O deus mercado profanou a CLT, por Jorge Luiz Souto Maior

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Jorge Luiz Souto Maior – A Terra é Redonda – 30/08/2025

A retórica da flexibilização é a profanação contemporânea dos direitos, um ritual que sacraliza o lucro ao custo de vidas. A resistência necessária não é nostálgica, mas sim a recusa firme de que a dignidade humana seja imolada no altar do mercado

Um grupo de autodenominados “líderes empresariais” está realizando um encontro que, segundo expõe a propaganda do evento, se destina a promover, com as falas de especialistas e empresários, um “debate sobre a conjuntura atual e o cenário econômico global”.

Mas o propósito não é propriamente avaliar os limites, potencialidade e debilidades de uma economia baseada na produção de mercadorias sem-fim, em um universo de matéria-prima finita e para um mercado de consumo cada vez mais restrito.

Os “especialistas” e empresários, que não estão ali reunidos por acaso, já têm a fala pronta (mais antiga que a roda) que gira em torno da redução dos custos do trabalho como a fórmula necessária e infalível para aumentar a produção e o lucro das empresas.

Este é um discurso que se apresenta como novidade, embora seja “novo” e “moderno” desde o final do século XIX, quando iniciava, no Brasil, o período de transição do trabalho escravizado para o trabalho livre, ou seja, muito antes do advento da tal CLT.

Os temas dos painéis do evento não deixam a menor dúvida a respeito do alvo projetado das falas: “Os desafios contemporâneos da tercerização” (Painel 1); “As eventuais mudanças na legislação e os impactos na perspectiva do trabalho” (Painel 2).

Trata-se, pois, de um evento em que se realiza a reunião de pessoas (as mesmas de longa data – quase tão antigas quanto à própria CLT) ideologicamente comprometidas com os interesses imediatos do capital, sobretudo, o capital estrangeiro, para promoverem mais um ataque à já tão baleada legislação trabalhista no Brasil e tudo isto para, explicitamente, ofertar mão de obra barata para a exploração do grande capital internacional.

E, de fato, é bem mais que isto: trata-se, em verdade, da reprodução das lógicas do escravismo colonial, renovando a oferta dos corpos de pessoas racializadas, subalternizadas e desconsideradas quanto à sua condição humana.

São estes “especialistas”, não por mera coincidência, homens e brancos, autênticos “líderes” do comércio de gente, da venda despudorada de carne negra barata para o consumo imediato do processo produtivo, em nome do “desenvolvimento econômico do país”, como, aliás, já fizeram os seus antepassados.

Dizem que vão formular uma “análise aprofundada das transformações no mundo do trabalho e nos modelos regulatórios”, mas o que, de fato, manifestam é a velha, antiquada e surrada retórica de que a legislação trabalhista no Brasil é retrógrada e rígida, mesmo que a CLT de 1943, em concreto, não mais exista há muitas décadas, dadas a inúmeras alterações que lhe foram introduzidas e mesmo que a CLT, durante longo período, tenha servido à exclusão de pessoas negras e de mulheres do mercado de trabalho, além de reprimir a luta coletiva de trabalhadores(as) por melhores condições de trabalho, tendo sido, por isso mesmo, apoiada expressamente pela nova classe industrial em ascensão, a partir dos anos 1930.

É importante destacar, inclusive, que desde a década de 1960, vários instrumentos de “flexibilização”, precarização e retração de direitos foram integrados à CLT, tais como: a redução salarial imposta pela Justiça do Trabalho (1965); a representação comercial (1965); o FGTS (1967); o trabalho temporário (1974); a intermediação do trabalho do vigilante (1982); o esvaziamento hermenêutico dos arts. 7º, 8º e 9º da Constituição Federal de 1988 (de 1988 até hoje, aniquilando a garantia contra a dispensa arbitrária, naturalizando as horas extras, monetizando a saúde, discriminando as trabalhadoras domésticas, aniquilando o direito de greve, aprisionando a liberdade sindical); a terceirização da atividade-meio (1993): a cooperativa de trabalho (1994); o banco de horas (1998); o contrato provisório (1998); a suspensão temporária do contrato de trabalho – “lay off” (2001); a recuperação judicial (2003); a jornada 12×36; a terceirização da atividade-fim (2017); o contrato individual superando o negociado (2017); o negociado sobre o legislado (2017); o trabalho intermitente (2017); o obstáculo ao acesso à justiça (2017) etc.

