Revista Isto é Dinheiro – 27/04/2018 – Luis Arthur Nogueira
Antônio Delfim Netto era chamado de o czar da economia brasileira. Participou diretamente e indiretamente de todos os governos desde o golpe militar de 1964. E, aos 90 anos, segue influenciando os rumos do País. Conheça a sua trajetória, suas histórias inéditas dos tempos da Ditadura e as suas relações com os presidentes do período democrático
Antônio Delfim Netto: “O Brasil não é um fracasso. O problema do País foi não entender que deveria ter preservado a sua indústria” (Crédito: Gabriel Reis)
Os militares e os civis. A esquerda e a direita. Desde 1964, não há um único presidente da República Federativa do Brasil que não tenha recebido a contribuição direta ou, ao menos, um conselho ao pé do ouvido do economista Antonio Delfim Netto.
Aos 90 anos de idade, comemorados em 1º de maio, o ex-ministro da Fazenda, da Agricultura e do Planejamento durante a maior parte do governo militar continua influente, lúcido, bem-humorado e sarcástico. Em sua consultoria, a Ideias, fundada em 1974 e localizada num casarão em estilo normando ao lado do estádio do Pacaembu, em São Paulo, ocorrem reuniões políticas e econômicas com personagens de todos os espectros ideológicos.
A mais recente aconteceu na segunda-feira 23, com os pré-candidatos à Presidência Ciro Gomes (PDT) e Fernando Haddad (PT). Há um ano, devido a restrições médicas, Delfim Netto mudou o seu escritório do 1º andar para o térreo, ao lado da sala de espera das visitas. No andar de cima, ficaram nas paredes as charges dos tempos em que a mídia o retratava como o homem forte da economia dos militares. Apesar da limitação física, ele anda sem a ajuda de acessórios, participa de eventos e mantém uma rotina intensa de trabalho. “Nascer no 1º de maio, dia do trabalhador, não é coincidência”, afirma Delfim Netto, que recebeu a DINHEIRO duas vezes em seu escritório nas últimas semanas. “É destino.”
Delfim Netto estará ao lado da família no feriado que marcará os seus 90 anos. Neto de imigrantes italianos e primogênito de um casal de classe média, José e Maria Delfim, o economista tem duas irmãs, Filomena e Terezinha, uma filha chamada Fabiana e um neto, o Rafael, cujas fotos dominam as prateleiras do seu escritório. Nascido no Cambuci, bairro industrial de São Paulo, o economista não gosta muito de falar sobre a sua infância – conta apenas que gostava de remar no rio Tietê. É como se a sua biografia começasse oficialmente aos 14 anos, quando arrumou o seu primeiro emprego de office boy na indústria de produtos de higiene pessoal Gessy, que seria comprada pela Unilever na década de 1960.
Naquele tempo, passou a colecionar livros, um hobby que seria levado muito a sério não apenas durante a sua vida acadêmica, mas também ao longo de sua atuação no serviço público. “Em viagens oficiais pelo mundo, o Delfim sempre arrumava um espaço na agenda para visitar sebos e encontrar relíquias”, diz Paulo Yokota, ex-aluno do professor Delfim Netto na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA-USP) e sócio na Ideias Consultoria. Ele acompanhava o ministro em reuniões em Paris, Nova York e Tóquio.
Pelas mãos de Delfim Netto, Yokota entraria na vida pública como diretor do Banco Central e presidente do Incra. O mesmo roteiro foi seguido por outros ex-alunos, que seriam apelidados de “Delfim boys”. A maioria mantém até hoje a amizade com “o mestre”, como o chamam. A DINHEIRO entrevistou outros quatro “Delfim boys”: Akihiro Ikeda, que também é sócio na Ideias Consultoria; Carlos Antonio Rocca, diretor do Centro de Estudos de Mercado de Capitais (Cemec); Luis Paulo Rosenberg, dono de uma consultoria que leva o seu sobrenome; e Affonso Celso Pastore, ex-presidente do Banco Central. Apenas Pastore se afastou do Professor Emérito da FEA-USP.
