de 2013, Bento 16 tomou a decisão mais teologicamente radical de um papa: renunciou ao comando da Igreja Católica. O gesto pode ter sido discreto e quase litúrgico, mas seu alcance foi sísmico. A figura do pontífice, ligada ao imaginário de soberana firmeza, subitamente se esvaziava de si mesma.

Como ficaram o conservadorismo doutrinário e a resistência do catolicismo triunfante? Bento 16 não fugiu da cruz, como disseram alguns. Carregou-a até o limite da obediência e, ao depor a tiara, apontou para outro modo de exercer a autoridade cristã: não o poder que permanece em força, mas o serviço que se retira em silêncio e humildade.

A renúncia, nesse sentido, deve ser compreendida como um ato escatológico muito mais que político, pois é justamente aí que a lógica do poder fracassa.

Quando Jorge Mario Bergoglio surgiu na sacada da Basílica de São Pedro, com nome de Francisco e sotaque portenho, a Igreja já havia atravessado um limiar irreversível. Visivelmente, Francisco não sucedeu a Bento no estilo, na linguagem ou, se quiserem forçar ainda mais a barra, na teologia sistemática.

Francisco, porém, herdou o peso da cruz institucional e todos os dramas de uma Igreja presente no mundo. Seu modo de carregar esse fardo seria outro. Uns diriam que menos doutrinal e mais pastoral. Talvez não tão romano e mais católico.

O fato é que sua força estava no gesto, no corpo e na proximidade. Francisco deve ser lido a partir desta chave: a missão da Igreja continua salvífica, isto é, anunciar o Evangelho de Cristo.

A pandemia escancarou tudo isso ao mundo. Em 27 de março de 2020, sozinho sob a chuva, Papa Francisco proclamou: “Viemos perceber que estávamos todos no mesmo barco.” A imagem da barca em meio à tempestade tornou-se o retrato da condição eclesial e espiritual do nosso tempo: medo, dispersão e impotência. Francisco não comandava. Apontava para o Crucificado. E fazia isso com os gestos lentos e a respiração pesada —como quem carrega, em oração, o peso de um mundo sem fôlego.

Naquela noite escura, o papa assumiu a intercessão silenciosa da Igreja. Tornou-se figura daquele que vela enquanto os outros dormem. Ali, a solidão evocava a aflição de Getsêmani: a vigília de quem permanece firme na fé. Mais do que mero cenário, aquela noite chuvosa impunha um juízo e um clamor por confiança.

Obviamente, Francisco não ofereceu as típicas respostas prontas dos especialistas do vírus e do poder. Ao contrário, ofereceu companhia, como quem sabe que Deus pode parecer ausente, mas nunca abandona.

A morte de Francisco deve impor reflexão —para católicos e não católicos— sobre o que significa crer, governar, esperar e servir a um mundo adoecido pelas patologias da razão e da fé.

Portanto, para entender Francisco, precisamos considerar a seguinte perspectiva: ele não pode ser compreendido fora da lógica  da continuidade do Concílio Vaticano 2®, o encontro de bispos, realizado entre 1962 e 1965, que visava renovar a presença e a missão da Igreja diante dos desafios do mundo moderno. Além de herdeiro, ele foi o intérprete mais radical de suas intuições evangélicas.

Ao contrário do que muitos podem supor, não desmontou a tradição. Francisco a recolocou por completo no horizonte “conciliar”. Noutras palavras, é preciso pensar Francisco a partir da hermenêutica da continuidade radical, isto é, de uma continuidade levada até as últimas consequências e sem qualquer pretensão de ruptura.

No parágrafo de abertura da “Lumen Gentium”, a constituição dogmática elaborada no Concílio Vaticano 2º, define-se a missão da Igreja como sacramento universal de salvação de todo o gênero humano. Isso significa que sua estrutura visível existe para tornar presente, no tempo, o mistério invisível da graça.

Para a autocompreensão católica, a Igreja não é fim em si. É sinal. E o sinal precisa apontar para além de si. O papado de Francisco brota desta raiz messiânica: a pastoral, a sinodalidade, a atenção às periferias, a denúncia do clericalismo vazio —tudo isso nasce de uma compreensão sacramental e servidora da Igreja no mundo atual.

Ao optar por gestos simples, linguagem direta e presença entre os excluídos, Francisco não abandonou a tradição de ensino oficial da Igreja. Fez o que era preciso: reconfigurar essa mesma autoridade à luz da própria instrução de “Gaudium et Spes”, outra constituição do concílio, onde se lê: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração”.

A escolha de estar com os excluídos, sem interpor filtros ou abstrações ideológicas, não tem nada a ver com populismo, comunismo ou progressismo Sua marca pastoral é da fidelidade a essa forma paradoxal da presença cristã no mundo: a do servo sofredor.