E mesmo com tudo isso, estas pessoas, cinicamente, continuam dizendo que a CLT de 1943, com sua rigidez (que, de fato, nem nunca existiu), continua regulando as relações de trabalho no Brasil, gerando alto custo de produção (embora, de fato, o custo de produção no Brasil seja um dos mais baixos do mundo), desestimulando investimentos e impedindo o desenvolvimento econômico (ainda que o Brasil seja o espaço privilegiado da especulação estrangeira e onde as empresas multinacionais experimentam seus maiores lucros e os trabalhadores(as), os mais baixos salários do mundo e um número de horas trabalhadas dentre os mais elevados nos diversos países.

Pois o negócio é se reunir, fazer festa, formular elogios recíprocos, rir da desgraça alheia, tripudiar sobre a vida da classe trabalhadora e zombar de todo mundo dizendo que os(as) trabalhadores(as) no Brasil são privilegiados(as) e que os empresários brasileiros são vítimas desemparadas.

Mas, concretamente, não são tão desamparados assim, né?! Afinal, têm Ministros do STF e do TST que os defendem abertamente!!! E, de fato, as instituições estatais estão há décadas realizando esta defesa do capital e promovendo ataques aos(às) trabalhadores(as).

Estas “iluminadas” mentes só conseguem pensar uma forma de estimular o desenvolvimento econômico, qual seja, retirando direitos dos que chamam de privilegiados, para permitir a quem não tem direito algum se igualar aos que até então eram os tais privilegiados.

Uma estranha forma de igualdade que, no fundo, se deparando com as sucessivas crises do capital, visa, de forma reiterada, progressiva e sempre renovada, rebaixar a rede de proteção social, para manter a riqueza dos poucos que a detém ou mesmo lhes permitir aumentá-la ainda mais.

Cabe não olvidar que esta “fórmula” para o desenvolvimento do país tem sido experimentada desde a década de 1960 (com maior vigor) e só produziu os efeitos (os verdadeiramente almejados) da acumulação da riqueza (em mãos estrangeiras), da dependência política, econômica e tecnológica do país (que sequer tem soberania a defender), da precarização das relações de trabalho, do sofrimento físico e psíquico nas relações de trabalho e da disseminação da miséria e da fome.

Neste cenário, o mais novo “especialista” em Direito do Trabalho, Luís Roberto Barroso, vem sustentando por aí que a “reforma” trabalhista aumentou a empregabilidade, não se dignando, por certo, de explicitar que são, em verdade, subempregos, mal remunerados, carregados de precarização e efêmeros, isto é, de pouca duração, o que retroalimenta o rebaixamento, tanto que, baseados na própria retração de direitos, os representantes do capital e até mesmo as empresas diretamente têm tentado disseminar uma aversão ao trabalho com carteira assinada, estimulando a “pejotização”, uma nova faceta do “empreendedorismo”, que representaria uma situação mais vantajosa para os(as) trabalhadores(as).

Não tendo mais como rebaixar direitos, chegou a hora de eliminar de vez o Direito do Trabalho e, por consequência, a Justiça do Trabalho, mas com o argumento – apoiado na precarização – de que isto é bom para a classe trabalhadora. Desconsiderando-se, por óbvio, a existência da ordem constitucional, na qual os direitos trabalhistas e sociais se situam como Direitos Fundamentais e o fato de que este ordenamento garante uma condição mínima existencial aos(às) trabalhadores(as) e o direito de lutar, coletivamente, por melhores condições de vida e de trabalho.

Aliás, vale o registro de que a bola da vez, na linha do rebaixamento, tende a ser os benefícios previdenciários, pois, sem as fórmulas jurídicas de imposição da solidariedade social, as bases de sustentação da Seguridade Social vão à bancarrota.

E, agora, o momento mais angustiante deste texto (se já não o fosse bastante) que é o de reproduzir as violências explicitadas pelo Ministro Gilmar Mendes, com relação aos direitos dos(as) trabalhadores(as) e a própria dignidade dos seres ainda humanos que habitam neste território.

Pois não é que o Ministro, afoito para oferecer um algo mais ao setor econômico, subiu vários pontos na escala das ofensas e irracionalidades e chamou a CLT de “vaca sagrada”.

É difícil encontrar palavras que possam integrar um texto jurídico, para reagir a isto, pois o Ministro, a um só tempo, agrediu a dignidade de milhões de brasileiros e brasileiras que ao longo da nossa história lutaram para conquistar direitos e o que, posteriormente, tem se dedicado a fazer valer esses direitos.

O Ministro expressa, com todas as letras, que quem defende direitos trabalhistas só o faz porque tem adoração a um símbolo religioso, a tal CLT, sem contar que, ao mesmo tempo, com esta “analogia”, ofendeu igualmente os Indus e suas crenças.