Bom de garfo: chamado de gordo por seus amigos, Delfim Netto nunca escondeu o gosto por bons restaurantes. Na foto, come frutas de sobremesa no italiano Roma, em São Paulo
A mania por livros resultaria numa coleção de 250 mil exemplares, que foi integralmente doada à biblioteca da instituição, em 2014. “Apenas devolvi à faculdade um pedacinho do que ela me deu”, diz Delfim Netto, que se formou em 1951. “Eu dei muita sorte. Eu não escolhi a profissão. Foi a profissão que me escolheu”, afirma o economista que, com quatro troféus, é o recordista do prêmio entregue anualmente pela Ordem dos Economistas do Brasil (OEB). “É, disparado, o maior economista vivo do Brasil”, afirma Manuel Enriquez Garcia, presidente da OEB.
Em paralelo à FEA-USP, Delfim Netto foi aprovado num concurso público do Departamento de Estradas de Rodagem (DER), em São Paulo. Lá, aprendeu o lado real da economia ao calcular a depreciação das máquinas rodoviárias. Após a formatura, foi contratado como assistente do professor Luiz de Freitas Bueno, engenheiro que se tornou o primeiro docente de Estatística Geral e Econômica da faculdade. “Foi o grande inspirador disso tudo”, diz o discípulo. Na época de dedicação à academia, no início dos anos 1960, Delfim Netto organizava encontros às sextas-feiras para debater o marxismo. “Eram conhecidos como seminários do uísque, pois os participantes faziam uma ‘vaquinha’ e compravam uma garrafa”, diz Carlos Antonio Rocca, diretor do Cemec, que foi aluno de Delfim na FEA-USP.
Falar dos tempos da faculdade é prazeroso para Delfim Netto, que tem uma memória invejável. Sua tese de doutorado foi sobre o café, o principal produto brasileiro. “O café era sinônimo de câmbio e representava 70% das exportações”, diz. “O problema é que o bom desempenho do café valorizava o câmbio e prejudicava a indústria.” A conclusão foi a de que o Brasil precisava desenvolver outras áreas para reduzir a dependência do café. O economista levaria essa convicção para o governo militar.
Decretado o golpe, em 1964, Delfim Netto foi convidado pelo presidente Humberto Castelo Branco a participar do Conselho Consultivo de Planejamento (Consplan), que tinha a missão de opinar sobre o Programa de Ação Econômica do Governo (Paeg). No biênio 1966-1967, foi secretário da Fazenda de São Paulo no governo Laudo Natel, levando os “Delfim boys” como assessores. “O Artur da Costa e Silva, que havia sido ministro da Guerra de Castelo Branco, pediu para o Rui Gomes de Almeida [empresário da Associação Comercial do Rio de Janeiro] escolher um economista que não fosse carioca para lhe dar um panorama do Brasil”, diz.
“O Rui indicou o meu nome e eu fui a um apartamento, em Copacabana, explicar ao Costa e Silva como reduzir a dependência do café.” Depois de cinco horas de exposição, Delfim Netto foi embora para São Paulo sem nenhum feedback. Um certo dia, entra um assessor na Secretaria da Fazenda de São Paulo e lhe entrega uma carta do presidente-marechal com um convite para ser ministro da Fazenda. “Eu podia escolher meus auxiliares livremente desde que obedecesse a um critério geográfico”, afirma. “No regime autoritário, tínhamos de pensar na integração nacional, ou seja, escolher representantes de cada uma das cinco regiões do País.” Era março de 1967, a economia estava em desaceleração, a inflação anual oscilava entre 30% e 40% e Delfim Netto, nomeado o salvador da pátria, tinha apenas 39 anos.
