Os dois lados da dívida pública, por Samuel Pessoa

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Samuel Pessoa, Pesquisador do BTG Pactual e do FGV IBRE e doutor em economia.

Folha de São Paulo, 09/11/2025.

No caderno de fim de semana do jornal Valor Econômico da semana passada, o economista André Lara Resende (ALR) nos lembrou que a dívida pública tem dois lados. É um passivo do setor público, mas é riqueza, ativo, para o setor privado. Qualquer plano de consolidação fiscal que pretenda reduzir o endividamento público precisa se lembrar dessa dualidade.

Se o setor público pretende promover uma consolidação fiscal que irá reduzir o endividamento de um país, cabe a questão: essa ação será um equilíbrio do ponto de vista dos detentores da dívida pública? Há o desejo, por parte do setor privado, de reduzir seu carregamento de dívida pública?

Há sociedades que são muito poupadoras. O excesso de poupança estrutural do setor privado faz com que essas sociedades experimentem permanentemente uma situação de excesso de oferta sobre a demanda. Há uma pressão deflacionária permanente. Nesse caso, o setor público precisa incorrer em déficits permanentes para ocupar o espaço de demanda que o setor privado não ocupa.

O aumento do endividamento financia a demanda pública necessária para manter e economia a pleno emprego e compensar a carência de demanda do setor privado. Tecnicamente, diz-se que o setor público tem a função de demandante residual no mercado de bens e serviços.

Na coluna de 18 de maio do ano passado, mostrei que a dívida pública do Japão era de 252% do PIB em 2023. Os juros reais para o período dos 23 anos anteriores foram negativos em 0,3%, e a inflação, positiva em 0,4%, ambas as taxas anualizadas.

A taxa de poupança do Japão nos mesmos 23 anos foi de incríveis 28% do PIB, apesar do envelhecimento da população.

De sorte que o setor privado carrega nos seus portfólios os 252% do PIB de dívida pública e ainda sobram 80% do PIB para acumular no exterior: o setor privado japonês tem 80% do PIB de ativos contra não residentes. De fato, nesses 23 anos o Japão apresentou superávit de transações correntes de 2,9% do PIB!

Ou seja, o Japão é um caso que descreve bem o fenômeno descrito por ALR em sua coluna. Se o governo japonês quiser proceder a uma forte consolidação fiscal, gerará uma recessão. Haverá carência de demanda agregada, os juros nominais serão zero, e a economia entrará em uma espiral deflacionária. A taxa de desemprego elevar-se-á.

Certamente essa não é a situação da economia brasileira. Nos 23 anos terminados em 2023, a taxa real de juros foi de 5,1%, e a inflação, de 6,5%, já considerando a taxa anualizada.

A taxa média de poupança no período foi de ridículos 16,2% do PIB, e houve déficit nas contas externas de 2,1% do PIB. A consequência é que, em vez de termos ativos no exterior, temos passivos no valor de 39% do PIB.

A expressão de que no Brasil o setor privado não está muito disposto a carregar quantidades expressivas de dívida pública é dada, olhando a dinâmica das quantidades, pelo fato de termos acumulado um passivo contra o resto do mundo —se houvesse uma situação de forte demanda por ativos, acumularíamos no exterior—, e, olhando a dinâmica dos preços, pelo fato de a taxa de juros reais ser muito elevada.

Assim, para o Brasil, se houvesse uma fada que reduzisse fortemente o endividamento público, haveria uma força na direção de redução das taxas de juros domésticas.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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