É o único setor em que benefícios tributários superam a contribuição ao PIB
André Roncáglia, Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP
Folha de São Paulo, 25/08/2023
A teoria das vantagens comparativas é uma das mais bem-sucedidas abstrações na assim chamada ciência econômica. Elaborada pelo economista britânico David Ricardo, ela visava fortalecer a indústria manufatureira, cujo desenvolvimento era inibido por uma política de proteção à agricultura. Ricardo defendia a abolição das tarifas protecionistas à agricultura para que as importações derrubassem o preço dos grãos. A subsequente queda dos salários e da renda dos proprietários de terra abriria espaço para os lucros impulsionarem a indústria.
Curiosamente, o tom industrializante da aplicação da teoria ao império global da época se inverteu ao cruzar a linha do Equador. Na periferia, a teoria recomendava a especialização na exportação de matérias-primas. O Brasil conta, desde então, com um séquito leal de defensores das vantagens comparativas. Deslumbrados com o poder tecnológico dos países do norte, tornaram-se sócios minoritários abastados do nosso subdesenvolvimento.
Sob o manto protetor dessa “boa teoria econômica”, o agronegócio consolidou seu poder econômico, o que lhe permite financiar meios de comunicação para legitimar seu protagonismo e ocultar seus privilégios. Slogans como “o agro é tech, o agro é pop” lançam um verniz mítico sobre um setor que é, na verdade, fortemente subsidiado e protegido pelo Estado há décadas.
A agropecuária representa 7,9% do PIB e míseros 3% dos empregos formais da economia, mas paga menos de 1,5% da arrecadação total de tributos. É o único setor que abocanha uma fatia dos benefícios tributários (13,5%) maior do que sua contribuição ao PIB. Por comparação, a indústria representa 12,9% do PIB e 15% dos empregos formais, sendo responsável por 31% dos tributos arrecadados e 12,5% dos benefícios tributários.
Além disso, o agro não seria tech sem os pesados investimentos feitos pelo Estado em pesquisa agropecuária. A Embrapa custará R$ 3,7 bilhões aos cofres públicos em 2023. Cerca de 2.500 pesquisadores oferecem inovações que melhoram a produtividade do setor. Em contraste, a Embrapii (Associação Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial) recebe R$ 1,1 bilhão, enquanto a Ceitec, estatal do chip que tira o sono dos liberais, custa R$ 53 milhões ao Orçamento federal.
É uma raridade um empresário do agronegócio reclamar da Selic estratosférica. Sabe por quê? O agro conta com o Plano Safra, que oferece crédito com taxas de juros variando de 7% ao ano até 12,5% ao ano. A Selic pode ir pra Marte que o agro não dará um pio. Dificilmente o agro seria pop se pagasse as taxas de juros que a indústria paga, cujo piso médio está em 20% ao ano.
No período 2023-2024, serão R$ 435 bilhões em crédito subsidiado (apenas R$ 73 bilhões serão destinados à agricultura familiar). Em 2015, o crédito direcionado representava 90% do Plano Safra, caindo para cerca de 50% desde então. O motivo é a captação de crédito via Letras de Crédito do Agronegócio (LCA) e nos Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA), ambos com isenção do Imposto de Renda sobre os rendimentos financeiros.
Na reforma tributária em debate, o agro conseguiu um desconto de 60% na alíquota dos novos tributos (o IBS e a CBS), mas pressiona os congressistas a elevar o desconto para 80%. Essa “meia-entrada agrishow” deverá ser paga sobretudo pela indústria, mas também pelo comércio e pelos serviços.
Alega-se que o agro traz divisas para o Brasil, o que justificaria os subsídios bilionários destinados ao setor. Se tiver a mesma oportunidade, a indústria também pode fazer isso, com efeitos mais robustos em termos de geração de empregos e inovação tecnológica.
Reverter nossa baixa sofisticação produtiva e nossa pauta regressiva de exportações requer nivelar o campo de jogo entre todos os setores.