O CZAR DA ECONOMIA A sede do Ministério da Fazenda era no Rio de Janeiro, ex-capital da República. Para lá foram alguns “Delfim boys”, que causaram certa inveja aos economistas cariocas. Eram chamados de “paulistas caipiras”. A rotina de Delfim Netto se divida entre Brasília (às segundas), o Rio (terça a quinta) e São Paulo (às sextas). Sempre às quartas, o ministro da Fazenda se encontrava com assessores, empresários e jornalistas depois do expediente. O restaurante escolhido era o Le Bistrô, em Copacabana. Delfim Netto foi o primeiro ministro a se preocupar com a explicação dos conceitos econômicos aos profissionais da imprensa, influenciando toda uma geração. O jornalismo econômico, como conhecido atualmente, não existia.
Trabalho: criada na década de 1970, a ideias consultoria fica num casarão de estilo normando ao lado do estádio do Pacaembu, em São Paulo
Na capital paulista, ele mantinha estreita relação com os empresários ligados à Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Até hoje, preside o Conselho Superior de Economia da entidade. Atendendo ao clamor do setor privado, em 1967, quintuplicou o prazo para o recolhimento de impostos, melhorando o fluxo de caixa das empresas.
Delfim herdou do seu antecessor, Otávio Gouveia de Bulhões, e do ministro do Planejamento, Roberto Campos, os benefícios de uma série de reformas no âmbito do Paeg, incluindo a criação do Banco Central e do Conselho Monetário Nacional. Chamado de o czar da economia, ele aprendeu a usar o Banco do Brasil como “olhos e braços do governo”. “Se você tem um problema de camarão no Ceará, chame o gerente do BB de Fortaleza, que vai te explicar a situação e, provavelmente, vai te sugerir uma boa solução”, diz. É, por isso, que ele refuta qualquer sugestão de privatização do Banco do Brasil.
Ainda no governo Costa Silva, Delfim Netto passou por um dos momentos mais delicados de sua trajetória política. No dia 13 de dezembro de 1968, foi um dos signatários do Ato Constitucional Número Cinco (AI-5), o mais severo do período militar. Mandatos foram cassados e direitos políticos, suspensos.
Aos 90 anos, ele afirma não se incomodar com perguntas sobre aquele período. “Quando o futuro vira passado, você percebe as implicações”, diz. “Suspender o habeas corpus não significa dar licença para fazer tortura.” E arremata: “ter assinado o AI-5 não significa ter aprovado a tortura”. Delfim Netto jura que não sabia do que acontecia nos porões da ditadura. Dada a sua inteligência, é dificil de acreditar.
De sua convivência com o marechal Costa e Silva, Delfim Netto lembra-se de um episódio inusitado. Ele estava no gabinete presidencial quando o neto do marechal entrou com um semblante tristonho. Após colocar o garoto de 8 anos no colo, perguntou o que estava acontecendo. Tímido, o neto não quis contar. O avô, então, afirmou. “Já sei! Disseram que seu avô é burro, não é isso?” O garoto balançou a cabeça positivamente. Costa e Silva então arrematou: “amanhã, quando você for à escola, pergunta para os seus amigos onde estão os avôs deles. Pergunta o que eles tão fazendo pelo Brasil”.
Com estímulos fiscais e monetários, e minidesvalorizações cambiais que levavam em conta a inflação brasileira e a americana, a economia começaria a se recuperar no fim da década de 1960. Os motores eram grandes obras, consumo, ocupação da capacidade ociosa das indústrias e exportações. As vendas ao exterior triplicaram no período conhecido como “Milagre Econômico”, que duraria até 1973. Esses dólares abundantes serviram para financiar a compra de petróleo e de máquinas para estimular o setor industrial. “A indústria brasileira chegaria a ser, segundo o Banco Mundial, a mais sofisticada do mundo subdesenvolvido”, diz Delfim Netto. De 1968 a 1973, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu, em média, 11,2% ao ano. “Não teve milagre”, afirma. “Milagre é efeito sem causa. Os brasileiros trabalharam brutalmente.” A inflação, que chegara a 91,8% em 1964, estava em um processo lento de desaceleração, num patamar de 30% a 40%, piorando em 1973, ao atingir 77,2%. Com Delfim Netto na Fazenda, o Brasil cresceu muito. Mas não aconteceu a sonhada distribuição de renda.
