O Brasil e seus inimigos, por Silvio Almeida.

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O presidente não quer dar o golpe; ele é o golpe

Silvio Almeida, Advogado, professor visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, e presidente do Instituto Luiz Gama.

Folha de São Paulo, 22/07/2022

Por mais terrível que possa soar, por mais contraditório que pareça e por todas as consequências que traga, é preciso reconhecer que o presidente da República é um inimigo do povo brasileiro. Certamente alguém dirá —e com razão— que ele não está sozinho, que ele é apenas um lacaio de grupos empresariais e de militares que nunca aceitaram o fim da ditadura, mas o presidente da República é hoje a face mais visível do pior do Brasil.

Não que o Brasil já tenha sido um paraíso ou que algum dia o povo brasileiro tenha sido tratado pelo Estado com carinho e dignidade. Entretanto, é difícil pensar em outros momentos de tamanha indecência e descaramento, mesmo em um país cuja história é marcada de uma ponta a outra pela violência e pela desigualdade.

O governo de Jair Bolsonaro é a encarnação mais viva e apodrecida do que tenho chamado de “tendências estruturais da formação social brasileira”, a saber: o autoritarismo, a dependência econômica e o racismo. Estas “tendências” são forças constitutivas da vida nacional, que se manifestam mesmo diante de arranjos político-institucionais republicanos e democráticos, tal como o conferido pela Constituição de 1988.

Em outras palavras: mesmo quando o Brasil não estava tomado pela absoluta indigência política, jamais deixou de ser autoritário, racista e dependente. A diferença é que este governo, além de não fazer oposição a tais tendências, muito pelo contrário, trabalha ativa e orgulhosamente pelo aprofundamento do autoritarismo, pela disseminação do racismo e pela destruição de toda e qualquer possibilidade de soberania econômica. É um governo de antibrasileiros, racistas e entreguistas.

A esta altura do jogo, está evidente que Bolsonaro não apenas quer dar um golpe de Estado, mas que ele é o próprio golpe. Ele é o golpe nosso de cada dia. Sua sobrevivência política e a de seu grupo dependem do golpe e de golpes sucessivos.

Ele é a “vitória dos derrotados” pelo fim da ditadura e pela demissão de Sylvio Frota; ele é a bomba do Riocentro que explode todos os dias em nosso colo; ele é o grito dos grandes corruptos contra a corrupção, e que só tem por objetivo minar a confiança do povo na política; ele é a personificação da fome, da doença, do desemprego e da desigualdade que muitos cinicamente desejam para o país, tal como revelou o empresário que o apoio e que teria lhe apresentado sua cara-metade, o ministro da Economia.

Por estes motivos, o presidente e sua turma não podem se dar ao luxo de perder as eleições. A questão aqui não é ganhar, porque “ganhar” significa, talvez mais do que “perder”, submeter-se às regras do jogo constitucional, e isso ele nunca quis e não vai querer. Só o golpe, a fraude, a farsa, o caos e a violência sem limites interessam.

Ele não aceitará outra coisa que não seja sua permanência no poder, pois se for derrotado poderá (e deveria) ser processado criminalmente, e o bando de autoritários, corruptos e arautos da miséria que o acompanha deixá-lo-á na estrada, abandonado, assim como o próprio costuma fazer com muitos de seus antigos aliados.

Mas repetir à exaustão que Bolsonaro quer dar um golpe e nada fazer para impedi-lo só serve para naturalizar a presença de um golpista na cabeça do poder do Estado, além de plantar as sementes para que em alguns meses as pessoas assistam bestializadas a uma possível invasão do TSE ou do STF, como se fosse um seriado de TV.

Desse modo, tudo o que acontecer daqui para a frente e, especialmente, se custar sangue derramado por estes golpistas, será não apenas responsabilidade do golpista-em-chefe instalado na Presidência, mas também de todos aqueles que tendo o dever político e até jurídico de fazer algo para impedir que ele tenha sucesso, gostosamente, se omitem.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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