O Estado, a fome e os falsos cristãos, por Dora Incontri

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Hoje pela manhã, vejo uma das muitas más notícias que temos lido nos últimos tempos. Depois de termos saído do mapa da fome, nos governos petistas – e embora eu não seja petista e não faça propaganda partidária, porque sou anarquista, é preciso dizer que esse foi um grande feito de Lula – retrocedemos décadas e estamos de novo com uma população faminta e sem nenhuma garantia social.

Leio a manchete da Gazeta: Um país mais organizado é também um país sem fome. E lembro-me de um item do Livro dos Espíritos, de Kardec:

“930 – Numa sociedade organizada segundo a lei do Cristo ninguém deve morrer de fome.

Com uma organização social previdente e sábia o homem só poderia sofrer necessidades, por sua própria culpa. Mas essas próprias culpas são frequentemente o resultado do meio em que ele vive. Quando o homem praticar a lei de Deus, haverá uma ordem social fundada na justiça e na solidariedade e com isso ele mesmo será melhor.” 

Pois, veja-se a contradição das contradições… estamos num momento em que o Estado laico perde cada vez mais sua laicidade, que no Brasil desde a fundação da República nunca foi lá muito laico, sempre em conluios com a Igreja Católica e, mais recentemente, com as Igrejas protestantes. E, no entanto, isso não significa que o Estado se inspire em princípios éticos que são associados com a mensagem cristã: fraternidade, justiça, solidariedade, igualdade… O cristianismo que se enquista como uma doença nas estruturas do Estado – que deveria ser laico, justamente como uma garantia de liberdade religiosa e de consciência e para que valores de um determinado grupo não se imponham como regras de toda a nação – é um cristianismo moralista, retrógrado, opressor dos corpos e das mentes, aliado ao que há de mais anticientífico e desumanizante… O cristianismo, ao invés, que é a essência da mensagem de Jesus, aquela mesma a que se refere Kardec, se fosse inspiração de nossas instituições e organização social, redundaria numa sociedade mais justa e igualitária.

O cristianismo falsificado é a organização das igrejas em seus moldes hierárquicos, de abuso econômico, de opressão das pessoas, é a casca podre de todas as religiões, que preferem vez por outra demonstrar uma caridade ostentatória, a mudar de fato as estruturas da sociedade, abolindo a possibilidade da miséria, da exploração e da fome. Infelizmente, entre esses últimos, há muitos espíritas também. É a caridade vertical, dando migalhas ao faminto, ao invés de justiça, dignidade e solidariedade horizontal, promovendo a igualdade entre todos os membros de uma sociedade.

Quando vou comer, perco às vezes, a vontade, diante de um prato bem feito, ao me lembrar que milhões de brasileiros e de irmãos meus em humanidade, de outros países e continentes, estão acordando e indo dormir sem terem se alimentado. Eu nunca passei fome nessa vida, mas posso ter empatia com que passa. Posso me sentir visceralmente raivosa e indignada que num país com tanta terra, com tantos recursos, num mundo que joga toneladas de alimentos fora todos os anos, há seres humanos, entre eles, crianças e velhos, que vão para a cama de estômago roncando.

Essa gente que está no poder, no congresso, no executivo, que bate no peito, se dizendo cristã, e fica perseguindo o comportamento sexual do próximo, combatendo todas as formas de progresso científico, político e filosófico, essa gente não dá a mínima para a fome – ao invés, vai retirando a cada dia toda a expectativa de trabalho, educação, saúde, desenvolvimento e… comida, enquanto os bancos, sempre protegidos e bem tratados, faturam trilhões de lucros anuais. É o capitalismo, que de cristão de fato não tem nada. Porque Jesus diria que é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino dos Céus.

Quando de verdade os princípios essenciais do cristianismo de Jesus – que não por acaso, estão de maneira intrínseca em propostas socialistas, anarquistas, cooperativistas, revolucionárias da sociedade –  fizerem parte das formas estruturais de como nos organizamos, então sim, não haverá mais a aberração de tão poucos lucrarem tanto e a maioria do povo sem nenhuma garantia do básico para sobreviver.

 

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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