Mas, curiosamente, ele se posta como um deus, que tudo pode! Na verdade, como o filho de deus, (do deus mercado), a quem deve obediência e devoção!

Buscando agradar ao seu deus, teceu loas à “reforma” trabalhista e profanou a CLT, pouco importando se, de fato, a Lei 13.467/17 foi apenas mais uma (embora de forma muito mais profunda) dentre tantas outras leis que promoveram inúmeras alterações na CLT. Desse modo, todos os artigos da “reforma” estão inscritos na tal “vaca sagrada” que, portanto, já não seria tão sagrada assim.

Mas uma coerência mínima pouco importa, o que gera aplausos naquele ambiente é defender retração de direitos e, mais ainda, atacar a Justiça do Trabalho, afirmando que esta só teria, em algumas decisões, resistido à aplicação de preceitos da “reforma” porque se mantém apegada aos dogmas da CLT – sem dizer quais, por certo.

Ocorre que fazer este enfrentamento não lhe pareceu suficiente. Considerou necessário entregar mais e para assim agir voltou ao plano do misticismo.

Com uma autoridade digna de uma divindade, criou uma versão própria da Constituição Federal e a sacralizou, de modo que resta a todos apenas o ato de seguir as suas palavras, ou, mais propriamente, os seus próprios dogmas.

Expressou, por conseguinte, que a Constituição “não determina padrão específico de produção”, querendo dizer com isto que a produção, no sentido de exploração do trabalho, pode se desenvolver sem quaisquer limitações jurídicas, não havendo, pois “justificativa para preservar as amarras de um modelo hierarquizado e fordista”, que estaria “na contramão de um movimento mundial de descentralização”.

Então, se o mundo (leia-se, empresas multinacionais) determina um padrão de exploração do trabalho, o Brasil deve se curvar ao que for demandado pelo poder econômico dessas empresas, mesmo que a Constituição Federal vá em outro sentido. E ainda há quem aposte todas as suas fichas na defesa da soberania nacional.

Mas Gilmar Mendes não opera no plano da realidade normativa. Assim, na “CMGM”, isto é, na “Carta Magna do Gilmar Mendes”, estas restrições político-jurídicas não existem, vez que foram simplesmente abolidos todos os artigos (da Constituição Federal de 1988) em que os direitos trabalhistas, incluindo a relação de emprego, a organização sindical e a greve, aparecem como Direitos Fundamentais e em que se explicitou o pacto social firmado em torno da dignidade humana; dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; da prevalência dos Direitos Humanos; da construção de uma sociedade livre, justa e solidária; da erradicação da pobreza e da marginalização; da redução das desigualdades sociais; da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; da função social da propriedade; da ordem social baseada no primado do trabalho, tendo como objetivo o bem-estar e a justiça sociais; da ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.

Para o Ministro o que vale é o credo do mercado livre de todas as amarras, diga-se, sem a obrigação de cumprir direitos trabalhistas, para o delírio de alguns supostos “empreendedores” nacionais. A que nível de “debate” chegamos!!!

Mas quem sabe daqui a alguns dias as associações e movimentos de defesa dos trabalhadores e trabalhadoras e da Justiça do Trabalho façam uma “nota” respeitosa contra isso, até porque, como se diz, não é hora de se contrapor ao Supremo.

E desse modo, sem uma efetiva e contunde reação, e até mesmo por sucessivas assimilações do discurso empresarial no próprio seio da Justiça do Trabalho (videm as estratégias de gestão pautadas pela produtividade e, mais recentemente, a adoção do mecanismo – inconstitucional – dos precedentes, que reproduzem, ambos, a tática de assédio sobre magistratura trabalhista, buscando criar a figura do juiz-gestor ou, mais propriamente, o não-juiz), que favorecem à naturalização e “legitimação” jurisprudencial da precarização, é que as violências contra os direitos fundamentais da classe trabalhadora (atingindo, sobretudo, a corpos determinados) proliferaram impunemente e continuarão crescendo, de uma forma cada vez mais perversa.

A esperança que resta é que a classe trabalhadora como um todo perceba este processo, se reorganize e ofereça resistência aqui e agora, não se deixando levar pelos discursos falseados da “liberdade” individual, do “empreendedorismo” e da oportunidade política que imporiam a necessidade da formação de alianças com as forças que lhe oprimem, que lhe exploram, que zombam das suas necessidades e que, no fundo, desconsideram a sua condição humana.

Jorge Luiz Souto Maior é professor de direito trabalhista na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Dano moral nas relações de emprego (Estúdio editores).

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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