Desse período, no Ministério da Fazenda, Delfim Netto se orgulha de duas crias. A Secretaria da Receita Federal, em 1968, que unificou diversos órgãos fiscais, e a Embrapa, em 1972, que continua sendo referência em inovação no campo. Delfim Netto rechaça as acusações de que o governo militar manipulava a inflação, apesar das divergências entre os índices do Dieese, ligado aos trabalhadores, e os da Fundação Getulio Vargas (FGV), que produzia os dados oficiais. “Eu não brigava com o Dieese. Eu corrigia o Dieese por causa das amostragens equivocadas”, afirma o ex-ministro. “A Fundação (FGV) era invulnerável.”
Provavelmente por causa da autonomia de que desfrutava na Fazenda, Delfim Netto não esconde o seu apreço pelo presidente Emílio Garrastazu Médici, cujo mandato foi marcado por torturas. Ele conta um episódio em que o presidente-general não queria autorizar o descongelamento do preço das carnes, apesar dos seus argumentos de que não fazia mais sentido aquela medida adotada cinco meses antes. Pior: começava a ocorrer um desabastecimento. Quinze dias depois, de forma surpreendente, Médici mudou de opinião. Intrigado, Delfim Netto foi apurar o que havia acontecido e descobriu que o presidente tinha ordenado ao próprio filho que vendesse os bois da família. “Ele só autorizou a alta dos preços depois que ele não tinha mais nenhum boizinho para lucrar com a medida”, diz. “Ele era absolutamente íntegro.”
Em 1972, ocorreu um episódio que iria encerrar o período do Milagre Econômico. No gabinete do presidente Médici, houve uma reunião entre Delfim Netto, o ministro de Minas e Energia, Antônio Dias Leite, e o presidente da Petrobras, Ernesto Geisel, que viria a ser presidente da República dois anos depois. Em pauta, a baixa produção nacional de petróleo e o risco de alta no preço no mercado internacional. Naquela época, o Brasil comprava no exterior 80% de todo o petróleo que consumia. Para blindar o País, Delfim Netto e Dias Leite propuseram a criação de contratos de risco a companhias estrangeiras que quisessem explorar petróleo no Brasil. A equipe econômica tinha informações do FMI de que o cartel de petróleo iria tomar providências para pressionar a cotação do barril. Geisel discordou da ideia e convenceu o presidente Médici. “O Geisel atrapalhou tudo”, afirma Delfim Netto. No ano seguinte, o Brasil sofreria as consequências do primeiro choque do petróleo, que quadruplicou os preços do barril.
Ao lado do poder: Delfim Netto sempre participou de alguma forma de todos os governos desde o golpe de 1964. Na foto, o então Ministro da Fazenda ao lado do presidente Costa e Silva
Quarenta e seis anos depois, é possível constatar que Delfim Netto ainda não digeriu aquela rusga com o general Geisel, de quem foi abertamente opositor. “O presidente Geisel é um sujeito corretíssimo, decentíssimo, muito bem-intencionado, mas fez uma péssima administração. Tudo errado”, afirma (leia ao longo da reportagem os comentários de Delfim Netto sobre os doze presidentes da República, de 1964 a 2018). Não por coincidência, o economista foi despachado para Paris, numa espécie de exílio entre 1975 e 1978. “Passei a criticar duramente a nova política e o Geisel mandou me convidar a ser embaixador na França”, diz. “Eu entendi do que se tratava e fui. Nós nunca nos demos bem realmente.”
Rebelde, ele manteve na parede da Embaixada a foto do presidente Médici por um período. Indagado sobre esse episódio, ele negou. Diante do olhar incrédulo do repórter, ele finalmente admitiu. “Tá bom, tá bom. Foi só por um tempinho.” Durante a temporada francesa, surgiu o famoso “Relatório Saraiva”. Trata-se de um documento secreto redigido pelo coronel Raimundo Saraiva, então adido militar em Paris, que trazia denúncias de corrupção contra a embaixada chefiada por Delfim Netto. A acusação, rechaçada por ele, era de que seriam cobradas comissões de 10% sobre empréstimos de bancos franceses pela sua equipe. “Um bando de mentiras feitas pelos militares linha-dura”, afirma o economista.
