Os indiferentes e os invisíveis, por Jânio de Freitas

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Estamos em um país brutalmente violento e estupidamente indiferente à sua realidade

Jânio de Freitas

Folha de São Paulo, 05/02/2022

Se o Brasil não ultrapassou as condições em que a violência ainda pode retroceder ao “normal”, está entrando nessa aberração sem volta.

Não se vislumbra preocupação coletiva com o problema, nem mesmo para conter o empenho criminoso do governo por mais e maior violência. Como se dá com a própria violência, é a continuidade lógica de um percurso imposto. Explicado pela invocação de suas causas gritantes, mas excluído o fator determinante: o passado indiferente e a indiferença do nosso tempo à liberação da violência. O que situa as responsabilidades silenciadas.

As causas socioeconômicas da violência, legado da escravidão, acumularam-se desde a oportunidade perdida de uma abolição com perspectiva social e inteligente. A indiferença dos possuidores pelo país abaixo dos seus interesses caminhou, pelo tempo afora, com a tranquilidade assegurada por polícias e forças militares em eventuais cobranças de alguma justiça.

As favelas deram, a um só tempo, tanto a estética da segregação urbana —a verdadeira arquitetura moderna brasileira— como um atestado sólido da indiferença. O trabalho depreciado, a escassa oferta de emprego e a concessão precária de escolaridade disponibilizaram população crescente para o desemprego adulto e a marginalidade jovem.

A pobreza e a miséria são violências passíveis de incutir a sobrevivência alheia a leis e princípios. Mas o desenvolvimento de tais práticas nunca levou a um esforço verdadeiro para corrigir, em alguma medida, as suas causas também crescentes.

Os possuidores e a política que a eles serve continuaram indiferentes. E sempre piorados: a cultura ocidental desenvolveu desde a Segunda Guerra, sobretudo com cinema e TV, um sistema de alta eficácia na indução de violência à vida cotidiana das próprias classes dominantes. Nesse nível, as barreiras oferecidas pela educação pessoal, pelo estudo, pelo convívio reduziram-se com rapidez drástica. Estão quase desaparecidas. Deram lugar a mais violência e a mais indiferença à realidade.

Não precisamos de estatísticas para saber: estamos em um país brutalmente violento e estupidamente indiferente à sua realidade. Nas classes que definem a estrutura social e influem nos rumos nacionais, claro. Os rumos da violência inspirada pela pobreza exasperante, e armada pela indiferença, não sabemos.

Casos de repercussão como o linchamento do congolês Moise Mugenyi Kabagambe não negam a indiferença, antes a confirmam. Consumados ou quase, assassinatos assim ocorrem no país todo, motivando mínimas notícias ou silêncio —não só por provável insuficiência jornalística, mas pela indiferença generalizada à indiferença mesma.

O clamor eclodiu dias depois do linchamento e da indiferença policial e dos noticiários. Causou-o o lamento comovente da mãe de Moise, Lotsove Lolo Lavy Ivone.

A política nunca se voltou de fato para as deformações que desenvolvem a violência. Nunca houve um esforço verdadeiro da sociedade e de seus instrumentos para suprir a omissão da política e dos recursos oficiais contra a violência e suas fontes reais. O que é uma violência monstruosa. Diferente na forma, e, apesar disso, comparável aos extermínios históricos. Centenas de milhões ou já bilhões vitimados por efeito da indiferença histórica no Brasil.

OUTROS MILHÕES

É um livro pequeno: “Invisíveis”. Uma palavra na capa, etnografia, pode afastar leitores. Seria pena. O livro da jornalista esplêndida, professora universitária e pesquisadora Fernanda da Escossia é “uma versão modificada” —digamos, simplificada ou traduzida— da tese de doutorado em que nos traz um universo inimaginado: o dos milhões de brasileiros que não têm direitos por não terem certidão de nascimento e, portanto, nenhum outro documento.

Quem não tem documento não existe legalmente: “Eu me sinto um nada”, “Sou um zero”, “Eu me sinto um cachorro”, ouviu Fernanda.

São histórias perturbadoras, lindas ou indignantes, que Fernanda colheu de velhos, mães, filhos ao persistirem na aventura dramática de provar ao Estado que nasceram. Logo, existem. E, com 30 ou com 75 anos, ou sem sequer saber o dia do nascimento, querem o direito de ser vistos no mundo dos vivos —até para o direito de ter uma certidão de óbito, e não a vala comum.

Às vezes comovente, aliviante em outras, é mais um Brasil que “Invisíveis” revela.

Ary Ramos
Ary Ramos
Doutor em Sociologia (Unesp)

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