Isso não significa dizer que seu papado tenha sido fraco. Ele foi, na verdade, estruturado menos na lógica do decreto e mais na escuta e no anúncio. Se Bento 16 serviu com a inteligência luminosa da fé, oferecendo-lhe solidez teológica e profundidade espiritual, Francisco a serviu com a ternura dos gestos e o realismo pastoral do cuidado.

Não há oposição entre eles. Há continuidade. Francisco não nega Bento. Ele o completa —como o coração completa a razão, como a presença concreta confirma o ensinamento. Ambos compreenderam, cada um à sua maneira, que o serviço petrino não se define por estilos administrativos. A fidelidade ao Evangelho ensina que governar é servir —e governar assim exige a opção por uma existência sacramental completa.

Francisco nunca foi o papa desta ou daquela ideologia. Ainda que tenha sido rotulado por alguns como progressista, populista ou até mesmo comunista, suas palavras sempre se nutriram da gramática do Evangelho. Quando denunciava a exclusão social, falava como discípulo do Cristo cuja realeza se manifesta na manjedoura e na cruz —tronos de um Deus que reina na simplicidade e na entrega.

A imprensa secular moderna o leu com os instrumentos disponíveis de uma mentalidade mundana. Viu nele um reformista, um progressista, um antagonista da tradição. Não se pode esperar mais do que isso, pois essa leitura nasce da conveniência caricata e limitada capacidade de interpretar o mundo apenas como jogo de forças e interesses políticos.

Francisco, ao criticar os efeitos desumanizantes do sistema econômico, retomava a tradição da Doutrina Social da Igreja, sem alinhamento partidário. Esperar liberalismo ou socialismo da Igreja é desconhecer a própria Igreja. Ao pedir acolhimento aos migrantes, papa Francisco só evocava a compaixão cristã, e não um programa de assistencialismo.

Sua linguagem é a do Evangelho, não a do identitarismo, tampouco a do progressismo ou a do conservadorismo. Seu vocabulário é pastoral, enraizado na escuta, na compaixão e na experiência concreta do cuidado. Por isso mesmo, sua palavra é facilmente distorcida —ora celebrada de modo apressado por entusiasmos sentimentalistas, ora rejeitada com dureza por quem confunde fidelidade com triunfalismo.

A acusação de que teria substituído a doutrina por ideologia se desfaz diante de seus próprios textos doutrinários e pastorais. As encíclicas “Laudato Si'” e “Fratelli Tutti” não oferecem uma plataforma política. Propõem um juízo espiritual sobre o mundo contemporâneo.

Ambas nascem da tradição teológica que reconhece na criação um dom e uma responsabilidade. Francisco escreve como herdeiro de São Francisco de Assis, mas também como sucessor direto de Bento 16 —celebrado como o “papa verde”.

Foi Bento quem insistiu que a crise ecológica é inseparável da crise moral, e que a ordem da criação exige respeito integral à vida, ao ambiente e ao homem. Como reconhece Francisco: “O papa Bento 16 propôs-nos reconhecer que o ambiente natural está cheio de chagas causadas pelo nosso comportamento irresponsável o próprio ambiente social tem as suas chagas”.

Em “Laudato Si”, a ecologia surge como desdobramento da fé no Deus criador. O universo jamais poderia ser concebido como objeto neutro de exploração. É dom recebido, lugar de comunhão e de queda. A crise ecológica, nesse horizonte, se impõe como expressão de uma crise espiritual mais funda: o homem perdeu o sentido da medida, rompeu vínculos, destruiu o que não sabe amar. A conversão exigida é a da penitência.

Já “Fratelli Tutti”, por sua vez, fala de fraternidade, mas não de forma secular abstrata humanista ou identitária. O texto se ancora na filiação comum a Deus e na experiência cristã da reconciliação. A amizade social que propõe nasce do perdão, do acolhimento e da superação do medo.

Ambas as encíclicas revelam o mesmo princípio: a fé que não toca o sofrimento do mundo torna-se conceito vazio. Francisco não quis blindar a Igreja da tragédia. Quis que ela a habitasse —com lucidez, com compaixão e com a esperança que nasce do Crucificado.

Papa Francisco morreu deixando uma Igreja em agonia —e este talvez tenha sido o maior sinal de sua fidelidade. Não buscou apaziguar disputas com decretos, nem agradar facções com joguinhos políticos. Tocou feridas. E permitiu que a Igreja sentisse suas dores.

O próximo papa herdará uma Igreja Católica ferida por carregar o peso do mundo e as marcas da cruz. É uma Igreja peregrina, cuja vocação de unidade nunca foi tranquila. Barca em tempestade, vigília no deserto, ela avança sem garantias humanas.

E mais uma vez, quem for chamado a conduzi-la terá de fazer uma escolha decisiva: governar com as categorias do mundo ou permanecer fiel ao Evangelho.

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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