Em 1978, já de volta ao Brasil, tudo indicava que Delfim Netto seria o governador de São Paulo. “Mas o Geisel vetou”, afirma. No ano seguinte, assumiu o Ministério da Agricultura no governo de João Figueiredo. Desta vez, o convite foi feito pessoalmente, e não por carta. Ficou apenas cinco meses no cargo, quando o governo foi surpreendido pelo pedido de demissão do então ministro do Planejamento, Mário Henrique Simonsen. O economista carioca abandonou o posto durante a crise do segundo choque do petróleo. “O Simonsen foi embora porque quis. O Figueiredo tinha paixão por ele”, diz Delfim Netto. “O Figueiredo ficou bravo quando viu que o Simonsen foi embora sem avisar, sem fechar o orçamento.” Dois dias depois, uma foto antológica de Simonsen de calção de banho na praia de Copacabana estampou a capa dos jornais e levou o presidente-general à loucura.
Delfim Netto foi imediatamente nomeado ministro do Planejamento. Antes de assumir o cargo, alertou o presidente de que “o Brasil havia quebrado”. “O Simonsen foi embora porque tinha consciência de que o Brasil tinha quebrado com a alta dos juros nos Estados Unidos.” Em reação ao segundo choque do petróleo, em 1979, o presidente do Banco Central americano (Fed), Paul Volcker, elevou os juros para o patamar de 20% ao ano, fazendo explodir o custo da dívida externa brasileira. “É importante compreender que foi o Geisel que endividou o Brasil para importar petróleo”, diz. “Quando o Médici saiu, não havia dívida externa.” Nas palavras de Delfim Netto, “o destino puniu Geisel”, que se recusou a fazer os contratos de riscos anos antes, quando era presidente da Petrobras. Delfim Netto salienta, no entanto, que o Brasil não quebrou sozinho. A União Soviética começou a se esfarelar no período do segundo choque do petróleo. Diante do diagnóstico tétrico sobre a situação, Figueiredo respondeu: “É isso mesmo, Delfim. O Brasil é um pinto, mas o Geisel fez ele botar um ovo de avestruz. Vai lá agora e costura o rabo do pinto.”
Generosidade: em 2014, Delfim Netto doou sua coleção de 250 mil livros para a biblioteca da FEA-USP. “Apenas devolvi à faculdade um pouquinho do que ela me deu”.Embora o Planejamento tivesse, naquela época, uma caneta poderosíssima, Delfim Netto faz questão de enaltecer o papel do ministro da Fazenda, o capixaba Ernane Galvêas, “um dos quadros mais competentes da administração pública”. Foi Galvêas que chamou o “Delfim boy” Affonso Celso Pastore para ser presidente do Banco Central, entre 1983 e 1985. Pastore estava dando aula de econometria em São Paulo quando recebeu um telefonema do próprio Delfim avisando que haveria o convite. “Eu aceitei, fui a Brasília e encontrei um País quebrado”, diz Pastore. “Era crise o tempo todo, pois o Brasil tinha reservas internacionais negativas.” Enquanto Delfim e Galvêas negociavam com o Fundo Monetário Internacional (FMI), Pastore articulava pagamentos com os bancos. O clima era estressante e a recessão foi quase tão grande quanto a registrada no biênio 2015-2016, no governo Dilma Rousseff. “A correção monetária com o Delfim e o Galvêas foi um desastre”, diz Pastore.
De fato, o desempenho econômico do último governo militar foi muito ruim. O PIB encolheu 6% entre 1980 e 1983 e a inflação disparou para o patamar de 200% ao ano. O Brasil viveria a chama década perdida.
Delfim Netto não é do tipo de economista que transparece irritação com as críticas. No entanto, ele acha injusto comparar a gestão dele na Fazenda entre 1967 e 1974, período do Milagre Econômico, com a sua gestão no Planejamento, entre 1979 a 1984.
“Esses dois ministros são a mesma pessoa”, diz. “As decisões são datadas. É fácil ser inteligente depois que o futuro virou passado.” De uma coisa o ex-ministro não pode reclamar, ele mandava e desmandava no orçamento federal, num período em que o Congresso não tinha direito a opinar. Com a aprovação da Lei da Anistia, em 1979, Delfim Netto conseguiu levar para Brasília um dos seus “Delfim boys” mais rebeldes. Luis Paulo Rosenberg, corintiano fanático e filho de um comunista cassado em 1964. “Eu me sentia um intruso na Ditadura e ainda sofria críticas de amigos e familiares”, diz Rosenberg, que trabalhava de camiseta numa sala no gabinete do ministro. “Eu era da ala acadêmica, que não usava terno e gravata.” Todas as pessoas que trabalharam com Delfim Netto durante os Anos de Chumbo garantem que ele nunca perdia o bom humor.
Eterno conselheiro: com a chegada à presidência do amigo Michel Temer, o economista Delfim Netto voltou a ter forte influência na agenda econômicaSua principal arma para se manter como o civil mais poderoso entre os militares sempre foi a informação, e, para isso, era estratégico ter pessoas de confiança espalhadas por toda a máquina pública. “Almoçávamos todos os dias e cada um da equipe contava sobre os problemas”, diz Rosenberg. “Com isso, o gordo sabia de tudo o que estava acontecendo”. Gordo era um dos apelidos de Delfim Netto, que nunca escondeu o gosto por bons restaurantes nem se preocupou com regime. Atualmente, em São Paulo, seus prediletos são os italianos Roma, no bairro de Higienópolis, e Gero, do Grupo Fasano, nos Jardins.
DEMOCRACIA Encerrada a ditadura, Delfim Netto foi eleito deputado federal – seriam cinco mandatos consecutivos até 2006. Ainda com o País abalado pela morte de Tancredo, o presidente José Sarney assume e começa a montar sua equipe. Ele precisava de um assessor econômico e o nome escolhido foi o de Rosenberg. Em um jantar com Sarney, em Brasília, Rosenberg recusou o convite. Ele voltou a São Paulo e recebeu um telefonema às 6 da manhã. Do outro lado da linha, a voz inconfundível do seu ex-chefe Delfim. “Você é um filho de uma p… Quem você pensa que é para dizer não a um presidente da República?”, indagou. “Prometa para mim que se isso acontecer de novo, você fala comigo antes.” Rosenberg prometeu. Dois minutos depois, toca o telefone. “Era da Presidência me convidando de novo para o cargo”, diz Rosenberg. “Não tive escolha. Aceitei por causa do gordo.”
Delfim Netto garante que não foi consultado sobre o Plano Cruzado, “o maior estelionato eleitoral de que se tem notícia”, que congelou preços para angariar popularidade. Na eleição de 1989, votou em Fernando Collor de Mello, alinhado com a Fiesp, cujo presidente Mario Amato dizia que 800 mil empresários deixariam o País em caso de vitória do ex-metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva. Sobre o fracasso do Plano Collor, que confiscou a caderneta de poupança dos brasileiros, Delfim Netto disse que aquilo “só dava certo no quadro negro”. “Fui consultado pelo Collor somente depois que a coisa tinha acontecido.” Com o impeachment de Collor, assumiu Itamar Franco, “o melhor presidente”, na sua opinião. “Com todas as suas idiossincrasias, sem o Itamar, jamais teria havido o Plano Real”, afirma.
Milagre econômico: a gestão de Delfim Netto no Ministério da Fazenda gerou crescimento acima de 10% ao ano. Na foto, o ministro ao lado do presidente médici (ao centro)Curiosamente, foi durante os oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso que Delfim Netto se manteve mais distante do Palácio do Planalto. Os dois se conheciam desde os tempos da universidade. Suas críticas e seus conselhos chegavam a FHC através de interlocutores ou da imprensa. O ex-ministro, por exemplo, não concordava com a sobrevalorização do câmbio entre 1995 e 1998, que “matou a indústria brasileira”. “Em 1999, vem o Armínio Fraga, presidente do Banco Central, desvaloriza o câmbio e passam a fazer a coisa corretamente”, diz.
Mais curioso ainda foi que a sua reaproximação com o Poder se deu num governo de esquerda. Em 2002, quando Lula despontava na liderança da corrida eleitoral, Delfim Netto ficou amigo do petista.
Os dois se conheciam desde a década de 1970. Após o primeiro choque do petróleo, em 1973, o então ministro da Fazenda foi conversar com o líder do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC para explicar que a situação econômica iria piorar. “O Lula sempre foi um grande negociador”, diz. Essa admiração não é extensiva à ex-presidente Dilma Rousseff. Embora evite criticá-la publicamente – “ela é uma pessoa honesta” –, ele nunca aceitou o fato de que a petista não seguia os seus conselhos. Delfim Netto salienta, no entanto, que a sociedade aplaudiu as intervenções populistas no setor elétrico e na taxa de juros. “A Dilma não errou sozinha.” O seu rompimento oficial se deu após o escândalo das pedaladas fiscais. “Daí eu achei que tinha passado dos limites”, afirma.
Com o impeachment de Dilma, chega à Presidência o seu amigo e colega de partido (MDB), Michel Temer. Delfim Netto voltou a ter protagonismo, colaborando com o documento “Uma Ponte para o Futuro”, que propõe reformas para recolocar o Brasil nos trilhos. “Ninguém tem a vivência de política econômica que ele possui”, diz Ikeda, sócio e ex-aluno do mestre. “Todo mundo quer ouvi-lo.” Delfim Netto avalia que o presidente Temer é um exímio articulador político, que só não aprovou a reforma da Previdência por culpa das gravações do dono da JBS, Joesley Batista, em 2017. “Mesmo assim, nenhum governo fez em 20 meses o que o Temer fez”, afirma.
Sobre as eleições deste ano, não arrisca palpite, mas salienta que Ciro Gomes, Joaquim Barbosa e Geraldo Alckmin não podem ser menosprezados. Do AI-5 à Lava Jato, nenhuma pergunta o deixa irritado. Indignado, sim, com a operação da Polícia Federal no âmbito da Lava Jato, em sua residência, no dia 9 de março. Ele explica que prestou consultoria para montar um consórcio no leilão da Usina de Belo Monte. “Recebi R$ 3 milhões como honorários, em parcelas e de várias fontes. Tudo declarado.”
Aos 90 anos, Delfim Netto é o último de uma geração de pensadores que olhavam o País no longo prazo, como Simonsen, Campos e Bulhões. Ele esbanja saúde e lucidez ao relembrar dos fatos históricos, mas, nos últimos dez anos, pregou dois sustos em seus amigos e familiares. Em 2009, ficou internado por dois meses no Incor (SP), dos quais 18 dias em coma. No ano passado, passou mal em sua consultoria e foi socorrido pela sua secretária, Beti Czarny Kogan, que trabalha ao seu lado há 32 anos. Não existe reunião ou contratação de palestras – chegou a fazer 60 por ano – que não passe pela agenda da Beti. Além dos políticos, grandes empresários sempre ouviram os seus conselhos.
“Na época da ditadura, era impossível entrar no Brasil sem o aval dele”, diz um executivo de multinacional. O mestre ainda datilografa seus artigos em uma máquina de escrever Olympia, que possui há quase 50 anos. Continua um leitor voraz de jornais, revistas e livros – lê em inglês, francês, espanhol e italiano. Após a pausa para celebrar seu 90º aniversário, o economista voltará ao batente. Parar de trabalhar? Jamais. “Eu tive muita sorte. Nunca me senti trabalhando. Apenas vivi”, diz o mais poderoso economista do Brasil.